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Fosso salarial entre mulheres e homens cresce com a idade Estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra que seja qual for a profissão as mulheres ganham sempre menos do que os homens p2as

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Fosso salarialentre mulherese homens crescecom a idadeEstudo da FundaçãoFrancisco Manuel dosSantos mostra que seja qualfor a profissão as mulheresganham sempre menos do

que os homens p2as

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Comobrincar combonecas

agravao riscode pobrezana velhice

Mais escolarizadas do que os homens,as portuguesas estão em maioria naengenharia, na medicina,na magistratura. Mas, seja qual fora profissão, ganham sempre menos.A desigualdade de género, que chegaa atingir os 600 euros, inculca-seno jardim-de-infância e redunda depoisnuma maior exposição à pobreza

GUALDADE

DE GÉNERO

Natãlia Faria

Como

é que o facto de nosjardins-de-infância as meni-nas brincarem com cozinhas

e os meninos com foguetõescontribui para a persistênciade desigualdades penaliza-

doras para as mulheres e ajuda a queestas cheguem à velhice com refor-mas mais baixas e mais expostas aorisco de pobreza? A resposta está noestudo Igualdade de Género ao lon-

go da Vida, da Fundação FranciscoManuel dos Santos, que é apresenta-do hoje e que conclui, por exemplo,que, logo à chegada ao mercado de

trabalho, as mulheres entram a ga-nhar menos e são mais frequente-mente contratadas em regimes pre-cários, apesar de se apresentaremmais escolarizadas e com currículosmais completos.

"As diferenças salariais são brutaise absolutamente chocantes. Nas pro-fissões menos qualificadas, chegama ultrapassar os 200 euros, o que é

muitíssimo, porque estamos peran-te salários miseravelmente baixos",adiantou Anália Torres, socióloga ecoordenadora do estudo que apontaainda disparidades salariais a rondaros 600 euros entre os representantesdo poder legislativo e de órgãos exe-cutivos. À discriminação feminina notrabalho pago - as mulheres jovenstêm um salário médio/hora de 5,8euros, contra os 6,1 euros auferidos

por eles - soma-se a sobrecarga nastarefas do "cuidar", da casa e dos fi-lhos, às quais as mulheres dedicamo dobro do tempo.

A discriminação e a sobrecarga fe-minina nos cuidados com os filhose com a casa não é novidade, numpaís que remunerou sempre mais a

função produtiva do que a reprodu-tiva. O que este estudo faz é mostrar,quantificando, que as desigualdades

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se impõem logo no início da idadeadulta, entre os 15 e os 29 anos deidade. Aliás, este estudo distingue-se dos restantes porque, ao longode mais de 400 páginas, sete inves-

tigadores mediram as desigualdadesno arco temporal 2000-2016, numaperspectiva comparada com outrospaíses europeus, em três diferentesfases da vida: até aos 29 anos; entreos 30 e os 49 anos de idade, altura em

que homens e mulheres (mas mais as

mulheres) correm entre o trabalho

pago e os cuidados da casa e dos fi-lhos, por isso chamada "rush houroflife"; e, por último, na fase tardia daidade activa, entre os 50 e os 65 anos.

Apesar das gigantescas conquistasdo século XX - em que, por via de

inovações como a pílula contracep-tiva, mas também de factores comoa emigração masculina e mesmo das

guerras que empurraram as mulhe-res para fora do reduto domésticoe permitiram "a massificação dessa

possibilidade de homens e mulhe-res terem vidas mais parecidas", con-forme sublinha Anália Torres -, as

desigualdades degenero persistem:"Quando comparamos os salários, as

diferenças são brutais." Na rush hour

oflife, as disparidades salariais agudi-zam-se: elas ganham em média 10,3euros/hora e os homens 11,4 euros. E,a partir dos 60 anos, ainda mais: elas

ganham em média 8,93 euros/horacontra os 12,88/ hora auferidos peloshomens. Logo, prossegue a investi-

gadora, "é bom que reconheçamosque o problema existe e que não é só

na Arábia Saudita".

