francine fontanet - o calvário de joaninha

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O Calvrio de Joaninha Francine Fontanet Infanto-Juvenil Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura d e pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, e ste ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda q ue gratuitamente. Composto e impresso por Printer Portuguesa, Indstria Grfica, Lda. Mem Martins - Sintra para a Editorial Publica com sede na Avenida Poeta Mistral 6-B Dezembro de 1987 Joaninha recebe uma grande notcia O capito Andr d'Azincourt, conde de Ferrires, sentou-se numa poltrona da grand e sala de estar da Vivenda dos Lilases e, chamando Joaninha para junto de si, passou-lhe carinhosamente o brao em volta da cintura, e, no seu ar grave, deu-Lhe a notcia: - Minha filha, participo-te que vais ter outra mam. Joaninha contava dez anos incompletos, ainda gostava muito das suas bonecas, mas j pensava um pouco na vida. Desceu os seus olhos pretos, velados de longas pestanas, e ficou pensativa, a fixar muito os arabescos do tapete. Seu pai observou-a durante alguns momentos, com uma ternura que atenu ava a expresso habitualmente muito sisuda da sua face bem escanhoada. Depois, alisando-lhe suavemente os belos cabelos castanhos, anelados, e obrigand o-a a levantar a cabea e encar-lo, disse: - No esperavas esta novidade, pois no, minha filha? Joaninha mergulhara o seu olhar lnpido, sereno, nos olhos claros do pai e, aps um instante de silncio, como meditasse as palavras, mur murou: - Confesso que no esperava, pap. O conde julgou surpreender uma ligeira comoo na sua voz e ele prprio teve que dissimular a sua perturbao pela situao. Soltou um profundo suspiro. Tu s ainda muito nova para compreenderes estes problemas. Tenciono explicar-tos melhor mais tarde. Contudo, h alguma coisa que j podes ir entendendo. Apesar de ainda no teres dez anos, s dotada de uma inteligncia viva e de uma sensatez invulgar para a tua idade. o capito d'Azincourt interrompeu-se, pensativo, talvez indeciso em prosseguir; Jo aninha, que o escutava brincando maquinalmente com um boto do seu casaco de linho, como ele se detivesse, levantou de novo o olhar, convidando-o a prosseguir. Andr, acedendo quele mudo convite, continuou: - Desde a grande infelicidade que nos atingiu de perdermos a tua querida me, que este lar tem andado deriva... Tu nunca mais tiveste um carinho de mulher verdadeiramente interes sada no teu bem-estar. A tia Brbara est muito velha e tudo a aborrece. Miss Elizabeth uma estrangeira, uma ingl esa, junto de quem encontras uma excelente professora de ingls e de boas maneiras, mas nunca o calor de um afecto bem feminino e bem francs. As criadas sote muito devotadas, mas, pela sua posio junto de ns, pouco podem influir no teu conforto espiritual e, digam os assim, sentimental... H dois anos que, mesmo em Julho quente como o que decorre, se respira na nossa casa uma atmosfera de gelo... Tudo isto me confrange, por ti e um pouco por mim... De maneira que resolvi casar-me, deciso muito importante e decisiva que julgo ser a nica maneira de dissipar a tristeza do nosso lar, dando-lhe algum conforto e alegria... O conde de Ferrires tornou a calar-se. Sua filha agora torcia os dedos muito fle xveis, denunciando o seu nervosismo, e ele pressentiu que ela ia chorar. Puxou-a mais a si e, num tom mais terno, inquiriu: - Desagrada-te o que ests ouvindo, minha filha? - Oh, no!... - replicou Joaninha, j com os seus belos olhos humedecidos. - Tenho u m bocadinho de vontade de chorar, pap... Mas no porque me desagrade o que me dizes . porque. Nem sei explicar. - Ests comovida?. . - Sim, ser isso, meu querido pap... - Reconheces a verdade do que digo... Vivemos num ambiente muito frio, no achas? - Sim, parece-me isso... As lgrimas j sulcavam o rostozinho to gentil de Joaninha. Andr permaneceu um momento a observ-la, com meiguice. Tirou do bolso exterior do casaco de linho um leno de seda e tentou enxugar-Lhe as lgrimas. Ela fazia esforos sobre-humanos para no rompe r em soluos. Queria, a despeito da sua tenra idade, manter-se serena, altura das circunstncias. O conde entendia que no devia retroceder naquela dolorosa explicao. Visto que j fora to longe, seria melhor prosseguir at ao fim, evitando mais tarde a repetio de momen tos to comoventes. Contudo, tentou tornar mais alegres as suas explicaes. - Quem vai lucrar mais com o meu prximo casamento s tu, minha querida. Alm de vir o cupar o lugar vago da tua me uma senhora virtuosa e louca por crianas, ters por com panheira de folguedos a sua filha, que ser para ti como que uma irm um pouco mais velha, pois conta apenas mais dois anos do que tu. Joaninha sentiu um baque no corao. Por aqueles vagos indcios julgou pressentir a quem o seu pai aludia. Timidamente, numa voz apenas perceptvel, resolveu-se indagar: - Eugnia?... . - Sim, minha querida. O teu corao bondoso adivinhou logo que eu no podia ter escolh ido para tua melhor amiga, como uma irm, seno Eugnia, e para minha esposa, sua me, madame Dupont. O capito, no notando no rosto de sua filha qualquer sintoma de franca alegria, perguntou: -No s amiga de Eugnia?... Vocs brincavam muito, aqui, durante o ltimo Vero, e pareciam dar-se como Deus com os anjos... - Sim, eu sou muito amiga de Eugnia - confessou Joaninha sumidamente. E no mentia. Um ano antes, a filha de madame Du pont fora a sua quase nica companheira de divertimentos, durante os meses de Vero que passaram, como de costume, ali, na vivenda de Ferrires. Eugnia era um pouco turbulenta, como seu narizito arrebitado e o seu indicador sempre erguido, num ar sentencioso. Gostava de impor a sua vontade s outras crianas, achando que s ela sabia fazer as coisas bem feitas. Mas Joana estimava-a, apesar desse seno, e, com os seus modos brandos e contemporizadores, achava sempre meio de tornar a sua convivncia muito agradvel. Quanto a madame Dupont, que sabia ela a se u respeito? Apenas que era uma senhora alta, forte, muito branca e loura e que falava com muita abundncia de gestos e num tom de voz muito sonora. Parecia expan siva. Quando, s vezes, vinha visitar a tia Brbara, enchia a casa de vozearia, O CA LVRIO DE JOANINHA exclamaes e risos. Costumava sempre fazer-lhe uma festa no queixo, perguntando:-Como vais, minha pequerrucha?... Pareces-me ptima!... Ora, com a boa vida que le vas: pensar s na brincadeira. E logo Lhe volvia as costas, atrada por outro assunto ou embrenhando- se numa con versa espalhafatosa com Brbara d'Azincourt, que gostava de ouvi-la contar as pequ enas intrigas de Femres. Madame Dupont era para Joaninha quase uma desconhecida. Contudo, quando Andr disse: Conheces bem Helena Dupont, no verdade? - ela responde u: - Perfeitamente. - Fala muito em ti. Parece votar-te um grande afecto, que a convivncia, claro, ir tornando mais slido at transformar-se num verdadeiro amor. Ainda ontem, em Paris, me falou a teu respeito com grande entusiasmo. Esta revelao sensibilizou a criana, que disse, talvez impensadamente: - Eu tambm gosto muito dela. -J se me tinha afigurado! - proferiu o capito, abrindo um sorriso na sua face habi tualmente muito sria. E acrescentou: -Eu nunca me casaria com uma pessoa que no fo sse da tua simpatia. Alm disso, madame Dupont, que em breve ser a condessa de Ferr ires, uma pessoa dotada de grande energia e muito activa, precisamente as qualida des requeridas para imprimir ordem e estabilidade ao nosso lar, que tem andado m erc das criadas e da governanta, fazendo todos o que querem, sem cumprirem as det erminaes da tia, que consideram apenas uma velha caturra. Joaninha esteve, por mais de uma vez, tentada a formular uma pergunta, mas falt ava-lhe a coragem. Desejava saber quando principiaria a convivncia com sua madras ta e Eugnia. Foi, porm, seu pai quem veio ao encontro da sua natural curiosidade, ao declarar: - Antes do fim do ms, t-las-s instaladas aqui, nas suas situaes definitivas, isto , in tegradas na nossa famlia. Possivelmente, Eugnia vir uns dias antes. Disse-me que es t ansiosa por tornar a ver-te, e sua me est disposta a deix-la vir em breve para a n ossa casa. Seria ptimo, no achas? - Sim, pap. - Tenciono partir depois de amanh para Paris. H muitos problemas a resolver ainda antes do... casamento. Mas o Gasto pode trazer Eugnia no carro... - um pulo... No t e sentirs to s na sua companhia. Joaninha esboou um sorriso magoado e declarou: - Eu nunca me sinto mal sozinha... Habituei-me a acompanhar-me a mim prpria e sou capaz de estar horas e horas entretida com os meus brinquedos ou com os meus li vros de histrias, sem que, por um s momento, me aborrea. - Mas deves concordar que com uma companheira quase da tua idade, principalmente alegre e amiga como Eugnia, muito mais agradvel... Sempre uma pessoa com quem fal as, que d sugestes para novos folguedos, que torna a casa menos sombria... - Ah, isso verdade! - concordou a pequena, mostrando um sorriso mais aberto. Seu pai dir-se-ia experimentar perante esse sorriso uma sensao de alvio. - Visto mostrares-te to satisfeita com a ideia de Eugnia vir mais cedo - disse el e -, depois de amanh, quando voltar a Paris, irei pedir a madame Dupont que a man de vir o mais depressa possvel. Tenho a certeza de que ela aceder s para te ser agr advel. Mandar-te-ei tambm pelo Gasto alguns brinquedos novos para dividires irmmente com a tua amiguinha... Os teus j devem estar um pouco estragados, no? -Enganas-te, papazinho. S o urso grande que no tem uma orelha; foi o Pedrinho, o f ilho do carniceiro, quem lha arrancou h dias... muito pequenino e no sabe o que fa z. . Ah, e aquela boneca que me trouxeste o ano passado de Nuremberga, tambm tem defeito. Quebrou- se-lhe um dedo da mo direita... Foi Eugnia, sem querer, coitadin ha. Como movia todas as articulaes, supunha que os dedos tambm eram de mexer... Foro u um bocadinho, e partiu-se... Ela ficou muito desgostosa. Eu disse-lhe que no se ralasse, porque o pap decerto no se zangaria. - No me zango, evidentemente. Foi um desastre... - disse Andr, pensando em como as crianas passam to rapidamente de assuntos to grave s da existncia para problemas de bonecas. O que ele ignorava era que sua filha -to pouco amiga de mentir- torcera bastante a verdade para justificar uma feia aco de Eugnia, cometida no Vero anterior. A turbu lenta filha de madame Dupont no partira a boneca sem querer. Torcera propositadam ente os dedos da Lili, a linda boneca que seu pai tinha trazido dias antes de Nuremberga, s para arreliar a sua amiga. Depois, quando viu Joaninha muito chorosa, ela tinha a impresso de que as bonecas sofriam dores tal como as pessoas - mostrou-se arrependida e pediu-lhe por tudo que no fizesse queixa ao senhor conde. Comovida, Joaninha prometeu no a denunciar e encobri-la o melhor que pudesse. No pudera inventar desculpa mais hbil do que essa que Lhe vie ra de momento cabea. Satisfeita pela benevolncia com que seu pai escutou a sua inofensiva patranha, el a apressou-se a comunicar-lhe que os restantes brinquedos estavam quase intactos . Ela poupava-os muito. Contudo, Andr prometeu: - Vou mandar-te mais alguns, como prmio do cuidado que tens tido com os que j tinh as. - Obrigado, papazinho. s to generoso para comigo!. . -Teu pai no pensa seno em fazer-te feliz - declarou ele, abraando-a. - Mesmo este p asso que vai dar agora tem esse objectivo... - Custa-me que te sacrifiques por minha causa... proferiu a criana, com meiguice, passando-lhe as pequenas mos pelas faces. E ajunt ou, num tom mais baixo e comovido: - Provavelmente, vais fazer o que disseste po r supores que no sou feliz. Se por isso, enganas-te... Quando penso na Emilinha, a filha da lavadeira, com a minha idade, que passa os dias a lavar a roupa como sua me, mesmo no Inverno, na gua gelada, pergunto a mim prpria se no serei indigna d a boa sorte que Nosso Senhor me deu. -Tu s uma tonta, em pensares nessas coisas... disse o conde, afagando-lhe os cabe los. - No podes fazer comparaes, entre ti e a filha da lavadeira. Ela nunca conhece u outras condies de vida e at, possivelmente, sente-se muito feliz com o seu destin o. Joaninha permaneceu uns momentos pensativa, antes de condescender: - Talvez, paizinho. A Emlia mais feliz do que eu em ter a me viva, no verdade?... - A tens tu um pormenor da sua vida, em que ela te leva vantagem - anuiu d'Azinco urt. E ajuntou: - essa grande infelicidade que pretendo atenuar com a resoluo que t omei, compreendes agora, Joaninha? - E como ela movesse afirmativamente a cabea a nelada, prosseguiu mais vivamente: - Madame Helena Dupont tambm sabe avaliar a pe rda que sofreste com a morte da mam e est disposta a fazer-te esquecer tanto quant o possvel essa infelicidade, prodigalizando-te os seus carinhos. Deves, portanto, mostrar-te grata pela sua atitude e dedicar-lhe uma grande afeio, porque ela vai ser quase tua me. - Quase... - murmurou Joaninha, pensativa. - Sim, quase. Assim como Eugnia ser quase tua irm. Andr d'Azincourt pronunciou estas ltimas palavras, j de p, como se quisesse signific ar que aquela importante conferncia, entre ele, grave cavalheiro de trinta e sete anos, e Joana, frgil criana de nove, tinha terminado. - Bem, - prosseguiu ele - vou resolver ainda vrios assuntos para a instalao das tua s grandes amiguinhas. Mais um beijo. Baixou-se para oscular-Lhe as faces. A criana passou-Lhe os bracitos em torno do pescoo, com muita fora, sem pronunciar palavra. - Ui!... Que chi-corao apertado!... - observou risonhamente o conde. Joaninha ficou de p junto da poltrona a v-lo afastar-se. Quando o seu vulto, alto , aprumado, de militar, desapareceu para l do reposteiro, ela ficou ainda no mesmo stio, como que petrificada. Subitamente, rompeu em soluos que tentava abafar e, em seu ntimo censurava-se: - Porque estou eu triste? Para que tomou o pap estas decises para me fazer feliz? Ah, vou ser muito, muito feliz!... E as lgrimas brotavam dos seus olhos com muita abundncia, e os soluos mais a sufoca vam, quanto mais ela pretendia cont-los.Conversa com a tia Brbara Joaninha foi certamente a ltima pessoa que, na Vivenda dos Lilases, teve conhecim ento da resoluo do conde de Ferrires. Devido a severas recomendaes deste, ningum at en fizera na sua presena qualquer aluso ao assunto. S depois da grave troca de impres ses entre pai e filha, que esta percebeu que quase toda a gente em sua casa sabia do que ia ocorrer.A primeira pessoa que a mandou chamar propositadamente, para lhe falar no caso, foi sua tia Brbara. A boa menina tinha um grande respeito, e mesmo um certo temor , por aquela tia idosa, que toda a gente tratava com a maior deferncia, tolerando -Lhe as rabujices e os defeitos como se fossem coisa sagrada. Ningum se atrevia a contrari-la nos seus caprichos. Irm mais velha do capito d'Azincourt, solteira porque todos os noivos que aspirara m sua mo acabaram por afastar-se assustados com o seu temperamento um tanto desor denado e caprichoso, acabara por acolher- se em casa de Andr, que a recebera como uma herana inalienvel. Brbara passara a viver em casa do irmo desde que este se cas ara, doze anos antes, com a linda Marta, me de Joaninha. Depois do falecimento da pobre senhora, que sucumbira a uma grave doena de fgado, a tia Brbara ocupara automaticamente, no lar de seu irmo, o lugar proeminente que fora da sua infeliz cunhada. Andr entregou-Lhe a direco de sua casa, e Brbara aceito u-a com muito pouca conscincia das suas responsabilidades. Tinha uma averso instintiva aos assuntos caseiros. A preocupao das ementas, a indic ao das limpezas que se deviam fazer, das roupas que era preciso lavar ou substitui r, quase Lhe causavam nuseas. Depressa, a direco da grande casa dos Azincourt, quer em Paris, quer em Ferrires, onde vinham passar os meses de Vero, resvalou das sua s mos para as de Maria, governanta, j no tempo da condessa Marta, ento com poderes limitados e bem fiscalizados pela malograda senhora. Maria no era m pessoa. Tinha Joaninha em grande estima, mas no observava as regras de economia de sua antiga ama. Gostava de tachar pela larga e principiava a sent ir- se muito senhora do seu nariz, fazendo pesar a sua suprema autoridade sobre o restante pessoal. Brbara estava contente com os seus servios, que a livravam de preocupaes mesquinhas. Maria, que lhe estudara o temperamento, sabia dar-lhe a ilu so de que era ela quem tudo mandava, quando, na verdade, a caprichosa senhora, na maior parte das vezes, ignorava o que se passava em casa. A tia Brbara adquirira um hbito, que ia agravando com a idade: a leitura. Lia desd e manh at altas hras da madrugada, devorando romances sobre romances. Passava horas fechada na biblioteca da Vivenda dos Lilases, numa doce penumbra, a ler, a vive r mentalmente a vida herica das personagens romanescas por que se apaixonava. S du rante a leitura se sentia feliz. A vida real era-lhe antiptica, despida de interesse. Se acontecia interromperem-na para lhe formularem qualquer pergunta, ela saa bruscamente da vida fictcia que a encan tava, num estado de irritao difcil de aturar. Em regra, quando vinham para Ferrires, as pessoas mais gradas da povoao visitavam a vivenda para apresentarem os seus cu mprimentos. O maire, o bondoso doutor Clairmont, que a conhecia de infncia, pois andavam pouco mais ou menos pela mesma idade, o general Berthelot, um reformado, bonacho, que adorava Joaninha, a quem chamava o seu anjinho, nem sempre eram rec ebidos por Brbara, que pretextava enxaquecas, s para no interromper a leitura de al guma novela ali ciante. Maria, que no primava pela boa educao, desculpava a sua ama de maneira to inbil que, por vezes, as visitas percebiam perfeitamente que no as queriam receber. Mas no se zangavam, por isso; conheciam- Lhe o temperamento e at se retiravam sorrimdo. Qu em sempre fora recebida nos Lilases, por estranhvel excepo, fora madame Dupont, viz inha dos Azincourt em Ferrires, onde tambm possua uma residncia de Vero. Fora amiga da condessa Marta e, depois do falecimento desta, continuou a visitar a tia Brbara. Esta mostrava pela azougada e espalhafatosa madame Dupont um certo fraco. Nunca mandava dizer por Maria que no estava em casa ou que sofria de enxa queca, quando ela se apresentava. que madame Dupont descobrira o meio fcil de cap tar-Lhe as simpatias. Raro era que no lhe levasse algum romance acabado de public ar, trazendo-a, assim, ao facto das ltimas novidades literrias. Alm disso, arranjav a sempre maneira de no meio das suas espalhafatosas conversas, se referir a alguma personagem da pre dileco de Brbara, que facilmente se deixava empolgar pelo entusiasmo. Era impossvel que a irm de Andr no estivesse informada do grande acontecimento. No se ria de admirar que ela prpria, devido ao seu fraco pela simptica madame Dupont, co mo lhe chamava, tivesse insinuado no nimo do irmo as vantagens desse enlace. Madame Dupont era divorciada, havia cinco anos. Toda a gente que a conhecia de p erto afirmava que lhe assistira inteira razo nesse divrcio. O marido era um doido,um estroina. Em meia dzia de anos de vida conjugal no fizera seno gastar mais do q ue lhe permitiam as suas receitas. Previa-se que, mais alguns anos decorridos, a quela abastada famlia casse na misria. Foi ento que, muito oportunamente, por consen so, madame Dupont requereu o divrcio, obtendo sem grandes obstculos sentena favorvel . Isto permitiu-lhe salvar uma parcela aprecivel da fortuna do casal, cabendo, su a parte, a residncia de Ferrires, outra em Paris, no muito luxuosas, mas decentes, alguns bens em dinheiro e em papis de crdito, que Lhe permitiam fazer uma vida rel ativamente larga. Certamente por sugesto de Andr, a tia Brbara mandou chamar a sobrinha biblioteca. T inham decorrido apenas vinte e quatro horas sobre a conferncia com o pai, e Joani nha ainda se sentia um tanto perturbada. To raras eram as vezes em que sua tia mo strava interesse em v-la, que a pequena teve logo o pressentimento de que se trat ava de alguma coisa relacionada com o prximo matrimnio de seu pai, pelo que se dir igiu para a biblioteca. Desta vez, quando entrou na biblioteca, evitando todo o rudo para no irritar sua tia, estranhou que esta no a recebesse com algum grito de mau humor, como era seu hbito. Brbara, que fora um pouco nutrida em mais nova, no possua agora seno vestgios dessa g ordura nas peles enrugadas e flcidas do pescoo e nas bochechas, que lhe descaam das faces, dando-lhe um vago aspecto de buldogue. Estava instalada na velha poltron a, seu poiso predilecto, muito regaladamente, junto da janela com a gelosia corr ida, apesar de no bater o sol nesse lado do edifcio. Quando Joaninha entrou, deixou cair o livro no regao, levantou os culos para a tes ta e viu-a aproximar-se com um sorriso de benevolncia, o que a pequena estranhou, embora no o confessasse. - Como est, tia? - perguntou Joaninha, estendendo-lhe os braos para a abraar e beij ar. - Como est sua excelncia?... - inquiriu Brbara, por seu turno, deixando-se afagar. Aquele tratamento de excelncia, por parte da velha demoiselle, era sinal de uma pt ima disposio. Joana sentiu-se contente com aquele indcio. - Senta-te a. Vamos conversar um bocado. H tanto tempo que no conversamos! - disse Brbara, indicando-lhe uma cadeira de fundo de palhinha, que se via perto da sua p oltrona. - No conversamos mais, porque a tia est sempre muito ocupada - proferiu a criana. E ajuntou: - Eu gosto muito de conversar consigo. - Srio?... - estranhou a anci. - Achas algum prazer em falar com uma velha? - Gosto muito de conversar com as pessoas mais velhas. - Ah, sim?... Porqu?. - indagou a tia, surpreendida com os raciocnios da sobrinha, como se se tratasse de uma criana com quem falasse pela primeira vez. - que ns, os pequenos, quando falamos com pessoas grandes, aprendemos sempre algu ma coisa. - No se diz pessoas grandes... pessoas crescidas ou adultas - corrigiu Brbara, fra nzindo o sobrolho. Mas o seu bom humor no sofreu alterao, chegou mesmo ao cmulo de pr o livro de parte, sobre a pequena mesa que tinha sua beira, para se voltar melhor para a sobrinha, sentada, com muito propsito, ao lado esquerdo. Houve depois um silncio, um pouco embaraoso para ambas, que a tia acabou por quebr ar, dizendo: - Creio que sabes da importante resoluo que teu pai tomou. Assim, de chofre, as suas palavras provocaram um sobressalto criana. - O pap disse-me... - replicou ela, suavemente. - Tambm sabes que ele parte, amanh, para Paris e que depois de amanh devemos ter po r a a Eugnia... - J depois de amanh?. . - estranhou Joaninha. - Sim, depois de