fragmentos de questÕes de literatura e de estÉtica
TRANSCRIPT
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
1/7
QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA (Mikhail Bakhtin)
Entretanto, somente agora que este meio plurilnge de discursos de
outrem dado ao locutor no no objeto, mas no mago do ouvinte, como seu
fundo aperceptivo, prenhe de respostas e objees. E sobre este fundo
aperceptivo da compreenso, que no lingstico, mas sim expressivo-
objetal, que est orientada qualquer enunciao. Ocorre um novo encontro da
enunciao com o discurso alheio, resultando em uma nova influncia
especfica em seu estilo. [...] O locutor penetra no horizonte alheio de seu
ouvinte, constri a sua enunciao no territrio de outrem, sobre o fundo
aperceptivo de seu ouvinte. (BAKHTIN, 1998, p. 90-91)
[...] a dialogicidade [...] na prosa literria, e em particular no romance, [...]
penetra interiormente na prpria concepo de objeto do discurso e na sua
expresso, transformando sua semntica e sua estrutura sinttica. A
reciprocidade da orientao dialgica torna-se aqui um fato do prprio discurso
que anima e dramatiza o discurso por dentro, em todos os seus aspectos.
(BAKHTIN, 1998, p. 92)
O estilo compreende organicamente em si as indicaes externas, a
correlao de seus elementos prprios com aqueles do contexto de outrem. A
poltica interna do estilo (combinao de elementos) determina sua poltica
exterior (em relao ao discurso de outrem). O discurso como que vive na
fronteira do seu prprio contexto e daquele de outrem. (BAKHTIN, 1998, p. 92)
[...] a dialogicidade interna s pode se tornar esta fora criativa efundamental apenas no caso em que as divergncias individuais e as
contradies sejam fecundadas pelo plurilingismo social, apenas onde as
ressonncias dialgicas ressoem no no pice semntico do discurso (como
nos gneros retricos), mas penetrem em suas camadas profundas,
dialogizando a prpria lngua, a concepo lingstica do mundo (a forma
interna do discurso), onde o dilogo de vozes nasa espontaneamente do
dilogo social das lnguas, onde a enunciao de outrem comece a soarcomo lngua socialmente alheia e, finalmente, onde a orientao do discurso
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
2/7
para as enunciaes alheias passe a ser a orientao para as lnguas
socialmente alheias, nos limites de uma mesma lngua nacional. (BAKHTIN,
1998, p. 93)
[...] todas as linguagens do plurilingismo, qualquer que seja o princpio
bsico de seu isolamento, so pontos de vista especficos sobre o mundo,
formas de sua interpretao verbal, perspectivas especficas objetais,
semnticas e axiolgicas. Como tais, todas elas podem ser confrontadas,
podem servir de complemento mtuo entre si, oporem-se umas s outras e se
corresponder dialogicamente. Como tais, elas se encontram e coexistem na
conscincia das pessoas, e antes de tudo na conscincia criadora do
romancista. [...] Portanto, todas elas podem penetrar no plano nico doromance, o qual pode reunir em si as estilizaes pardicas das linguagens de
gneros, os diferentes aspectos da estilizao e de apresentao das
linguagens profissionais, das linguagens orientadas, das linguagens de
geraes, dos grupos sociais, etc. [...] Todas elas podem ser invocadas pelo
romancista para orquestrar os seus temas e refratar (indiretamente) as
expresses das suas intenes e julgamentos de valor. (BAKHTIN, 1998, p. 98-
99)
[...] certos dialetos podem vir a ser legitimados em literatura e com isto
so, em certa medida, incorporados linguagem literria. Ao entrar na
literatura e participar da linguagem literria, os dialetos perdem evidentemente,
no solo dessa linguagem, sua qualidade de sistemas scio-lingsticos
fechados; eles se deformam e basicamente deixam de ser aquilo que eram
enquanto dialetos. Porm, por outro lado, estes dialetos, ao entrar nalinguagem literria e conservando nela sua elasticidade lingstica
dialetolgica, sua condio de lngua alheia, deformam igualmente a linguagem
literria em que penetram e ela tambm deixa de ser aquilo que era: um
