foucault historia anarquismo - margareth rago

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  • 8/14/2019 foucault historia anarquismo - margareth rago

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    O Anarquismo e a HistriaMargareth Rago

    ColetivoSABOTAGEM

    http://www.sabotagem.cjb.net/

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    Freqentemente, ouvimos os foucaultianos questionarem os possveis vnculosexistentes entre Foucault e o Anarquismo, afirmando que o filsofo jamais se disseanarquista, que recusava qualquer forma de identificao e que, ademais, nunca se afiliou aosgrupos libertrios contemporneos.1 Vrios autores anarquistas, por outro lado, enxergam umFoucault profundamente libertrio e propem pensar o ps-estruturalismo como uma formacontempornea de anarquismo.2 Falando de sua experincia pessoal, Salvo Vaccaro afirmaque o filsofo no s o aproximou do Anarquismo, impedindo-o de se fossilizar no caminhotraado de Bakunin a Malatesta, como ensinou uma utilizao anarquista do texto terico,sem respeito pela autoridade do Nome.3

    Todd May, nos Estados Unidos, Salvo Vaccaro, na Itlia, Edson Passetti, no Brasil eChristian Ferrer, na Argentina, entre outros, postulam uma continuidade entre as duascorrentes de pensamento, entendendo que, na tradio histrica do Anarquismo, pode-se

    encontrar um contexto mais geral a partir do qual o ps-estruturalismo seria melhor avaliado.Enquanto um pensamento libertrio, este opera de modo descentralizado, plural, anti-hierrquico e renovador, ao enfrentar as questes de nossa atualidade.4

    Bem distante do Anarquismo, Jos Guilherme Merquior elenca, pelos menos, trsmomentos no pensamento foucaultiano, que lhe permitem qualific-lo de neo-anarquista,ao lado dos ativistas de 68: sua preferncia pelos movimentos revolucionriosdescentralizados; sua confiana maior nos movimentos especficos, conhecidos como dasminorias, ao invs da luta de classes em sua definio clssica; finalmente, e em harmoniaainda maior com a mais pura tradio anarquista, Foucault obstinava-se em suspeitar dasinstituies, por mais revolucionrias que pudessem ser.5

    Longe de querer enquadrar, ou classificar Foucault, trata-se, na minha insistncia, de

    mostrar os vnculos estreitos existentes entre as suas problematizaes e o pensamentolibertrio e de, ao apontar para a forte presena anarquista em sua forma de pensamento,

    1 Duas passagens do filsofo so logo evocadas: "No, eu no me identifico com os anarquistas libertrios, porque h uma certa filosofia libertria que acredita nas necessidades fundamentais do homem. Eu no asquero, me nego acima de tudo a ser identificado, ser localizado pelo poder." In: Dits et Ecrits, t.IV. Paris:Gallimard, 1994, p.664. A segunda a conhecida resposta de Foucault a Jules Vuillemin: " (...) no fundo voc um anarquista de direita e eu sou um anarquista de esquerda." In: Didier Eribon. Michel Foucaul: umabiografia. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.1382 Todd MAY. "Ps-estruturalismo e o Anarquismo". In: Revista Margem. Temporalidades. Faculdade deCincias Sociais da PUC-SP. So Paulo: Educ-SP, 1996, p.173.3

    Salvo Vaccaro. "Foucault e o Anarquismo". In: Margem, op. cit., p. 158.4 Todd MAY. The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism. Pennsylvania: Pennsylvania StateUniversity Press, 1994; Edson PASSETTI "Foucault Libertrio. In: Revista Margem. Temporalidades op. cit.;"Kafka e a Sociedade Punitiva". In: Conversaes Abolicionistas. So Paulo: IBCcrm, 1997; ChristianFERRER (org.)El Lenguaje Libertario. Vol. 1 e 2. Montevidu: Editorial Nordan-Comunid, 1991.5 Jos Guilherme MERQUIOR. Michel Foucault, ou o Niilismo de Ctedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985, p.217, 238 e segs.Aproximando Foucault dos anarquistas contemporneos, os "neo-anarquistas", Merquior (p.240-1) destaca oacrscimento de "dois novos aspectos teoria clssica do anarquismo" pelo filsofo: sua crtica idia deutopia, sua absoluta recusa de oferecer qualquer forma de vida social e econmica alternativa; e o que chama de"irracionalismo" do filsofo, entendendo sua crtica cincia, que converge com a rejeio das bases cientficasno pensamento libertrio contemporneo, contrastando com o anarquismo clssico de Kropotkin, por exemplo.Evidentemente, Merquior erra ao esquecer as diferentes posies sobre o tema existentes dentro do prprio

    Anarquismo, como o debate Malatesta-Kropotkin, de que alis, Luce Fabbri participa; de outro, a noo deirracionalismo totalmente inadequada para referir-se s crticas foucaultianas pretensa objetividade dacincia moderna.

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    ampliar as possibilidades de leitura de sua obra, ao mesmo tempo que criar outras condiespara se revisitar a histria do Anarquismo e a vida dos homens (e mulheres) infames, ousem glria, na expresso do filsofo. Sobretudo, busco novas formas de contar a histria e deacertar contas com o passado. Neste texto, trago subsdios para esta discusso, ampliando oleque das informaes histricas disponveis sobre os possveis elos e relaes entre o

    pensamento de Michel Foucault e a tradio libertria.Um caminho interessante, nessa direo, foi escolhido por Vaccaro, ao fazer umlevantamento das citaes anarquistas na obra de Foucault. Assim, ao encerrar Vigiar e

    punir, mostra o socilogo italiano, o filsofo francs alinha-se ao lado de Fourier e doslibertrios. Em relao ao primeiro, Foucault afirma:

    Ao longo desta polmica anti-penal, os fourieristas foram, sem dvida, maislonge do que todos os outros. Eles foram os primeiros, talvez, a elaborarem uma teoria

    poltica que , ao mesmo tempo, uma valorizao positiva do crime. Se este , segundoeles, um efeito da civilizao, igualmente e por isso mesmo uma arma contra ela.Ele traz em si mesmo um vigor e um futuro. (...) No h, portanto, uma naturezacriminal mas jogos de fora que, segundo a classe a que pertencem os indivduos, oslevaro ao poder ou priso (...). preciso ver nele (o crime) mais do que umafraqueza ou uma doena, uma energia que se refaz, um Protesto espetacular daindividualidade humana.6