Engenheira, mas mãeA diferença é que as desigualdades

se tornaram mais subtis, reprodu-zindo-se num pano de fundo emque subjaz uma "desvalorizaçãosimbólica e material daquilo que as

mulheres fazem e produzem e das

suas capacidades, especialmentena dimensão produtiva e no espa-ço público". E, mais do que isso,tendem a agravar-se ao longo da vi-da. "Uma mulher entra no mercadode trabalho logo em desvantagem,chega à fase da 'rush hour', ganhamenos e continua a ser duplamentepenalizada com o dobro do trabalhonão pago, e depois, na fase tardia,abandona o mercado de trabalho,não porque ficou desempregada ouchegou ao fim da carreira, mas por-que tem de tomar conta dos pais oudos netos. Descontou menos, por-que ganhou menos, e acaba por teruma reforma muito baixa também,

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porque teve uma carreira contri-butiva mais curta. Logo, a proba-bilidade de as mulheres caírem napobreza - e, mesmo que não caiam,de terem um ganho suficiente paraterem uma vida com dignidade - émuito maior."

E onde é que tudo isto começa? Nojardim-de-infância. "No pré-escolar,no recreio e na sala de aula, meninose meninas vão ajustando o seu com-portamento a uma visão normativade género que acentua diferenças e

assimetrias entre géneros", lê-se noestudo. "As pessoas tendem a achar

que isso de haver brinquedos parameninas e brinquedos para meninosé uma questão menor, mas não: qual-quer criança vai querer criar um sen-tido de pertença e adequar-se àqui-lo que acham que esperam dela, aassumir o seu papel em função do

estereótipo. E se a mensagem quelhe passam vai no sentido de que onatural é que as meninas brinquem

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com cozinhas e com bonecas, ela in-terioriza e incorpora, consciente ouinconscientemente, a ideia de que é

natural serem elas a ocupar-se dastarefas domésticas, mesmo que as-

pirem a ser engenheiras ou físicas",explica Anália Torres.

Não surpreenderá tanto assim a

constatação de que, entre os 15 e os

29 anos, Portugal bata, juntamentecom Espanha, o recorde da assime-tria entre o tempo que eles e elasinvestem no trabalho do cuidar -da casa e dos filhos: elas dedicamem média 32 horas por semana à

casa e à família e eles apenas 17. E

esta aculturação adquirida na infân-cia revela-se também no momentode contratação para um emprego."Em circunstâncias de igualdadede currículo, homens e mulherescontratam preferencialmente ho-mens. Apesar de elas chegarem ao

mercado de trabalho mais escola-rizadas e mais preparadas do queeles, no momento da contratação amulher é vista como potencialmentemenos disponível para o trabalho.Mesmo que não haja filhos, a mulherserá potencialmente mãe. É comose levasse uma marca na testa, en-quanto o homem, mesmo tendo fa-

mília, é encarado como alguém mais

disponível, porque tem um back-

ground de apoio, quase sempre umaparceira, para lhe fazer o trabalhodoméstico."

Mulheres correm maisIsto ocorre, apesar de a mobilida-de educacional ascendente ser emPortugal "fantástica", sobretudo paraelas. "Somos dos países da Europacom mais mulheres cientistas e emáreas como informática e matemáti-

ca. E a maioria dos médicos não são

médicos, são médicas. A maioria dos

juizes não são homens, são mulheres.Ainda assim, vive-se essa contradiçãobrutal entre o que é o desempenhoobjectivo das mulheres no mercadode trabalho e uma certa inércia acer-ca da imagem do que é uma mulher",precisa a coordenadora da Unidade

de Sociologia do Instituto Su-

perior de Ciências Sociais ePolíticas da Universidadede Lisboa. E volta ao temada disparidade salarial:"É admissível que uma

engenheira, por exemplo,ganhe menos 600 euros

do que um engenheiro?Não é."

No escalão etárioseguinte, as portu-guesas com filhosdestacam-se poruma taxa de empre-gabilidade acima damédia: 80%, contra

os 70% da União Euro-

peia a 27. E, ainda assim,elas continuam a dedicar18 horas por semana a

cuidar da casa, contra as oito deles.

