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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: O CASO DO FRIGORÍFICO ANGLO DE PELOTAS/ RS
MICHELON, FRANCISCA F.; GONZÁLEZ, ANA M.S.; SERRES, JULIANE C.P.; CÔRREA, CELINA B.; LIMA, PAULA G.; NEUBERT, SUÉLEN.
1.Universidade Federal de Pelotas. Departamento de Museologia, Conservação e Restauro.
Rua Sinval Brauner Penteado, 104. Areal. Pelotas/RS. 96077-700 [email protected]
2. Universidade Federal de Pelotas. PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural.
Rua General Argolo, 365 / 301. Centro. Pelotas/RS. 96015-160 [email protected]
3. Universidade Federal de Pelotas. Departamento de Museologia, Conservação e Restauro. Rua Santa Cruz 1470 / 1008. Centro. Pelotas/RS. 96015-160
4. Universidade Federal de Pelotas. Departamento de Tecnologia da Construção
Al. Pablo Neruda, 1774. Las Acácias. Pelotas/RS. 96083-480 [email protected]
5. Universidade Federal de Pelotas. Centro de Artes Rua Uruguaiana, 106 – Laranjal. Pelotas/RS. 96090-550
6. Universidade Federal de Pelotas. Graduação em Conservação e Restauro
Rua Ceslau Mário Biezanko, 51, Areal. Pelotas/RS. 96080-420. [email protected]
RESUMO Em Pelotas, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, o remanescente da segunda maior unidade do Frigorífico Anglo no Brasil, instalada em 1943, foi parcialmente adquirido pela Universidade Federal de Pelotas, em final de 2005. As obras de adaptação da extinta fábrica para uso da instituição ocasionaram a perda da maioria dos elementos identificadores do trabalho que ali se dava. Soma-se a esse fato a falta de documentação e ambos instauram um silêncio sobre a trajetória dessa indústria, que se trai pela manifesta importância que os depoimentos de ex-funcionários revelam. Quando fotografias são empregadas durante a tomada dos depoimentos, inúmeros elementos afloram. Pretende-se verificar a factibilidade de, em um estudo comparativo com as fotografias da unidade de Fray Bentos, conseguir identificar o espaço e os significados do complexo industrial e tecnológico que constitui a cultura patrimonial social, técnica, arquitetônica e estética dessa grande fábrica, única do grupo inglês Vestey Brothers no Rio Grande do Sul. Embora menor do que as plantas industriais dos frigoríficos de capital estadunidense Swuift, Armour e Wilson, foi capaz de traçar uma história de forte impacto regional. Enquanto fenômeno vivo, a memória dessa indústria persiste e demanda suportes onde amparar-se.
Palavras-chave: Fotografia. Memória Social. Patrimônio Industrial. Frigorífico Anglo. Pelotas.
1. INTRODUÇÃO
O que se busca apresentar neste estudo é uma reflexão sobre os usos da fotografia
aplicada à pesquisa do patrimônio industrial. Os resultados e a metodologia podem,
inicialmente, não se diferenciar do uso da fotografia para o estudo de qualquer outra
manifestação patrimonial. No entanto, a proposta é compreender como tal recurso de registro
visual opera particularmente quando se está diante de um fato que relaciona cultura material e
trabalho industrial. A contribuição que se pretende é, portanto, adicionar alguns exemplos ao
campo de estudo do patrimônio industrial urbano, enfatizando qualidades específicas dos
acervos e arquivos fotográficos como significativos contributos a esse campo. Igualmente, a
presente escrita não se furta em evidenciar certos contornos que destacam o potencial
inerente da fotografia como suporte de memória social. De qualquer modo, o texto focaliza a
reflexão sobre um caso particular: o remanescente do extinto Frigorífico Anglo de Pelotas e
acentua como a existência de fotografias do local no passado ilustra trajetórias comuns às
indústrias nas cidades. Assim, o texto se organiza no sentido de oferecer ao leitor, com vistas
a esclarecer o procedimento metodológico do uso da fotografia, os conceitos que fundam o
trabalho e o contexto da indústria que configura o seu campo de empiria e para dar concretude
ao objeto da pesquisa, inicia-se apresentando um breve resumo da trajetória desta fábrica.