amanh. Achas cedo?. Esta pergunta embaraava-a. Queria ser sincera e no sabia como. Estranhando o seu s ilncio, Brbara indagou: - No gostas da Eugnia? - Gosto, minha tia. - Ento nunca deves achar que ela vem cedo de mais para a tua companhia - raciocinou a anci. - Pelo contrrio, tomaras tu que ela viesse j hoje. Joana julgou-se no dever de arrepender-se de no ter desejado para mais breve a c ompanhia de Eugnia e declarou: - Esse que era o meu desejo. Nem percebo como disse uma coisa to disparatada. A pobre criana apenas expandira espontnea e irreflectidamente o que havia de mais verdadeiro no seu sentir. - Pois, ... A menina, s vezes, diz as coisas sem pensar... - censurou brandamente a tia Brbara. - preciso a gente ter a perfeita conscincia do que diz, quando no arr isca-se a dizer o contrrio do que sente. A virtuosa senhora estava um pouco atrasada em psicologia, s conhecendo a dos rom ances, e sua sobrinha no se encontrava mais adiantada do que ela; por isso se apr essou a concordar, supondo-se sincera: -Tem razo, querida tia. Hei-de esforar-me por emendar-me. - Alis, - prosseguiu Brbara - no tens seno razes para gostar de Eugnia. Ela to tua a a!... De hoje em diante, ainda deveis ser mais amigas, visto que teu pai vai cas ar com a mam dela. Tu e ela sereis como duas irms. Muito direita na sua cadeira de palhinha, os dedos cruzados sobre o colo, Joanin ha fazia todo o possvel por observar a atitude de uma senhora com quem se tm conve rsas importantes. - O pap j disse que Eugnia seria a minha mana mais velha e que madame Dupont ocupar ia o lugar de mam. - Evidentemente - confirmou Brbara, meneando a sua cabea grisalha. - Madame Dupont deve ser respeitada, no s por ser mais velha como por passar categoria de condess a de Ferrires, esposa de teu pai e tua futura mam. - Ser a minha madrasta, no verdade? - pronunciou a pequena. - Sim, a tua madrasta... - replicou a tia, como que contrariada. - Contudo, deve s evitar essa palavra madrasta. - Porqu?... - muito desagradvel. Est-lhe ligada uma srie de impresses tristes... Apresentam-se, geralmente, as madrastas como sendo pessoas detestveis, perseguindo e martirizand o as enteadas... Mas nem sempre assim. Conheo at o caso de uma madrasta que adorav a com tal afecto um seu enteado, que morreu de desgosto ainda antes dele, quando o soube atacado de tuberculose pulmonar... - Ento, como devo tratar madame Dupont? - Por mam, claro... o tratamento que habitualmente se d s madrastas... Joaninha permaneceu um longo momento pensativa, ao cabo do qual pronunciou: - Quer dizer, terei que falar-lhe, tal qual como minha verdadeira mam: Bom dia, m am... Boa tarde, mam. . Boa noite, mam... Sim, mam, isto ou aquilo... - Exactamente! - apoiou Brbara. - Eu logo vi que havias de compreender rapidament e estas coisas. Teu pai j devia ter-te participado tudo isto h mais tempo, para te ires habituando. - Mas o pap no resolveu isto agora?... - inquiriu Joana, admirada. - No, minha filha... Este namoro j dura desde o Vero passado... claro, que s agora que tudo se decidiu. O casamento de domingo a oito dias, em Paris... No era conve niente aqui, em Femres, dado ser um meio muito pequeno, embora as pessoas mais gr adas de c tivessem recebido convite... Muito sria, com uma seriedade maior do que se esperaria na sua idade, Joaninha es cutava todas estas informaes, que a pouco psicloga tia ia deixando sair da boca ond e brilhavam alguns dentes postios, sem se lembrar de que cada palavra constitua um a punhalada no peito da sobrinha. A pobrezinha ia percebendo que, a menos de um ano da morte de sua me, j o pai pens ava em substitu-la; que evitavam que o casamento se realizasse em Ferrires, talvez por uma certa questo de pudor. Ela ainda no tinha entendimento para discernir se seria legtimo ou no, ou mesmo imperioso, que seu pai se casasse outra vez. O que a magoava muito era saber que o namoro (que mal lhe soava aquela palavra que ouvi a aplicar aos derrios das criadas) j durava desde o Vero anterior. Uma criada, entreabrindo a porta, interrompeu aquela troca de impresses. Anunciav a que miss Elizabeth j estava espera, para a lio terica de ingls. Todos sabiam que a britnica no gostava de esperar um minuto sequer. Por isso, Brbara, tambm j um pouco m aada com a presena da criana, disse-Lhe:- Vai l, no a faas esperar... Joaninha voltou a beij-la e a abra-la. - Continuaremos outro dia a nossa conversa prometeu Brbara, quando ela saa da bibl ioteca. Mas, na verdade, no tencionava voltar a ocupar-se do assunto junto da criana. Naq uela breve conversa se cifrava o cumprimento do que prometera essa manh a seu irmo : ir preparando brandamente a criana. Os maus pressgios da governanta Aqueles dois dias pareceram a Joaninha, simultaneamente, muito longos e muito cu rtos. Longos, porque ela surpreendia-se, por vezes, a desejar, que decorressem depressa, para que acontecesse o que tinha que acontecer; curtos, porque se lhe afiguraram muito rpidos os episdios que se sucederam at chegada de Eugnia que, bem o pressentia ela, marca va o incio da sua nova existncia. Seu pai no tornara a falar-lhe no assunto, seno muito ao de leve no momento em que se despedia, ao seguir para Paris. Joana sabia que no tornaria a v-lo seno depois de ele casar. Ao beij-la e abra-la, antes de se instalar no automvel, cujo motor Gasto j pusera em movimento, o conde deteve-se um instante e disse: - Minha filha, espero que recebas a tua amiguinha Eugnia, com a amabilidade e a ternura que deve merecer uma futura irm... E que sab ers ser respeitosa para a outra mam que te escolhi. Adeus!. . Joaninha no pudera replicar, de comovida que ficou. Como se tivesse os pezitos grudados no ltimo degrau da escadaria principal da vivenda, permaneceu a seguir com a vista o automvel que, deslizando pela lea ensombrada de lilases at ao porto, d esapareceu por fim numa viragem rpida. Durante todo esse dia andou hesitante, pensando confusamente no futuro. Como ser ia a sua vida depois de madame Dupont - em pensamento tratava-a sempre desta for ma - e de Eugnia virem habitar na sua casa? Seriam ambas, realmente, agradveis, pa ra conviver na intimidade? De que maneira as tratariam os criados? Qual seria a atitude de miss Elizabeth? Gostaria a inglesa tanto de Eugnia como gostava dela? Quis distrair-se, mas o seu pensamento no deixava de estar ocupado por aqueles do is entes, que iam tomar um lugar to importante na sua vida. Meteu-se na sala dest inada aos brinquedos e passou em revista todas as suas bonecas, todos os seus jo gos, os mobilirios completos com que adornava as imaginrias vivendas que as boneca s habitavam, mas aquela tarefa no a distraa das suas preocupaes. Continuava a pensar em madame Dupont e na filha. Fazia um esforo de memria para recordar as feies da su a futura madrasta e no o conseguia de maneira satisfatria. Lembrava-se dos seus ca belos muito louros, exageradamente louros, e da sua pele rosada, muito clara e m acia, mas no seria capaz de afirmar se os seus olhos eram azuis ou verdes. Tinha a impresso de que eram azuis, mas no iria jurar. De Eugnia lembrava-se melhor. Bastava-lhe cerrar os olhos para a reconstituir men talmente. Era alta, espigada, irrequieta. Tinha os olhos esverdeados, com certez a, os cabelos de um louro-plido, no vistosos como os da me, mas baos, apagados, e o nariz - ah, o nariz era o aspecto predominante das suas feies! - era arrebitado, o que lhe dava um ar permanente de arrogncia e de provocao. Contudo, Joaninha gostava dela, achava-lhe graa. E, como, era de ndole comedida, discreta, no Lhe desagradava a tagarelice de Eugnia, que no podia estar calada e qu e falava de tudo, com a segurana e a autoridade de uma mestra. Durante a hora da lio de ingls, miss Elizabeth teve que admoest-la por duas vezes, s urpreendendo-a absolutamente alheia conjugao do verbo to be, que lhe explicava. Fe z mais erros no ditado do que o habitual, tudo porque o seu pensamento, muito ch eio de madame Dupont e de Eugnia, no podia ocupar-se de outros assuntos. Pela primeira vez, viu chegar o termo da lio, com um suspiro de alvio. As refeies em casa do conde de Ferrires, sobretudo quando este se encontrava ausent e, costumavam ser montonas. mesa havia s trs pessoas, mademoiselle Brbara, miss Eliz abeth e Joaninha. A velha solteirona e a preceptora nunca ligaram bem. E, por uma questo de comodid ade para ambas, acordaram tacitamente em no se falarem seno quando era absolutamen te indispensvel. Miss Elizabeth quase se limitava a saud-la na sua lngua: good morn ing, miss Brbara. A irm de Andr, apesar de falar e ler correntemente o ingls, respon dia-lhe sempre em francs: Bonjour, mademoiselle Elizabeth, pois entendia que a pr eceptora, vivendo em Frana, tinha obrigao de falar o idioma dos franceses. Sempre que se lhe proporcionava ensejo, contava a Joaninha a histria de Joana d'A rc e da miservel crueldade com que os ingleses a mataram. Miss Elizabeth, s vezes, fazia de conta que no percebia, outras, intervinha enrgica, mas correcta, o busto sempre muito direito, escorrido, como uma tbua de engomar, e de cara fechada: - I beg your pardon. . E seguia-se, num ingls, muito montono, sem inflexes, a explicao de que tinham sido fr anceses e no ingleses quem mandara queimar Joana d'Arc, como hertica. Brbara fingia no entender o ingls e replicava: - pena, miss Elizabeth, no me dar essas explicaes numa linguagem que eu entenda... - E eu tenho muita pena de perceber perfeitamente, miss Brbara! - retorquia a bri tnica, rgida, apenas um colorido mais vivo nas suas faces muito brancas e um fulgo r nas suas pupilas de um azul de flor de linho. Mas estas discusses, em que a inglesa no alterava o tom de voz e Brbara no excedia a sua rabujice habitual, eram raras. O mais frequente era decorrerem as refeies num a atmosfera de silncio e de frieza, em que os passos de Joo, o criado de mesa j gri salho, nem se sentiam, amortecidos na fofa carpeta. s vezes, a preceptora volvia a cabea sempre bem erguida para Joaninha e advertia-a em ingls: - Menina, no com essa mo que se agarra o garfo. - Perdo, miss Elizabeth... Foi uma distraco... desculpava-se a menina, corando at s o relhas e passando rapidamente o garfo para a outra mo. No dia em que o conde regressou a Paris, o almoo decorreu mais frio e montono do q ue de costume. Ningum fez qualquer aluso sequer sua ida. Joaninha mergulhou tanto nas suas apreenses que chegou at a esquecer a comida no prato. As restantes horas do dia pareceram-lhe interminveis. Ningum lhe falou do grande acontecimento que estava para se realizar. Contudo, Joaninha sups que toda a gent e pensava no caso e se calava como ela. Julgou mesmo notar que as criadas a olha vam de certa maneira e que tinham o pensamento todo ocupado por madame Dupont e a filha, mas no lhe diziam nada, talvez por ordem de seu pai. tarde, miss Elizabeth chamou-a para irem dar um passeio pelo parque. Era costume darem uma volta atravs do pinhal, mais fresco ao declinar do dia, e aproveitarem esse ensejo para exerccio de conversao em ingls. A pequena calculou que a preceptor a fizesse qualquer aluso ao grande assunto. Durante todo o passeio, acompanhando quase a correr os grandes passos de Elizabe th, que era esgalgada e magra, a criana esperava a todo o momento que ela lhe fal asse da