    Quanto aos segundos, afirma que, das polmicas desenvolvidas na primeira metade dosculo, as lies deLaPhalange,fourierista, no ficaram esquecidas, pois

    foram despertadas pelo amplo eco da resposta dos anarquistas, quando, nasegunda metade do sculo 19, colocaram o problema poltico da delinqncia tomando

    como ponto de ataque o aparato penal; quando pensaram poder reconhecer nela a formamais combativa de recusa lei; quando tentaram nem tanto heroicizar a revolta dosdelinqentes, como desconectar a delinqncia da legalidade e ilegalidade burguesasque haviam-na colonizado; quando quiseram restabelecer, ou constituir a unidade

    poltica das ilegalidades populares.7

    Estas intrigantes observaes mereceriam maiores comentrios, principalmente seentendemos que, para Foucault, a priso no apenas a sua materialidade fsica, mas umaracionalidade que a define como a forma predominante de organizao das sociedadesmodernas. Contudo, meu caminho outro. Opto por apresentar, aqui, alguns pontos dasreflexes histricas, filosficas e polticas da anarquista Luce Fabbri, no que se aproximam

    da produo do filsofo. Vivendo hoje em Montevidu, a militante libertria nasceu emRoma, em 1908, doutorou-se pela Universidade de Bolonha, nos anos vinte, foi professora deLiteratura Italiana na Universidade da Repblica, no Uruguai, ao longo de cinco dcadas,alm de escritora e poetisa.8

    Estes pontos convergem no modo de busca incessante de diagnosticar os problemas dopresente e de encontrar novas sadas na atualidade, incidindo fortemente sobre a crtica dopoder em suas manifestaes macro e microscpicas; levam construo de uma concepolibertria da Histria, e proposta da constituio de novas subjetividades como conquista da

    6 Michel FOUCAULT. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1977, p.256.7

    Michel FOUCAULT. Vigiar e Punir. op. cit, p.256.8 Sobre Luce Fabbri, veja-se Margareth RAGO. Entre a Histria e aLiberdade. Luce Fabbri e o AnarquismoContemporneo. So Paulo: Editora da Unesp, no prelo.

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    autonomia. Em suma, nos dois autores definem-se novas possibilidades libertrias de relaocom o presente, com o passado, consigo mesmo e com os outros.

    Preocupada em reatualizar o Anarquismo, a italiana Luce Fabbri desenvolve umaprofunda reflexo filosfica e poltica sobre a Histria, a partir de uma grande inquietao emrelao necessidade de encontrar novos instrumentos conceituais para pensar o presente e

    captar a historicidade dos acontecimentos. Pesquisando temas histricos, como a ascensodo fascismo, as criaes revolucionrias da Revoluo Espanhola e os impasses daRevoluo Cubana, ou a experincia do autodidatismo, ela constri progressivamente umaleitura libertria do passado, que, ao mesmo tempo, procura teorizar em vrios textos. Almdo mais, em se tratando de uma crtica literria, cuja principal obra focaliza a poesia doitaliano Gicomo Leopardi, suas reflexes sobre a Histria articulam-se fortemente com adiscusso literria.9

    Luce no se define como foucaultiana, nem Foucault se identifica como anarquista;ambos, porm, revelam preocupaes filosficas comuns e posies polticas muito

    prximas, colocando-se numa tradio crtica do marxismo e do liberalismo. Enquantocrtica do poder em suas manifestaes moleculares, a libertria pratica, j nos anos trinta,aquilo que, dcadas depois, ele teorizar com conceitos prprios. Ao mesmo tempo, sabe-seo quanto o pensamento do filsofo libertrio, seja ao formular a crtica do poder maiscontundente na contemporaneidade, seja ao perseguir a possibilidade de penser autrement ede criar novas formas de subjetividade num mundo constantemente pressionado pelo ameaatotalitria. O desafio , ento: como desconectar o crescimento das capacidades e aintensificao das relaes de poder?, diz ele.10

    H que se notar, finalmente, que se muitos pontos aproximam os dois autores, outros osdistanciam: para alm das diferenas de gnero e de gerao, as experincias de vida muitodiferenciadas de que so portadores. Assim, o principal ponto de disjuno em suaselaboraes filosficas se localiza na questo do sujeito e na crena nas necessidades

    fundamentais do homem presente no Anarquismo clssico, ao qual Luce se filia e recusadopelo pensamento da diferena, em que Foucault se inscreve, mas tambm criticado pelosanarquistas das novas geraes, prximos do ps-estruturalismo. Para estes, o Anarquismo

    participa de um mesmo campo ideolgico que o marxismo, enquanto que a prpria Luce, aocontrrio dos mais jovens, no aceita o anti-humanismo presente nas leituras foucaultianas e

    ps-modernas. Essas posies divergentes evidenciam-se nas anlises e interpretaes queambos promovem.

    Viver o presente

    Nos dois autores aqui privilegiados, a forte preocupao em produzir um conhecimentohistrico visa situar-nos no tempo presente e entrever as linhas de fuga na atualidade. Paratanto, ambos propem traar, cada um a seu modo, uma arqueologia do presente, tendo emvista encontrar respostas para os desafios contemporneos e perceber aquilo que constituinossa diferena na atualidade. Evocando Nietzsche, que tinha a obsesso da atualidade,Foucault defende um filsofo-jornalista, comprometido com as questes de seu tempo:

    por isso que para mim a filosofia uma espcie de jornalismo radical.11 A antologiahistrica de ns-mesmos, proposta na dcada de setenta, definida no como uma teoria,uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; ( ... mas)

    9

    Luce FABBRI. La Poesia di Leopardi Montevideo: Instituto Italiano di Cultura in Uruguay, 1971.10 Citado por Salvo Vaccaro, op. cit.,p. 170.11 M. FOUCAULT. Dits et Ecrits, t.II. Paris: Gallimard, 1994, p.434.