Conclui-se com o estudo aplicado de fotografias sobre um importante elemento desta
paisagem industrial que se perdeu inelutavelmente e cuja compreensão é retomada pela
imagem: a rampa de acesso à sala da matança.
2.MEIO SÉCULO DE MUDANÇAS: SOCIEDADE ANÔNIMA FRIGORÍFICO ANGLO DE PELOTAS
A fundação do Frigorífico Anglo em Pelotas deu-se em um contexto no qual o Rio
Grande do Sul estava sendo o foco para o investimento do capital estrangeiro aplicado à
indústria da carne. Esse panorama, já consolidado na Argentina e Uruguai era condizente
com as possibilidades geográficas do Estado e já vinha se conformando em âmbito nacional,
inserido e contemplado pelas políticas voltadas para a industrialização do país. Sobretudo, na
primeira metade do século XX, foi a exportação a mola propulsora da fundação de vários
frigoríficos no país. Entre o início do século e a Primeira Guerra várias unidades foram
instaladas, inclusive no Rio Grande do Sul. A historiadora Célia Araújo em seu estudo sobre o
Frigorífico Anglo de Barretos registrou que o primeiro frigorífico brasileiro pertenceu à
Companhia Frigorífica e Pastoril e foi fundado em 1913 (2003, p. 26-27) com capital
exclusivamente brasileiro. A Companhia Frigorífica e Pastoril de Barretos, ainda segundo a
autora, pertencia ao mesmo grupo que detinha a Companhia Mecânica e Importadora de São
Paulo, fundadora do Frigorífico de Santos entre 1917 e 1918. Em 1917 a Brazilian Meat
Company fundou o Frigorífico de Mendes no Rio de Janeiro, então pertencente ao Grupo
Vestey Brothers, também detentores da Anglo Brazilian Meat Company que em seguida viria
a adquirir o frigorífico de Barretos. Essa também foi a história do Frigorífico Anglo de Pelotas.
Nessas primeiras décadas do século passado, a indústria frigorífica buscava
instalar-se nas regiões onde já havia se estabelecido o comércio da carne por razões
estratégicas naturais e edificadas pelo homem: locais de criação de gado com condições de
transporte para escoar a produção aos portos marítimos. Nesse período, mesmo os mais ricos
empresários brasileiros não puderam frear a tomada de mercado pelos poderosos grupos
estrangeiros, sobretudo o trust estadunidense, no Rio Grande do Sul majoritariamente dono
dos frigoríficos Swift, Armour e Wilson.
Na cidade de Pelotas, sede do Banco Pelotense cujo escopo era o financiamento da
pecuária, havia condições de formar uma sociedade mantenedora de um Frigorífico capaz de
garantir melhores preços para os pecuaristas e inserir a produção no mercado exportador. Em
decorrência da iniciativa fundou-se a “Companhia Frigorífica Rio Grande” que elaborou os
Estatutos do Frigorífico. Enquanto isso, os frigoríficos estadunidenses instalavam unidades
produtivas com tecnologia frigorífica trazida da América do Norte. O principal investidor dessa
iniciativa foi o Banco Pelotense que, segundo Lagemann (1985, p.108) teve “[...] participação
direta na modernização da indústria da carne como maior acionista da Companhia Frigorífica
Rio Grande”. No entanto, o projeto de instalação do Frigorífico Rio Grande deu-se entre os
anos de 1915 e 1919 (LAGEMANN, idem, p.119) quando a economia gaúcha estava
ascendendo. Justamente no ano seguinte sobreveio a primeira grande crise do Banco
Pelotense que fez os acionistas revisarem o investimento e decidirem pela venda do
Frigorífico (idem, p.108). O que aconteceu em Barretos ocorreu, igualmente, em Pelotas
quando em1921 a The Rio Grande Meat Company entabulou a compra do Frigorífico
recentemente inaugurado.
