fragmentos de questÕes de literatura e de estÉtica

Upload: alessandra-bertazzo

Post on 14-Apr-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    1/7

    QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA (Mikhail Bakhtin)

    Entretanto, somente agora que este meio plurilnge de discursos de

    outrem dado ao locutor no no objeto, mas no mago do ouvinte, como seu

    fundo aperceptivo, prenhe de respostas e objees. E sobre este fundo

    aperceptivo da compreenso, que no lingstico, mas sim expressivo-

    objetal, que est orientada qualquer enunciao. Ocorre um novo encontro da

    enunciao com o discurso alheio, resultando em uma nova influncia

    especfica em seu estilo. [...] O locutor penetra no horizonte alheio de seu

    ouvinte, constri a sua enunciao no territrio de outrem, sobre o fundo

    aperceptivo de seu ouvinte. (BAKHTIN, 1998, p. 90-91)

    [...] a dialogicidade [...] na prosa literria, e em particular no romance, [...]

    penetra interiormente na prpria concepo de objeto do discurso e na sua

    expresso, transformando sua semntica e sua estrutura sinttica. A

    reciprocidade da orientao dialgica torna-se aqui um fato do prprio discurso

    que anima e dramatiza o discurso por dentro, em todos os seus aspectos.

    (BAKHTIN, 1998, p. 92)

    O estilo compreende organicamente em si as indicaes externas, a

    correlao de seus elementos prprios com aqueles do contexto de outrem. A

    poltica interna do estilo (combinao de elementos) determina sua poltica

    exterior (em relao ao discurso de outrem). O discurso como que vive na

    fronteira do seu prprio contexto e daquele de outrem. (BAKHTIN, 1998, p. 92)

    [...] a dialogicidade interna s pode se tornar esta fora criativa efundamental apenas no caso em que as divergncias individuais e as

    contradies sejam fecundadas pelo plurilingismo social, apenas onde as

    ressonncias dialgicas ressoem no no pice semntico do discurso (como

    nos gneros retricos), mas penetrem em suas camadas profundas,

    dialogizando a prpria lngua, a concepo lingstica do mundo (a forma

    interna do discurso), onde o dilogo de vozes nasa espontaneamente do

    dilogo social das lnguas, onde a enunciao de outrem comece a soarcomo lngua socialmente alheia e, finalmente, onde a orientao do discurso

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    2/7

    para as enunciaes alheias passe a ser a orientao para as lnguas

    socialmente alheias, nos limites de uma mesma lngua nacional. (BAKHTIN,

    1998, p. 93)

    [...] todas as linguagens do plurilingismo, qualquer que seja o princpio

    bsico de seu isolamento, so pontos de vista especficos sobre o mundo,

    formas de sua interpretao verbal, perspectivas especficas objetais,

    semnticas e axiolgicas. Como tais, todas elas podem ser confrontadas,

    podem servir de complemento mtuo entre si, oporem-se umas s outras e se

    corresponder dialogicamente. Como tais, elas se encontram e coexistem na

    conscincia das pessoas, e antes de tudo na conscincia criadora do

    romancista. [...] Portanto, todas elas podem penetrar no plano nico doromance, o qual pode reunir em si as estilizaes pardicas das linguagens de

    gneros, os diferentes aspectos da estilizao e de apresentao das

    linguagens profissionais, das linguagens orientadas, das linguagens de

    geraes, dos grupos sociais, etc. [...] Todas elas podem ser invocadas pelo

    romancista para orquestrar os seus temas e refratar (indiretamente) as

    expresses das suas intenes e julgamentos de valor. (BAKHTIN, 1998, p. 98-

    99)

    [...] certos dialetos podem vir a ser legitimados em literatura e com isto

    so, em certa medida, incorporados linguagem literria. Ao entrar na

    literatura e participar da linguagem literria, os dialetos perdem evidentemente,

    no solo dessa linguagem, sua qualidade de sistemas scio-lingsticos

    fechados; eles se deformam e basicamente deixam de ser aquilo que eram

    enquanto dialetos. Porm, por outro lado, estes dialetos, ao entrar nalinguagem literria e conservando nela sua elasticidade lingstica

    dialetolgica, sua condio de lngua alheia, deformam igualmente a linguagem

    literria em que penetram e ela tambm deixa de ser aquilo que era: um

    sistema scio-lingstico fechado. A linguagem literria um fenmeno

    profundamente original, assim como a conscincia lingstica do literato que lhe

    correlata; nela, a diversidade intencional (que existe em todo dialeto vivo e

    fechado), torna-se plurilnge: trata-se no de uma linguagem, mas de um

    dilogo de linguagens. (BAKHTIN, 1998, p. 101)

