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FRANCISCO BICUDO }( xpedição terminou com um sabor de melan- colia. Durante cinco meses, 20 biólogos per- correram 1.600 quilômetros do litoral bra- sileiro, do sul do Rio de Janeiro ao sul da Bahia. Quase palmo a palmo, examinaram plantas e animais que vivem em meio à restinga, uma vegetação baixa e úmida que cresce sobre a areia, entre o mar e a montanha. Encontraram 12 espécies de animais que habitam exclusivamente esse ambiente, como a pe- rereca Xenohyla truncata, de 3 centímetros de compri- mento, que se esconde no interior das bromélias. Mas, à medida que prosseguiam, enfrentando os brejos ea chuva contínua, os pesquisadores sentiam que a satisfa- ção pelas descobertas se transformava em desalento, ao constatarem o desaparecimento gradual desse ambien- te. Condomínios de luxo e favelas avançam sobre as res- tingas, também usadas como depósito ilegal de lixo e fonte clandestina de areia para a construção civil. Onde ainda é paradisíaca, a restinga sofre com o turismo de- sordenado e abertura de estacionamentos e trilhas. Coordenada por quatro professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Monique Van Sluys, Carlos Frederico Duarte da Rocha, Helena de Godoy Bergallo e Maria Alice Alves -, a equipe que cuidou desse levantamento avaliou cada uma das atividades humanas que ameaçam as dez restingas inicialmente analisadas - cinco delas no chamado corredor de biodiversidade da Serra do Mar (as de Grumari, Maricá, Massambaba, Iu- 44 JULHO DE 2003 PESQUISA FAPESP 89

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Page 1: FRANCISCO BICUDO...Trancoso, na Bahia, restou apenas o tre-cho junto à Barra do Rio do Frade", co-menta Rocha. "O resto já foi destruí do:' Apenas por seencontrarem relativamen-te

FRANCISCO BICUDO

}(

xpedição terminou com um sabor de melan-colia. Durante cinco meses, 20 biólogos per-

correram 1.600 quilômetros do litoral bra-sileiro, do sul do Rio de Janeiro ao sul daBahia. Quase palmo a palmo, examinaram

plantas e animais que vivem em meio à restinga, umavegetação baixa e úmida que cresce sobre a areia, entre omar e a montanha. Encontraram 12 espécies de animaisque habitam exclusivamente esse ambiente, como a pe-rereca Xenohyla truncata, de 3 centímetros de compri-mento, que se esconde no interior das bromélias. Mas, àmedida que prosseguiam, enfrentando os brejos e achuva contínua, os pesquisadores sentiam que a satisfa-ção pelas descobertas se transformava em desalento, aoconstatarem o desaparecimento gradual desse ambien-te. Condomínios de luxo e favelas avançam sobre as res-tingas, também usadas como depósito ilegal de lixo efonte clandestina de areia para a construção civil. Ondeainda é paradisíaca, a restinga sofre com o turismo de-sordenado e abertura de estacionamentos e trilhas.

Coordenada por quatro professores da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Monique Van Sluys,Carlos Frederico Duarte da Rocha, Helena de GodoyBergallo e Maria Alice Alves -, a equipe que cuidou desselevantamento avaliou cada uma das atividades humanasque ameaçam as dez restingas inicialmente analisadas -cinco delas no chamado corredor de biodiversidade daSerra do Mar (as de Grumari, Maricá, Massambaba, Iu-

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rubatiba e Grussaí), quatro no corredorcentral da Mata Atlântica (Setiba, Guriri,Prado e Trancoso) e urna no extremosul do Espírito Santo (Praia das Neves).Cada ação humana - da construção deestradas à abertura de trilhas de acessoàs praias - recebeu uma nota, de zero adois, de acordo com o impacto sobre oambiente. A soma dos pontos resultounum primeiro diagnóstico preciso dascondições de conservação das restingasdessa faixa do litoral brasileiro. "A restin-ga com pior nível de conservação é a doPrado, na Bahia, com 20 pontos': revelaRocha. Em situação igualmente críticaencontram-se duas restingas do Rio, asde Grumari e Grussaí, ambas com 15pontos, seguidas de perto pelas de Setiba,no Espírito Santo, e Massambaba, tam-bém no Rio, com 12 pontos cada uma.''Agora enxergamos de modo mais con-creto a dimensão dos estragos': diz LuizPaulo de Souza Pinto, diretor do Cen-tro de Conservação da Biodiversidade daConservation International do Brasil,um dos parceiros da UERJ no projeto.