Utilizando as mesmas instalações já feitas, a empresa manteve o frigorífico em
funcionamento com baixa produtividade até 1926, quando o fechou e assim ficou por 15 anos,
até que, em pleno Segundo Conflito, com a demanda do mercado exterior por, especialmente,
carne enlatada, o grupo inglês ativou a unidade de Pelotas. Assim, em 1942 iniciaram as
obras de construção e adequação do novo Frigorífico, que se estenderam por 20 meses,
empregando centenas de trabalhadores na execução do projeto de aterro e drenagem da
região alagadiça e na edificação das sólidas estruturas do prédio principal e adjacentes. Em
17 de dezembro de 1943 o Frigorífico foi inaugurado, anunciado como a “[...] maior realização
industrial desta cidade” (Diário Popular, 17/12/1943, p.8). O projeto do complexo previa o
abate de mil bois por dia, concomitante a quinhentos suínos, quinhentos ovinos e mil aves. A
produção diária incluía as conservas de legumes e frutas. Ao longo do tempo, em seus seis
hectares de extensão, prédios foram sendo modernizados, adaptados e construídos para
otimizar ou implantar novos processamentos e produtos. Nos anos de 1940 foi um grande
complexo e manteve-se assim, até o seu fechamento nos anos de 1991 a 93, quando o Grupo
Vestey Brothers encerrou a atividade com frigoríficos na América do Sul.
3. FOTOGRAFIA E TRABALHO: OS ARQUIVOS SOBRE OS
FRIGORÍFICOS ANGLO
No que tange a relacionar fotografia com trabalho, observa-se estreita ligação desde o
século XIX, e é frequente que as fotografias permitam identificar muitos sujeitos da história do
trabalho: uma análise acurada pode encontrar pistas sobre as experiências desses sujeitos,
os seus fazeres e as formas de adaptação às transformações tecnológicas. No entanto,
encontrar essa visualidade disponível não é fato recorrente. Uma boa parte do que pode ser
encontrado hoje deriva dos próprios arquivos das fábricas que por decorrências diversas,
chegaram às instituições de memória.
No Brasil, o grupo Vestey Brothers não deixou arquivos, ou se deixou, tanto na
unidade de Pelotas como de Barretos não foram parar em uma instituição de memória. Assim,
formar um acervo visual dessas fábrica tem sido o trabalho de coleta sistemático, em geral,
com ex-trabalhadores. A diferença para a unidade de Fray Bentos é de essência.
O complexo do Frigorífico Anglo de Fray Bentos teve o seu apogeu na primeira metade
do século XX e possui dois arquivos principais com fotografias: o primeiro, parcialmente
identificado, pertencente ao Museo de La Revolución Industrial e o segundo,o Archivo
Nacional de la Imagen del Sodre. Em ambos, reside importante registro das sucessivas fases
da indústria da carne no Uruguai. O primeiro contém significativas imagens sobre o
processamento do extrato de carne e produção do guano pela Liebig’s Extract of Meat
Company Limited . No entanto, em ambos os arquivos é possível encontrar nas fotografias
uma cronologia imanente, lógica e representativa da história da industrialização da carne no
Uruguai.
