fotografia e curadoria

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1 Algumas reflexões a partir de uma conferência no IPF a propósito de fotografia e de curadoria 1 1. Primeiras reflexões A escrita permite-me ordenar o pensamento. Se muitas vezes não é suficiente para responder a todas as questões, permite-me pelo menos identificá-las, o que já constitui um ponto de partida para futuras reflexões. Na sequência da conversa que tivemos no IPF, depois da apresentação do Rui Prata, integrada no ciclo dedicado ao tema "Paradigmas da fotografia contemporânea", onde se abordaram muitas questões, em particular a questão da curadoria na chamada fotografia e arte contemporâneas, tive necessidade mais uma vez de procurar identificar quais as questões em jogo, recorrendo como sempre à palavra escrita numa folha de papel vazia. Este texto pretende ser o repositório desse processo de auto-clarificação. Divulgo-o por pensar que poderá ser útil para suscitar a discussão e a polémica, que deveriam existir e que surpreendentemente parecem ser tão raras, pois essa polémica alargada parece ser um dos objectivos do ciclo de conferências organizado pelo IPF do Porto. 2. Estratégia para a reflexão Para alicerçar esta reflexão decidi utilizar três vectores como linhas e orientação. Três vectores que surgiram durante a apresentação no IPF e na conversa que se seguiu. 1 . O conceito de arte contemporânea, tal como ela é definida pelos ideólogos/teóricos desta corrente estética(?), deste (movimento?), desta escola(?), desta (atitude artística?) . Não sei ,com sinceridade, que substantivo usar para identificar a arte contemporânea e, sinceramente, não pretendo aqui ser irónico. Não sei mesmo. Vou por isso utilizar o termo movimento, sem ter a 1 A conferência realizou-se no dia 16-02-2011 no IPF do Porto e integra o ciclo "Encontros do Olhar 2011", este ano sob o tema "Paradigmas da fotografia contemporânea", coordenado por Júlio de Matos.

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Pequena reflexão pessoal sobre fotografia e curadoria no panorama da chamada arte contemporânea

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Page 1: Fotografia e Curadoria

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Algumas reflexões a partir de uma conferência no IPF a propósito de fotografia e

de curadoria1

1. Primeiras reflexões

A escrita permite-me ordenar o pensamento. Se muitas vezes não é suficiente para responder a

todas as questões, permite-me pelo menos identificá-las, o que já constitui um ponto de partida

para futuras reflexões.

Na sequência da conversa que tivemos no IPF, depois da apresentação do Rui Prata, integrada no

ciclo dedicado ao tema "Paradigmas da fotografia contemporânea", onde se abordaram muitas

questões, em particular a questão da curadoria na chamada fotografia e arte contemporâneas,

tive necessidade mais uma vez de procurar identificar quais as questões em jogo, recorrendo

como sempre à palavra escrita numa folha de papel vazia.

Este texto pretende ser o repositório desse processo de auto-clarificação. Divulgo-o por pensar

que poderá ser útil para suscitar a discussão e a polémica, que deveriam existir e que

surpreendentemente parecem ser tão raras, pois essa polémica alargada parece ser um dos

objectivos do ciclo de conferências organizado pelo IPF do Porto.

2. Estratégia para a reflexão

Para alicerçar esta reflexão decidi utilizar três vectores como linhas e orientação. Três vectores

que surgiram durante a apresentação no IPF e na conversa que se seguiu.

1 . O conceito de arte contemporânea, tal como ela é definida pelos ideólogos/teóricos desta

corrente estética(?), deste (movimento?), desta escola(?), desta (atitude artística?) . Não sei ,com

sinceridade, que substantivo usar para identificar a arte contemporânea e, sinceramente, não

pretendo aqui ser irónico. Não sei mesmo. Vou por isso utilizar o termo movimento, sem ter a

1 A conferência realizou-se no dia 16-02-2011 no IPF do Porto e integra o ciclo "Encontros do Olhar 2011", este ano

sob o tema "Paradigmas da fotografia contemporânea", coordenado por Júlio de Matos.