outra mam. Mas foi iludida a sua expectativa. Falou-se dos ninhos, do ven to que cantava docemente nas copas altas dos pinheiros, da grande vitria de Nelso n e da sua morte herica, mas sobre madame Dupont e sua filha no se pronunciou nem uma palavra. Miss Elizabeth dir-se-ia observar uma atitude de fria reserva, quase um desdm, po r todos os grandes acontecimentos da famlia d'Azincourt. Joaninha ainda se lembra va de que aquando da morte de sua me, a inglesa conservara a mesma expresso grave e rgida e que, no meio do pranto geral, pois at a tia Brbara chorava como uma Madal ena, os seus olhos permaneceram sempre enxutos e como que ausentes do drama que se desenrolava na sua frente. Talvez para marcar a sua independncia, colocava-se sempre margem dos problemas d o lar onde vivia havia cinco anos, ao cabo dos quais ningum tinha com ela mais in timidade do que no dia em que se instalou naquela casa, com muita ordem e mtodo, e comeou a exercer as suas funes de preceptora. Joaninha regressou do passeio um pouco decepcionada. Temia muito que lhe falasse m do grande assunto, mas aquele silncio ainda a atemorizava mais. Sentia-se comoque desamparada num imenso descampado. Faltava-lhe o calor, o carinho de algum, c omo notara seu pai, e a criana perguntava a si prpria se iria encontrar realmente esses sentimentos na madrasta e em Eugnia. O jantar decorreu to aborrecido como o almoo. A mesma inaltervel frieza, um tanto p rotocolar, o tinido discreto dos talheres, um ou outro monossilabo de Joo pergunt ando se desejava mais esparguete ou mais doce, e pouco mais. S noite, quando menos o esperava, voltou a ouvir falar da sua situao futura. Foi da boca de Maria, a governanta. E em que termos ela se referia ao casamento de seu pai... Maria costumava, uma vez por outra, ir ajudar a menina a despir-se e a deitar-se , substituindo-se criada de quarto. Ficara-Lhe aquele hbito ainda do tempo em que Joaninha era mais pequena e tinha medo de ficar sozinha. Principalmente, nos di as imediatos morte de sua me, que costumava acompanh-la at ela adormecer, a menina tinha a impresso de que os recantos do aposento se povoavam de sombras que a espr eitavam. Por mais que quisesse fazer-se forte, no conseguia dominar o medo. Maria , ento, vinha para junto do seu leito conversar at ela se deixar dormir. As suas c onversas eram to maadoras -o carniceiro, o padeiro, a mulher do hortelo... - que Jo aninha adormecia mais rpida e facilmente do que se tomasse ch de dormideiras. Ao fim de uns tempos, a impresso de terror desvaneceu-se do seu esprito e Joaninha dizia, em regra, criada de quarto que podia retirar-se. Gostava at de ficar sozi nha para fazer as suas oraes vontade. Nessa noite, porm, Maria fez a sua reapario hora de deitar. Ajudou-a a vestir o pij ama, aconchegou-lhe as roupas nas costas, como a criana tanto gostava, e sentou-s e no tamborete baixo, beira do leito, a tagarelar. Genuna representante do povo, Maria era a pessoa menos diplomata do mundo, s sabia chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Por isso no esteve com rodeios e perg untou abruptamente: - Que diz, minha menina, ao disparte que seu pap vai cometer?... - E como Joaninha , colhida de surpresa, ficasse sem saber como havia de replicar, a mulher prosse guiu: -Francamente, sempre supus o senhor conde mais atilado... E ento, que mulhe r ele foi escolher: uma parva, uma autntica parva... Tudo aquilo fogo de vistas.. . Mas o pior para a Joaninha... Tenho muita pena de si... Vai sofrer muito nas g arras daquela fera... madrasta, o nome lhe basta... - Tenho ouvido dizer que h madrastas muito boazinhas para as enteadas lembrou a p equena, a no querer deixar-se vencer pela inquietao causada pela diatribe da govern anta. - E a menina acredita numa coisa dessas?... - acudiu Maria, vivamente. - Olhe, eu ainda no conheci nenhuma a quem se pudesse dizer: Benza-te Deus. - A tia Brbara contou-me ontem o caso de uma madrasta to amiguinha de um enteado, que morreu de desgosto quando soube que ele, coitado, estava tuberculoso. - Isso contou-lhe sua tia para a animar! - exclamou Maria. - Sua tia tem aquele feitio brusco, mas s na aparncia. Quis anim-la, contando-lhe esse caso. possvel que seja verdadeiro, mas constitui uma autntica raridade. A regra o contrrio. E essa m adame Dupont no deve fugir regra... - Como podes tu adivinhar? objectou Joaninha. - Ora, ora... Pelo andar da carruagem se conhece logo quem vai dentro. Essa mada me Dupont, que neta de um taberneiro daqui, de Ferrires, quando se apanhar condes sa, ningum poder com a vida dela. Aquilo vai ser vaidade e mais vaidade... Ningum a poder aturar. Demais, com o feitiozinho que ela tem de querer espezinhar toda a gente... Eu c, por mim, confesso: se ela comear a querer rebaixar-me, fao as malas e raspo-me. Mas, antes disso, hei-de lembrar-Lhe que o av dela mediu muito vinho para o meu... - Tu no a vais ofender, Maria - censurou Joaninha brandamente. - H muitos tabernei ros que so pessoas respeitveis e honradas. - Mas no o av dela, que fez fortuna a vender gua por vinho. - E que culpa tem a neta das maldades do av?... - da mesma raa... Olhe, sabe o que eu Lhe digo, minha menina: no queria estar na s ua pele. Ento, com o feitio calado, sofredor, que a menina tem, vai ser nas mos dela um farrapo... - No digas isso, Maria!... - exclamou a criana, juntando as mos, aflita. - Tu no conheces a madame Dupont to bem como o pap. Ele afirmou-me que ela gosta muito de mim e vai ser como que uma outra me... - Hum resmungou a governanta, torcendo o nariz avantajado, em que havia um sinal com um cabelo retorcido. - Seu pap disse-lhe que ela uma excelente pessoa?. Hum. Hum. . Quem o feio ama bonito lhe parece... E a filha, a delambida da Eugnia, um anjo, no verdade?... Hum... Hum... Sabe o que eu lhe digo? Seu pap anda ceguinho. Vai fazer uma grande asneira. E quando torcer a orelha, no h-de deitar sangue. - Que quer dizer isso de torcer a orelha?... - interrogou a criana, fixando-a rec eosa. - Que ser muito tarde quando se arrepender do grande disparate que vai cometer. - O pap no ir fazer coisas de que resultem o meu mal - asseverou Joaninha, fazendo um esforo para se convencer do que dizia. - No, ele no ter essa inteno. Mas devia abrir um pouco mais os olhos. A menina ainda muito nova para compreender bem estas coisas. Mais tarde, se se lembrar ainda do que eu lhe disse hoje, h-de dar- me toda a razo. A governanta pouco mais adiantou. Talvez j estivesse arrependida de ter ido to lon ge. A confiana que a pequena demonstrou depositar nos actos do pai, deixou-a um p ouco desconcertada. No encontrou, como supunha, o terreno propcio sementeira de ms vontades que pretendia ir provocando. A sua averso contra madame Dupont provinha apenas d o receio que ela tinha de perder a preponderncia que alcanara naquele lar, onde no havia uma verdadeira ama. Joaninha sentia-se to perturbada com o que ouvira, que fingiu adormecer para Mari a se retirar. Depois, a pensar no pior, s muito tarde conseguiu conciliar o sono. Joaninha prepara uma recepo As desabridas apreciaes da governanta no tiveram grande influncia na disposio de Joani nha para com Eugnia e sua me. Apenas Lhe deixaram no esprito uma dolorosa impresso, que ela nem saberia bem definir. Foi com verdadeira impacincia que aguardou, no dia seguinte, a chegada daquela qu e ia passar a viver na sua companhia como uma irm. As horas pareciam no ter fim. C onsultava a cada passo o grande relgio holands, muito antigo, que enchia o vasto c orredor com o seu tiquetaque sonoro. Tudo, porm, corria no sossego habitual, um tanto montono. As criadas andavam no se u corropio, s vezes, trauteando baixinho alguma cantiga em voga. A tia Brbara inst alara-se na bibliotca e deixava tudo ao cuidado de Maria. Miss Elizabeth dera a s ua lio terica com a fleuma do costume, sem a mais leve alterao na sua voz nasalada. E no entanto, para Joaninha, ia acontecer alguma coisa de extraordinrio. S no fim do almoo surgiu um imprevisto. Uma criada entrou alvoroada e, perturbando a grande calma em que a refeio decorrera, anunciou, agitando um papel: - Um telegrama para mademoiselle Brbara!... - D-mo c - ordenou a tia de Joaninha. A criana notou que a inglesa nem sequer lanara um olhar para aquele papel que poderia conter uma grande novidade. Brbara ajeitou os culos e, durante uns momentos, que pareceram enormes p equena, percorreu o telegrama com o olhar. Depois, colocando-o em cima da mesa, disse, num tom que traa decepo ou enfado: - teu pai a dizer que o Gasto deve chegar aquicom Eugnia, pelas cinco horas da tar de... -E acrescentou: - Para nos dar esta novidade escusava de ter-se maado a exp edir um telegrama. Joaninha, que j fizera tantas vezes de automvel o trajecto de Paris a Ferrires, calculou que Eugnia devia ; ter abandonado a capital poucos momentos antes. J devia vir a caminho. Quedou-se a rememorar os pormenores do trajecto que sua fut ura irm vinha contemplando agora, talvez pensando que a sua Joaninha a estava esp erando com impacincia. Terminado o almoo, Joaninha dirigiu-se logo para a casa dos brinquedos. Tratou de disp-los em volta do aposento, com muita ordem, para produzir boa impresso na sua amiga: aqui, a salade visitas miniatural, com o seu sof estofado de cor-de-rosa, as poltronas inglesa, a mesinha ao centro. Que ria sentar uma boneca no sof, mas no tinha nenhuma na proporo daquela mobilia. Eram todas grandes de mais. AL i, aquela a quem Eugnia partira os dedos no Vero anterior, era maior do que toda a moblia. Essa, com a mo defeituosa enrolada num trapo que fazia de ligadura, foi deitada no bero todo ornado de lacinhos brancos, tapada com o edredo acolchoado, azul-celeste, a fingir que estava doente. Tinha fechados os olhinhos de porcelana, muito pestanudos, e parecia mesmo que dormia. Joaninha j antegozava a graa que Eugnia iria achar sua querida Lili. Arrumou os outros compartimentos. Deu um gracioso arranjo casita de banho e mete u uma das bonecas dentro da banheirinha de esmalte. A cozinha mereceu-lhe especi al cuidado. Alguns utenslios j estavam um tanto estragados, e era pena no os poder substituir por novos. Talvez o pap se lembrasse de lhe mandar alguns. Seria uma pt ima ideia!... No entanto, Joaninha ainda pde organizar uma cozinha decente. Os armrios estavam t odos ornados de pequeninas cortinas de chita de ramagens vistosas, no fogo j fervi a - a fingir, claro- uma panela e na boca de fogo do lado, um tacho de alumnio co m uma suposta lebre a apurar... No forno, meteu aquela travessinha minscula com u m pato assado, de barro, mas to bem feito, que parecia mesmo verdadeiro. Depois, a sala de jantar mereceu o melhor da sua ateno. Ps a mesa com esmero para d uas bonecas, para Eugnia e para ela, Joaninha, que tencionava figurar de dona de casa. Iriam brincar s visitas. Joaninha receberia a sua grande amiga Eugnia, que v iria passar as frias em Ferrires. Mentalmente, ensaiava a cena em todos os seus po rmenores. Supor-se-ia que Eugnia chegava sem ser esperada. Joaninha soltava grandes exclamaes de surpresa e de alegria: - Oh, minha querida Eugnia!... Que excelente ideia tiveste em vir... - E logo nou tro tom: - Passo aqui uma vida to aborrecida, sem uma grande amiga com quem conve rsar! Meu marido, como