sistema scio-lingstico fechado. A linguagem literria um fenmeno
profundamente original, assim como a conscincia lingstica do literato que lhe
correlata; nela, a diversidade intencional (que existe em todo dialeto vivo e
fechado), torna-se plurilnge: trata-se no de uma linguagem, mas de um
dilogo de linguagens. (BAKHTIN, 1998, p. 101)
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
3/7
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
4/7
forma e seu contedo, sendo que os determina no a partir de fora, mas de
dentro; pois o dilogo social ressoa no seu prprio discurso, em todos os seus
elementos, sejam eles de contedo ou de forma. (BAKHTIN, 1998, p. 106)
O autor se realiza e realiza o seu ponto de vista no s no narrador, no
seu discurso e na sua linguagem (que, num grau mais ou menos elevado, so
objetivos e evidenciados), mas tambm no objeto da narrao, e tambm
realiza o ponto de vista do narrador. Por trs do relato do narrador ns lemos
um segundo, o relato do autor sobre o que narra o narrador, e, alm disso,
sobre o prprio narrador. Percebemos nitidamente cada momento da narrao
em dois planos: no plano do narrador, na sua perspectiva expressiva e
semntico-objetal, e no plano do autor que fala de modo refratado nessa
narrao e atravs dela. Ns adivinhamos os acentos do autor que se
encontram tanto no objeto da narrao como nela prpria e na representao
do narrador, que se revela no seu processo. [...] Essa correlao, essa
conjugao dialgica de duas linguagens e de duas perspectivas permite que a
inteno do autor se realize de tal forma que ns a percebemos nitidamente em
cada momento da obra. (BAKHTIN, 1998, p. 119)
Todas as formas que introduzem ao narrador ou um suposto autor
assinalam de alguma maneira que o autor est livre de uma linguagem una e
nica, liberdade essa ligada relativizao dos sistemas lingsticos literrios,
ou seja, assinalam a possibilidade de, no plano lingstico, ele no se
autodefinir, de transferir as suas intenes de um sistema lingstico para
outro, de misturar a linguagem comum, de falarpor si na linguagem de
outrem, e poroutrem na sua prpria linguagem. (BAKHTIN, 1998, p. 119)
As palavras dos personagens, possuindo no romance, de uma forma ou
de outra, autonomia semntico-verbal, perspectiva prpria, sendo palavras de
outrem numa linguagem de outrem, tambm podem refratar as intenes do
autor e, conseqentemente, podem ser, em certa medida, a segunda
linguagem do autor. Alm disso, as palavras de um personagem quase sempre
exercem influncia (s vezes poderosa) sobre as do autor, espalhando nelaspalavras alheias (discurso alheio dissimulado do heri) e introduzindo-lhe a
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
5/7
estratificao e o plurilingismo. (BAKHTIN, 1998, p. 119-120)
A mesma hibridizao, a mesma mistura dos acentos, o mesmo
apagamento das fronteiras entre o discurso do autor e o de outrem so
alcanados graas a outras formas de transmisso dos discursos dos
personagens. Com apenas trs modelos sintticos de transmisso (discurso
direto, discurso indireto e discurso direto impessoal), com as diferentes
combinaes desses modelos e, principalmente, com os diversos
procedimentos da sua rplica de enquadramento e estratificao por meio do
contexto do autor, realiza-se o jogo mltiplo dos discursos, seu entrelaamento
e seu contgio recproco. (BAKHTIN, 1998, p. 123)
[...] existe um grupo especial de gneros que exercem um papel estrutural
muito importante nos romances, e s vezes chegam a determinar a estrutura
do conjunto, criando variantes particulares do gnero romanesco. So eles: a
confisso, o dirio, o relato de viagens, a biografia, as cartas e alguns outros
gneros. Todos eles podem no s entrar no romance como seu elemento
estrutural bsico, mas tambm determinar a forma do romance como um todo
(romance-confisso, romance-dirio, romance epistolar, etc.). [...] Todos esses
gneros que entram no romance introduzem nele as suas linguagens e,
portanto, estratificam a sua unidade lingstica e aprofundam de um modo novo
