fragmentos desdobrados: os rastros de grande … desdob… · curitiba, vol. 5, nº 8, jan.-jun....
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Curitiba,Vol.5,nº8,jan.-jun.2017ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE
COUTO,D.M.B.Fragmentosdesdobrados:osrastros... 165
FRAGMENTOSDESDOBRADOS:OSRASTROSDEGRANDESERTÃO:
VEREDASNOSLIMIARESDE“SERTÃOGRANDE”
UNFOLDEDFRAGMENTS:THETRACESOFGRANDESERTÃO:VEREDASIN
THETHRESHOLDSOF“SERTÃOGRANDE”
DanielaMartinsBarbosaCouto1
RESUMO: As referências e citações à obra Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa,conduzemecompõemostextosjornalísticosdasérie“SertãoGrande”,publicadapelojornalEstadodeMinasem2012.Ostrechosdoromance,nestetrabalho,sãolidosconsiderando-seaperspectivadeWalterBenjamin(1986,2007)sobreosfragmentospara,assim,perceber-secomoosertãoliteráriodo romance se torna rastros que, desdobrados nas páginas do jornal impresso, possibilitam aconstruçãodashistóriasjornalísticasnarradas.Palavras-chave:fragmento;limiares;narrativas.ABSTRACT: The references and citations ofGrande Sertão: veredas, by JoãoGuimarãesRosa, leadandmakeupthejournalistictextsoftheseries“SertãoGrande”,publishedin2012bythenewspaperEstadodeMinas.Thepassagesofthenovelarereadconsideringtheconceptoffragments,accordingtoWalterBenjamin(1986),inordertoidentifyhowtheliterary“sertão”ofthenovelbecomestracksthatunfoldedinthepagesoftheprintednewspaper,enabletheconstructionofthenewsnarrated.Keywords:fragment;thresholds;narratives.
1.FRAGMENTOSDESERTÃO
Um sertão de várias vozes e sotaques, paisagens e rumos ganha traços e
contornospormeiodapalavraescritae,naspáginasdopapeljornal,temorecontode
sua história multiplicado emmilhares e milhares de exemplares. Uma parte dele é1MestreemLetras,UFSJ.
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constituídapelaapuraçãojornalísticadocontextosocioeconômicodointeriormineiro
durante os primeirosmeses de 2012, período em que foi produzida a série “Sertão
Grande”,compostapornovereportagens,emcomemoraçãoaos60anosdaviagemde
João Guimarães Rosa junto a Manuelzão pelo sertão mineiro. A outra é tecida por
trechosretiradosdoromanceGrandeSertão:veredas,publicadopelaprimeiravezem
1956econsideradopelareportagemcomoumarepresentaçãodocontextosertanejo
da época da viagemdeRosa entreBarreiroGrande eAraçaí. Assim, para traçar um
paraleloentreaeconomiade2012eaeconomiadosanosde1950,encontram-se,na
mesmapágina,anarrativaquenãoseentregaeevitaexplicações—aquientendida
como as passagens do romance inseridas na série jornalística e que, em forma de
citaçãodiretaouindireta,abrem-separaleiturasdiferentes,conformeserádiscutido
adiante—eainformaçãoque“aspiraumaverificaçãoimediata”(BENJAMIN,1987c,p.
203)edevesercompreensíveleclara—representada,nessecontexto,pelotextodas
reportagens.
Asérie“SertãoGrande”seconstitui,assim,pormeiodeumaconstanteinteração
entreliteraturaejornalismo,aindaqueadiferençaentreambossejademarcada,pois
“na primeira predomina o imaginário; no segundo, deve-se impor a realidade
(histórica,atual)dosfatosnarrados”(SODRÉ;FERRARI,1986,p.23).Quantoaofato
— histórico, diga-se de passagem —, pode-se observar que ele, segundo Le Goff
(2003),nãoéumobjetoacabadoeobjetivo,masalgoemconstrução,cujaleiturapode
semodificarconformeoolharlançado.OsdocumentosqueconstituemaHistória—e
quesãoconsideradosfatos—sãoconstruídosconformeasseleçõestantodasfontes
quantodostrechosregistradose,nocontextodasérie,aobradeRosafoiconsiderada
comoessedocumento,tantoqueintegraatessituradanarrativajornalística.