Nesse país, no qual o desenvolvimento da pecuária foi decisivo na sua organização
social e econômica (SENA, 2012, p.49), a industrialização da carne decidiu os rumos da
pecuária, do uso do território e, inclusive, da conformação social da população fabril. Assim, o
impacto do frigorífico Anglo no Uruguai sobressaiu-se em relação a sua história na Argentina e
no Brasil, exercendo destacada influência sobre a sua história econômica e social. Pode
residir aí, em parte, a justificativa para que as companhias tenham gerado, e as comunidades,
guardado, um volume de documentos tão grande sobre a indústria da carne. Fato é que se
encontra referência visual ao período da fábrica Liebig’s Extract of Meat Company Limited do
final do século XIX a 1924, ano em que foi arrendada pelo Grupo Vestey Brothers e mudou
seu nome para Frigorífico Anglo del Uruguay (EL OBSERVADOR, 2011, p. 18). A história
desta fábrica estendeu-se até 1968 (DOUREDJIAN, 2009, p. 17), com farta documentação,
inclusive fotográfica. Referências sobre a planta industrial do Frigorífico, que já iniciou com
capacidade para processar 1600 bois e 4000 ovelhas por dia (BERNHARD, 1970, p.20), são
fartas em ambos os arquivos, assim como as fotografias nas fichas dos empregados
evidenciam que a mão de obra do Frigorífico, entre 1924 e 1934, foi majoritariamente de
imigrantes (búlgaros, poloneses, gregos, iugoslavos, armênios, italianos, tchecoslovacos,
húngaros, ingleses, lituanos, romenos, entre outros). Até 1937, havia 44 nacionalidades
predominantes na origem dos trabalhadores da unidade Anglo uruguaia. Pode-se dizer que
foram os processos migratórios a base da formação da classe trabalhadora nesta região
uruguaia e, sobretudo, da mão de obra do Anglo nesse país (TAKS, 2009, p.211).
A história dessa grande empresa estendeu-se até dezembro de 1967, quando o grupo
encerrou as atividades do Frigorífico Anglo do Uruguai. Para evitar uma catástrofe social, o
governo uruguaio comprou a planta de Fray Bentos e a deixou sob a administração da
Companhia Frigorífico Nacional (Frigonal). Em 1969, o Ministério da Agricultura e Alimentação
britânico proibiu a importação de carnes do Uruguai, alegando um surto de febre aftosa no
rebanho deste país (idem, p.54), tornando, decisivamente insolvente a administração da
Frigonal. A planta industrial deixada pelo Anglo já era antiquada e desaparelhada,
comprometendo a rentabilidade da fábrica e diminuindo a sua competitividade no mercado.
Assim, a municipalidade de Fray Bentos assumiu o frigorífico e sem conseguir sustenta-lo por
mais tempo, permaneceu a atividade de matadouro que também minguou até o fechamento
total em 1971 (DOUREDJIAN, 2009, p. 17). Um breve lapso de atividade sobreveio em 1979,
quando uma empresa árabe arrendou a planta industrial e tentou fazê-la funcionar, sem
sucesso (CAMPADÓNICO, 2000, p.101). Nesse período em que o complexo agoniza as
tentativas de reativação, os documentos minguam, sobretudo os visuais.
A visualidade do lugar será retomada quando o complexo fabril é declarado
Monumento Histórico Nacional do Uruguai e, sobretudo, com a fundação do Museo de la
Revolución Industrial, em 2005. Agora inseridas em um contexto memorial, as fotografias e
demais documentos reapresentam o passado com outros sentidos e ativam a ideia de obter
da UNESCO a declaração do sistema como patrimônio da humanidade.
Não menos importante é o acervo sobre o Anglo depositado na fototeca do Archivo
Nacional de la Imagen del SODRE. A referida fototeca participa da missão do arquivo em
reunir e sistematizar coleções de fotografias sobre o país. Várias exposições tem sido
promovidas por este setor e, eventualmente, são editados catálogos. No entanto, no curso da
pesquisa diretamente no acervo da instituição, não se obtiveram os dados da procedência do
ilustrativo conjunto de fotografias sobre o trabalho no frigorífico. Há no setor um acervo com
mais de 100 mil negativos, sendo a maioria em suporte de vidro. As coleções que retratam o
país no século XIX são elucidativas de vários aspectos da sociedade uruguaia. Dentre suas
imagens, consta um conjunto de positivos em papel sobre o Frigorífico Anglo de Fray Bentos,
em fase de digitalização. Em acordo com a sua missão de disponibilizar o acervo à pesquisa,
logrou-se o empenho do Archivo em digitalizar e ceder para esse trabalho importante
quantidade de imagens, sobre as quais se está dando o exercício do método, exemplificado
neste ensaio. Ainda que sem datação e descrição, as imagens cedidas têm sido fundamentais
para compreender o frigorífico dos anos de 1920, ou seja, aquele adquirido pelo grupo Vestey
Brothers dos investidores gaúchos.