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    como uma atitude, un ethos, uma vida filosfica em que a crtica daquilo que somos , aomesmo tempo, uma anlise histrica dos limites que nos so postos e a prova de sua possvelsuperao.12

    Essa postura encontra-se com as prprias prticas polticas e intelectuais da livre- pensadora italiana, postas vrias dcadas antes, a partir de uma intensa militncia no

    Anarquismo. Como ela afirma, em entrevista dada em 1996: ... o que interessa o presenteque estamos vivendo, que o que existe. O Anarquismo uma forma de sentir o presente emvista de algo, em vista de uma finalidade, quer dizer senti-lo libertariamente em vista de umaliberdade...13

    Libertrios, ambos fazem do poder em suas inmeras manifestaes e ramificaes oprincipal alvo de ataque, procurando desmistific-lo nos mnimos movimentos, no caso deLuce, a partir dos textos polticos e histricos em que aborda temas especficos; no caso deFoucault, criando sofisticados conceitos, que operacionaliza na anlise da emergnciahistrica da priso, assim como mtodos de anlise, a exemplo da genealogia da Histria.Trata-se, em ambos, de uma recusa da concepo jurdica do poder e da produo de umdeslocamento que permite visualiz-lo nos mltiplos campos da vida social, enquanto

    positividade. Portanto, valorizam a ao direta, enquanto estratgia de resistncia ao poder. Autonomistas, ambos se colocam como crticos radicais da representao poltica,entendida como delegao do poder a outrem e, assim, como recusa da possibilidade datomada de decises diretas, exercida em todas as reas de atuao na vida social.

    Numa atitude libertria, estranham as prticas cotidianas, investindo em desnudar adimenso mais imperceptvel e molecular da dominao totalitria, aquela mesma que dforma s aes e interpretaes do presente, conferindo, no entanto, uma importncia menor prpria forma. Foucault abre as portas da priso, figura concentrada e austera de todas asdisciplinas, como diz em Vigiar e punir, apresentando sua emergncia enquantoacontecimento, no momento mesmo em que os historiadores comemoram obstinadamente a

    inveno da liberdade pela Revoluo Francesa, como marco histrico-temporal; Lucedenuncia a militarizao da vida operada inicialmente pelo fascismo, em seu livro CamisasNegras, de 1933, historicizando o movimento pelo qual a cultura, a vida social, a educao, para alm da vida econmica e poltica so subjugadas e disciplinadas na Itlia fascista.Posteriormente, sua anlise se desloca para pensar o fenmeno do totalitarismo, apreendidoem suas dimenses e ramificaes mundiais.

    fundamental para ambos a tarefa de encontrar novos conceitos que possam apreenderfenmenos ainda no nomeados, dar-lhes visibilidade e dizibilidade, como diz Deleuze, ou deelaborar novas estratgias interpretativas dos fenmenos histricos, entendendo que orepresentvel, aquilo que pode ser representado numa determinada poca depende dos limitesda prpria linguagem que o encerra. Um dos grandes problemas que enfrenta o historiador,

    afirmam, a dificuldade em captar a historicidade prpria do acontecimento singular, o quediz respeito, no limite, prpria possibilidade da Histria.

    Assim, Foucault prope libertar a Histria do modelo antropolgico da memria a partir do qual se constitui, e que a torna supra-histrica, como diz em Nietzsche, aGenealogia e a Histria, enquanto Luce se empenha tanto no sentido de registrar oacontecimento de que testemunha no presente, acontecimento ameaado peloesquecimento, a exemplo das criaes autogestionrias da Revoluo Espanhola, como nosentido de construir uma leitura libertria do passado, que permita encontrar as prticas daliberdade reincidentemente soterradas pela memria histrica. Em ambos, histria e filosofiase encontram profundamente articuladas e atravessadas pelo desejo da liberdade, voltado para

    12 M. FOUCAULT. "Quest-ce que les Lumires?". In:Dits et crits, t.IV. Paris: Gallimard, p.577.13 Entrevista de Luce Fabbri autora, realizada em Montevidu, janeiro de 1996.

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    as questes do tempo presente. Portanto, produzem uma nova relao com a Histria, mesmoque no se definam como historiadores, ao buscarem o passado para resolver os problemascolocados na atualidade. O passado interrogado naquilo em que pode iluminar o presente,seja como diferena, seja como inspirao. Alis, em ambos, evidencia-se uma forte

    preocupao em estabelecer novos elos com a tradio, refazendo os vnculos perdidos e em

    vias de rompimento.Iluministas, acreditam no poder criativo e emancipador da razo, que, alis, submetema uma crtica contundente. Para Foucault, a melhor maneira de recolher a herana da tradiodas Luzes a reactivao permanente de uma atitude, que se poderia caracterizar como aobservao do princpio de uma crtica e de uma criao permanente de ns mesmos emnossa autonomia.14 Para Luce, a reflexo sobre a liberdade impensvel sem a questo daigualdade e da justia social.

    Historicidades

    Em 1952, Luce aponta para o esgotamento de determinados conceitos e formasinterpretativas, em seu livro O Caminho:

    Todos os nossos conceitos sobre o desenvolvimento da histria se encontram emcrise. A vida desliza por entre as malhas das construes tericas, escapa sclassificaes e nega a cada passo as generalizaes e as snteses. Sentir estamultiplicidade significa sentir o valor que para a vida tem a liberdade (que torna

    possvel a variedade infinita).15

    Dcadas depois, dir Michel Foucault:

    Assim ele pensava que o que, na histria, escapa histria no o universal, oimvel, aquilo que todo mundo, todo o tempo, pode pensar, dizer ou querer. O queescapa histria o instante, a fratura, o dilaceramento, a interrupo.16

    A sensao de limite das formas tradicionais do conhecimento emerge nos dois autores.A inquietao ante a impossibilidade de captar o acontecimento em sua prpriatemporalidade manifesta-se fortemente. A dimenso do irrepresentvel colocada. Propemum outro olhar e buscam novos procedimentos na escrita da histria, entendida enquantoconstruo libertria, aberta no campo da linguagem para perceber e incorporar diferentescategorias sociais, sexuais e tnicas, capazes de captar a atividade humana e conferir-lhemltiplos sentidos.

    Sugiro acompanhar brevemente alguns dos textos de Luce Fabbri para perceber o lugarque ela confere Histria. Ao analisar a emergncia do fascismo, a intelectual libertriafocaliza a solido do indivduo moderno, sem enraizamento social e poltico no mundototalitrio, sem histria:

    O homem s no forte, como se dizia, mas dbil; dbil se se isola por orgulhona selva; dbil se o temor o isola no silncio sob uma dominao tirnica; dbil se sedeixa explorar na fbrica, um entre mil, negando-se a buscar na associao com seus

    14 Idem, pp.571.15

    Luce FABBRI.El Camino. Hacia el Socialismo sin Estado. Montevideo: Edicin de Juventudes Libertriasdel Uruguay, 1952, p.9;La Strada, Montevideo: Studi Sociali, 1952.16 M. FOUCAULT. Dits et crits. t.IV, op. cit., p.790.