o seu plurilingismo. As linguagens dos gneros extraliterrios incorporadas ao
romance recebem freqentemente tamanha importncia que a introduo do
gnero correspondente (por exemplo, o epistolar) pode criar poca no s na
histria do romance, mas tambm na da linguagem literria. [...] Ocorre um
caso anlogo com a introduo no romance de toda sorte de sentenas eaforismos: eles tambm podem oscilar entre os puramente objetais (a palavra
mostrada) e os intencionais, ou seja, os que se apresentam como mximas
filosficas, plenamente significativas do prprio autor (palavra expressa
incondicionalmente, sem quaisquer restries e distncias). (BAKHTIN, 1998,
p. 124-125)
O plurilingismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formasde sua introduo), o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
6/7
para refratar a expresso das intenes do autor. A palavra desse discurso
uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e
exprime ao mesmo tempo duas intenes diferentes: a inteno direta do
personagem que fala e a inteno refrangida do autor. Nesse discurso h duas
vozes, dois sentidos, duas expresses. Ademais, essas duas vozes esto
dialogicamente correlacionadas, como que se conhecessem uma outra
(como se duas rplicas de um dilogo se conhecessem e fossem construdas
sobre esse conhecimento mtuo), como se conversassem entre si. O discurso
bivocal sempre internamente dialogizado. Assim o discurso humorstico,
irnico, pardico, assim, o discurso refratante do narrador, o discurso
refratante nas falas das personagens, finalmente, assim o discurso do gnero
intercalado: todos so bivocais e internamente dialogizados. Neles se encontra
um dilogo potencial, no desenvolvido, um dilogo concentrado de duas
vozes, duas vises de mundo, duas linguagens. (BAKHTIN, 1998, p. 127-128)
A dialogicidade interna do discurso autenticamente prosaico, que cresce
de forma orgnica a partir de uma linguagem estratificada e plurilnge, no
pode ser substancialmente dramatizada e dramaticamente acabada (terminada
de fato), ela no cabe inteiramente nos quadros de um dilogo direto, de uma
conversa entre pessoas, no totalmente divisvel em rplicas nitidamente
delimitadas. (BAKHTIN, 1998, p. 129)
No possvel representar adequadamente o mundo ideolgico de
outrem, sem lhe dar sua prpria ressonncia, sem descobrir suas palavras. J
que s estas palavras podem realmente ser adequadas representao de
seu mundo ideolgico original, ainda que estejam confundidas com as palavrasdo autor. O romancista pode tambm no dar ao seu heri um discurso direto,
pode limitar-se apenas a descrever suas aes, mas nesta representao do
autor, se ela for fundamental e adequada, inevitavelmente ressoar junto com o
discurso do autor tambm o discurso de outrem, o discurso do prprio
personagem. (BAKHTIN, 1998, p. 137)
MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM
-
7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA
7/7
No discurso literrio imenso o valor da polmica velada. H
propriamente em cada estilo um elemento de polmica interna, residindo a
diferena apenas no seu grau e no seu carter. Todo discurso literrio sente
com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crtico cujas objees
antecipadas, apreciaes e pontos de vista ele reflete. (p. 197)
Sejam quais forem os tipos de discurso introduzidos pelo autor do
romance monolgico e seja qual for a distribuio composicional desses tipos,
as elucidaes e avaliaes do autor devem dominar todas as demais e
constituir-se num todo compacto e preciso. Qualquer intensificao das
entonaes do outro num ou outro discurso, numa ou outra parte da obra
apenas um jogo que o autor se permite para em seguida dar uma ressonncia
mais enrgica ao seu prprio discurso direto e refratado. Qualquer discusso
entre duas vozes num discurso com o intuito de assenhorear-se dele, de
domin-lo, resolvida antecipadamente, sendo apenas uma discusso
aparente. Cedo ou tarde, todas as elucidaes pleni-significativas do autor se
incorporaro a um centro do discurso e a uma conscincia, todos os acentos, a
uma voz. (p. 204)