sabes, anda sempre em viagem. Aquela vida de oficial de m arinha horrvel... Sempre longe do lar... Mas vens cansada... Pe-te vontade. Tens a qui os teus aposentos. Desculpa, no te esperava. Nada est arrumado a meu gosto. De sculpa... No entanto, creio que no ficars de todo mal... Pensando nesta cena imaginria, Joaninha foi logo preparar o quarto de hspedes para bonecas, onde se suporia instalar Eugnia. Era um elegante mobilirio Lus XV, com de rivados. O leito ostentava uma coberta de seda. Faltavam- lhe os tapetes, mas Jo aninha improvisou um, com o seu pequenino leno que tinha muitas cores e lembrava uma tapearia oriental. Eugnia, certamente, Lhe perguntaria: - E as tuas meninas?... Devem estar uns amores!... - Encantadoras - responderia Joaninha. E logo com cara triste, informaria: - A L ili que tem estado muito doentinha. - Sim?!. - exclamaria Eugnia, contristada. Doentinha? - No, um desastre... - Oh, santo Deus, ser possvel'?... - Horas de fatalidade - contaria Joaninha. - Imagina que a menina andava a brinc ar no jardim. A criada estava bem perto a vigi-la... - As criadas tm to pouco cuidado!... - diria Eugnia. - Mas, desta vez, a criada no teve culpa. Esta, por sinal, muito cuidadosa e amig a de crianas... Estou muito contente com ela. - Ento, como foi? - O Henrique tem um triciclo -contaria Joaninha. - Andava a pedalar ali perto. P arou um momento. A menina meteu os deditos entre os varais, no preciso instante, em que o irmo voltou a pedalar... Um horror!... Nem fazes a mais pequena ideia.. . - Quebrou algum dedinho?. . - O doutor diz que no... Que vai levar tempo, mas tem esperana de que a menina fique sem defeito... Mas julgo que me diz isto para no me desgostar. - Pobre criana. Mas que infelicidade. - exclamaria a Eugnia. - Imagina, se ficar defeituosa, o que dir o pai quando regressar da viagem Indoch ina!... - O Jorge to inteligente que compreender que no tiveste culpa do sucedido - diria a Eugnia. - E onde est a Lili? Posso v-la? - Creio que est agora a fazer um soninho. Vamos nos bicos dos ps para no a acordar. .. Joaninha interrompeu bruscamente este devaneio. Lembrou-se de que as aluses mo doe nte da Lili poderiam ser tomadas a mal por Eugnia, visto ter sido ela quem quebra ra os dedos boneca. No, no falaria na boneca. No queria que julgasse que arranjara aquela brincadeira propositadamente para lhe recordar uma maldade, que ela perdo ava de to boamente. Convid-la-ia a ver a nova disposio que dera s casas. Eugnia fingia que ia mudar de ro upa. Em seguida, iniciar-se-ia uma demorada visita por toda a habitao. - Olha - diria ela - aqui, onde antigamente fazamos o escritrio do meu marido, ins talmos esta sala de visitas. Que tal achas? Joaninha julgava estar ouvindo mesmo Eugnia, com o seu feitio ruidoso, a bater pa lmas e a elogiar: - Mas est encantador! Nem sei onde vais arranjar tanto gosto. Estes cortinados so lindos... Quanto te levou o decorador? muito careiro? Hs-de dar-me a sua direco. Pr eciso tambm de fazer umas reformas l na casa... - Que dizes a este quadro que meu marido comprou? um Corot autntico. Eugnia deter-se-ia em frente de um quadro puramente imaginrio, semicerrando os olh os. - Uma maravilha!... - diria ela, simulando um ar entendido. Joaninha correu logo a compor mais um quarto de dormir miniatural, que seria o s eu. Ficou um pouco triste, porque o mobilirio que lhe restava era demasiado escas so e pobre, indigno de mostrar-se a uma visita de to alta qualidade como seria Eu gnia. Constava de uma camita de ferro, sem enxerges, que nem a uma criada se devia destinar. Em compensao, tinha uma linda colcha cor-de-rosa. No havia, porm, uma mes a de cabeceira. Contudo, com uma mesa de cozinha um pouco desconjuntada, que cob riu com uma bonita e alegre toalhinha, simulou um mvel de qualificao indefi nida e comps uma pequena alcova. Diria depois Eugnia, em aparte: - A fingir que este quarto era o meu e tinha uma preciosa moblia de pau-rosa, sim ? E Eugnia, acedendo, exclamaria, num enlevo: - Que riqueza de quarto!... digno de uma princesa. - E simulando sempre ver, na camita de ferro e na mesa desconjuntada, coisas admirveis, diria:- Este toillete lindo. Nunca vi outro desenho mais gracioso. Ah, o leito parece-me bem trabalhad o. E o guarda- vestidos, que curioso. Estes espelhos so de bom cristal, v-se mesmo . Joaninha, j esquecida das apreenses dos ltimos dias, vivia intensamente o seu deva neio. - Faltam umas flores nesta casa... - murmurou para consigo. Decidiu ento descer ao jardim e colher algumas. Abandonou o aposento, cuja porta fechou para evitar que o Sleep, o cozinho, l entrasse e fizesse tudo em pedaos, e saiu apressadamente da vivenda. O jardineiro, o velho Rolando, ao v-la, abriu um sorriso na face encarquilhada, e m que luziam dois olhos pequenitos, azuis, e cumprimentou-a. - Ora, viva a minha querida condessinha! - Viva, Rolando, como passou? - proferiu a criana que era muito delicada para com o pessoal. - Vai-se vivendo, minha menina... Na minha idade, tudo se chega... O maldito reu matismo, aqui, nas cruzes, que me atrapalha... Se no fosse isso, ainda pedia me as com o mais jovem que quisesse cavar a meu lado... - Por que no vai ao doutor? - inquiriu a pequena. - O doutor Clairmont j est farto de me receitar coisas. Umas vezes, sinto pequenas melhoras, outras pa rece que pioro. Sabe o que ele me disse h dias quandol me viu? Olha, Rolando, isso o caruncho da velhi ce. Ainda no se descobriu o remdi o para dar vinte anos a quem tem setenta. Se o houvesse tambm eu j o tinha tomado. .. O jardineiro rematou a fala com uma risada, que Lhe revelou vrias faltas de dent es e lhe provocou uma tosse que lhe fez saltar as lgrimas dos olhos. - O senhor tem muita tosse... Deve tomar um xarope... - disse Joaninha, com a se riedade de uma pequena senhora, que Lhe era peculiar. - Ora, ora... - replicou o velho, quando pde fazer uso da fala. - Isto a bronqui te... Nem no Vero me larga... Realmente o xarope abranda-me estes ataques mais fo rtes. Mas que quer, minha menina, chego a esquecer-me de o tomar... Desde que mo rreu a minha querida velhota, que ando eu a fazer c neste triste mundo?... O ancio tornou-se bruscamente triste. Joaninha viu-o a enxugar as lgrimas e no soub e se ainda eram as da bronquite ou outras, de saudades da mulher, que falecera h avia uns quatro anos e de quem ela se lembrava ainda. - O senhor no deve entregar-se a essa tristeza... aconselhou ela. Rolando encolheu os ombros. - Faz-me muita falta, a minha Rosa. Os filhos l esto para Paris, mais os filhos de les... Esqueceram-se do velhote... No tenho uma companhia, um carinho... H dias, p ara me aplicarem os emplastros que o doutor me mandou pr nas cruzes, foi a senhor a Maria, a alma caridosa, que me fez essa esmola... Tenho que incomodar as pesso as estranhas... Subitamente, a criana indagou: - Por que no se casou outra vez, Rolando? Teria uma pessoa para o tratar... O velho fixou-a muito, com os pequenos olhos azuis cheios de espanto. Parecia, c om efeito, duvidar de que a condessinha estivesse em seu perfeito juzo. Saindo a custo do seu assombro, repisou: - Casar-me eu?... Tornar a casar-me?... Ento eu faria l uma ofensa dessas minha Ro sa que Deus tem?. . No!... Prefiro andar a cair por a aos bocados... No no me casaria outra vez, nem que tivesse menos trinta anos. Joaninha experimentava uma grande turbao. As palavras do jardineiro constituam, sem que ele o tivesse pensado, a condenao da atitude de seu pai. Se aquele pobre home m to desamparado e doente, que vivia da generosidade do amo, mas que teimava em t omar o jardim sua conta, preferia o isolamento e a doena sem enfermeira carinhosa soluo de um novo matrimnio, por que no tomara o conde uma atitude semelhante? Seria , realmente, to imperioso como afirmara o ter que casar-se outra vez? Notando que ela ficava a cismar, o jardineiro, a quem j devia ter constado alguma coisa sobre a resoluo de seu amo, quis atenuar o efeito das suas expanses e disse: - So destas coisas, minha querida menina... Eu tenho c este feitio... No quero dize r que, se Deus me tivesse dado outro modo de ver, no me casasse... Sim, so destas coisas... Joaninha percebeu que estava a inspirar ao velho um sentimento de comiserao e desv iou o dilogo noutro sentido. - Sabe - disse ela -, precisava de umas flores para adornar as casas das minhas bonecas. - o que a falta flores!... -exclamou Rolando. - Vai-se j arranjar um grande ramo.. . Olhe, aquelas dlias, que encanto e grandes!... E aquelas rosas? uma pena ficara m para a a esfolhar- se... Vamos tratar disso... Cheio de entusiasmo, o jardineiro largou o cabo do sacho a que se apoiava e salt ou fora do canteiro, em cuja terra negra e fofa afundava as grossas botas de cabedal. - Mas escute, Rolando, o que eu quero flores pequeninas! As rosas e as dlias so mu ito lindas, mas grandes de mais para entes deste tamanho... E dava com o espao que mediava entre as suas mos erguidas a estatura das bonecas m ais pequenas. - Ah, isso outro caso... -proferiu o jardineiro, que ficou um momento pensativo, a coar o queixo mal barbeado, revestido de uma penugem branca. - Olhe, minha men ina - lembrou ele -, para isso temos mal mequeres, brincos de princesa, miostis.. . Todo debruado para a frente, devido s dores nas cruzes, o velho Rolando tomou por uma lea e, em poucos instantes, tinha obtido um ramo maravilhoso pela sua delicadeza e graa. Aspirando-lhe o perfume, Joaninha murmurava, num enlevo: - Que lindas!... Eugnia vai ficar encantada... De sbito soou um claxon nas proximi dades. A criana teve um sobressalto e murmurou: - O carro do pap... E desatou a correr para a lea principal, por onde via deslizar um automvel cor de azeitona que, numa viragem airosa, foi deter-se junto da escadaria. Joaninha precipitou-se, numa corrida louca, a chamar: - Eugnia!... Querida Eugnia!... Recepo que se torna decepo O carro chegara com uma hora de avano. O conde, no seu telegrama, ampliara o temp o da viagem a fim de evitar cuidados a quem esperava, caso houvesse alguma demora imprevista. Gasto declarara que a viagem se fizera sem incidentes e at sem grandes pressas. Tudo decorrera normalmente. Ao ver Eugnia descer do automvel, muito vistosa no seu vestido azul, na cabea um bonito chapu de palha de Itlia, a confundir-se com o louro-plido dos seus cabelos, Joaninha sentiu-se muito perturbada, no ltimo degrau da escadaria, a apertar contra o seu peito o delicado ramo de flores que Rolando acabara de lhe dar. A filha de madame Dupont estava mais alta. Crescera muito durante os meses em que deixara de privar com ela e parecia-lhe outra, quase uma senhora. Um sbito acanhamento prendeu-a ao degrau onde se detivera. Contudo, experimentava um grande desejo de cumpriment-la, abraando-a e beijando-a. O aparecimento adiantado do automvel causou surpresa na Vivenda dos Lilases. Algu mas criadas apareceram em alvoroo. Joo desceu a escadaria pressa, para tomar conta das malas que vinham amarradas retaguarda do veculo, no porta-bagagen s. E no tardou que a prpria tia Brbara, em regra to indiferente ao que se passava sua volta, assomasse o seu vulto, l em cima, entrada do edifcio, a assestar os seus culos para examinar melhor a recm-chegada. Eugnia, que saltara lestamente, trazia na mo um pequeno volume. Dirigiu a Joaninha um olhar e um sorriso, acenando-lhe um adeus nas pontas dos dedos, e voou pelas escadas, j de braos abertos, e a gritar alegremente: -Querida titi!... Que prazer em ver-te, tia Brbara! A anci, aps uma curta hesitao ante aquela imprevista manifestao de carinho, deixou-se beijar e abraar, um pouco comovida, ao mesmo tempo que pronunciava: - Ests uma pequena senhora!. . Muito cresceste nestes ltimos meses... A mam diz que devo principiar a habituar-me a comportar-me como uma senhora... J sou crescida... J fiz doze anos... A tia Brbara sorriu e comentou: - Doze anos!... Ests uma velha... Eugnia riu-se muito, achando graa ao dito, enquanto Brbara, desprendendo-se dos seu s braos, comeava a encaminhar-se para a pequena sala de estar. Joaninhamuito calada, pois no parec ia bonito interromper a recepo que sua tia estava fazendo sua nova sobrinha, segui a-lhes os passos, sem largar o ramo de flores, que continuava a apertar contra o peito. No aposento, Brbara sentou-se numa poltrona e disse: - Descansa um bocadinho antes de ires mudar de roupa. Maria j tem tudo a postos n os teus aposentos. Hs-de querer tomar um banho, no?