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    companheiros energias para lutar contra a injustia. Em todos esses casos, ser dbil eescravo; ser menos homem, j que o homem existe e se define por suas relaes comos demais.17

    Apostando na necessidade natural de vnculos espontneos entre os indivduos, Luce

    afirma que autoridade coercitiva e sociedade orgnica so termos antitticos.

    Governo totalitrio aquele que militariza todos os aspectos da vida, inclusive ocultural. E em nenhum lugar o indivduo est mais s, mais separado dos demais, maisdesorganizado, do que no exrcito. Suprimindo o estado maior, um exrcito bemdisciplinado desvanece. Todos as engrenagens esto montadas de cima para baixo e a

    pirmide no tem cimentos.18

    Nesse sentido, atenta para a importncia da Histria, do conhecimento do passadocomo forma de preservao e conquista da liberdade. Coloca-se, pois, contrria representao do passado como fardo, com o qual h que se romper bruscamente, o que nosignifica minimizar ingenuamente o peso e a presso que o tempo exerce sobre nossosombros, como afirma ela na resenha sobre Dos Libros de Montiel, texto de 1944:

    Falamos e no nos damos conta das multas camadas de sculos que pesam sobrecada uma de nossas palavras; lutamos e nossa ao se v enormemente complicada emsuas causas e em suas conseqncias por suas remotas razes. O que fazer ento,

    pergunta ela? Devemos cortar as razes? Devemos sacudir de nossas sandlias apoeira espessa do milenrio caminho? Podemos faz-lo? Devemos faz-lo?19

    claro que para a historiadora libertria, romper com o passado absolutamente

    impossvel e indesejvel, mas, ao mesmo tempo, entende a necessidade que se coloca para omilitante voltado para a busca da ao no presente. Assim, ' e possvel dizer que, numprimeiro momento, seus textos exprimem uma tenso entre a representao do passado comofardo e a necessidade da ao transformadora; entre o amor nostlgico pelo passado e odesejo de criao do futuro, questo que se coloca como um dilema para os construtores darealidade social que apenas dispem de materiais velhos para os novos edifcios (...).

    Progressivamente, sua anlise se desloca para o privilegiamento do presente e daatuao transformadora que, no obstante, se enraza no passado, mas que aponta para

    prticas da liberdade:

    espontneo e pode desenvolver-se livremente, crescendo sobre si mesmo,

    apenas o que est arraigado no tempo e no espao e forma parte sem coao, quer dizer,organicamente, do tecido da histria, que uma confluncia e um choque de vontadesindividuais, livres sim, porm que se enfrentam e se ajudam em um terreno comum ,que o aqui e agora. Esse terreno comum traz a carga do passado local e deriva suafecundidade dos detritos deste passado, inseparveis dos germes numerosos eselecionveis e submetidos nossa ao modeladora de um futuro, que individualmente

    17 Luce FABBRI. "Vitalidad y Espontaneidad de lo Organico",Lucha Libertaria, Montevideo, mayo de 1957,

    ao XX, no. 171.18 Idem, p. 172.19 Luce FABBRI. "Dos Libros de Montiel",Lauto-uruguayo, Montevideo, nov.1944, ano XXVIII, no.323.

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    no poderemos dominar, porm, que sem a atividade e o pensamento de cada um de nsno seria ou seria distinto .20

    Nesta lgica, histria e construo do novo mundo aparecem imbricadas, o passado pensado tendo em vista a construo revolucionria do presente e a realizao da utopia

    libertria.

    O respeito a todas as criaes e tradies espontneas no coercitivas (de tipofamiliar, municipal, nacional ou internacional de carter solidrio, em terreno materialou espiritual, sobre bases geogrficas ou funcionais) se me pareceu, ento, como omelhor mtodo revolucionrio para construir o socialismo com liberdade. Arevoluo se tornou, ento, em minha viso global da histria, uma porta aberta parao que vital e est crescendo e correria o risco de fracassar por detrs de uma portafechada.21

    Leitora de Croce, a anarquista no se define como croceana, mas reconhece suaimportncia em sua formao intelectual.

    No sou crociana, mas Croce foi muito importante para mim, por sua concepode Histria, ele tem um livro A histria como histria da liberdad, a histria essencialmente uma histria da liberdade do ser humano, diz Croce. Foi traduzido parao espanhol comoLa Historia como hazaa de la Libertad, mas no isso, ele diz: aHistria a histria da liberdade, o que me parece muito mais eloqente. Na Histria,se faz concreto o que o homem tem de iniciativa, o que no determinado, o que segue

    brotando de suas potencialidades .22

    Enquanto tal, ope-se ao que denomina de concepo catastrfica da revoluo, isto, aquela que visa efetuar uma ruptura brusca com o passado, que anti-historicista, como dizseu mestre, o filsofo socialista Rodolfo Mondolfo, e que seduziu Marx e Engels.23 Lucecritica a concepo revolucionria destes, para quem o passado um fardo com o qual h quese romper e que deve ser destrudo, entendendo que este um ponto de partida, base sobre aqual assenta a transformao radical.

    Nessa direo, distingue duas vises da revoluo: uma que a entende comorenovao total, necessariamente violenta em todos seus aspectos, sem vnculos com o

    passado, e outra que a v como um desenvolvimento gradual em que se removem osobstculos, que estabelece uma continuidade com as foras criativas, transformadoras elibertrias do passado, que no quebra a continuidade, apenas acelera seu ritmo. A

    primeira, que critica como anti-historicista, parte da tentativa de impor um programa abstrato, prescindindo do existente, isto , da prpria histria: o momento da tirania ou paraempregar a linguagem da primeira parte deste trabalho, a da ditadura pretensamente

    provisria que, quanto mais se distancia, na formao terica do sistema, das tradies ehbitos inerentes realidade que pretende modificar, tanto mais absoluta e duradoura ser.24

    20 Luce FABBRI. "Anti-historicismo y Dictadura". In: La Libertad entre la Utopia y la Historia, Rosrio:Federao Grfica Rosarina, 1962, p.35.21 Idem, P.36.22 Benedetto CROCE. La Historia como Hazaa de la Libertad. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1992.O ttulo da 1 edio publicada em italiano, em 1938, La storia come pensiero e come azione.23

    Rodolfo Mondolfo tem uma obra vastssima, dentre a qual destaco: Sulle Orme ai Marx. Bologna: Cappelli,1919; O Pensamento Antigo. So Paulo: Editora Mestre Jou, 1965.24 Luce FABBRI. La Libertad entre la Utopia y la Historia, op. cit., p.41.