A linguagem torna-se, então,mediadoraparaa construçãodashistóriase,por
issomesmo,fundamentatantoanarrativaficcionalquantoajornalísticaque,embora
separadas pela oposição entre realidade e imaginação, se reúnem em um mesmo
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espaçotextual.Trechosdolivrosãoinseridosnasreportagenseindicamaquestãoa
serdiscutidanotextojornalístico,conformepodeserpercebidonapassagemaseguir,
retiradadaprimeiramatériadasérie:
Guimarães Rosa e Manuelzão percorreram regiões que não existem mais emMinas:povoadosderamlugaracidades,veredasforamengolidaspordiferentesplantações,oprogresso interferiunocostumedosertanejo.Oautorsabiaquearegiãoestavaprestesamudar.EmGrandeSertão:veredasprofetizou:‘Ah,tempodejagunçotinhamesmodeacabar,cidadeacabacomosertão.Acaba?’(LOBATO;RIBEIRO,25demarçode2012b,p.16).
Neste trecho, o texto jornalístico se constrói não apenas pelo contraponto do
ontemedohoje—contrapontoessequeseencontranolimiarentreofatoeaficção,
poisconcedelimitesacadaumdostextose,aomesmotempo,épassagementreume
outro—,mastambémpelasinferênciasquesãofeitasepreenchemaslacunas.Oautor
sabia que o sertão mudaria e profetizou isso no romance. Nesse momento, autor e
personagemsãoumsó:orealeoimaginativoseencontramedãootomdanarrativa.
Tal trabalho,mediado pela linguagem, traz consigo a possibilidade demescla entre
fatose ficções,poisamatéria-primaquecompõeashistórias—sejamasdos livros,
sejamasdosjornais—sãoaspalavraseasmemóriasque,porsuavez,sãomaleáveis.
Dessamaneira,surgemfragmentosdeumsertãoquese tornamúltiplodentro
dos limites que lhe são impostos pelo fazer jornalístico. É delimitado devido aos
recortesfeitospelareportagem,tantonaobraquantonaseleçãodepersonagenspara
asmatériasedefiniçãodoslugaresqueseriamvisitadosparaaproduçãodasérie—
lugares esses que existem tanto no romance quanto na geografia percorrida pelos
repórteres.Émúltiploporqueofragmentonãoé,comoargumentaBenjamin(1986a,
2007),orestoouaquiloquesobra,masalgoautônomoequepossuiaforçamotrizque
possibilitaaprópriaobra,sendotambém,porsisó,sobrevivências—“[...]sãoapenas
lampejos [...] [e]nosensinamqueadestruiçãonuncaéabsoluta” (DIDI-HUBERMAN,
2011, p. 84)—, “Lampejo[s] para fazer livremente aparecerem palavras quando as
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palavrasparecemprisioneirasdeumasituaçãosemsaída”(DIDI-HUBERMAN,2011,p.
130, grifo do autor). O sertão é, pois, o presente que surge domovimento contínuo
entreotodoeaspartes,entreleituraeescrita,lembrançaeesquecimento—“Contoo
que fuievino levantardodia.Auroras” (ROSA,2006,p.607).É,portanto,o sujeito
exercendoaaçãosobreovivido,é “oque foi”sendoatualizadonocontarquese faz
agora.
Para essa atualização, os lugares pelos quais andaram Guimarães Rosa e
tambémospersonagensporeleelaboradossetornaramosrastrosqueconduzirama
produção jornalística. Em entrevista concedida à autora deste trabalho, Paulo
HenriqueLobato(2014), jornalistaqueproduziueescreveuasérie“SertãoGrande”,
contou que durante a leitura de Grande Sertão: veredas marcou as localidades que
eramcitadasnoromancee,apartirdessemapaconstruídocommarcasdegrafiteàs
margensdaspáginasdolivro,definiuopercursoaserseguidoparaaelaboraçãodas
reportagens.Segundoele,aescolhadostrechosdoromanceparasereminseridosnas
matériasconsiderou,porsuavez,ocontextoemqueaslocalidadesapareciam.Nesse
irevirentreoromanceeasreportagens,construiu-seahistóriareferenteàeconomia
dosertão,umavezque,emtermosdelinguagemepercepção,háosrecontosdofatoe
nãoofatoemsi.