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certeza de ser o melhor, pois "movimento" poderá sugerir uma ideia de colectivo, ou de grupo

coerente e organizado, que não me parece que exista na chamada arte contemporânea.

2. As palavras de Ricardo Nicolau no seu livrinho “A Fotografia na Arte”, onde ele sistematiza uma

classificação na Fotografia. Escolho este livro apenas porque o conheço bem, por já ter reflectido

sobre ele no passado, nomeadamente na minha espécie de blog. Mas creio que a posição de

Ricardo Nicolau é coincidente com a posição de muita gente, com formação académica e

experiência de vida exterior à fotografia, mas que no presente, devido às transformações que

conhecemos no domínio das artes visuais, têm bastante influência na chamada fotografia

contemporânea.

3. A exposição ‘Cruel and Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph’ realizada na Tate

Modern em 2003 e curada por Emma Dexter e Thomas Weski e que foi usada como exemplo de

curadoria em fotografia na apresentação no IPF que suscitou este texto.

2.1. Arte Contemporânea

Comecemos então pelo conceito de arte contemporânea. É fundamental clarificar o conceito, pois

vemos muitas vezes este termo ser usado, inadvertidamente, com significados muito diferentes. À

partida o termo "contemporâneo" pode suscitar ambiguidades e equívocos. A interpretação

natural seria associar "contemporâneo" a "do nosso tempo", "inovador", "actual". Eu,

pessoalmente, preferiria esta interpretação literal, natural e clara para "contemporâneo" e

encontrar um termo diferente, que pudesse de facto designar sem ambiguidades aquilo que se

designa normalmente por arte contemporânea. Nesse caso arte contemporânea poderia englobar

de facto toda a arte do nosso tempo e essa arte contemporânea integraria todas as abordagens,

atitudes, movimentos, escolas, e entre elas essa espécie de não-arte a que, como veremos, se

chama arte contemporânea. Isto em vez de termos uma designação tão abrangente para um

objecto restrito que parece assim assumir-se como dono do nosso tempo. Ao adoptar o adjectivo

"contemporâneo" essa arte parece apresentar-se como a única legítima do nosso tempo. Mas não

é assim e temos de conviver com a realidade, em que "contemporâneo" é utilizado nos meios

artísticos com um significado que nada tem a ver com a interpretação literal desse adjectivo. E

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gostemos ou não dele, é este o termo utilizado para designar um movimento artístico muito

preciso, que aparece na segunda metade do século XX.

O que é afinal arte contemporânea? Estive ainda há pouco tempo numa conferência de Nathalie

Heinich na Faculdade de Letras sobre Arte e Reconhecimento (Art and Recognition), integrada no

Ciclo "Documente-se", organizado em parceria com Serralves. Nathalie Heinich é uma reputada

socióloga francesa do Centre National de Recherce Sociale, especializada em arte e em particular

na chamada arte contemporânea, como numerosos livros publicados ( ver informação em

http://fr.wikipedia.org/wiki/Nathalie_Heinich).

Figura 1 - Pour en finir avec la querelle de l'art comtemporain de Nathalie Heinich

À pergunta sobre o que é afinal "Arte Contemporânea", conceito que ela tinha usado muitas vezes

na sua conferência, a resposta de Nathalie foi clara. Segundo Nathalie Heinich podemos

identificar três grandes "genres" (termo por ela usado na resposta em inglês e que decidi manter)

muito distintos na história da arte:

• a arte clássica, que marcou toda a arte até meados dos século XIX e que tem como foco

principal a figuração e a representação do real

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• a arte moderna, que muda o foco para o mundo interior do artista

• e finalmente, desde meados de século XX, um terceiro "genre", chamado arte

contemporânea, que se caracteriza por colocar o foco na transgressão, na ruptura, do

conceito de arte anterior.

Mas curiosamente a chamada arte contemporânea, que deveria ser uma arte marginal, de

transgressão e de ruptura, é hoje claramente dominante nas principais instituições de poder

portuguesas e europeias (em todo o mundo?). É o "mainstream" artístico, o que constitui uma das

contradições aparentemente irresolúveis em que se debate.