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    A segunda desenvolvida no captulo intitulado Os Anarquistas frente Histriadeste mesmo livro. Inicia definindo como tarefa dos libertrios, no mbito do socialismo,defender a exigncia de todo homem comum de construir-se a si mesmo. A expe seuconceito de revoluo: liberar a fora e opor-se violncia, criar espaos livres para amanifestao histrica, destruindo as travas que podem impedir sua emergncia, contribuir

    para criar desde abaixo e em nosso sentido, porm em harmonia com todo o livre que h evive, a rede de ncleos ativos e associaes acordes que sejam capazes de assegurar-nos umavida que no seja ameaada continuamente por essa morte atmica (...).25

    Em O Caminho, a pensadora libertria j havia desenvolvido este tema, questionandotanto os fatalistas da espontaneidade que acreditam que tudo est podre na sociedade

    presente, que deve ento ser totalmente destruda, deixando Revoluo ou Humanidadedo Futuro o encargo da reconstruo, quanto os fatalistas das leis histricas, que queremoperar de acordo com estas leis, para no se colocarem fora da realidade desprezam osutpicos, dos quais na realidade se distinguem muito pouco.26

    A discusso lhe fundamental para fazer a crtica do presente, apontando para a perdade sentido histrico, da histria que estamos vivendo, entre os revolucionrios na AmricaLatina. A atitude anti-histrica de ruptura abrupta com o passado, ignorando-se as conquistassociais, polticas e culturais leva, pois, renncia da liberdade e valorizao do Estado,atitude que encontra em vrios grupos de esquerda e que teme difundir-se tambm entre osanarquistas. Portanto, destaca a importncia da luta contra o Estado no centrada em umaoposio violncia coercitiva que se exerce de cima (para baixo) por meio da polcia, masdeve consistir na defesa das mltiplas autonomias e em sua coordenao de base; deveconsistir, por exemplo, no exerccio da iniciativa desde abaixo, em terrenos como ointernacional, nos que os governos se movem pesada e artificialmente (...).27

    No livro El Anarquismo: ms alla del la Democracia, de 1983, ela retoma estaconcepo sobre as tarefas do anarquismo. Explica que, no mundo contemporneo, preciso

    criar uma nova mentalidade, desligada dos esquemas tradicionais de pensamento e sair docrculo vicioso da violncia, que sempre autoritria, tomando nas mos aquilo que nomundo atual no nem violento nem autoritrio e fazer disto o ponto de partida de um futuroorientado em sentido libertrio, insuflando-lhe um novo esprito.28

    Nesta direo, afirma, num depoimento de julho de 97:

    Nossos vnculos com o passado so muito fortes e sobretudo so fortes a nvelcoletivo e uma ruptura drstica com o passado, completa, s se pode fazer custa daliberdade, s oprimindo e forando as vontades. H algo na tradio que oprime,

    porm, h uma continuidade que no se pode romper violentamente, s se pode deixarcair, provocar a queda do que est sobrando, das folhas secas, do que j no tem vida...

    porm, uma mudana libertria deve passar pela vontade coletiva, a vontade coletivasempre tem em conta a histria ... mesmo que inconscientemente ... conhecer a histriatem um valor vital, um valor de reconsiderao dos valores tradicionais e uma forma,um veculo de transformao enquanto se criticam os valores medida em que seconhece...29

    Valeria, ainda, mostrar, mesmo que brevemente, alguns momentos de sua construolibertria do passado na maneira como promove uma nova leitura da obra de Maquiavel, nos

    25 Idem, p.43.26 Luce FABBRI. El Camino, op. cit., p.30.27

    Luce FABBRI La Libertad entre la Utopia y Ia Historia, op. cit.,p.45.28 Luce FABBRIEl Anarquismo ms alla de la democracia. Buenos Aires: Editorial Reconstruir, 1983, p.49.29 Depoimento de Luce Fabbri dado autora, em julho 1997.

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    incios dos anos setenta.30 Luce preocupa-se em desfazer as imagens tradicionais queenvolvem este autor, especialmente conhecido como o conselheiro dos tiranos e um polticosem escrpulos. Dissocia o termo maquiavelismo, que no senso comum designa umaforma perversa de a ir, valendo-se de qualquer meio para atingir determinado fim, do

    pensamento de Maquiavel propriamente dito. Assim, descobre um outro autor, amante da

    liberdade, que no exclui a moralidade da poltica, ao contrrio do que afirmam seus crticose que deve ser tido como fundador da poltica como cincia, no por dissociar a poltica damoral, mas por haver estudado o desejo de poder em seu eterno choque com a exignciahumana de liberdade, reconhecendo neste choque o principal fator da histria.31

    preciso ver que em sua obra, explica ela, Maquiavel no se ocupa apenas dosgrandes, dos que governam e dominam, mas tambm dos que tratam de ser governados omenos possvel, como por exemplo, a plebe romana antiga ou o povo florentino de seutempo. Nesse sentido, o autor se coloca como um tcnico que procura definir friamente oque deve fazer o prncipe para dominar e o que deve fazer o povo para defender sua liberdadecontra o prncipe. Nisso consiste a cincia. E, mostra ela, nesse caso, apenas a tcnica do

    poder est separada da moral. A liberdade, a repblica fundada em boas leis e defendida porseus cidados pertence ao campo da moralidade, porque se o interesse do prncipecomumente oposto ao interesse geral, que para Maquiavel a medida da moral, os desejos

    populares coincidem quase sempre com o bem comum, pois os integrantes do povo no tem a possibilidade de aceder ao poder individualmente e portanto desejam naturalmente, paratodos, a liberdade.32

    Erudita, Luce descobre um Maquiavel quase libertrio, critico do poder e da tirania,que valoriza a liberdade livre baseada na igualdade entre os cidados e para quem oabsolutismo no passa de uma degenerao da monarquia. L O Prncipe, escrito em 1513, a

    partir dos acontecimentos histricos da Itlia quinhentista e tambm a partir de uma outraobra do autor, escrita anteriormente, que considera fundamental, os Discursos sobre os

    primeiros dez Livros de Tito Lvio, onde v a liberdade republicana como valor polticosupremo. Maquiavel, diz ela, escolhe esse momento da obra de Tito Lvio por referir-se a ummomento da histria de Roma em que prevalece a polis, dentro da qual o povo luta paradesempenhar seu papel .33