Comojáeradeseesperar,aspaisagensdoslugaresjánãosãomaisasmesmas
— “Guimarães Rosa se surpreenderia com o novo sertão: o povoado de Barreiro
Grandecresceuese transformouemTrêsMarias,odeAraçaí seemancipoudeSete
Lagoas” (LOBATO; RIBEIRO, 25 de março de 2012b, p. 16)—, mas a situação das
pessoasnãomudoutantoassim—“[...]adesigualdadesocialaindaenchedepoeiraas
engrenagensdotecidosocial”(LOBATO;RIBEIRO,25demarçode2012b,p.16).Nas
linhasquetecemostextos,amemóriasefazpresentetodootempo.“Faloporpalavras
tortas.Contominhavida,nãoentendi.Osenhoréhomemmuito ladino,de instruída
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sensatez.Masnãoseavexe,nãoqueirachuvaemmêsdeagosto.Jáconto,jávenho—
falarnoassuntoqueosenhorestádemimesperando.Eescute”(ROSA,2006,p.490).
Os sentidos são, também, aspalavras tortasque, emziguezagues, costuramas
memórias de Riobaldo, personagem-narrador de Grande Sertão: veredas, e levam o
leitor num ir e vir pelos vários tempos e lugares grafados por Guimarães Rosa no
romance. O personagem conta sua vida, mas não a entendeu: a palavra tenta, mas
aindaassimnãoalcançaoqueestádentrodele.Chuvaemmêsdeagosto?Oquesetem
nessetemposãoventoseissoosertanejosabebem.E,muitasvezes,oventoantecede
aschuvas:cadacoisaaseutempo,seja,talvez,oqueRiobaldotenhaadizer.Eporque
“escute” e não “ouça”? Talvez, porque escutar esteja mais próximo de auscultar,
procedimento que em medicina — e Guimarães Rosa era médico — aplica o
estetoscópio, ou mesmo o ouvido, sobre determinada área para perceber os sons
internose,também,interiores.
Ossentidostornam-se,assim,fluidose,aindaqueabuscapelarepresentaçãoda
falaapareçanagrafia—“Abom,eunãoteensinei;masbemteaprendiasabercertoa
vida...” (ROSA, 2006, p. 606) —, o que se tem é a própria textualidade tecida por
diferençasdediferenças.No romance, o relatodeRiobaldo abarca tal jogo— fala e
grafiaseaproximam—,mas,aindaassim,sãodiferençasqueseestabelecem.Aescrita
évivanãoporquea falasemanifestanela,masporqueelasetornavivana leiturae
produznovostextos.Voltaraosertãorosianopormeiodotexto jornalísticodasérie
“SertãoGrande”éagircomoquemescavaaterraeprocuravestígiose,porisso,quem
seaventuranessescaminhos“nãodevetemervoltarsempreaomesmofato,espalhá-
locomoseespalhaaterra,revolvê-locomoserevolveosolo.Pois‘fatos’nadasãoalém
decamadasqueapenasàexploraçãomaiscuidadosaentregamaquiloquerecompensa
àescavação”(BENJAMIN,1987b,p.239).
Nesse contexto, a travessia de Grande Sertão: veredas por meio de “Sertão
Grande” é o passado escavado, revolvido, recortado e recontado que permite
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encontrar, sob os traços da ficção, os elementos relacionados às questões
socioeconômicas de tempos outros, tidos como paralelo para a construção das
reportagens. Após revolvidos, os elementos são retirados da obra e ganham novo
contexto:pormeiodecitações,oromanceéinseridonotextojornalísticoetrazparao
contextodeleituraumdiálogoquepermiteentreveraconstruçãodeumaimagemde
sertãoquepodeserinterpretadapormeiodosrastrosdeixadospelaspalavras.Esão
essesrastrosofocodotópicoseguinte.