Quanto aos filhos, a disparidadeatenua-se ligeiramente: eles gastamdez e elas 16. Na prática, "elas pas-sam a vida a correr entre o trabalhoe a casa". "E como a mulher ganhaefectivamente menos do que o ho-mem, acaba também por achar nor-mal assumir mais responsabilidadesem relação à casa e aos filhos. Se ocasal se dá bem, menos mal. Agora,se daí a alguns anos se separam, ela- que ficou agarrada e não foi pro-movida profissionalmente - fica pre-judicada, enquanto ele está mais àvontade em termos de recursos."

Esta divisão de papéis não é impe-rativo biológico nem algo a que o paísesteja condenado. Como inverter ocenário? "Valorizando a dimensão do

cuidar", opina Anália Torres. "Mes-mo em países como Portugal, que se

destaca no contexto europeu pelaampla cobertura dos equipamentosde apoio à segunda infância, o au-mento da participação masculina nocuidar, da casa e família, tem aindainvestimento social e político a serfeito com o objectivo de promover

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a igualdade de género", sugere oestudo. Na Suécia, por exemplo, a

educação sexual chegou às escolas

em 1958. "Isto ajuda a perceber porque é que os suecos têm indicadoresde igualdade melhores do que os nos-

sos", reforça a socióloga.

Empurradas para os netosVoltando ao caso português, quan-do o olhar dos investigadores sefoca no grupo dos 50 aos 65 anos,o que sobressai é que as mulheresabandonam mais precocemente omercado de trabalho. "Quase umquinto das mulheres está nesta faseda vida principalmente dedicada às

responsabilidades familiares", preci-

sam. Quando se poderia esperar que,emancipados os filhos, as mulheres

poderiam reinvestir nos seus projec-tos profissionais, a realidade puxa-aspara cuidar dos ascendentes idosos

ou dos netos, o que desemboca nu-ma taxa de emprego entre os 50 e os

64 anos que não vai além dos 53,2%(64,4%, no caso dos homens).

É certo que "a pressão para sair domercado de trabalho por exigênciasfamiliares "não é sentida por todasas mulheres da mesma forma". As

que passaram pela universidade ten-dem a manter-se nos seus empregosdurante mais tempo. Porquê? "São

situações que podem correspondera salários mais elevados e à externali-

zação da prestação de cuidados."Tudo conjugado, no fim da idade

activa o risco de pobreza "é maispenalizador para elas", apesar dasmelhorias dos últimos anos: em 2005o risco de pobreza das mulheres por-tuguesas nesta fase da vida era de

30,5%, em 2015 esse valor baixou pa-ra os 26%. E, tal como no jardim-de-infância, são elas quem mais se de-dica à cozinha e às tarefas do cuidar.Quando se trata da família, por exem-

plo, elas despendem nisso 22 horas

por semana e eles seis. São 16 horasde diferença. E um recorde [email protected]

A desigualdade de género atravessa gerações

Rita Marques CostaeNatãlia FariaNum estudo publicadohoje, olha-se para aigualdade de génerode dois pontos de vista:

geracional e territorial

No trabalho sobre o tema Igualdadede Género ao longo da Vida: Portugalno Contexto Europeu, a sociólogaAnália Torres (coordenadora) e ou-tros seis investigadores avaliam as

desigualdades de género a partir deuma óptica geracional e territorial. O

estudo, apresentado hoje no ISCSP- Instituto Superior de Ciências So-ciais e Políticas, feito para a Funda-

ção Francisco Manuel dos Santosatravessa temas como a educação,o trabalho, a criminalidade, as tare-fas domésticas e a saúde. Estas são

algumas das conclusões.

Educação

Para grupos etários diferentes, o nívelde escolaridade também é distinto.Mais de dois terços (72,5%) dos ho-mens portugueses com idades entre

os 50 e os 64 anos só completaram obásico. Para as mulheres na fase tar-dia da vida esse número é ainda me-nor (70,1%). Valores que correspon-dem a mais do dobro da média euro-peia. No caso dos jovem, a tendênciaé para uma maior escolarização e jáhá mais mulheres portuguesas entreos 20 e os 24 anos (23,5%) com cursos

superiores do que homens da mes-ma idade (13,9%). A participação fe-minina em cursos tradicionalmentemasculinizados situa as jovens por-

tuguesas muito acima da média das

europeias.