No entanto, sobre o frigorífico da cidade de Pelotas, a realidade é outra. Silenciar a
memória, no caso específico desta indústria, não é um processo tão árduo, mesmo com uma
comunidade grande de ex-operários no entorno, mesmo com parte do complexo reavivado
por novo uso. Já não havia documentação, objetos e máquinas quando o espólio da fábrica foi
adquirido pela UFPel e a aquisição não foi feita com o propósito da salvaguarda. O complexo
não está na relação dos imóveis do inventário do patrimônio cultural de Pelotas, apesar do
conjunto apresentar uma característica que foi determinante para o ingresso de vários outros
imóveis nesta relação: a cobertura de cimento penteado, característica das construções dos
anos de 1940 e 50. Portanto, nem na prefeitura encontrou-se documentação sobre o
frigorífico. O que se vem fazendo, concomitante às entrevistas, é a busca por qualquer
documento que se possa reproduzir, inclusive fotografias. Contudo, no presente, a totalidade
dos entrevistados é de ex-operários, o que reduz, por diversas razões, a possibilidade de se
encontrar registro fotográfico da fábrica e do trabalho. A maioria das fotografias encontrada
apresenta o time de futebol dos operários e cenas externas. E é justamente neste vácuo de
informação visual que as fotografias do Anglo de Fray Bentos despontam como um reflexo do
que pode ter ocorrido e sido o local e a vida fabril na unidade de Pelotas.
4. AS FOTOGRAFIAS DOS FRIGORÍFICOS ANGLO EM FRAY
BENTOS E PELOTAS
Entre as fotografias do Frigorífico Anglo de Fray Bentos depositadas na fototeca do
Archivo Nacional de la Imagen há uma série que registra o processo do trabalho desde a
entrada do rebanho nos currais da quarentena até o ingresso da carcaça na câmara frigorífica.
Como já foi dito anteriormente, estas imagens estão em processo de digitalização e não
contém informações sobre data e descrição. No entanto, as próprias cenas registradas
indicam elementos que auxiliam na identificação do período em que as fotografias foram
feitas. Por outro lado, em uma publicação recente de um projeto de restauro e revitalização do
imponente prédio das câmaras frias do complexo, os arquitetos proponentes registram que
quando a empresa Saladero Liebig´s foi adquirida pelo grupo Vestey Brothers e transformada
em Frigorífico Anglo do Uruguai, o prédio foi construído, com a mais recente tecnologia de
conservação pelo frio que havia (PIAZZA; DELGROSSO, 2011, p.15-16). Também nesse
período entre 1921 e 1923 foram construídas as novas áreas: de processamento da carne, a
nova graxaria e a sala de máquinas para os compressores de amoníaco. Assim, essas
fotografias, pela forma como estão dispostos os elementos na cena, pelos ângulos de tomada
e enquadramento, pela pose das pessoas que figuram nelas, registram o trabalho nas áreas
novas e devem ter sido feitas pela própria empresa. Tanto a fotografia aporta importância para
o investimento feito no Frigorífico Anglo, como resulta um sinalizador afirmativo do capital
empregado para as construções descritas. Na década de 1920 a frigorificação já tinha atingido
um nível de industrialização que era capaz de especificar e regrar todas as etapas produtivas
do processamento da carne e é isso o que esse conjunto apresenta.
No entanto, ainda que se considere que a celeridade desta indústria tenha
determinado mudanças progressivas em todas as muitas etapas do trabalho ao longo de sua
trajetória, verifica-se que no momento em que o Frigorífico Anglo se estabelece no antigo
saladeiro, as construções específicas deste último são mantidas. As novas construções estão
diretamente ligadas aos produtos que seriam destinados ao congelamento e à produção de
conservas.