    Esta perspectiva se esclarece ao ler naquele autor a seguinte considerao:

    Se se considera o fim dos nobres e dos que no so nobres, se ver naqueles umdesejo grande de dominar e nestes somente o desejo de no ser dominados e, porconseguinte, um maior desejo de viver livre.34

    O projeto da Histria genealgica

    Romper com o que nos aprisiona, com um noo de continuidade histrica forjadacomo natural condio de possibilidade para reencontrar a prpria histria em suadisperso, afirma posteriormente Michel Foucault. Reencontrar a tradio libertria, isto ,as prticas do exerccio da liberdade, como faz esse autor ao estudar a problemtica moraldos gregos, em O uso dos prazeres, localizando a um modo outro de subjetivao.35 O

    30 Luce FABBRI. O Prncipe, de Maquiavel.(Introduo, seleo e notas). Montevideo: Nordan-Comunidad,1972.31 idem, p. 12.32 idem, p. 19.33

    idem, p. 19.34 idem, p. 13.35 Michel FOUCAULT. Histria da sexualidade. Vol.2 O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

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    penser autrement que esse autor nos aponta inscreve-se, assim, numa tradio libertria depensamento, que no deve ser perdida, como adverte Luce. Libertar-se do passado traduz-se,ento, como um libertar-se da construo autoritria do passado, que suprime o contato diretocom as experincias da liberdade inventadas e usufrudas por nossos antepassados.Lembrando Foucault:

    A Histria para os filsofos uma espcie de grande vasta continuidade em quese emaranham a liberdade dos indivduos e as determinaes econmicas ou sociais.

    Na verdade faz algum tempo que gente importante como Marc Bloch, ou LucienFebvre, os historiadores ingleses, etc. puseram fim a esse mito da Histria. Eles

    praticam a histria de outro modo, tanto que o mito filosfico da Histria, esse mitofilosfico que me acusam de ter matado, pois bem, fico encantado se o matei. 36

    Uma outra relao com o passado, com o tempo, com a Histria, pensada agora em suahistoricidade: idia de desconfinamento, de libertao quando tudo histrico e quando se

    pode ler que a configurao atual dos fenmenos, das prticas e das concepes no adveiodo progresso, mas da capacidade de dominao. Seria interessante, ainda, perceber comoFoucault nos reata tradio, reencontrando os pontos invisveis, 'a relao essencial' quetemos desconhecido em nossos passados: o nascimento da priso no final do sc.XVIII, odispositivo do poder, na era vitoriana, os modos de subjetivao e as estticas da existnciana Antiguidade greco-romana. Como ele mesmo diz, sua relao com a Histria estabelecida a partir de um problema que se coloca no presente, para a resoluo do qualnecessita voltar ao passado, um passado no mais visto como origem embrionria, porm,nietzscheanamente falando, como origem baixa , lugar do acontecimento, da emergnciaem sua singularidade, a partir da disputa de foras em conflito.

    Nas ltimas trs dcadas de crtica ps-moderna, a linguagem e os mecanismos de

    poder inscritos na vontade de verdade ganharam a principal cena das discusses tericas naproduo do conhecimento histrico. A Ordem do Discurso tornou-se, nesse contexto, umlivro de capital importncia para a prtica historiogrfica.37 Dos fatos positivamenteorganizados e dispostos espera da revelao do historiador, passamos a perceber osdiscursos e as interpretaes com os quais lidamos na leitura do passado. Um novo conceitode discurso est em jogo, no mais percebido enquanto reflexo da base econmica dasociedade, como ento a teoria marxista do reflexo permitia dizer, mas as prticas discursivas

    percebidas em sua materialidade e em sua potencialidade instituinte.38 Na Introduo de A Arqueologia do saber, de 1969, Foucault rende homenagem

    Escola dos Annales, anunciada em seu pioneirismo pela proposta de uma nova concepo deHistria, marcada pela longa durao, pelas temporalidades mltiplas, pela importncia da

    mentalidade e da dimenso subjetiva, pela noo da histria-problema, renovada a partir dacriao de outros instrumentais conceituais.

    Estes instrumentos permitiram-lhes distinguir, no campo da histria, camadassedimentares diversas: as sucesses lineares, que at ento tinham sido o objeto da

    pesquisa, foram substitudas por um jogo de interrupes em profundidades. Damobilidade poltica s lentides prprias da civilizao material, os nveis de anlisesse multiplicaram: cada um tem suas rupturas especficas, cada um permite um corte que

    36 In: Didier ERIBON. op. cit., p. 168.37

    M. FOUCAULT. A Ordem do Discurso. So Paulo: Edies Loyola, 1996, 3 ed.38 Sobre este impacto na historiografia, vejam-se Keith Jenkins.Rethinking History. London: Routeledge, 1991e On Whats History? From Carr to Rorty and White. London: Routledge, 1997.

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    Em outro texto famoso, Nietzsche, a Genealogia e a Histria, de 1971, Foucaultdistingue a histria dos historiadores, fundada na idia de continuidade e na lgica da

    identidade, da histria genealgica, voltada para o despedaamento daquilo que constitui o jogo consolante das imagens refletidas no espelho, como diz ele.40 Fundado em Nietzsche,mostra algumas iluses sobre as quais assenta o mtierdo historiador: a noo de verdadeobjetiva, a noo de essncia a ser desvelada pelo trabalho do conhecimento, qual se junta ade continuidade, necessidade e totalidade. Para ele, essa iluso antropolgica, que constrium discurso legitimador da figura do sujeito unitrio e racional deveria ser ela mesmainvestigada ao se repensar o trabalho do historiador. A busca do passado, a reconstruohistrica, nesse sentido, no buscaria reencontrar os fios da continuidade e nossa prpriaimagem na origem lmpida do acontecimento, na fundao, no abrigo silencioso do tero,mas visaria perceber, de um lado, para que tal discurso necessrio; de outro, que conflitosde foras em disputa ele mesmo elimina para poder construir a imagem tranqila decontinuidade do passado em direo ao presente. Foucault busca, nesse projeto, libertar ahistria do modelo antropolgico da memria, segundo o qual a histria seria reminiscncia,reconhecimento.