Curiosamente também esta visão de "contemporâneo" parece ser exclusiva do que poderíamos

designar por artes plásticas ou artes visuais. Nunca vi, por exemplo, associar literatura

contemporânea a tal ideia de literatura de transgressão, ou não-literatura, ou a algo parecido!

Aceitando esta classificação que, pelo que tenho lido, coincide com a definição dos grandes

ideólogos/teóricos que escrevem e reflectem sobre este movimento, arte contemporânea terá de

ser uma arte que rompe com os estereótipos, com o conceito de belo, tal como a conhecemos até

à 1ª metade do século XX, uma espécie de anti-arte ou não-arte, que rompe com alguns ou todos

os pilares da arte não contemporânea (autoria, valor, beleza, originalidade, etc.) , que rompe com

a arte do desenho, da pintura, da escultura e portanto também da fotografia tal como as

conhecíamos. É um movimento que tem como motivador primeiro a "Fonte" de Duchamp, quando

Duchamp pegou num urinol, o colocou de pernas para o ar, o assinou como R. Mutt e o

apresentou numa exposição, colocando pela 1ª vez em cima da mesa a questão provocatória "Será

que isto, depois de deslocado, invertido e assinado por um artista pode ser Arte?. E se em vez de

estar aqui num museu estiver numa loja? Se é arte, quem é o autor? Pode ser vendido como obra

de arte? Quanto vale? O preço por que é vendido na loja de sanitários, pois qualquer pessoa pode

comprar um e fazer o mesmo? "

A partir da definição de Nathalie Heinich é fácil demonstrar que Walker Evans, Robert Frank ou

Diane Arbus não podem ser considerados como artistas contemporâneos. Não é por isso de

espantar (será?) que houvesse quem se indignasse quando o Nozolino foi mostrado em Serralves -

um Museu de Arte Contemporânea - por decisão de João Fernandes, argumentando, parece afinal

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que com razão, que Nozolino não é um fotógrafo contemporâneo: fotografa bem, imprime

melhor, fotografa de uma forma pessoal é certo, mas fotografa temas actuais e traz consigo afinal

toda a tradição da fotografia do século XX e não parece pôr em causa nenhum dos grandes

princípios da fotografia. Não creio que haja em nenhum dos seus projectos algo que possa ser

encarado como anti-fotografia, como uma ruptura à fotografia que conhecemos.

Se aceitarmos a definição de Nathalie Heinrich, que, apesar de ser sujeita a confusões, parece ser

a definição dos teóricos destas coisas, encontramos se calhar muito poucos fotógrafos, que

tenham verdadeiramente algum interesse, realmente contemporâneos ou com projectos

realmente contemporâneos. Uma das razões poderá ser: se levarmos à letra a definição é muito

difícil ser contemporâneo, e ao mesmo tempo diferente e interessante, pois as atitudes de ruptura

e transgressão puras rapidamente se esgotam. Como exemplos desta contemporaneidade poderia

referir, apenas a titulo de exemplo na Europa, Fontcuberta, de que gosto especialmente; em

Portugal talvez pudéssemos apontar alguns projectos do Daniel Blaufuks, de entre os fotógrafos

mais conhecidos. Claro que também existem um sem número de coisas, mais ou menos

desinteressantes - precisamente porque é muito difícil ser contemporâneo, diferente e

interessante - que apanhamos por exemplo em eventos tipo BES Revelação, ou outros

acontecimentos do género, motivadas em grande parte pela pressão para o contemporâneo, pois

aquilo que deveria ser por definição marginal é hoje poder. Na minha opinião este

constrangimento presente na fotografia é muito importante, pois vai condicionar as soluções para

o ultrapassar, para conseguirmos ter "fotografia contemporânea" e vai talvez permitir

compreender em parte o papel do curador e perceber parte da essência de projectos como ‘Cruel

and Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph’.