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    3/7

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    4/7

    forma e seu contedo, sendo que os determina no a partir de fora, mas de

    dentro; pois o dilogo social ressoa no seu prprio discurso, em todos os seus

    elementos, sejam eles de contedo ou de forma. (BAKHTIN, 1998, p. 106)

    O autor se realiza e realiza o seu ponto de vista no s no narrador, no

    seu discurso e na sua linguagem (que, num grau mais ou menos elevado, so

    objetivos e evidenciados), mas tambm no objeto da narrao, e tambm

    realiza o ponto de vista do narrador. Por trs do relato do narrador ns lemos

    um segundo, o relato do autor sobre o que narra o narrador, e, alm disso,

    sobre o prprio narrador. Percebemos nitidamente cada momento da narrao

    em dois planos: no plano do narrador, na sua perspectiva expressiva e

    semntico-objetal, e no plano do autor que fala de modo refratado nessa

    narrao e atravs dela. Ns adivinhamos os acentos do autor que se

    encontram tanto no objeto da narrao como nela prpria e na representao

    do narrador, que se revela no seu processo. [...] Essa correlao, essa

    conjugao dialgica de duas linguagens e de duas perspectivas permite que a

    inteno do autor se realize de tal forma que ns a percebemos nitidamente em

    cada momento da obra. (BAKHTIN, 1998, p. 119)

    Todas as formas que introduzem ao narrador ou um suposto autor

    assinalam de alguma maneira que o autor est livre de uma linguagem una e

    nica, liberdade essa ligada relativizao dos sistemas lingsticos literrios,

    ou seja, assinalam a possibilidade de, no plano lingstico, ele no se

    autodefinir, de transferir as suas intenes de um sistema lingstico para

    outro, de misturar a linguagem comum, de falarpor si na linguagem de

    outrem, e poroutrem na sua prpria linguagem. (BAKHTIN, 1998, p. 119)

    As palavras dos personagens, possuindo no romance, de uma forma ou

    de outra, autonomia semntico-verbal, perspectiva prpria, sendo palavras de

    outrem numa linguagem de outrem, tambm podem refratar as intenes do

    autor e, conseqentemente, podem ser, em certa medida, a segunda

    linguagem do autor. Alm disso, as palavras de um personagem quase sempre

    exercem influncia (s vezes poderosa) sobre as do autor, espalhando nelaspalavras alheias (discurso alheio dissimulado do heri) e introduzindo-lhe a

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    5/7

    estratificao e o plurilingismo. (BAKHTIN, 1998, p. 119-120)

    A mesma hibridizao, a mesma mistura dos acentos, o mesmo

    apagamento das fronteiras entre o discurso do autor e o de outrem so

    alcanados graas a outras formas de transmisso dos discursos dos

    personagens. Com apenas trs modelos sintticos de transmisso (discurso

    direto, discurso indireto e discurso direto impessoal), com as diferentes

    combinaes desses modelos e, principalmente, com os diversos

    procedimentos da sua rplica de enquadramento e estratificao por meio do

    contexto do autor, realiza-se o jogo mltiplo dos discursos, seu entrelaamento

    e seu contgio recproco. (BAKHTIN, 1998, p. 123)