    O filsofo nos faz perceber, ainda, a maneira pela qual atravs da construo discursivaem que se arma a trama, produz-se sofisticadamente a excluso. Assim, os historiadores

    passaram duzentos anos falando da inveno da liberdade, para s recentemente se daremconta de que esta a contrapartida da emergncia da priso, que a sociedade do contrato vnascer a sociedade disciplinar e, mais do que isso, de uma racionalidade fundada no

    principio carcerrio, classificador, esquadrinhador.A Ordem do Discurso pe em relevo um nova concepo de discurso visto enquanto

    prtica instituinte, enquanto materialidade, enquanto ordem: Suponho que em todasociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada eredistribuda por determinado nmero de procedimentos, que tm por funo conjurar-lhe os

    poderes e perigos, conjurar acontecimento aleatrio, afastar sua pesada, temvelmaterialidade.41

    Procedimentos de excluso: a proibio e o tabu; o isolamento e a rejeio; a vontadede verdade. Segundo grupo dos principias que se exercem no interior do discurso: ocomentrio, a noo de autor, as disciplinas cientficas. Proposta de libertar o discurso: datrama das proibies, excluses e limitaes em que se acha encerrado; e pelo procedimentogenealgico, faz-lo aparecer em sua emergncia, l onde ele aparece com ou sem ossistemas de opresses.

    Visitando o conceito de genealogia, Foucault capaz de redefini-lo radicalmente, aoformular o projeto de uma histria genealgica. Esta recusa a busca da origem comoUrsprung, entendida enquanto comeo nobre, lugar onde se ocultaria o sentido profundodo passado, essncia a partir do qual tudo o mais se desdobraria numa linha de continuidade,cujo ponto terminal seria o presente. Investindo contra a noo de necessidade e detotalidade, o filsofo constri uma outra concepo de acontecimento, constitudo a partir dasnoes de procedncia - Herkunft e de emergncia - Entestung. Se a histria uma srie deinterpretaes, e se a interpretao um ato de poder, um apoderar-se do sistema de regras

    39 M. FOUCAULT. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1986, 2 ed, p.3.40

    M. FOUCAULT. "Nietzsche, a Genealogia e a Histria". In: Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,1979.41 M. FOUCAULT. A Ordem do Discurso. op. cit. p.7

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    dominante, invertendo-o e lanando-o contra si mesmo, a genealogia deve fazer sua histria,- das morais, ideais, conceitos metafsicos, do conceito de liberdade, da vida asctica, comoemergncias de interpretaes diferentes. Trata-se de faz-las aparecer comoacontecimentos no teatro dos procedimentos.42

    A partir da, prope a genealogia da forma supra-histrica da Histria, mostrando como

    nasce o mito da objetividade do historiador, pronto a buscar o sentido oculto e profundo daverdade histrica. E o compara ao demagogo ateniense, que invoca a objetividade, aexatido dos fatos, o passado inamovvel, e cujo discurso visa criar a fantasia dasuperioridade de uma poca em relao a outra.

    Esta forma histrica caracterizada, a partir de Nietzsche, como aquela que reintroduzo ponto de vista supra-histrico: uma histria que teria por funo recolher em uma totalidade

    bem fechada sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma histria quelanaria sobre o que est atrs dela um olhar de fim de mundo. Esta histria dos historiadoresconstri um ponto de apoio fora do tempo e pretende julgar segundo uma objetividadeapocalptica, supondo, ao mesmo tempo, uma conscincia sempre idntica a si mesma.43

    Ora, a histria genealgica proposta trabalha com a descontinuidade, desfaz os pontosfixos, quebra as identidades e introduz o corpo na Histria. Faz ressurgir o acontecimentonaquilo que pode ter de nico e agudo, marca as singularidades. O acontecimento entendido aqui como uma relao de foras que se inverte, como um poder confiscado, umvocabulrio retomado e voltado contra seus utilizadores...44 o que ele prprio faz emseguida, ao proceder a uma anlise genealgica da Histria, pretendendo libert-la do modelometafsico e antropolgico da memria. Conhecer como se produz essa forma-histria umamaneira de abri-Ia a novas possibilidades de relao com o passado.

    Acompanhemos seus passos nessa operao em busca da genealogia da Histria.Foucault mostra a emergncia dessa forma antropolgica do conhecimento, no sculo 19europeu, sculo espontaneamente historiador. Sem individualidade, sem saber quem ,

    sem castelos prprios, cercados por cenrios, o europeu procura sua individualidade. Comobrbaros, olhamos para as grandes civilizaes e perguntamos como foram possveis: diantedas muralhas abertas(;), perguntamo-nos que deuses puderam habitar aqueles templosvazios.45 Na incapacidade de criar, espiritualmente desenergizado, o europeu se apia comoum plebeu no que foi feito antes dele. Para isso precisa de Histria: para dar-se uma origem,enraizar-se, encontrar sua prpria identidade, reconhecer-se na noite dos tempos e, destemodo, fortalecer-se.

    Depois de fazer a genealogia da Histria, entendida em seu uso antropolgico, Foucaultse prope a apoderar-se de suas regras, domin-las e volt-las contra seu nascimento. Isto oacontecimento: no ver o nascimento a partir do amadurecimento do feto, e sim a cena emque as foras se arriscam e se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas.46 Aqui a

    possibilidade de um uso anti-platnico da histria, um uso que a liberte da histria supra-histrica.

    Nessa reverso das regras do jogo, em que se trata de fazer da histria uma contra-memria e de desdobrar uma outra forma de tempo, Foucault descobre trs usos possveisque se opem s trs modalidades platnicas da histria: o uso pardico e destruidor darealidade, contra o que ope o tema da histria reminiscncia e do reconhecimento; o usodissociativo e destruidor da identidade, que estilhaa a histria-continuidade ou tradio; o

    42 M. FOUCAULT. "Nietzsche, a Genealogia e a Histria, op. cit., p.26.43 Idem, p.26.44

    Idem, p.28.45 Idem, p.32.46 Idem, p.32.

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    uso sacrificial e destruidor da verdade, voltado contra a histria-conhecimento. Retomandosuas idias:

    1. O uso pardico ou burlesco: a histria oferece identidades ao homemcontemporneo, j o genealogista coloca em cena um grande carnaval do tempo onde asmscaras reaparecem sem cessar: trata-se de nos irrealizar em vrias identidades

    reaparecidas ... A genealogia a histria como um carnaval organizado.47

    2. A dissociao sistemtica de nossa identidade, que alis uma pardia. Dissipar eno reencontrar nossa suposta identidade, fazer aparecer todas as descontinuidades que nosatravessam.