- Ai, estou mortinha de calor! -confessou Eugnia. - Mas, primeiro que tudo, quer o desempenhar-me das incumbncias que me deram. Falava agora, num - tom muito srio, tomando ares graves de senhora que no ficavam muito bem a uma garota de saia curta e de peuguinha azul. Brbara olhou-a com uma curiosidade no isenta de simpatia: - Ento, que incumbncias so essas? - indagou ela. - Em primeiro lugar, este livrinho que lhe envia a minha mam, que pede desculpa d a pobreza da dedicatria. No rosto da anci, habitualmente carrancudo ou enfadado, abriu-se um sorriso de sa tisfao. - Ora, ora. A tua mam est sempre a maar-se por minha causa... - pronunciou ela, des vanecida. E no podendo resistir tentao, principiou logo a desatar o lao cor-de-rosa que prendi a o embrulho, retirando o papel com a mo nervosa. Surgiu um lindo volume encadern ado em couro da Rssia, com artsticas letras de ouro na capa e na lombada. Era Graz iela de Lamartine. Abrindo as primeiras pginas, a apaixonada leitora reparou numas linhas manuscrita s e ajeitou os culos para as ler. Era a dedicatria, que rezava assim: minha melhor amiga Brbara d'Azincourt, a quem terei em breve o grande prazer de chamar irm. Se guia a assinatura de Helena, numa letra pretensiosa. - Muito obrigada... A tua mam muito gentil... Esta dedicatria d- me um grande praze r -declarou ela. - Vem c, minha filha, deixa-me dar-te antecipadamente o grande b eijo que Lhe destino quando ela vier. Visivelmente perturbada, Brbara puxou a si a criana, beijando-a repetidas vezes n as faces. Um pouco de parte, esquecida delas, estava Joaninha, Nunca a vira to maravilhada com a atitude de sua tia to expansiva e sorridente. Eugnia conseguira mais em cinco minutos que a verdadeir a sobrinha em vrios anos. Contudo Joaninha no exprimia irritao ou cime, antes se rego zijava com o que se estava a passar na sua presena. S receava que a tia Brbara comea sse a embirrar com a que ia ser sua irm. Esse receio acabava de desvanecer-se. Por isso, um sorriso animava as suas faces . - Bem - disse a anci -, falaste de incumbncias. Da primeira alis bem agradvel, j te desincumbiste. H mais alguma? - A outra foi-me confiada pelo pap, hoje, quando se despediu de mim, em Paris... Mas suponho que no ser necessrio falar dela, sequer... Porque me parece intil... - Explica-te! - exigiu Brbara, num tom que Joaninha sups ser um comeo de irritao. Eugnia explicou prontamente que o seu pap queria que, a partir de hoje, ela comeass e a ser tratada como sobrinha. Brbara achou despropositada tal recomendao. nesse momento reparando na sua verdadeira sobrinha, tornou-se mais agreste e per guntou: - Joaninha, j falaste a Eugnia? Ento, no abraas tua irm? A criana julgou-se inesperadamente em falta. Nervosa, apenas pde balbuciar: - Ainda no tive ocasio... - Ento, que fazes a especada?... Joaninha avanou para Eugnia de braos erguidos e lbios estendidos. A recm-chegada condescendeu em deixar-se abraar e beijar, perguntando: - Como tens passado, Joaninha? Aquele abrao pareceu pequena dado distncia e o beijo muito frio. Mas foi uma impre sso fugaz a que ela no deu importncia e logo recalcou no seu ntimo, ao mesmo tempo q ue dizia: - Sabes, estava no jardim a colher flores para as casinhas das bonecas, quando c hegaste... Olha, achas bonitas?... Eugnia deitou um olhar pouco interessado sobre o lindo ramo, que Rolando arranjar a com tanto gosto e replicou: - No so feiazinhas...- Quere-las para ti?... Acho mal empregadas para as bonecas. - disse Joaninha. - Ora, para que quero eu isso?... Joaninha quedou-se a olh-la, por momentos, numa incompreenso. - Compreendes, isso so flores boas para as brincadeiras -elucidou Eugnia, tomando um certo ar de pessoa adulta que d uma explicao a uma criana. Para mim, tm que ser ou tras flores, mais escolhidas... Brbara, que mergulhara, pela dcima vez na sua vida, na leitura de Graziela, levant ou o nariz e ordenou, distraidamente: - Vo brincar l para fora... Deixem-me vontade... - Adeus, titi. At j... - disse Eugnia. J de novo absorta na leitura, a anci respondeu maquinalmente: - At j... Quando cruzavam o corredor, no velho relgio holands soavam quatro e meia. - Ainda cedo - notou Joaninha. - Queres dar uma vista de olhos na nossa casa de brinquedos, antes de ires mudar de roupa? - Pois sim, se isso te d muito prazer... - anuiu a filha de madame Dupont. A filha de Andr, que no tinha maldade, nem sequer fez reparo no ar de favor com qu e a outra lhe respondera. Pelo contrrio, sentiu-se cheia de contentamento, julgan do Eugnia muito interessada nos brinquedos. E pensava: ela vai ter uma grata surp resa. Tomou-lhe a mo, numa tmida expanso de ternura, e pronunciou: - H tanto tempo que no brincvamos juntas... Desde o ano passado... J tinha saudades. .. - Sabes - disse Eugnia, tomando um arzinho de superioridade, que parecia tornar-l he o nariz mais petulante - comeo a perder o interesse pelas brincadeiras de cria na... J frequentei o liceu durante este ano... - E fizeste exame?. . - perguntou Joaninha, cheia de interesse. - Passei por mdia... Em Outubro, j comeo a frequentar o segundo ano. A mam est com a mania de que eu devo tirar o curso de medicina... Mas eu preferia advocacia; sinto-me com muita vocao... Joaninha escutava-a, maravilhada. Entretanto, tinham chegado sala dos brinquedos , cuja porta se encontrava fechada. Joaninha comeou a abri-la devagar, para obser var a grande surpresa que iria produzir na amiga. De sbito, escancarando-a, disse : - Olha!... Toda ela era um sorriso de enlevo na sua prpria obra. Por isso, no pde logo notar q ue nos lbios de Eugnia apenas se esboava uma leve expresso de desdm. - Ainda no perdeste a mania das casinhas de bonecas. - proferiu a recm-chegada, av anando alguns passos no aposento. - Estive a preparar tudo isto, antes de tu chegares - disse Joaninha. - Tinha descido agora ao jardim a fim de trazer umas flores pa ra ornamentar as salinhas. Esto muito nuas, no achas? - Esto com uma falta de gosto notvel! - exclamou Eugnia, com uma risada. E devolven do-Lhe as flores, acrescentou:- Toma... Para animar isto que elas servem. Joaninha aceitou as flores, maquinalmente, um pouco sucumbida. No se sentira ofen dida por Eugnia considerar mau gosto aquele arranjo, que ela supusera to artstico e que Lhe dera tanto trabalho. Acreditava piamente em que a sua quase irm, j aluna do liceu e mais velha dois anos, tinha toda a razo. Ela, Joaninha, que devia cons iderar-se uma desajeitada. Havia de consultar as revistas inglesas de modas que miss Elizabeth Lhe emprestava s vezes para que ela se familiarizasse com os termo s caseiros e de modas. Publicavam interiores de lares muito bonitos, embora muit o britnicos. Estas impresses passavam tumultuosamente no crebro da criana, que olhava com triste za a sua obra. - Tu hs-de ensinar-me a dar melhor arranjo s casinhas, sim?... - Est bem, uma tarde que tenha tempo... - concedeu Eugnia, que fora debruar-se sobr e o bercinho, em que repousava a Lili. Joaninha seguiu-lhe o movimento. - Ficou engraado esse bero, no achas? - proferiu a criana, a medo, quase suplicandomentalmente que a outra gostasse. Eugnia estendeu o beicinho desdenhoso. - No est mal... Joaninha j batia palmas, cheia de contentamento. - Foi tudo tirado da minha cabea... O edredo, a capota forrada de seda cor-de-rosa ... Eugnia interrompeu-a, com ares senhoris. - filha, os lacinhos brancos que so de um pssimo gosto... Talvez gostem muito dist o, aqui, em Ferires, agora, em Paris provocavas gargalhadas... -No gostas?... - indagou a pequenita, sumidamente. - ordinrio. saloio. - So fitas de seda... - disse a criana, com timidez. - De seda ou de cetim, ou de nastro, so fitas. O mau gosto est precisamente na ide ia dos lacinhos pronunciou Eugnia, num ar de infalibilidade, que no se ajustava su a sainha curta e s suas peuguinhas azuis. - Mas tu tambm trazes um lao azul no teu chapu, e, por sinal, bem bonito - lembrou Joana. A filha de madame Dupont tornou-se bruscamente grave, tomando ares de ofendida. - No h comparao possvel entre o meu chapu, que foi comprado num dos melhores estabelec imentos de Paris, e as tuas brincadeiras de garota... -Perdoa-me, Eugnia. Eu no queria ofender-te. Oh, meu Deus!... Que tonta eu sou... Muito aflita, a pequena abraou-se recm-chegada, que a afastou, a protestar: - Olha que me amarrotas o vestido, com as tuas lamechices... As tuas lgrimas j me puseram aqui uma ndoa... V se tens juzo... Ests perdoada. Deixa-me... Joaninha fazia enormes esforos por deter as lgrimas e j se lamentava de ter humedec ido o vestido to lindo da sua amiguinha. Dizia, a desculpar-se e a consol-la: - Isso no pe ndoa... No tenhas medo. - que o estreei hoje... - informou Eugnia. - A mam prometeu-me que havia de estrea r um vestido todas as semanas. - Aos domingos? - Aos domingos estreiam as criadas... - replicou a outra, com desdm. E voltando d e novo a sua ateno para o bero da Lili, pronunciou: - Agora reparo: bateste todos o s recordes do mau gosto. O edredo no devia ser azul, mas cor-de-rosa, como a capot a, que foi a nica coisa em que acertaste. Gosto desta capota a valer. - Sim? - exclamou Joaninha. - Palavra de honra. Eu sou muito sincera... Assim, como no suportei os lacinhos, nem o edredo, confesso que gosto da capota. Como vs, sou imparcial... -Oh, Eugnia, muito obrigada!... - proferiu a criana, com a alma repleta de gratido . - filha, no tens nada que me agradecer... - No calculas como me sinto feliz por te ter agradado em alguma coisa - disse Joa ninha. Eugnia, franzindo a fronte, passava um atento olhar por todos os minsculos brinque dos. A pequenita tremia toda por dentro, receando a opinio que a amiga devia esta r meditando. Estava suspensa dos seus lbios, que se contraam num jeito de severida de. De sbito, os olhos esverdeados da filha de madame Dupont fixaram-se num recanto. Era a caminha de ferro, sem enxergo, tapada com uma colcha de seda. - Que aquilo? - inquiriu ela, apontando com um dedo muito espetado. - Ah!... um quarto... - Da criada... - Sim, da criada... - murmurou Joaninha, sem coragem de confessar que aquele era o quarto da dona da casa. E, para Lhe desviar a ateno, perguntou:Gostas daquele q uarto? Era o outro, o que ela projectava destinar grande amiga que viria visit-la de sur presa. - A moblia est fora de moda - replicou Eugnia, secamente. - Isto era para fingir de uma moblia Lus XVacudiu a pequena, vivamente. - Eu at tin ha pensado que havamos de brincar s visitas. Tu vinhas passar as frias comigo... Eu ia mostrar-te a casa e tu gostavas. . Este quarto mais bonito seria o teu...