Comparando as matérias publicadas no Almanach de Pelotas do ano de 1919, quando
é edificado o Frigorífico Sulriograndense e a já citada matéria sobre a inauguração do
Frigorífico Anglo em 1943, percebe-se que fato semelhante ocorreu em Pelotas. Quando o
grupo Vestey Brothers adquiriu o frigorífico da Companhia Frigorífica Rio Grande, as
instalações eram novas e deveriam seguir os mesmos princípios e empregar a mesma
tecnologia usada em Fray Bentos, uma vez que a competitiva indústria da carne era dominada
pelos gigantes estrangeiros, entre eles, o grupo inglês, dono do Anglo. Assim, comparando as
fotografias publicadas no Almanach de Pelotas e a mais antiga que se encontrou do complexo
do Anglo, verifica-se que algumas construções foram mantidas e que o investimento maior
esteve no conjunto que hoje é ocupado pela UFPel e no qual havia as câmaras frias e
frigoríficas. A tecnologia construtiva empregada nos prédios da unidade pelotense,
seguramente pertence a uma época posterior ao do prédio de Fray Bentos. Supõe-se que se
assemelham porque o edifício de Fray Bentos teve sua edificação totalmente concluída no
ano de 1929. Assim, uma década separa a construção de um e outro. Mesmo assim,
observa-se como em Pelotas a sala do abate foi construída em prédio contíguo ao das
câmaras, formando um conjunto comunicado internamente entre o abate, o processamento
da carcaça e das vísceras e o congelamento. No caso de Fray Bentos, o congelamento e o
abate/processamento davam-se em prédios distintos, comunicados com uma conexão aérea
que permitia por um sistema de roldanas o deslocamento da carcaça da área de
processamento até o prédio frigorífico (PIAZZA; DELGROSSO, 2011, p.19). Só este dado já
indica que o complexo de Pelotas foi constituído com o aproveitamento do que havia do antigo
frigorífico, mas dentro de princípios então atuais para a industrialização da carne, sendo, sob
este aspecto, diverso daquele de Fray Bentos.
Um dos elementos essenciais e indicadores da indústria da carne era a sala de abate.
Durante as entrevistas já realizadas pela presente pesquisa, soube-se que a sala de abate foi
totalmente remodelada na década de 1960, possivelmente para atender às exigências de
inspeção sanitária. A fiscalização sanitária iniciava, desde o período em que foi construído o
frigorífico nos anos de 1940, na verificação dos animais quando chegavam os rebanhos,
portanto os currais estavam previstos como itens essenciais dos matadouros. O ingresso no
abate se fazia após essa verificação e durante o percurso até a sala, o animal ingressava na
rampa de acesso, onde era banhado por aspersão e imersão. A rampa deveria ter, como
ainda deve, paredes de alvenaria com dois metros de altura, revestidas de cimento liso,
completamente fechadas, com aclive determinado, porteiras e piso de paralelepípedo,
colocados de modo a impedir o escorregamento do animal. No final da rampa o espaço
afunilava dando ingresso na seringa que antecedia o abate. Dado o aclive necessário, a
rampa costumava ser longa. Na figura 1 que apresenta a fotografia mais antiga obtida até o
momento sobre o complexo de Pelotas, vê-se a rampa. Para melhor identificação, o elemento
foi apontado com uma seta vermelha. Identificando-se a rampa nesta imagem, já se sabe
onde era a sala da matança. Portanto a rampa assinala o início do processamento e indica no
prédio a disposição inicial do fluxo do trabalho.
Na fotografia da figura 2, realizada antes das reformas para uso da universidade, esse
elemento foi registrado. Observa-se a inclinação e os demais aspectos das duas rampas (para
o gado bovino e suíno) e as indicações obrigatórias da época. Evidente que essa rampa e
qualquer indício já foram suprimidos do local. Como se observa na fotografia era uma
construção volumosa que ocupava extensa área longitudinal, portanto, em uma intervenção
não conservacionista, seria esperado que fosse eliminada.
No frigorífico uruguaio está rampa ainda existe, no entanto, foi encurtada e em algum
momento, anterior à patrimonialização do complexo, a área foi coberta e os acessos
emparedados. Mesmo alterada, pode-se acompanhar o percurso do animal. Por outro lado,
vê-se na figura 3 como foi mantida a sala da matança. Em Fray Bentos, estando neste local é
possível compreender o processo da industrialização até meados dos anos de 1970, assim
como supor o ambiente de trabalho, o convívio entre os trabalhadores e o sistema e ritmo
produtivos. Contudo, são as fotografias que aguçam a imaginação, tais como esta da figura 4,
que informa sobre situações que se tornariam impraticáveis, ou como a presença de
aprendizes crianças na sala do processamento, como a vestimenta dos operários.