Embora a área de restinga tenha en-colhido 500 hectares entre 1995 e 2000

apenas nos estados do Rio de Janeiro edo Espírito Santo, de acordo com umestudo da organização não-governa-mental SOS Mata Atlântica, ainda hátrechos em bom estado de conservação.Hoje, o levantamento abarca 17 .restin-gas, das quais sete bem preservadas, trêsem estágio intermediário e sete bastantedegradadas (veja mapa na pág. 47). "EmTrancoso, na Bahia, restou apenas o tre-cho junto à Barra do Rio do Frade", co-menta Rocha. "O resto já foi destruí do:'Apenas por se encontrarem relativamen-te isoladas das cidades e dos turistas éque algumas áreas ainda escapam do queparece ser o destino desse conjunto dematas à beira-mar, chamado de porta deentrada da Mata Atlântica. Esse é justa-mente um dos problemas. Souza Pintolembra que as restingas praticamentedesaparecem diante da Mata Atlântica,uma vegetação mais exuberante à qualestão associadas - e igualmente devas-tada desde que os colonizadores euro-peus aportaram suas caravelas. Aindahoje as restingas são muito pouco estu-dadas, embora se espraiem por uma fai-xa de cerca de 5 mil quilômetros ao

longo da costa brasileira, o trecho maisocupado do território, com cerca de 87habitantes por quilômetro quadrado -cinco vezes a média nacional.

Formada pelo acúmulo de areia eoutros sedimentos nas regiões planas deonde o mar recuou nos últimos 5 milanos, a restinga exibe feições diferentes.Sobre solo arenoso, pobre em nutrientese com salinidade elevada, cresce apenasuma vegetação rasteira, constituída ba-sicamente por gramíneas - esse é o tre-cho mais exposto à ação humana e a demais difícil recomposição, justamentepor causa do solo. À medida que se afas-ta das praias, surgem arbustos e moitascom 2 a 5 metros de altura, com trepa-deiras, bromélias e cactos. Só mais adi-ante, de 1 a 2 quilômetros do mar, é queaparecem árvores de médio e grandeporte, que podem atingir até 20 metrosde altura, como a figueira-vermelha, oipê-amarelo, a quaresmeira ou o mana-cá-da-serra e o guapuruvu. "Essa mu-dança na estrutura da restinga já eraconhecida", diz Monique. "Os estudossobre a fauna de vertebrados nas restin-gas é que ficavam em segundo plano:'

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Essa lacuna foi em parte esclarecidacom esselevantamento. Ao longo da ex-pedição, realizada entre novembro de1999 e março de 2000, a equipe cario-ca catalogou 147 espécies de animaisque vivem nas restingas. Predominamas aves (96 espécies), seguidas pelos an-fíbios (28 espécies), pequenos mamífe-ros (12) e os répteis (11).

Animais exclusivos - O inventário dadiversidadebiológica revelou 12espéciesexclusivasdessa região - por essa razãochamados endêmicos -, descritos pelaequipe da UERJ no livro A Biodiversi-dade nos Grandes Remanescentes Flores-tais do Estado do Rio de Janeiro e nasRestingas da Mata Atlântica, lançado emjunho pela editora RiMa. É o caso daXenohyla trunca ta, uma perereca de até3 centímetros de comprimento e pou-co mais de 4 gramas, que apresenta umcomportamento incomum entre os an-fíbios: alimenta-se de pequenos frutos,além de insetos, como é habitual entreessesanimais, e assim atua na propaga-ção das plantas, ao espalhar as semen-tes na restinga de Maricá, onde foi en-

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contrada. Já nas restingas da costa doRio de Janeiro,desde Marambaia até Ca-bo Frio, vive um lagarto com pequenastarjas marrons e laranja nas costas - éo Liolaemus lutzae, também chamadode lagartixa-da-areia. Abundante .até adécada de 70, essa espécie corre hojerisco de extinção, à medida que seu há-bitat se esvai com a ocupação huma-

.na. Em algumas áreas,como Prainha, nomunicípio do Rio, Barra Nova, em Sa-quarema, e Praia dos Anjos, em Arraialdo Cabo, norte do Estado, já não se vêmais o pequeno réptil. Com até 7 cen-tímetros sem a cauda, é uma das presaspreferidas de corujas e gaviões, mas àsvezes consegue escapar com um artifí-cio peculiar: quando perseguido, o la-garto solta a cauda - o movimento quefaz sobre a areia depois de desligar-sedocorpo atrai a atenção dos predadores,que desse modo nem sempre perce-bem o animal fugindo.