Se os trabalhos da maioria dos fotógrafos não pode ser considerado como arte contemporânea,

qual é a solução para lá chegarmos? Podemos identificar duas possibilidades, descritas nas duas

secções seguintes.

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2.2. A apropriação da fotografia pelos verdadeiros artistas

Para construir obras de arte contemporâneas, em vez da fotografia dos fotógrafos, vamos recorrer

a fotografia apropriada por artistas plásticos. Para eles parece ser evidente que os fotógrafos - os

outros - não conseguem ser contemporâneos. Estes artistas não fotografam, usam a fotografia,

apropriam-se dela para os seus projectos de arte contemporânea. Sentem necessidade de frisar a

cada momento que não são fotógrafos. Confusos? É de facto extraordinária a subtileza: fazem

fotografia, imprimem-na, mostram-na - não falo de situações em que se limitam a usar imagens

fotográficas conhecidas com várias origens e eventualmente a intervir sobre elas - mas têm

necessidade de afirmar sempre que não são fotógrafos.

Vejamos a classificação interessante de Ricardo Nicolau no seu livro “A Fotografia na Arte”, que

integra uma colecção de livros sobre arte contemporânea, produzida em colaboração com a

Fundação de Serralves. Para situar melhor os limites do seu trabalho, o autor começa por

dividir a fotografia em “outra fotografia”, “fotografia artística” e “fotografia como ferramenta

de trabalho”, que seria “confundida com determinadas práticas artísticas, nomeadamente as que

foram designadas como arte conceptual, pós-modernismo, apropriacionismo.” Ou seja, na

perspectiva do autor temos afinal:

• a “fotografia artística” - atributo traiçoeiro - a fotografia dos fotógrafos, que é olhada

com desdém, pois na opinião do autor “esquece que as aspirações da fotografia

artística à invenção formal, expressão individual e marca autoral são perpetuamente

circunscritas, senão determinadas, por decisões de manufactura e produção “

• a “outra fotografia”, que nem artística é e que parece corresponder - digo "parece"

porque o autor não a define de uma forma explicita - à fotografia que o cidadão comum

faz para registar as férias, os passeios, as festas

• a “fotografia ferramenta” ao serviço da arte – arte, leia-se artes plásticas ou talvez melhor

arte contemporânea

Para o autor, este livro pretende ser um trabalho apenas sobre aqueles que encontraram na

fotografia uma “forma adequada de responder a uma crise com que se confrontaram a partir dos

anos 70” e “fazer ranger dois dos paradigmas estéticos que até funcionavam sem atritos: autoria e

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originalidade”, ou seja este livro pretende ser sobre os tais artistas contemporâneos que usam

uma "fotografia ferramenta".

Figura 2 - Fotografia na Arte de Ricardo Nicolau

Depois de lermos isto percebemos melhor o significado do título do livro. "Fotografia na Arte".

Significa para Ricardo Nicolau a fotografia ao serviço da arte, das artes plásticas, ou se preferirmos,

da tal arte contemporânea.

A divisão fotógrafos versus artistas que se apropriam da fotografia é quanto a mim um disparate.

A fotografia é apenas mais um meio de expressão, que está ao dispor dos criadores, um meio com

características próprias e com limitações especificas, tal como o desenho ou a escrita. Pode ser

usada de infinitas maneiras pelos criadores. Quando um artista fotografa está a ser fotógrafo, tal

como quando escreve um poema está a ser poeta. Pode ser é um bom ou mau fotógrafo e um

bom ou mau poeta, classificação subjectiva, está claro. Outra coisa é ser legitimo afirmar que

quando temos a fotografia fazendo parte de um objecto instalacional, com outras formas de

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expressão, já não temos verdadeiramente um projecto fotográfico, mas um projecto artístico que

integra fotografia - ver por exemplo projectos do Fontcuberta. Um projecto artístico pode ser

"feito" de fotografia ou juntar fotografia com outras coisas, como por exemplo escrita, vídeo e

todo o tipo de objectos. E um criador pode usar fotografias de que é autor ou de outros autores

(neste caso poder-se-á falar de apropriação) ou mesmo, como acontece por exemplo nos

projectos interessantes de Joachim Schmid ou no ultimo projecto de Fontcuberta, usar fotografias

anónimas, encontradas na rua ou na Internet.