    3. O sacrifcio do sujeito do conhecimento: o saber no busca uma verdade universal,construda a partir de um desejo de pureza. Novamente a crtica apresentada naArqueologiadosaber retomada, desmistificando a imagem de pureza com que se apresenta a cincia,como uma forma de revelao da verdade essencial e originria do mundo, em oposio aomundo da poltica. Vejam-se, alis, as diferenas que reconhece entre o sbio e o poltico,expressas emA verdade e as Formas Jurdicas.48

    Esse novo olhar sobre a Histria, entendida enquanto arqueo-genealogia do presente,permitiu aos historiadores perceberem fenmenos contemporneos, que se constituram naModernidade, a exemplo do processo de medicalizao, ou de normatizao dasociedade. Enunciado primeiramente nos anos setenta por Foucault, permitiu a produo deuma ampla historiografia voltada para a temtica a partir do final desta dcada, tambm noBrasil, estendendo-se por toda a dcada de oitenta, e ainda, prolongando-se para os anosnoventa.49 Ao denunciar a dimenso carcerria da sociedade burguesa, sofisticada em suasformas de controle e de assujeitamento, a perspectiva foucaultiana possibilitou, pois, umaleitura crtica do poder disciplinar e das formas de disciplinarizao do social, no momentomesmo em que este processo se encerrava, como ele prprio observa, desmistificando o

    progresso, a cincia e a neutralidade da tcnica.

    Constituir subjetividades anrquicas

    Em Post-scriptum. Por uma sociedade de controle, Deleuze refora a idia de queFoucault se prope a descrever o mundo que estamos deixando de ser, um presente que setorna imediatamente passado, mas cujas marcas moldam vigorosamente nossas vidas e asformas de construo da subjetividade.50 Nessa direo, possvel afirmar que Foucaultrefora o olhar anarquista na atualidade, na medida em que se coloca como o mais persistentecrtico dos micropoderes, do Estado e da representao terica e poltica. Se, em 1933, LuceFabbri faz a crtica minuciosa das prticas de fascistizao do cotidiano, das formas demilitarizao da vida nas escolas primrias e secundrias, na universidade, na organizao

    do lazer, da cultura e da prpria vida produtiva nas fbricas e no campo, 40 anos depois, ofilsofo nos instrumentaliza teoricamente para as prticas da ao direta, ou paraexplodirmos radicalmente com os micropoderes, revertendo o jogo das relaes de poder erecusando as insidiosas formas de subjetivao promovidas pelo Estado.

    Prefiro as transformaes bem precisas que puderam ocorrer nos ltimos 20 anos emum certo nmero de domnios que concernem nossos modos de ser e de pensar, as relaes deautoridade, as relaes entre os sexos, a maneira pela qual ns percebemos a loucura ou a

    47 Idem, p.34.48 M. FOUCAULT. La Verdad y las Formas Juridicas. Mxico: Editorial Cedisa, 1986, 2 ed.49

    Relembro as publicaes de Roberto Machado e outros DaNao daNorma. Rio de Janeiro: Graal, 1978 ede Jurandir Freire Costa. Ordem Mdica e Norma Familiar. Rio de janeiro: Graal, 1979.50 Gilles DELEUZE. Conversaes. So Paulo: Editora 34, 1990.

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    doena, prefiro estas transformaes mesmo que parciais que foram feitas na correlao daanlise histrica e da atitude prtica s promessas do homem novo que os piores sistemas

    polticos repetiram ao longo do sculo 20., diz Foucault.51E precisando o que entende por estas lutas parciais, imediatas e transversais, afirma:

    ...(elas) no procuram o inimigo nmero um, mas o inimigo imediato. Em seguida, no

    acreditam que a soluo ao seu problema possa residir num futuro qualquer (isto , na promessa de liberao, de revoluo, no fim do conflito das classes). Em relao a umaescala terica de explicao ou ordem revolucionria que polariza o historiador, so lutasanrquicas. So lutas contra o governo por individualizao.52

    Prticas de-subjetivantes, estas lutas pem em questo o estatuto do indivduo, aoafirmar o direto diferena; ao mesmo tempo, opem-se a tudo que pode isolar o indivduo,separ-lo dos outros, cindir a vida comunitria, constranger o indivduo a se dobrar sobre simesmo e a agarrar-se em sua prpria identidade.53 Liberdade, mas no a liberal, e sim aliberdade social, como entendem os anarquistas que, alis, so individualistas.

    Estranho, contudo, que a proposta foucaultiana da amizade seja construda emreferncia ao movimento homossexual, depois da crtica da sexualidade como lugar dediferenciao do grupo e de identificao. Nesse sentido, os libertrios, que alis,defenderam o amor livre e propuseram novos laos afetivos e subjetivos desde sempreencontram-se, a meu ver, muito mais prximos do projeto tico-poltico em discusso.

    Acompanhemos, finalmente, Reiner Schrmann, cujos comentrios podem esclarecer odebate: O sujeito anrquico ecoa Zaratustra de Nietzsche: Tal o meu caminho; qual oteu?... Pois o caminho - no existe.54 Para o filsofo alemo, que l no pensamentofoucaultiano a proposta da constituio de um sujeito libertrio: O sujeito anarquista seconstitui em micro-intervenes voltadas contra os padres recorrentes de sujeio eobjetivao. E, nessa direo, conclui:

    Para uma cultura obcecada com as profundezas do eu ocultas, inconscientes,(...) a auto-constituio anarquista significa a disperso da reflexo direcionada paradentro, para reflexos voltados para fora na medida dos sistemas de poder que devem sercurto-circuitados, desqualificados e destrudos.55

    O que mais anarquista?

    51 Reiner SCHRMANN, op.cit.,p.13.52 In: P. RABINOW e H. DREYFUS. Michel Foucault. Un parcoursphilosophique. Paris: Gallimard, 1984,p.301.53 Idem, p.302.54 Reiner SCHRMANN. "On constituting Oneself as an Anarchist Subject". Praxis International, VI, p.13;

    veja-se, ainda, Francisco ORTEGA. Amizade e Esttica da Existncia em Foucault. Rio de Janeiro: Graal,199955 Reiner SCHRMANN, op.cit.,p.13.