Escolaridade e desemprego

0 sucesso académico das mulheres

portuguesas não lhes garante me-lhores condições no mercado detrabalho - nem em termos de salá-

rios, nem nas tipologias de contratos,nem no que diz respeito a uma taxa

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de desemprego menor. Ainda assim,a disparidade na taxa de empregoentre homens e mulheres diminuicom o aumento da escolaridade. Nosúltimos anos, a disparidade nos nú-meros do desemprego - a desfavordas mulheres - tem vindo a diminuir.Mas não porque há mais oportunida-des para as trabalhadoras. Deve-seantes a uma perda de emprego maisacentuada entre os homens.

Só na fase tardia da vida é que as

mulheres sofrem menos com o de-

semprego. Quanto à precariedadelaborai, são as mulheres e os homens

jovens que são mais afectados - a fai-

xa etária dos 15 aos 29 regista mais de60% de contratações não permanen-tes. As mulheres são mais afectadasdo que os homens.

Disparidade salarial

Seja qual for a categoria profissional,os homens ganham sempre maisdo que as mulheres. As diferenças

chegam a ultrapassar os 900 euros,quando se fala nos salários dos re-presentantes de órgãos legislativos,executivos, dirigentes e directores.Para os trabalhadores qualificadosda indústria, construção e artíficesa diferença ultrapassa os 200 euros."Estas diferenças exprimem fortesassimetrias de género que de formatransversal penalizam as mulheresem todas as categorias profissionais",lê-se no estudo.

Saúde e causas de morte

A morte revela um efeito de género.Aos 25 anos, num cenário em quenascem mais rapazes, a populaçãofeminina ultrapassa a masculina.Isto porque eles "matam-se mais",por via do suicídio, mas sobretudoda exposição a comportamentos derisco que levam a acidentes, quedas,agressões, afogamentos. Tudo soma-do, as causas externas pesam 60%para eles e apenas 40% para elas. É

"uma exposição ao risco e à violência

que está fortemente associada a umavisão da masculinidade como formade afirmação de poder e dominação",conclui o estudo. Entre os 30 e os 49anos, os acidentes, nomeadamenterodoviários, matam mais homens, a

par dos suicídios. Eles resistem maisa tratar-se em situação de doençamental e, por outro lado, recorrema métodos mais mortais e agressivos.Na fase tardia, elas, mais familiariza-das com a esfera do cuidar, recorremmais ao médico, mas têm mais doen-

ças crónicas e psiquiátricas, perturba-ções de sono e sentimentos depressi-vos, nomeadamente porque, depoisde uma vida dedicada aos filhos, têmde se adaptar ao "ninho vazio". Os

homens, "obedecendo a um modelode masculinidade que lhes dificultaa revelação de fragilidades", cuidammenos de si.

Valores

A geração entre os 15 e os 29 anos é

"mais materialista do que as anterio-res", ou seja, valoriza "relativamentemais o poder e o dinheiro", segundoo estudo. "Foi uma surpresa", subli-nha Anália Torres. Os contextos em

que os jovens vivem, de "maior ins-tabilidade económica e no trabalhoe de escassez de bens", podem expli-

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car esta tendência para que, compa-rativamente com os mais velhos, os

jovens se apresentem menos univer-salistas, isto é, menos propensos adefender valores como a importânciada igualdade de tratamento e opor-tunidades, da necessidade de apoiare cuidar do bem-estar das pessoas.No escalão etário seguinte, a família

surge como a principal prioridade

e homens e mulheres unem-se nadefesa de iguais responsabilidadesnos cuidados às crianças e na vidadoméstica, numa reivindicação, que,dada a assimetria verificada no traba-lho não pago, parece não sair do pla-no discursivo. Na fase tardia da vidaactiva, ganha terreno a ideia de que

devem ser elas quem deve assegurarem primeiro lugar as responsabilida-des familiares, mesmo que tal impli-que sacrificar o trabalho pago.