- Mas tu ests enganada... - interrompeu Eugnia, com altivez. - Eu no sou uma hspede, sou to dona da casa como tu, percebes? Por acaso, ainda no te explicaram isso?... Se no sabia s, fica-lo sabendo agora. - Escuta, Eugnia!... - exclamou Joaninha. - Ests a fazer confuso... Eu sei... O pap explicou-me tudo... Eugnia j no a ouvia. Volvendo abruptamente as costas, saiu, batendo a porta. Joaninha ficou sozinha, no meio do compartimento, a soluar baixinho e a murmurar em voz entrecortada: -No me compreendeu... No me compreendeu... Talvez nunca chegasse a compreend- la. Eugnia no deixa o seu crdito por mos alheias Joaninha ficara esquecida na casa dos brinquedos. Sofrera um grande desapontamen to. Tudo o que sonhara de delicioso para a chegada daquela que considerava a sua melhor amiga e j tratava como sua irm, fora transtornado nem bem sabia como. Eugnia no ligara a importncia que ela supunha disposio dos compartimentos que Lhe par eceram mobilados com tanto gosto. A bonita comdia que ensaiara mentalmente, para brincarem s visitas, transformara-se num drama, por incompreenso da recm-chegada. E la no quis escutar as suas explicaes. Se a tivesse escutado, tudo redundaria em sor risos, pensava a pobre criana. Contudo, no culpava Eugnia da maneira desagradvel como decorrera o primeiro encontr o de ambas. Culpava-se a si prpria. Ela que fora uma desastrada no arranjo que da va s casinhas. Sentia um grande desgosto pela sua falta de intuio artstica. Devia te r consultado as revistas de miss Elizabeth, antes de meter mos quela obra. Passava um triste olhar pelos brinquedos e reconhecia que Eugnia tinha razo. Dir-s e-ia ver tudo com outros olhos. Realmente, os lacinhos brancos no bero da Lili er am de um gosto muito provinciano e reconhecia que fora um disparate compar-los com o chapu da sua futura mana, que era to lindo. Bas tava ter sido comprado num dos melhores estabelecimentos de Paris, onde se sabe o que moda e se tem noo do verdadeiro chic. O edredo azul num bero cor-de-rosa to-pou co era de bom gosto. Na verdade, se tivesse posto tudo cor-de-rosa tinha ficado muito mais delicado, e Eugnia teria dito: - Que fino!... Qualquer coisa de requintado... Havia de arranjar um edredo cor-de -rosa para o bero da Lili e fazer desaparecer aqueles horrveis laos brancos, que lh e produziam agora um arrepio, como se ouvisse arranhar numa parede. Confessava que to-pouco a moblia do quarto que destinava visita de cerimnia era dig na de uma nobre famlia. Estava inteiramente fora de moda. E, no outro quartinho, a camita de ferro muito pobre, sem colches, nem a uma criada se poderia destinar. Joaninha sentia-se pesarosa. Pensava que tinha descido muito no conceito de Eugni a e isso causava-lhe uma sensao de vergonha que a deprimia. Era incontestvel a sua inferioridade ante a filha de madame Dupont, que contava mais dois anos do que e la e j ia em Outubro frequentar o segundo ano do liceu. Mas Eugnia era generosa, pensava a criana, e havia de ensin-la. Estava disposta a s eguir fielmente os seus conselhos, para que houvesse sempre harmonia entre ambas e no surgissem mal-entendidos to desagradveis como o de h pouco. Tambm Joaninha reconhecia que, talvez devido sua pouca idade ou falta de convivnci a, no se exprimia com suficiente clareza. Nisso, Eugnia levava-lhe a palma. Admira va o desembarao com que ela falava e como, em poucas palavras muito explcitas, diz ia tudo o que queria. Havia de conseguir ser como ela, mesmo que isso Lhe custas se um grande sacrifcio. Enquanto Joaninha se entregava aos seus melanclicos pensamentos, ia grande azfama na vivenda, para instalar a menina condignamente. Era Maria, a governanta, quem presidia a esses trabalhos. Brbara incumbira- a de tudo, gritando que no a maassem. Limitava-se a recomendar: - Tratem a pequena como se fosse a prpria Joaninha. O senhor conde no quer distines entre elas. So duas irms. Dito isto, mergulhou na Graziela, que j fizera os encantos da sua mocidade e aque cia agora, com um calor juvenil, o seu corao de anci. A governanta mostrava-se prazenteira e cheia de uma boa vontade para com a filha de madame Dupont, que nem parecia partir de uma pessoa que, ainda na noite anterior, se pronunciara to desfavoravelmente sobre Eugnia e sua me. Toda ela era sorrisos e atenes para a pequena. - Olhe, menina Eugnia, h-de dizer se o banho est em boa temperatura. Mandei a Marga rida prepar-lo a vinte e cinco graus. Refresca e no causa calafrios... Eugnia, que sara mal disposta da companhia de Joaninha, replicou logo, muito exped ita, que em Paris tomava a vinte graus. No Vero no suportava temperatura mais alta . - possvel que esteja precisamente a vinte graus - acudiu Maria, com um sorriso adulador na cara de bolacha. - Como a menina se d emorou ainda um bocado, deve ter baixado um pouco. - Veremos... - resmungou a criana. E encaminhando-se para a sala de banho, foi i nquirindo: - J l est o meu roupo turco? - Est tudo a postos, minha boa menina... Se faltar alguma coisa, toque a campainh a. A Margarida correr logo a atend-la. - Ela que me venha lavar as costas... E procurem na minha bagagem o vestido corde-rosa enfeitado com vivos para eu vestir depois... novo e muito bonito. Quero estre-lo hoje. - Sim, menina Eugnia. Isso fica a meu cuidado. Esteja descansada - prometeu a gov ernanta, que a acompanhou at porta da casa de banho. Maria correu em seguida para os aposentos de Eugnia, constitudos por dois comparti mentos: uma sala de vestir, ampla, de moblia clarinha, onde recentemente se insta lara mais uma chaise-longue forrada de pele, e um amplo quarto, de moblia toda no va, bem arejado e iluminado, que mergulhava agora numa doce penumbra, devido a t erem descido as persianas. Por aquele Julho muito quente, respirava-se ali uma f resca atmosfera de Abril. Joo e Margarida j tinham trazido a baggem para a sala de vestir, incluindo uma bici cleta que se equilibrava de p, contra uma parede. Maria, que j comeara a esvaziar as malas, enquanto Eugnia estivera entretida na sal a dos brinquedos, procurou logo o vestido que a sua nova ama lhe indicara. Foi v erificando, ao mesmo tempo, que o enxoval era constitudo na sua maior parte por p eas de roupa inteiramente novas, feitas decerto para fazer a sua entrada triunfal na famlia do conde d'Azincourt. Escolheu logo um conjunto de seda creme, novo, claro, para ela envergar sob o t al vestido, logo que viesse do banho. Disps tudo no guarda-vestidos e nas gavetas. Em seguida, abriu outra mala. Vinha cheia de brinquedos. A governanta julgou-se numa loja da especialidade. Vinha al i de tudo, desde as raquetas e bolas de tnis s bonecas de pano e porcelana, todas elas acompanhadas de enxovais quase to ricos como os da proprietria. Moblias, as ma is modernas e mais sumptuosas, para todos os aposentos de uma grande famlia abast ada e de bom gosto, comearam a surgir de enormes caixas de papelo onde vinham perf eitamente acondicionadas. Eram salas de visitas com poltronas e sofs bem estofado s, os respectivos reposteiros e cortinados, boas carpetas enroladas a um canto d os grossos invlucros; eram luxuosas casas de jantar, aposentos de costura, com me sa de corte e minscula mquina de coser; eram magnficos quartos de dormir para os am os, para os criados, para as crianas, em que no faltavam os mnimos pormenores de co nforto; eram salas de banho com tinas que fingiam mrmore e chuveiros miniatura qu e funcionavam como os grandes, com gua a valer e tudo; uma cozinha completa, com grande fogo de ferro, mesas de tampo de pedra cor-de- rosa, vastos armrios enverni zados de branco, um sem nmero de tachos, panelas, caarolas, etc. , sem esquecer as miniaturas de manjares de toda a ordem j confeccionados. Maria, que j orava pelas proximidades dos quarenta e se tinha em conta de mulher s isuda, ao ver surgir aquelas maravilhas de dentro de grandes caixas de papelo, qu e ostentavam no tampo, com gravuras que reproduziam o contedo, os nomes pomposos dos fabricantes, sentiu-se deslumbrada e simultaneamente enternecida. Ela, que em criana nunca brincara seno com bonecas feitas por sua me de algum farra po desbotado, sentou-se bruscamente sobre o tapete do aposento e, com um sorriso infantil no seu rosto cheio e corado de provinciana, principiou a pr de p aquele recheio precioso de casa rica e, contorcendo-se toda, porque o ventre arredondad o no lhe permitia posio cmoda sentada no cho, arrumava as casinhas com mais gosto e e ntusiasmo do que nunca o fizera em casa dos patres.Uma alegria infantil apossava- se dela. No podia resistir, e batia palmas de cada vez que fazia correr automaticamente lgum daqueles preciosos reposteirinhos adam ascados, ou que descobria dentro dos armrios da cozinha travessas pequeninas, em que havia perus pequeninos bem tostados, tudo em loua, mas to bem imitado que pare cia uma realidade. As suas ingnuas risadas transformaram-se em fartas gargalhadas quando encontrou um autoclismo e respectivos apetrechos sanitrios. Comeou logo a puxar a corrente e percebeu que aquilo funcionaria com gua autntica. - Esta no lembrava ao diabo!... - exclamava ela, entusiasmada com aquele brinqued o que a maravilhava mais do que as salas sumptuosas. Eugnia veio surpreend-la nesse -vontade, entretida com os brinquedos como se fossem propriedade sua. Ainda envolta no felpudo roupo de banho, a filha de madame Dupo nt foi acometida de um verdadeiro ataque de clera, ao ver todos os seus bonitos d evassados, espalhados no tapete, mexidos por aquela mulher ordin ria, que por cer to no teria esprito para apreciar coisas to requintadas. - Quem te deu ordem para mexer nas minhas brincadeiras?!. . - bradou ela, a gest icular dentro do roupo branco, que lhe dava o vago aspecto de pequeno urso furios o. A governanta caiu em si. Aquilo fora uma criancice. Num esforo, ergueu do solo o seu corpanzil. E longe de sentir-se ofendida por aquela fedelha a tratar por tu - coisa que a condessinha nunca fizera- assumiu uma atitude contrita de pessoa q ue se v apanhada em falta. - Desculpe, minha boa menina... - titubeou ela. Desculpe... Reconheo que foi abus o... Mas estes brinquedos so lindos como eu nunca vi... No pude resistir. Senti-me outra vez criana... Desculpe... Ai, que encanto, que lindeza!... Desculpe, sim?. Eugnia sentiu-se abrandada na sua ira. O assombro, aquele como que aturdimento da governanta perante os seus brinquedos, eram gratos sua vaidade, adulavam-na. - Achas, realmente, engraados?... - perguntou ela. -Lindssimos!... Nunca pensei que pudesse haver coisas to bonitas para meninas brin carem, estragarem... - Foi um presente do pap... - informou ela, tomando um ar importante. - Ele muito seu amigo... Para lhe dar estas maravilhas!... - comentou Maria, que , refazendo-se da comoo, retomava a sua compostura. - o prmio de eu ter passado com boas notas para o segundo ano do liceu - disse Eu gnia. - Ah, a menina anda no liceu? - Ando - replicou a pequena, sem poder dissimular o seu orgulho. E acrescentou, talvez para deslumbrar a serva, quase analfabeta: - Vou tirar o curso de Direit o. Quero ser advogada. Defender grandes causas nos tribunais. J leio com muito in teresse os relatos dos grandes julgamentos, em que os advogados famosos fazem di scursos formidveis... A governanta envolvia-a num olhar de admirao e respeito. - Deve ser muito difcil a carreira de advogado - disse ela. - Eu j assisti a dois julgamentos... Admiro-me como aqueles homens tm coragem de falar frente de tanta gente... Eles gritam, insultam, parece que vo comer-se uns aos outros, metidos na quelas vestimentas pretas... A menina tinha coragem de falar, assim, em pblico... Eugnia esboou um sorriso de superioridade e redarguiu: - Evidentemente. . - E tambm vestir aqueles trajos pretos?... - Pois claro. a beca dos advogados... - A qu?... - A beca. assim que se chama quele fato explicou a pequena, intimamente satisfeit a de deslumbrar aquela mulher inculta. Mas a ateno da governanta voltou a ser atrada pelos brinquedos. - A menina Joaninha nunca teve nada que se parecesse com isto... - disse ela. - Joaninha uma criana. Contenta-se com pouca coisa, coitada - proferiu Eugnia, com uma pontinha de desdm. E ajuntou: - Claro que o pap, quando comprou estas coisas, bem sabia a quem se destinavam... - Quando ela vir tudo isto vai ficar como louca. - Mas no julgues que ela me vai estragar brinquedos to raros... - pronunciou Eugnia , em tom severo.