2.OSRASTROS
As passagens retiradas de Grande Sertão: veredas podem ser lidas como o
escondereorevelardetrechosdosertãomineiro,pois,conformeBenjamin(1986b,
188), “esconder significa deixar rastros. Mas invisíveis”, ou, também, deixá-los
livremente expostos para que sejam descobertos. Esses indícios, enquanto citação
direta, são inseridos logo abaixo da vinheta da série, no alto da página, e
contextualizam as reportagens (figura 1) que também trazem, no corpo de texto,
citaçõesdiretaseindiretas.
FIGURA1—REPORTAGEM“VEREDASDONOVOSERTÃO”
FONTE:LOBATO;RIBEIRO(25mar.2012b).
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Aprimeiracitação,queabreasérie jornalísticaeestá logoacimadotítulo,éa
mesmafraseque,nolivro,encerraoromance—“Odiabonãohá!Éoquedigosefor...
Existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 2006, p. 608). A primeira reportagem,
publicada no dia 25 de março de 2012, traz, além do enredo do livro, à margem
esquerda da página — o que contribui para contextualizar o leitor e delimitar os
espaçosentrea realidadedo romanceea realidadeapuradapela reportagem—,os
elementos comuns entre a série e a viagem de Rosa: as localidades visitadas e a
quantidadedediasqueaviagemabrangeu.
Aquiloquefinalizaoromanceeéseguidopelosímbolodoinfinito—portanto,a
aberturaparaasignificaçãoou,também,paraapossibilidadedeumanarrativaquese
forma na experiência— é, na reportagem, o que a abre e é seguido do título que
orienta a leitura para uma percepção mais direcionada sobre o sertão de hoje.
Enquanto rastro, que contém o sertão de Riobaldo e Diadorim, sem, no entanto,
revelá-lo, a citaçãonarrapela impossibilidadedenarrare, aomesmo tempo, ecoao
romancee secala, eadquirenovos rumosna justaposiçãocomoutroselementosna
página do jornal: as veredas do novo sertão sendo abertas pelas máquinas, cuja
imagem sobreposta aos buritis no layout da página impressa destitui o verde da
paisagemsertaneja.
Ainformaçãoseexplicae,numprimeiroolhar,antesmesmodecaminharpelo
texto jornalístico, já se mostra por meio da justaposição entre título, subtítulo e
fotografias.Nãoháapenasumamudançadecontextodotrechodoromance,masde
significação: a presença do homem— e de sua travessia constante— é lembrada
enquanto aquilo que altera as veredas que, no novo sertão, abrangem tanto a
resistência dos buritis, quanto o movimento dos tratores revolvendo a terra para
trazer o progresso que, muitas vezes, se torna retrocesso, pois nas relações de
produçãoaexploraçãodeclasseaindapermaneceinalterada.
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Ao discutir a formação de um centro urbano, articulando espaço e tempo,
SandraJatahyPesavento(2008)observaqueoscomponentesqueopresidemsãoos
elementos estruturais que traçam e organizam o espaço físico, a apropriação do
espaçonotempoquetransformaoespaçoemterritórioondeaconteceasociabilidade
e “adotaçãode carga imagináriade significados a este ‘espaço-território’ no tempo,
transformando-oemlugarportadordosimbólicoedassensibilidades”(PESAVENTO,
2008,p.05).
Osertãoquesurgedessescaminhosqueentrampelaspalavrasda literaturae
dojornalismoeagregamfragmentosdaobradeRosaconduzoleitoraumespaçoem
queosdizeresreúnemficçãoefactual,sociabilidadesimagináriasefísicas,easpectos
simbólicosquetantosereferemàconstituiçãodeumcentrourbano—osertãojánão
édetantosvazioseaemancipaçãojáacontecenaslocalidades—quantoàdinâmica
emquepassadoepresenteseencontramparatratardefuturos.