2.3. A curadoria

A segunda alternativa para se conseguir a tal contemporaneidade de que falamos passa por

projectos expositivos como "Cruel and Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph"

(ver informação em http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/cruelandtender), onde o curador

utiliza as fotografias como meros elementos discursivos, construindo um objecto novo, seu, que é

aquela exposição.

Vejamos, com um pouco mais de atenção, o papel que um curador hoje desempenha, no

panorama da chamadas arte e fotografia contemporâneas. Um curador, com a sua equipa, que é

muitas vezes numerosa, é normalmente responsável por um conjunto de tarefas organizativas e

de gestão: planeamento, produção, design, arquitectura de espaços, selecção de autores e até de

gestão financeira. Mas aquilo que realmente o distingue, e que lhe dá esse título de distinção, é o

crescente papel interventivo na criação de um objecto expositivo novo, que pode até ser

contraditório com algumas das obras de autores seleccionados. Neste modelo, o mais importante

é o que o curador quer dizer e não o discurso de cada autor. De facto, se pensarmos em todas as

tarefas associadas à organização e à gestão, elas sempre existiram, envolvendo maior ou menor

complexidade. Desde sempre foi necessário, como é evidente, planear, organizar, gerir, convidar

pessoas para escrever textos, coordenar edições, etc., desde a primeira vez em que se montou

uma exposição. Em último caso estas responsabilidades eram do autor, ou partilhadas entre o

autor e a instituição onde o evento teria lugar. A maioria de nós, que fez exposições, já terá

algumas vezes acumulado pelo menos parte destas tarefas.

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É o papel de autor principal, de aglutinador de um discurso, pretensamente novo, que distingue o

curador, uma personagem nova que aparece em meados do século XX e que tem adquirido um

relevo crescente. Claro que mutas vezes poderá não haver, ou nós não o conseguimos

percepcionar, um discurso verdadeiramente original ou muito menos um objecto discursivo

contemporâneo.

Este novo papel, na opinião de algumas pessoas teria como 1ª referência histórica o projecto

"When Attitude Becomes Form", curado por Harald Szeemen, em 1969, no ICA (Institute of

Contemporary Arts) em Londres.

Figura 3 - When Attitude Becomes Form no ICA de Londres - 1969

Mas em minha opinião este papel poderá ser identificado muito antes e curiosamente em eventos

fotográficos, talvez por isso esquecido pelos teóricos que provêem na sua maioria das artes

plásticas. Basta pensarmos no grandioso projecto "The Family of man", curado por Edward

Steichen no MOMA de Nova Iorque, muito antes de 1969, em 1955.

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Figura 4 - The Family of Man no MOMA de Nova Iorque - 1955

Outro exemplo poderia ser o projecto "Photographers's eye", curado por John Szarkowski, em

1967, mais uma vez no MOMA em Nova Iorque.

Figura 5 - The Photographer's Eye no MOMA de Nova Iorque - 1967

Este novo papel faz sentido? Sim, é inteiramente legítimo um autor criar um novo objecto

reutilizando, juntando, contrapondo objectos com origens diversas, de outros autores

eventualmente. Não é novo. Faz-se muitas vezes, por exemplo, na literatura. Utilizo a literatura

como objecto de comparação, pois para mim existe uma muito maior proximidade entre

fotografia e literatura, do que com outras artes.