Entre as aves, a única espécie endê-mica de restinga é o formigueiro-do-li-toral (Formicivora littoralis), registradaapenas em uma das áreas estudadas noEstado do Rio - e ameaçada de extin-

ção devido à degradação acelerada deseu hábitat. Outra espécie que vive nasrestingas, cuja sobrevivência tambémestá em jogo, é o sabiá-da-praia (Mi-mus gilvus). Em latim, mimus quer di-zer imitador - a capacidade de repro-duzir cantos de outros pássaros é umadas características marcantes dessa ave,que atinge quase 25 centímetros. Comcauda longa e plumagem cinza-claronas costas e branca nas sobrancelhas,lembra as espécies da família dos sabi-ás, como o sabiá-laranjeira.

Endemismo concentrado - Nas restin-gas, as espécies endêmicas se concen-tram em duas regiões - evidentemente,as que se encontram em melhor esta-do de conservação, ainda pouco visi-tadas pelos turistas e construtores decondomínios. A primeira consiste detrechos isolados ao longo de 500 qui-lômetros, desde Linhares e Guriri, nonorte do Espírito Santo, até Prado eTrancoso, no sul da Bahia. É ali que seencontra, por exemplo, o Cnemidopho-rus nativo, um lagarto com duas listraslaterais brancas e uma dorsal de cor

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BAHIA

Entre o mar e a montanhao estado de conservação de 17 restingasentre o Rio de Janeiro e a Bahia

Hábitat reduzido: o sabiá-da-praia eo lagarto Cnemidophorus littoraliscontam cada vez menos com áreaspreservadas, como a restinga deJurubatiba (à esquerda)

salmão sobre o corpo verde-oliva. Des-crita num artigo na revista científicaHerpetologica, essa espécie de até 6 cen-tímetros de comprimento exibe umacaracterística rara entre os répteis: éformada apenas por fêmeas, que se re-produzem por um processo conhecidocomo parte nogênese - o óvulo se de-senvolve em um ser adulto sem a ne-cessidade de fertilização por um es-permatozóide. Ao sul, o endemismo éalto nas restingas de Maricá e Iuruba-tiba, no Rio. Só ali vive outro pequenolagarto, semelhante ao C. nativo, o Cne-midophorus littoralis, apresentado narevista Copeia. "A concentração de es-pécies endêmicas nessas regiões", dizRocha, "deve-se provavelmente às va-riações ocorridas nos últimos 10 milanos no nível do oceano, que promo-veram o isolamento de populações de

ancestrais, que assim divergiram gene-ticamente e passaram a constituir es-pécies diferenciadas."

Mas, afinal, as restingas desaparece-rão? Se depender dos pesquisadores doRio, não. No livro em que detalham asdescobertas da expedição, eles mostramo que poderia ser feitopara ao menos re-duzir o impacto humano. As ações con-sideradas prioritárias: aumentar a ex-tensão das áreas já protegidas por lei erealizar levantamentos mais abrangentesdas espéciesde plantas e animais encon-trados nas restingas, além de desenvol-ver programas de educação ambientalnas regiões litorâneas. Os pesquisadorespropõem ainda a transformação de áreascom o ambiente mais degradado - comoa restinga de Grussaí, no norte do Rio,de Praia das Neves, no município dePresidente Kennedy, Espírito Santo, ede Trancoso, na Bahia - em unidades deproteção integral, nas quais são permi-tidas apenas a realizaçãode pesquisas ci-entíficas, atividades educacionais e derecreação. "Em Grussaí, ainda há umaimportante área remanescente em bomestado, que, embora pequena, deveria

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ser preservada", recomenda Rocha. "Oentorno está muito degradado porcausa da ocupação irregular do solo."Segundo ele, outra relíquia que deve-ria ser preservada é a restinga de Praiadas Neves, que apresenta uma rara ri-queza e diversidade de espécies, embo-ra ainda não exista na região nenhumaárea de conservação.

O diagnóstico sobre o estado deconservação das restingas confirma arelação entre o grau de destruição deum ambiente e a ausência de políticaspúblicas.Naschamadas unidades de pro-teção integral, como o Parque Nacionalda Restinga de Jurubatiba, que inclui amais preservada entre as restingas estu-dadas, a ação predatória do homem ébastante reduzida. Sem proteção nemfiscalização,porém, o impacto humanotende a eliminar a vegetação natural ereduzir as chances de sobrevivênciados animais que ali vivem. Mesmo oclima das cidades pode mudar sem asdunas e a vegetação litorânea, que aju-dam a regular a temperatura. "O ritmode destruição é muito acelerado", la-menta Monique. •

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