Conforme figura 2, na reportagem “Pó que não vemmais do chão”, publicada
tambémnodia25demarço, a citaçãoqueprecedeo título— “[ZéBebelo]dizendo
que,depois,estávelqueabolisseojaguncismo,edeputadofosse,entãoreluziaperfeito
oNorte,botandopontes,baseandofábricas[...]”(ROSAapudLOBATO,25demarçode
2012d,p.17)—apontaumasituaçãonuncacumpridanoromance,masquedeixaum
rastroparaquesecontextualizenotextojornalístico.
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FIGURA2—REPORTAGEM“PÓQUENÃOVEMMAISDOCHÃO”
FONTE:LOBATO(25mar.2012d).
Esserastroéoparquefabrilqueseinstalouemdistritosindustriaisdecidades
comoMontesClaros,TrêsMariasePirapora.Há,contudo,umdetalheaserobservado:
aoolharparaacitação,afotoeotítulo,nessaordem,oquesedesdobraéaleiturade
que,senostemposdoromanceopóvinhadapoeiradosertão,hojeeleéafumaçaque
vemdas fábricas e semistura às nuvens. Título e imagem se reforçam: os resíduos
poluentes ganham os ares; já a citação segue por outro caminho: aponta para o
desenvolvimento.Novamente,se fazempresentesasmetáforasmíticasdoprogresso
— erguer pontes, levantar fábricas, reluzir o Norte — e, para desmascará-las,
Benjamin (apud BUCK-MORSS, 2002), observa que é preciso olhar os objetos
pequenosedescartados.Nessecaso,pode-seperceberqueosresíduos,sejaapoeira
dopassado,vindadochão,sejaafumaçadopresente,vindadaschaminés,continuam
aimpregnarapaisagemdosertão.
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Jánareportagem“Riquezaescondidanobrotodaterra”,veiculadanodia26de
março de 2012, a citação se desdobra no texto jornalístico como uma abertura de
possibilidadesparao contextoeconômicoda região: “Masos caminhosnãoacabam.
Tal por essas demarcas deGrãoMogol, Brejo dasAlmas eBrasília [...]” (ROSAapud
LOBATO;RIBEIRO,25demarçode2012a,p.18).Noromance,otrechorefere-seaoir
e vir deRiobaldo e seu grupo, e envolve a amplitude que o sertão tem e os poucos
recursosqueoferece.Inseridanapáginadojornal,acitaçãodialogacomainformação
de que a descoberta de minério de ferro tem trazido investimentos ao sertão.
Justaposto no espaço da informação, o fragmento da narrativa é o elemento que
remeteàobradeGuimarãesRosa,masdela tambémsedistancianamedidaemque
mudaorumodoseusentido,dadaasrelaçõesdiscursivascomosdemaiselementos
dotextojornalístico.
A citação “E Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que tinha [...] Não
queria saberdo sertão, agora iaparaa capital, grande cidade.Mover comcomércio,
estudarparaadvogado”(ROSAapudLOBATO,26demarçode2012b,p.10)surgena
reportagem“Comércioagoramantémosertanejoemcasa”,dodia26demarço,como
umareferênciaàmigraçãobrasileiraqueaconteceunoséculoXXe,aomesmotempo,
possibilitaoparaleloentreopassadoeopresente: “Hoje, seopersonagem fossede
carneeosso,teriagrandeoportunidadedeseempregarnovarejoousebacharelarem
direitonoprópriosertão”(LOBATO,26demarçode2012b,p.10).
Asoutrascitaçõesqueaparecemnasérie“SertãoGrande”tambématuamcomo
narrativasqueoraseabremàinterpretação,oraseexauremnainformação.Acitação
“Pois fomos, ligeiro, ver o que, subindo pelo resfriado. Passava era uma tropa, os
diversos lotesdeburros,quevinhamdeSãoRomão, levavamsalparaGoiás” (ROSA
apudLOBATO,27demarçode2012a,p.14),queintegraareportagem“Cavalosagora
vão no motor”, faz o contraponto entre os tropeiros que povoam Grande Sertão:
veredaseosque,naépocadasmatérias,transitavampelosertãomineiro.