Família e condições de vida

Na juventude, as raparigas portu-guesas autonomizam-se e saem decasa dos pais mais cedo do que eles.

Mas, no cômputo dos países, os jo-vens portugueses deixam-se ficar emcasa dos pais até mais tarde, numadiamento que os autores do estu-do relacionam com os salários baixos

que não lhes permitem custear umacasa. "Há a ideia de que os nórdicossaem mais cedo da casa dos pais por-que não são familiaristas e de que

no Sul são muito agarrados à família,mas a correlação mais importanteque encontrámos é que os jovensportugueses, mesmo quando tra-balham, ganham salários tão baixos

que não se conseguem autonomizar.E nisso aproximamo-nos dos paísesdo Leste", contextualiza Anália Tor-res. Adianta duas explicações para ofacto de as jovens portuguesas tende-rem a sair mais cedo do que eles de

casa dos pais: "São mais autónomasdo ponto de vista de gerir uma casae também é verdade que entram emconjugalidade mais cedo."

[email protected]@publico.pt

O testemunho de três mulheres em três fases diferentes da vida

Beatriz Reis,23 anos"Os rapazestransparecemmais confiança"

Em

criança, Beatriz Reisrecorda que lhe davambonecas às quais nemligava. Com cinco anos,

a mãe inscreveu-a no ballet"por ser menina". Uns anosmais tarde ao irmão foi-lhedado a escolher entre o ténise o futebol. Há "diferença detratamento", garante Beatriz.Aos 18 anos, a jovem saiu de

Beja, onde nasceu e cresceu,para estudar Comunicação emLisboa. Agora, com 23 anose com um mestrado quasecompleto integra uma geraçãode mulheres mais escolarizadado que a média europeia edo que os homens da mesmaidade, mas que, mesmo assim,tem condições de trabalhomais precárias e sofre mais comdesemprego e salários baixos.

"Passei a minha infânciae adolescência a ouvir falardo potencial das raparigas[na escola]", diz Beatriz. Mas

depois "ganham menos do

que os rapazes, são menosrespeitadas e têm menoscondições de trabalho". "Há

aqui uma discrepância que nãose percebe", desabafa.

Apesar de escolarizadas,e de escolherem cada vezmais cursos que sao maistradicionalmente associadosao sexo masculino, a taxa demulheres em áreas que seidentificam mais com o femininoainda é superior à médiaeuropeia. Beatriz escolheuComunicação, mas acreditaque não foi influenciada pela"questão de género". Ainda

assim, reconhece que há

raparigas que podem desistirde determinadas áreas porserem mais associadas coma presença masculina. Só poresta altura Beatriz começa a

planeara entrada no mercadode trabalho e diz que "os rapazestransparecem mais confiança"em entrevistas, por exemplo. Nofuturo, a jovem não se imaginaa abdicar da carreira para ficarem casa a cuidar dos filhos. "Atéé saudável para as crianças vera mãe a trabalhar e a fazer o

que gosta", defende. O assédioé uma das preocupações deBeatriz. Sair à noite, por exemplo,"é um pesadelo". "Já sabes quevais passar a noite a dizer não",lamenta. A situação só mudade figura se estiver um rapazpor perto, nota Beatriz. "É umaquestão de propriedade." RitaMarques Costa

Maria Sá, 39 anos"Há um preconceitorelativamenteao papel da mãe"

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Com

39 anos, Maria Sá estáem plena rush hour (doinglês hora de ponta) dasua vida. Trabalha como

gestora comercial em Lisboa,tem três filhos e o marido passalongas temporadas fora, peloque todas as tarefas familiaresacabam por ficar a seu cargo.Mesmo que assim não fosse,"há certas exigências que estãoestipuladas socialmente e nemsequer questionamos por que é

que sou eu, mulher, mãe, que vouàs reuniões de pais, dou a cara na

escola, vou lá buscá-los e quandoestão doentes sou eu que fico emcasa com eles", diz Maria. "Existeum preconceito relativamenteao papel da mãe nesse aspecto."Quando o marido está presente,então faz questão de equilibrar a

balança das tarefas e tirar algumtempo para si.