    [...] existe um grupo especial de gneros que exercem um papel estrutural

    muito importante nos romances, e s vezes chegam a determinar a estrutura

    do conjunto, criando variantes particulares do gnero romanesco. So eles: a

    confisso, o dirio, o relato de viagens, a biografia, as cartas e alguns outros

    gneros. Todos eles podem no s entrar no romance como seu elemento

    estrutural bsico, mas tambm determinar a forma do romance como um todo

    (romance-confisso, romance-dirio, romance epistolar, etc.). [...] Todos esses

    gneros que entram no romance introduzem nele as suas linguagens e,

    portanto, estratificam a sua unidade lingstica e aprofundam de um modo novo

    o seu plurilingismo. As linguagens dos gneros extraliterrios incorporadas ao

    romance recebem freqentemente tamanha importncia que a introduo do

    gnero correspondente (por exemplo, o epistolar) pode criar poca no s na

    histria do romance, mas tambm na da linguagem literria. [...] Ocorre um

    caso anlogo com a introduo no romance de toda sorte de sentenas eaforismos: eles tambm podem oscilar entre os puramente objetais (a palavra

    mostrada) e os intencionais, ou seja, os que se apresentam como mximas

    filosficas, plenamente significativas do prprio autor (palavra expressa

    incondicionalmente, sem quaisquer restries e distncias). (BAKHTIN, 1998,

    p. 124-125)

    O plurilingismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formasde sua introduo), o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    6/7

    para refratar a expresso das intenes do autor. A palavra desse discurso

    uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e

    exprime ao mesmo tempo duas intenes diferentes: a inteno direta do

    personagem que fala e a inteno refrangida do autor. Nesse discurso h duas

    vozes, dois sentidos, duas expresses. Ademais, essas duas vozes esto

    dialogicamente correlacionadas, como que se conhecessem uma outra

    (como se duas rplicas de um dilogo se conhecessem e fossem construdas

    sobre esse conhecimento mtuo), como se conversassem entre si. O discurso

    bivocal sempre internamente dialogizado. Assim o discurso humorstico,

    irnico, pardico, assim, o discurso refratante do narrador, o discurso

    refratante nas falas das personagens, finalmente, assim o discurso do gnero

    intercalado: todos so bivocais e internamente dialogizados. Neles se encontra

    um dilogo potencial, no desenvolvido, um dilogo concentrado de duas

    vozes, duas vises de mundo, duas linguagens. (BAKHTIN, 1998, p. 127-128)

    A dialogicidade interna do discurso autenticamente prosaico, que cresce

    de forma orgnica a partir de uma linguagem estratificada e plurilnge, no

    pode ser substancialmente dramatizada e dramaticamente acabada (terminada

    de fato), ela no cabe inteiramente nos quadros de um dilogo direto, de uma

    conversa entre pessoas, no totalmente divisvel em rplicas nitidamente

    delimitadas. (BAKHTIN, 1998, p. 129)

    No possvel representar adequadamente o mundo ideolgico de

    outrem, sem lhe dar sua prpria ressonncia, sem descobrir suas palavras. J

    que s estas palavras podem realmente ser adequadas representao de

    seu mundo ideolgico original, ainda que estejam confundidas com as palavrasdo autor. O romancista pode tambm no dar ao seu heri um discurso direto,

    pode limitar-se apenas a descrever suas aes, mas nesta representao do

    autor, se ela for fundamental e adequada, inevitavelmente ressoar junto com o

    discurso do autor tambm o discurso de outrem, o discurso do prprio

    personagem. (BAKHTIN, 1998, p. 137)

    MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

  • 7/30/2019 FRAGMENTOS DE QUESTES DE LITERATURA E DE ESTTICA

    7/7

    No discurso literrio imenso o valor da polmica velada. H

    propriamente em cada estilo um elemento de polmica interna, residindo a

    diferena apenas no seu grau e no seu carter. Todo discurso literrio sente

    com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crtico cujas objees

    antecipadas, apreciaes e pontos de vista ele reflete. (p. 197)

    Sejam quais forem os tipos de discurso introduzidos pelo autor do

    romance monolgico e seja qual for a distribuio composicional desses tipos,

    as elucidaes e avaliaes do autor devem dominar todas as demais e

    constituir-se num todo compacto e preciso. Qualquer intensificao das

    entonaes do outro num ou outro discurso, numa ou outra parte da obra

    apenas um jogo que o autor se permite para em seguida dar uma ressonncia

    mais enrgica ao seu prprio discurso direto e refratado. Qualquer discusso

    entre duas vozes num discurso com o intuito de assenhorear-se dele, de

    domin-lo, resolvida antecipadamente, sendo apenas uma discusso

    aparente. Cedo ou tarde, todas as elucidaes pleni-significativas do autor se

    incorporaro a um centro do discurso e a uma conscincia, todos os acentos, a

    uma voz. (p. 204)