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Aindaque invisívelnacitação,apoeiradosertãocontinuaase fazerpresente.
“Afinal,estruturaepormenorsempretêmumacargahistórica”(BENJAMIN,1986a,p.
35). Essa estrutura que conserva em si a história também pode ser percebida nos
rastrosdeixadospelacitação—“Ah.Diz-sequeoGovernoestámandandoabrirboa
estradarodageira,dePiraporaaParacatu,poraí...”(ROSAapudLOBATO,28demarço
de2012c,p.14)—queprecedeareportagem“Estradastrazemdinheiroetragédia”.
Paracatu,PiraporaeSãoFranciscosãooslugaresvisitadoseaBR040éumdosfocos.
Noromance,otrechocitadoestánumcontextoquepodeserinterpretadocomo
a esperança de que os caminhosmelhorassem o ir e vir pelo sertão; no factual da
matériajornalística,eleéoparaleloparadesvelarqueaestrada,inauguradanosanos
de 1960, contribuiu para a ida de fábricas para a região e para o escoamento de
produção,masque,noentanto,tementradoemfrancadecadência,comgrandeparte
desuaextensãoultrapassada.
Jánareportagem“Tremlevouaspessoasedeve trazerominério”—quetem
como citação “SeoAssisWababa oxente se prazia, aquela noite, como queo Vupes
noticiava: que embreves temposos trilhosdo trem-de-ferro se armavamde chegar
atélá,oCurralinhoentãosedestinavaserlugarcomercialdetodovalor”(ROSAapud
LOBATO,29demarçode2012f,p.22)—,osrastrosdoromancenoslugaresvisitados
pelasériedereportagemcontêmofuturoguardadoempassados.Aestradadeferro,
imagemdomovimentoespacialdoprogressosegundoBuck-Morss(2002),étambém,
nareportagem,aimagemdofluxomigratório.
Corinto e Lassance—OalemãoVulpes, personagemdeGrande Sertão: veredasque vendia de tudo a fazendeiros, acertou em cheio quando disse ao também‘estranja’AssisWababa,umcomercianteturco,queCurralinholucrariabastantecomachegadadotrem[...]AchegadadaestaçãoferroviáriaimpulsionoutantoaeconomiadopovoadoqueolugarejoseemancipoudeCurvelo.CurralinhoagoraéCorinto(LOBATO,29demarçode2012f,p.22).
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Janaúba e Jequitaí são outras localidades que a reportagem visitou. Com a
citação“Sabíamos:umpessoalnossoperpassavapor lá,na Jaíba,atéàSerraBranca,
brabasterrasvaziasdoRioVerdeGrande”(ROSAapudRIBEIRO,30demarçode2012,
p. 15) precedendo o título “Frutas e pedras dão nova cor à paisagem”, os rastros
apontamparaumsertão cheiode vazios e jagunços—no casodaobra literária—,
mas que, agora, possui novos tons e está preenchido pela fruticultura e por
trabalhadores,conformeaapuraçãofeitapelareportagem.Assim,opessoalqueporlá
perpassa atualmente cultiva a terra e altera a paisagem que, em 2012, tornou-se
preenchidaporfrutas.
Mas,seamaioriadosrastrosdoromance,atéentão,desdobrou-senoslugares
percorridos pela reportagem apontando possibilidades para o sertão construído
através da linguagem jornalística, na últimamatéria da série os rastros mudam de
direçãoesevoltamparaumsertãoondesãopoucososquetêmacessoaosrecursos.
JaponvareBuritizeirosãoaslocalidadesvisitadaseotítulodareportagemé“Pobreza
parecemaisperenequeosrios”.