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Foi o que fez, por exemplo, a Natália Correia, ao seleccionar e juntar poemas satíricos e poemas

eróticos portugueses e ao construir um objecto completamente novo que é a antologia de poesia

erótica e satírica da sua autoria: a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica da Natália

Correia. Vou dar agora um exemplo de como este tipo de exercício permite criar um objecto

inteiramente novo, usando uma experiência pessoal, que me perdoarão, mas é mais fácil falar das

nossas experiências. Se eu juntasse um conjunto de poemas medievais de D. Dinis e editasse um

livro, teria como é óbvio um livro de poesia medieval, que dificilmente poderia ser considerado

como um objecto literário contemporâneo, mas se fizer uma selecção de poemas portugueses

sobre a morte - onde integro um ou mais poemas de D. Dinis - para juntar a um projecto pessoal

fotográfico de reflexão sobre a morte e sobre o tabu da morte na sociedade actual, posso

construir um objecto contemporâneo, como espero ter conseguido com o livro e com o projecto

fotográfico "Hora Sua" que realizei em colaboração com Regina Guimarães. Da mesma maneira

August Sander, Walker Evans, Robert Frank ou Diane Arbus, que integram a exposição "Cruel and

Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph", não são fotógrafos contemporâneos, o

que poderá porventura ser contemporâneo é o novo objecto criado pelos curadores. Eles, de

facto, não são curadores, não curam a obra desses autores, mas autores, de um tipo novo é certo,

mas autores.

E aí reside parte do problema. Se é certo que existem ecos de que os curadores pretendem se

assumir como autores - ouvi dizer, de fonte fidedigna, que num congresso de curadores em

Madrid uma das conclusões foi "Os curadores são os artistas do século XXI" - a verdade é que o

que vemos usualmente são curadores-autores disfarçados, escondidos por detrás de uma máscara

de curadoria, como se tivessem a curar dos seus autores, quando estão a construir um objecto

seu, pelo qual deveriam assumir a responsabilidade total, em vez de entregar grande parte do

risco aos autores que, e não será por mera coincidência, são muitas vezes autores reconhecidos e

consagrados - isto é evidente em especial para a fotografia - como é o caso da exposição de que

falamos.

Como disse atrás nada há a opor a estes projectos, mas acho que devem ser assumidos com

clareza e transparência. Há que no entanto ter em conta um aspecto muito importante, pois pode

corresponder a um enorme risco com consequências perigosas e a uma distorção inaceitável. Se

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na literatura existem antologias ou ensaios críticos sobre autores literários, com toda a

legitimidade e alguns até de valor incontestável, o mais importante continua a ser a obra de CADA

AUTOR. Não há antologias de poesia sem livros de poesia. Ensaios de literatura sem romances. Ora

nas artes plásticas e na fotografia em particular assistimos a uma situação bizarra em que os

projectos de curador são cada vez mais o farol e os projectos de autor ou não se fazem ou, se se

fazem, parecem ter muito menos importância, sendo apenas barcos à procura do farol. Assistimos

até a situações - há muitas histórias que muita gente conta - de autores que se colocam ao serviço

dos curadores para criar apenas as peças para o objecto que os curadores querem mostrar. Por

isso a questão colocada pelo fotógrafo Júlio de Matos no fim do debate pode ter colocado o dedo

na ferida "Poderá a importância crescente e o relevo da curadoria diminuir o espaço e a liberdade

dos autores?" Eu diria que já diminuiu, em grande parte por culpa desses autores.

Tal como já escrevi noutro local é curioso observar como em Portugal o próprio termo utilizado

tem evoluído, parecendo acompanhar o aumento do poder deste personagem: comissário,

curador e agora curator.

3. Algumas notas finais sobre "Cruel and Tender - The Real in the Twentieth-

Century Photograph"

Primeira nota: o projecto "Cruel and Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph"

despertou-me tal curiosidade, por me parecer uma bela ilustração do que pode ser uma curadoria

em fotografia, que o mandei vir pela internet. Estou à espera.