Figura 1: Fotografia do Frigorífico Anglo de Pelotas entre 1950 e 60.
Fonte: Acervo pessoal de Fabio Kellermann Schramm.
Figura 2: Fotografia das rampas de acesso à sala do abate.
Fonte: Fotografia de Gilberto Carvalho, 2006/7. Acervo do fotógrafo.
Figura 3 – Fotografia da sala da matança no Frigorífico Anglo de Fray Bentos. A grande sala contém todos os elementos que participavam do abate e processamento da carcaça. Fonte: Fotografia de Francisca Michelon, 2013. Acervo da autora.
Figura 4 – Fotografia da sala de processamento da carne do Frigorífico Anglo de Fray Bentos. As carcaças estão suspensas pelas noras, nos trilhos, o couro já foi retirado. Fonte: Coleção do Archivo Nacional de la Imagen del SODRE
5. UMA GRANDE VONTADE DE MEMÓRIA, À TÍTULO DE
CONCLUSÃO Como já se sabe do exposto na introdução, desde o final do ano de 2005, parte da extinta
planta industrial do Frigorífico Anglo de Pelotas é ocupada pela Universidade Federal de
Pelotas. No conjunto onde se localizavam os prédios do abate, câmaras frigoríficas e
processamento do animal abatido há faculdades e setores da administração central. A
reforma não objetiva manter elementos e contornos do extinto frigorífico e, informalmente,
sabe-se que o contorno externo não foi alterado porque demandaria muito investimento para
fazê-lo. Assim, no seu interior o prédio encontra-se significativamente alterado. O local onde
se situa o memorial, pela exposição da técnica construtiva, ainda é a visão mais
esclarecedora da função destas construções. No entanto, entre a compra da planta por outro
frigorífico, ainda nos anos de 1990 e a aquisição pela UFPel, algumas pessoas conseguiram
fotografar a fábrica. Depois que a UFPel adquiriu parte do conjunto, outras pessoas
fotografaram os prédios sem intervenções e o conjunto remanescente.
Exulta-se o fato de que observando fotografias tomadas em 1997 e no presente, de
ângulos semelhantes, nota-se como o conjunto ainda é reconhecível. E internamente, se
importante área foi definitivamente extinta, ao menos parte das câmaras frias podem ser
localizadas e se pode observar os materiais empregados na construção de prédios frigoríficos
na década de 1940. Ou seja, mesmo diante de um fenômeno de apagamento das evidências
dessa, que pode ter sido a fábrica mais longeva e produtiva da cidade no período em que
esteve ativa, ainda há o que guardar e o que mostrar. As histórias contadas pelos ex-operários
asseveram essa possibilidade.
Em uma pálida tentativa de informar sobre os prédios históricos da Universidade e sobre o
local onde o transeunte se encontra, a administração colocou um conjunto de painéis com
fotos e textos sobre tais edifícios que pertencem ao patrimônio dessa Universidade, sendo
que um desses se refere ao prédio do Frigorífico Anglo. Todavia, tanto as informações
disponíveis sobre a parte da estrutura preservada e deixada aparente, como o próprio painel,
são insuficientes para esclarecer o percurso da fábrica, os impactos que exerceu sobre a
cidade e o significado que a existência dos prédios de indústrias extintas ainda têm
primeiramente para a comunidade que habita as imediações do local e, em segundo
momento, para a cidade e a região. E o fato não diz respeito, apenas, à quantidade de
informação passível de ser veiculada em tão exíguos suportes, mas ao conteúdo desta
informação, inexpressivo e desinteressante e que apresenta essa empresa sem ênfase e
história, silenciando, equivocadamente, um processo vivo, de mudanças, que se reatualiza e
se recria pela memória de alguns milhares de pessoas que trabalharam ou tiveram parentes e
amigos que trabalharam no Frigorífico. A empresa surgiu em um período no qual já não havia
mais o investimento da vila operária. Mesmo assim, os operários do frigorífico foram
situando-se no campo vazio que o rodeava, construindo progressivamente, parcas casas para
sua moradia. A posse destes terrenos vicinais ocorreu espontaneamente e acabou gerando
uma vila, hoje denominada Vila da Balsa. Com os moradores dessa Vila, a Universidade atua
mediante alguns projetos. Outra parte de ex-funcionários da empresa ou seus descendentes
habitam setores diversos da cidade. Igualmente, é uma população numerosa, embora uma e
outra não se encontrem, ainda, quantificada.