Maria licenciou-se emReabilitação e Reinserção Socialpelo que faz parte do grupo demulheres portuguesas na suafaixa etária — entre os 25 e os49 anos — que têm um cursosuperior (35%). Também seintegra no grupo das mulherescom formação superior que têmtrês ou mais filhos (são menos de5% em Portugal). "[No trabalho,]nunca senti que não me fossedado um desafio por ser mulher",nota Maria. "Eu própria digo à

minha chefia que neste momentonão posso assumir cargos demaior responsabilidade, porquetenho de dividir as minhas tarefasentre a casa e os meus filhos e otrabalho." E reconhece que, comotem três filhos, a disponibilidadeserá menor do que os colegas

"que não têm filhos ou não têmuma vida familiar que lhes exigetanto tempo". Para conciliar otrabalho com a vida familiar, MariaSá sublinha a importância dascreches. "Não me posso dar aoluxo de ficar em casa com o bebé,porque não consigo sobrevivermonetariamente", nota. "É

sempre uma grande dificuldade[encontrar uma creche]." Outroproblema é o número de dias deférias das crianças. As avós aindasão uma opção para ajudar a

cuidar das crianças, mas "hojeem dia até as avós trabalham".Rita Marques Costa

Maria de FátimaMonteiro, 60 anos"Abdicam do seubem-estar, atémonetário, paradarem apoio aosnetos"

Quando

Maria de FátimaMonteiro nasceu, em 1958,as mulheres portuguesaseram educadas para a

conjugalidade e para seremmães. E às que insistiam em sairdo reduto doméstico, como asenfermeiras, estava vedado ocasamento. "Foi assim até 1963.Encarava-se a profissão comouma espécie de missão e a

história da enfermagem tambémnos mostra que essa funçãoestava, no início, muito ligada àsfreiras", recorda esta enfermeira,com 60 anos de vida, os últimosdez dos quais a trabalhar comodirigente do Sindicato dosEnfermeiros Portugueses (SEP).

Tantas décadas volvidas, a

enfermagem continua a ser umaprofissão predominantementefeminina, herdeira ainda,portanto, do acometimentoàs mulheres da função do"cuidar" - fosse de doentes,fosse da casa ou dos filhos. E

as enfermeiras continuam - à

semelhança da imensa maioria

de mulheres - sobrecarregadascom a necessidade de teremde articular horários laboraisinconstantes e por turnos comos cuidados à casa e à família."Quantas vezes, no final deuma reunião, vejo as mulherescheias de pressa, porque têmde ir a correr para casa fazero jantar, dar banho aos filhosou preparar-lhes a lancheirae a roupa para o dia seguinte.E não vejo isso nos meuscolegas homens", observaFátima, encontrando aqui a

principal explicação para a tãoreduzida participação femininanos "espaços de intervençãocívica".

Quando escolheu serenfermeira, não se sentiucondicionada por ser mulher.Antes sim. "Jogava vólei - eraatleta federada - e, quandotinha de ir jogar para fora, a

postura do meu pai e da minhamãe era completamentediferente da que tinham paracom o meu irmão." Do mesmomodo, os irmãos rapazes nãoeram como ela e as irmãs,chamados a pôr a mesa, a terde ir à cave buscar batatas ou a

terem de limpar os batentes das

portas. Isso pesou tanto que,ainda hoje, acontece Fátimaestar na cozinha e virar-separa o marido com tiradas dogénero: "Sai daqui que o lugarna cozinha é das mulheres."

Quando olha à volta, numaaltura em que os homens

começam a chegar à profissão,vê-os passar automaticamenteà frente no momento da

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contratação, sobretudo nosector privado. "A enfermeirapode ser jovem, mashá-dequerer constituir família, podeter uma gravidez de risco..."

E, entre os mais velhos, vê asenfermeiras pressionadas parase reformarem mais cedo paracuidar dos netos. "Abdicam doseu bem-estar, até monetário,para darem apoio aos netos. E

são, mais uma vez, as mulheres

que fazem isso: não oshomens." Natália Faria