No contexto do romance Grande Sertão: veredas, a citação “Aquela gente
depunha que tão aturada de todas as pobrezas e desgraças. Haviam de vir, junto, à
mansa força. Isso era perversidades? Mais longe de mim — que eu pretendia era
retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias” (ROSA apud LOBATO, 31 de
marçode2012e,p.14)refere-seàpassagememqueRiobaldo,jáchefedosjagunços,
convence e arrebanhapobres coitadospara seubando.Oferece-lhes esperança,mas
não os tira de suas misérias: na obra literária, eles continuam em situação de
subserviência.Noromance,aexploraçãodamãodeobradaspessoasficaclarae,na
reportagem,oqueprevalece éo foconadesigualdade social da região.Tal contexto
lembradiscussãodeBuck-Morss(2002)referenteaoprogressoqueacontecenonível
daprodução,masquenãoserepetenasrelaçõesdeprodução,mantendoinalteradaa
exploraçãodeclasse.
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Diante da discussão aqui realizada, observa-se que o sertão do romance,
inserido por meio de fragmentos na série jornalística, foi desdobrado: ainda que o
rastrocontivesseosertãoliterário,nainteraçãocomostítulos,textose imagensdas
reportagens,elesemodificou.Asmarcasdosdesdobramentosrevelaramqueelenão
continuava sendo tão somente o sertão de Grande Sertão: veredas, pois os
deslocamentos de passagens da obra alteraram o sentido de alguns trechos, mas
tambémnãoseafastavacompletamentedosertãoliterário,umavezqueelefoiabase
paraocontrapontoentreduasrealidades:aeconomiadosanosde1950edoanode
2012. Os rastros do sertão rosiano conduziram a reportagem no preenchimento de
lacunaseessaslacunaslevaramàconstruçãodeoutrahistória:ajornalística.
3.CONSIDERAÇÕESFINAIS
Acimado títulode cada reportagemda série “SertãoGrande”, citaçõesdiretas
retiradas do romanceGrande Sertão: veredas funcionam como rastros para o leitor
seguir pelo interiormineiro. O que ele encontra é um sertão demuitas formas que
podesealterarconformeasrelaçõesqueestabelececomossaberesquecadaleitorjá
temecomoselementosdapáginaimpressanaqualéinserido.
Apalavraescritaconcedeaosertãocontornoseformasque,conformeoprisma,
orasãosemelhantes,orasãodistintos.OsfragmentosdaobradeRosapresentesnas
reportagens da série foram, assim, percebidos não apenas como a presença de uma
obradentrodeoutrotexto,mas,alémdisso,comolacunasque,preenchidasnoatoda
leitura, contribuírampara constituir umolhar sobreo sertãomineiro sessenta anos
após a viagem que Rosa fez no lombo de um cavalo, colhendo informações para a
escritadesuaobraficcional.
Noscontextosapuradospelareportagem,asituaçãosocioeconômicamelhorou
emalgunslugares,mas,emoutros,asdificuldadespermanecem—sãoperenescomo
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as águas dos rios. Assim como o sertão do romance, o sertão geográfico percorrido
pela série de reportagens também tem suas veredas e misérias. Os rastros, assim,
podemservistostambémcomooselementosqueserepetem,taiscomoademarcação
dos lugares e a presença dos personagens do romance no contexto jornalístico.
Percebe-se,ainda,orememorardeumpassado:oqueantesforaprogresso,talquala
estrada rodageira, tambémmostra a decadência, pois grande parte de sua extensão
ficouultrapassada.
Osfragmentosdosertãorosianodesdobradosdentrodapáginadojornalabrem
a interpretaçãoparaumsertãodeopostos—miséria e riqueza, atrasoeprogresso,
veredas e devastação—,mas que, juntos, remetem à construção de um sertão não
apenas mítico nem somente econômico, mas um sertão que se faz do cotidiano de
quemnelevive,dasesperançasdequemneleanda,dascertezasquesetornampoeira,
dapoeiraquesetornaalicerceefazatravessiaacontecerembuscadediasmelhores.
Nesse ponto, tanto o romance quanto a reportagem remetem ao labor da vida
sertaneja que flui entre as margens da ficção e do fato, entre o romance e a
reportagem.
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