- Sempre quero ver a cara que ela faz!... - exclamou a governanta. - Vai ficar cheia de inveja... - insinuou a pequena. - Inveja no direi, mas deve ter pena de no possuir tambm uns bonitos como estes... - O pai que lhos compre! - acudiu vivamente a filha de madame Dupont. - Estava capaz de ir cham-la... S para ver como ela se porta - lembrou maldosament e a governanta. - No seria m ideia... - anuiu a rapariga. Maria ia j a dirigir-se para a sada, mas u m grito de Eugnia deteve-a. - Espera. Que vais fazer?. - Vou cham-la. - Por enquanto, no - ops a outra. - No quero que ela me veja nesta figura. - E apon tava para o seu roupo de banho. - J tiraste o meu vestido cor-de-rosa? - Est ali, de parte... Tirei tambm o conjunto creme, que me parece bonito para ago ra... -Ento, veste-me e penteia-me depressa. Depois, vais cham-la. Vamos desfrutar a sua cara. . - E baixando a voz, em tom de confidncia: - Sabes que a Joaninha tem-me uma inveja enorme? No pode suportar que eu seja assim lourinha e bonita. Dou muit o nas vistas. Diz a mam que quando estou ao p dela desaparece, some-se, coitada... - Ah, a menina Eugnia d logo nas vistas!... - afirmou Maria, comeando a pr em ordem as peas de roupa que havia de vestir-Lhe. A pequena gostou daquela apreciao e rasgou a boca num sorriso, que parecia tornar mais arrebitado o seu narizito atrevido. Alguns incidentes sem consequncias A porta, abrindo-se de repente, interrompeu as melanclicas meditaes de Joaninha, qu e nem saberia precisar quanto tempo permanecera esquecida de tudo o que a cercav a, sentada entre aqueles pobres brinquedos que Eugnia tanto desprezara. A volumosa figura da governanta entrou. - Aqui to caladinha e s... - pronunciou ela, numa estranheza. - Hoje, nem ao menos tem aqui o Sleep para a acompanhar. - Ele muito brincalho e estraga-me os brinquedos - respondeu a pequenita. - Nunca mais o deixo aqui entrar quando tiver as minhas coisas assim expostas. A governanta passava agora um olhar de comiserao por aquelas brincadeiras pobres, que at h pouco Lhe pareciam a ltima palavra em perfeio e em beleza, e comparava-as me ntalmente com o que acabara de ver nos aposentos de Eugnia. - Brinquedos bonitos trouxe a sua mana - proferiu ela, fixando a condessinha. - Sim?!... - exclamou esta, numa sbita curiosidade. - Est agora a tir-los da bagagem. Quer v-los? - O pap tinha dito que ia enviar por ela muitos brinquedos - disse a pequena. - E le nunca falta ao que promete. - Vai ver que bem ele cumpriu a sua promessa - proferiu Maria. - Venha c... Saram ambas e dirigiram-se a passo rpido para os aposentos de Eugnia. Ao tentar abrir a porta do quarto de vestir, Maria verificou que estava fechada por dentro. Bateu com os ns dos dedos. - Quem ?... - inquiriu l de dentro a voz irritada da filha de madame Dupont. - a menina Joaninha que vem fazer-lhe uma visita... - anunciou a governanta, em tom chocarreiro. - Que espere um bocadinho. Eu j a recebo... - retorquiu a outra em tom expedito. Ela supunha que lhe dava mais categoria fazer esperar a sua visita. Explicaes conf usas que a me Lhe dera acerca dos hbitos num lar aristocrtico, levavam a filha da b urguesinha, cujo av vendera litros de vinho numa taberna, a assumir atitudes que eram a perfeita negao da boa e inteligente etiqueta. Eugnia, enquanto as fazia esperar, ensaiava ao espelho posies que lhe pareciam de u ma elegncia extrema, recordando vagamente algumas actrizes do cinema americano. S decorridos uns bons minutos se encaminhou para a porta e, abrindo- a, proferiu numa vozita que esforava por atingir a inflexo de uma grande gentileza: - Desculpa, querida mana, teres que esperar um bocadinho... Estava a dar os ltimo s retoques na minha toillete... Compreendes, j no estou em idade de aparecer de qu alquer maneira...Joaninha nem sequer fez reparo nas maneiras afectadas de Eugnia. O seu olhar fixo u-se logo, deslumbrado nas coisas bonitas que se espalhavam desordenadamente sobre o tapete. Maria, ent rando, tocou no cotovelo da menina Dupont, para que esta reparasse na atitude da pequenita. Trocaram ambas um sorriso malicioso. Ento Eugnia, num ar de quase indiferena, proferiu: - Ah, ests a admirar essas bugigangas?... - Que lindo!... Que lindo... - murmurou Joaninha, juntando as mozinhas, num ar de quase religiosa admirao. - So as prendas que o pap me ofereceu por ter passado com boas notas para o segund o ano do liceu. - O pap tem muito bom gosto... - disse Joana, enlevada. - o recheio de um palacete. Tambm deve vir a, na mala grande, uma garagem particul ar com todos os pertences e dois carros: um de luxo e outro utilitrio, para as vo ltas durante a semana... Olha, tambm tenho uma bicicleta... Tu sabes andar?... -No, no sei... - confessou Joaninha, que se voltara para admirar a bicicleta ainda nova, que permanecia equilibrada contra a parede. - No custa nada... At parece impossvel que ainda no tivesses aprendido... - disse Eu gnia. - No sei se o pap quer que eu aprenda, enquanto no for um pouco mais crescida - pro feriu timidamente a pequenita. - Talvez no queira - disse Eugnia. - Na verdade, ainda s muito criana. No entanto, s e quiseres, posso-te ir dando umas lies... Depois, quando esta bicicleta j for velh a, dou-ta e o pap compra outra nova para mim. Queres? Joaninha no notou o que havia de vexatrio naquela proposta, e aceitou- a com infa ntil entusiasmo. - Quero, sim, Eugnia. Mas no h direito de seres assim to boa para comigo. Uma bicicl eta uma prenda de muito valor. - No faz mal. Eu depois terei outra nova e maior s para mim... Maria, seguindo o dilogo travado entre as duas crianas, fazia repetidos sinais afi rmativos com a cabea, aprovando o que dizia a menina Dupont. Os olhares de Joaninha voltaram a ser irresistivelmente atrados pelos minsculos br inquedos que faziam vibrar a sua sensibilidade de criana. - Aquele quarto de dormir lindo - disse ela, apontando os mveis que se encontrava m espalhados em desordem. - Comparado com os que me mostraste h bocado... - insinuou Eugnia, maldosamente, no intuito de causar-lhe inveja. - No h comparao possvel... - murmurou a pequenita. E a outra sups adivinhar, no tom em que ela pronunciava aquelas palavras, um desp eito mal dissimulado. - O pap sabia perfeitamente que eu j no era menina para me contentar com misrias, co mo as que te deu a ti... - insistiu a rapariga, sempre com inteno de ferir e amesq uinhar a pequena que se exprimia com to boa-f. Joaninha ergueu para ela os seus grandes olhos negros, profundos, um tanto melan clicos, como se a interrogasse mudamente, e aps uma ligeira hesitao, arriscou timida mente uma observao: - Mas o pap disse-me, o outro dia, antes de partir para Paris, que me ia enviar por ti muitos brinquedos novos, para eu depois dividir contigo... Colhida de surpresa, Eugnia quedou uns momentos de boca entreaberta, a mostrar de ntes ralos e irregulares. Seus olhos esverdeados passearam inquietos do rosto de Joaninha para o da governanta. Dir- se-ia procurar aflitivamente os termos que traduzissem a sua profunda indignao. At que explodiu, por fim, indignada: - Essa de cabo de esquadra!... A pequenita, no a percebendo, perguntou ingenuamente: - Que queres dizer com isso?. - No te faas sonsa! -replicou a outra, recobrando, por completo, o dom da fala. Tens a mania de te fazeres palerma, julgando que embarrilas as outras. Bem me ti nham avisado de que era preciso muita cautela contigo. Joaninha, atemorizada perante aquela atitude intempestiva, perguntava a si prpria em que erro teria incorrido para provocar, pela segunda vez, em to pouco tempo,a ira daquela a quem desejava ligar-se numa amizade verdadeiramente fraternal. - Querida Eugnia... No te percebo... Desculpa, reconheo que a minha inteligncia est p ouco desenvolvida... - No venhas para c com essas cantigas!... Bem te conheo, menina... Ento julgas que no descobri a tua inteno de me rebaixares?. Mas ests enganadinha... Eu aqui no sou men os do que tu... Pelo contrrio, sou um pouco mais, porque conto mais dois anos, pe rcebes? Joaninha fazia grandes esforos para no chorar. Sentia que se levantara entre amba s outro mal-entendido, de que ela era certamente a culpada, mas ainda no compreen dera em que espcie de erro incorrera para merecer tal tratamento. - Eugeniazinha, suplico-te... Diz que mal fiz para eu o emendar... Eu no sou m... Estimo-te tanto!... Tentava abra-la. A outra repeliu-a com altivez. E volvendo-se para Maria, que pare cia tambm ignorar a origem da sua indignao, insinuou: - Ests a ver a qualidade desta menina?... preciso muito cuidado com ela... O que vale que eu fui bem prevenida... J no me apanhas descala... Os termos da filha de madame Dupont, sobretudo quando se zangava, eram pouco esc olhidos. A sua linguagem, alm de vulgar e deselegante, roava por qualquer coisa de muito ordinrio. A governanta quis harmoniz- las. - A menina Joaninha no quis ser-lhe desagradvel - disse ela. - Se o entendes assim, s to boa como ela - exclamou Eugnia, fazendo- se muito verme lha. - Primeiro, ela quis intitular-se dona de tudo isto, o que mentira, dizendo que o pap prometera mandar-lhe estes brin quedos. Depois, quis rebaixar-me, afir mando, com falsa generosidade, que os dividiria comigo. E o pior foi querer faze r de mim moo de recados. Ests a perceber? Eu trazia os brinquedos de Paris, para e ntregar menina. E ficava depois espera de que ela quisesse dar-me algum sobejo.. . -E virando-se para a pequenita, que a escutava muito sucumbida, dirigiu-se-Lhe toda congestionada, e gritando quanto podia: - Ests enganada, minha filha!... Nu nca preciso dos sobejos de ningum, e muito menos dos teus!... Percebes? Joaninha experimentava uma sensao de aniquilamento. Vi