Portanto, o que se analisa é a possibilidade de considerar o remanescente da planta
industrial do Frigorífico Anglo de Pelotas, adquirida pela Universidade Federal de Pelotas,
patrimônio industrial e por fim, defender que o seu uso encontre soluções de assim mantê-la.
Assim sendo apresentam-se os dados já levantados pela pesquisa em andamento1, da qual
se origina este estudo, confronta-se o desenlace do Frigorífico Anglo de Pelotas com o do
Frigorífico Anglo de Fray Bentos, no Uruguai, que encerrou suas atividades quase duas
décadas antes do que o brasileiro. Observa-se no percurso de ambos as relações que
mantiveram com as cidades nas quais se localizaram. Por fim, as entrevistas realizadas são a
fonte para a análise desse espaço como um lugar de memória, juntamente com as
informações advindas dos demais suporte de memória, inclusive da fotografia.
Objetiva-se que ao final do trabalho se possa oferecer possibilidades em garantir o lugar
memorial que se percebe nesse sítio, de fazê-lo compreensível para quem o vive e de
estabelecer circunstâncias viáveis de visitação e reconhecimento para receber quem já viveu
nele. Esse fraco remanescente da planta industrial do Frigorífico Anglo de Pelotas, se
municiado de diferentes e várias formas de apresentação, pode conquistar a comunidade e
deverá vir a ser tido como um patrimônio industrial da cidade, o que de fato é. Ainda que não
se possas sugerir um espaço museal, tal como o que se implantou dentro do complexo de
Fray Bentos pode-se almejar que a memória do lugar se apresente de outras formas. E para
isso, a fotografia muito tem a contribuir.
Referências
ARAÚJO, Célia Regina Aielo. Perfil dos operários do Frigorifico Anglo de Barretos – 1927/1935. 2003. [s.n.] Tese (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP. BERNHARD, Guillermo. Los monopolios y la industria frigorífica. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1970. 100p. Inaugura-se hoje o Frigorífico Anglo. Diário Popular. Pelotas, 17/12/1943, p.8. DOUREDJIAN, Alberto. Sobre inmigrantes y frigoríficos: el Anglo y los trabajadores (1924-1954). Montevideo: Tradinco S.A., 2009, 304 p. EL OBSERVADOR. Historias del Bicentenario. Montevideo, 2011. LAGEMANN, Eugênio. O Banco Pelotense e o sistema financeiro regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. 251 p. SENA, Leonardo Gómez. Huellas y paisajes de la ganadería en El território uruguayo. In Revista Labor & Engenho. v.6, n.1, p. 49-72, 2012. TAKS, Javier. La clase trabajadora y las obreras del Anglo. Revista Encuentros: Uruguay: p. 211-230, 2009.
CAMPODÓNICO, Gabriela. El Frigorífico Anglo: Memoria urbana y social en Fray Bentos. In:http://www.unesco.org.uy/shs/fileadmin/templates/shs/archivos/anuario2000/7- campodonico.pdf. Acesso em 07 de jul. 2012.
Agradecimentos pela permissão de uso das imagens: ao Fabio Kellermann Schramm ao fotógrafo Gilberto Carvalho ao Archivo Nacional de la Imagen del SODRE ao Museo Nacional de la Revolución de Fray Bentos