Segunda nota: tive curiosidade em obter alguma informação sobre os dois curadores de "Cruel and

Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph". Comecemos por olhar para a lista dos

fotógrafos que integram a exposição:

• Thomas Ruff

• August Sander

• Bernd and Hilla Becher

• Thomas Struth

• Fazal Sheikh

• Michael Schmidt

• Robert Frank

• Stephen Shore

• Walker Evans

• Nicholas Nixon

• William Eggleston

• Philip-Lorca diCorcia

• Robert Adams

• Albert Renger-Patzsch

• Lee Friedlander

• Lewis Baltz

• Paul Graham

• Garry Winogrand

• Andreas Gursky

• Boris Mikhailov

• Diane Arbus

• Rineke Dijkstra

• Martin Parr

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Observamos de imediato que a exposição junta apenas os nomes de fotógrafos mais conhecidos

no mundo das vendas na arte contemporânea, onde sobressaem os fotógrafos do grupo de

Dusseldorf e alguns fotógrafos americanos - não há um único nome que não seja muito conhecido

e muito vendável - o que me fez elaborar algumas suspeitas. A estes nomes (superstars) junta

alguns clássicos que são referências usuais, por razões diversas, em particular por

consubstanciarem o conceito de arquivo, na arte contemporânea. Suspeitava, por tudo isto, de

gente vinda do mundo das artes plásticas. Conhecem aquela história verídica que um dos antigos

responsáveis do Foto España me relatou? Na década de 80 a direcção do evento marcou uma entrevista

com uma senhora que era responsável pela politica artística da empresa Telefónica. Nesse reunião, essa

senhora afirmou peremptoriamente que a Telefónica não estava interessada em apoiar o Foto España, pois

a fotografia era uma área sem interesse para a Fundação. E a reunião acabou. Alguns anos depois, poucos,

com a notoriedade e a importância que a fotografia adquiriu, nos eventos e nos mercados de arte, foi essa

senhora que coordenou as primeiras compras de fotografias da Fundación Tefefónica e, claro, comprou uns

Thomas Ruff por muitos milhões de pesetas. Lembram-se da peseta?

Tinham-me assegurado que os comissários de "Cruel and Tender - The Real in the Twentieth-

Century Photograph" tinham um "background" fotográfico. Fui ver. Encontrei. Creio que em

grande parte as minhas suspeitas eram pelo menos justificadas. Emma Dexter (ver em

http://en.wikipedia.org/wiki/Emma_Dexter), que pelo curriculum é claramente o mais importante

dos dois curadores, tem uma carreira académica e de curadoria anterior sempre ligada às Artes

Plásticas. É doutorada pelo Courtauld Institute of Art de Londres com uma tese com o título "The

Relationship between Painting and Sculpture in 17th Century Spain". É verdade que o segundo

curador, Thomas Weski, tem um passado ligado à fotografia (ver informação em

http://www.goethe.de/kue/bku/kur/kur/sz/wes/enindex.htm), mas verificamos facilmente a sua

ligação umbilical ao grupo de Dusseldorf. Aliás é curiosíssimo observar que Weski foi responsável

por uma outra exposição "How You Look At It. 20th Century Photography" no Sprengel Museum

em Hannover, uns anos antes, que reuniu quase ipsis verbis a mesma lista de fotógrafos. Seria a

mesma lista de fotografias? Em 2007 Thomas Weski curou uma exposição de Andreas Gursky. Uma

enorme surpresa: Gursky é um dos nomes mais proeminentes do grupo de Dusseldorf.

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Terceira nota: o título. Se o título poético "Cruel and Tender" só, suponho que inspirado na obra de

Walker Evans, pode ser compreensível, chamar a esta colecção "The Real in the Twentieth-Century

Photograph" parece-me no mínimo arrojado, para não dizer petulante. Não existe na lista dos fotógrafos

que participam no projecto um único fotojornalista, nem fotógrafos importantes próximos do

fotojornalismo, como Cartier-Bresson, que teriam de ser tidos em conta numa exposição sobre o

real na fotografia no século XX. Na exposição temos praticamente apenas fotógrafos alemães, e de

uma escola especifica, e alguns americanos. Terá sido Weski o responsável por esta ousadia

panfletária? Weski pode ter sido denunciado ao repetir parte do titulo da exposição de 2000. Para

reutilizar trabalho, por uma opção ecológica?

©Renato Roque, Fevereiro de 2011