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COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO N.º 1/2016 ADMINISTRATIVO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015 (PROCESSO N.º 985/14 – PLENO DA 1.ª SECÇÃO; DR, 1.ª SÉRIE, N.º 25, DE 5 DE FEVEREIRO DE 2016); UNIFORMIZA- ÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS DE ADOPÇÃO DE PROVIDÊNCIAS CAUTELARES (PROCESSO ADMINISTRATIVO) Ricardo Branco, Consultor, Abreu Advogados I. O vertente aresto uniformiza a jurisprudência Administrativa sobre critérios de adoção das providências cautelares, em sentido de acordo com o qual “a mera possibilidade de uma determinada norma vir a ser considerada inconstitucional no processo principal não é ne- cessariamente de molde a fundar o preenchimento do requisito do fumus boni juris, na sua formulação negativa, tal como consta da alínea b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA [, na sua versão anterior à reforma aprovada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro (Código nesta pretérita redação doravante designado “CPTA de 2002/2004)”, formulação essa en- tretanto revogada pelo referido Decreto-Lei n.º 214-G/2015 (na versão do Código vigente, a que, doravante, se chamará CPTA de 2015) e em cujos termos “as providências cautelares são adotadas (...) Quando, estando em causa a adoção de uma providência conservatória, (...) não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito...”. A primeira precisão a fazer por ocasião da anotação deste importante Acórdão de Uni- formização de Jurisprudência é, justamente, a de que se trata de aresto resolutório de dissenso sobre a interpretação de uma norma entretanto revogada, o que sucede, ainda assim e como é natural, com toda a propriedade, atentos o princípio tempus regit actus e a normação sobre a aplicação da reforma de 2015 do CPTA constante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015. É de resto o referido princípio “tempus regit actus” a justificar a referência, através do texto de praticamente toda a anotação, quando se queira esclarecer as bases normativas da fundamentação de Direito do Acórdão, às normas do CPTA na sua vigência anterior à que lhe foi determinada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015. O conteúdo do aresto em comentário, e portanto também, o da presente anotação, revestem-se, todavia, de capital importância para a interpretação, outrossim, da norma que revogou substitutivamente aquela em torno da qual se formou o dissenso jurisprudencial a que a doutrina uniformizadora em comentário pretendeu pôr termo. Daí a oportunidade quer desta anotação, quer de nela se inserir uma rubrica final sobre o relevo interpretativo da doutrina uniformizadora para a tomada em conta da norma que, a partir de 2015, revogou substituti- vamente a geradora do dissenso jurisprudencial pretexto e carecido de uniformização. (continuação na página seguinte) Fórum Jurídico www.abreuadvogados.com 1/16 Fevereiro | 2016 INSTITUTO DO CONHECIMENTO AB A Livraria Almedina e o Instituto do Conhecimento da Abreu Advogados celebraram em 2012 um protocolo de colaboração para as áreas editorial e de formação. Esta cooperação visa a divulgação periódica de artigos breves e anotações nas plataformas electrónicas e digitais da Livraria Almedina. Para aceder, clique aqui.

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COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO N.º 1/2016 ADMINISTRATIVO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015 (PROCESSO N.º 985/14 – PLENO DA 1.ª SECÇÃO; DR, 1.ª SÉRIE, N.º 25, DE 5 DE FEVEREIRO DE 2016); UNIFORMIZA-ÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS DE ADOPÇÃO DE PROVIDÊNCIAS CAUTELARES (PROCESSO ADMINISTRATIVO)

Ricardo Branco, Consultor, Abreu Advogados

I. O vertente aresto uniformiza a jurisprudência Administrativa sobre critérios de adoção das providências cautelares, em sentido de acordo com o qual “a mera possibilidade de uma determinada norma vir a ser considerada inconstitucional no processo principal não é ne-cessariamente de molde a fundar o preenchimento do requisito do fumus boni juris, na sua formulação negativa, tal como consta da alínea b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA [, na sua versão anterior à reforma aprovada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro (Código nesta pretérita redação doravante designado “CPTA de 2002/2004)”, formulação essa en-tretanto revogada pelo referido Decreto-Lei n.º 214-G/2015 (na versão do Código vigente, a que, doravante, se chamará CPTA de 2015) e em cujos termos “as providências cautelares são adotadas (...) Quando, estando em causa a adoção de uma providência conservatória, (...) não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito...”. A primeira precisão a fazer por ocasião da anotação deste importante Acórdão de Uni-formização de Jurisprudência é, justamente, a de que se trata de aresto resolutório de dissenso sobre a interpretação de uma norma entretanto revogada, o que sucede, ainda assim e como é natural, com toda a propriedade, atentos o princípio tempus regit actus e a normação sobre a aplicação da reforma de 2015 do CPTA constante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015. É de resto o referido princípio “tempus regit actus” a justificar a referência, através do texto de praticamente toda a anotação, quando se queira esclarecer as bases normativas da fundamentação de Direito do Acórdão, às normas do CPTA na sua vigência anterior à que lhe foi determinada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015.O conteúdo do aresto em comentário, e portanto também, o da presente anotação, revestem-se, todavia, de capital importância para a interpretação, outrossim, da norma que revogou substitutivamente aquela em torno da qual se formou o dissenso jurisprudencial a que a doutrina uniformizadora em comentário pretendeu pôr termo. Daí a oportunidade quer desta anotação, quer de nela se inserir uma rubrica final sobre o relevo interpretativo da doutrina uniformizadora para a tomada em conta da norma que, a partir de 2015, revogou substituti-vamente a geradora do dissenso jurisprudencial pretexto e carecido de uniformização.

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Fevereiro | 2016INSTITUTO DO CONHECIMENTO AB

A Livraria Almedina e o Instituto do Conhecimento da Abreu Advogados celebraram em 2012 um protocolo de colaboração para as áreas editorial e de formação. Esta cooperação visa a divulgação periódica de artigos breves e anotações nas plataformas electrónicas e digitais da Livraria Almedina. Para aceder, clique aqui.

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COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO N.º 1/2016 ADMINIS-TRATIVO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015 (PROCESSO N.º 985/14 – PLENO DA 1.ª SECÇÃO; DR, 1.ª SÉRIE, N.º 25, DE 5 DE FEVEREIRO DE 2016); UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS DE ADOPÇÃO DE PROVIDÊNCIAS CAUTELARES (PROCESSO ADMINISTRATIVO) (CONTINUAÇÃO)

II. A ocasião em que surge o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em comentário é descritível nos termos que seguem. Dois Tribunais Administrativos e Fiscais decretaram, em primeira instância, em dois processos dis-tintos, a suspensão da eficácia de dois atos administrativos similares entre si, de suspensão de funções e desarmamento de dois Agentes da P.S.P., ambos acusados em processos-crime no decurso dos quais aguardavam julgamento, com perda de um sexto da remuneração-base, e todos efeitos determinados por referência ao disposto no n.º 1 do artigo 38.º do Regulamento de Disciplina da PSP, de harmonia com o qual “o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão do exercício de funções e a perda de 1/6 do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória”. Genericamente, os Tribunais Administrativos e Fiscais que decretaram as decisões cautelares de suspensão da eficácia dos atos do Diretor Nacional da PSP há pouco dadas como objeto dos processos também em referência, fundamentam esse decretamento nas premissas de acordo com as quais, pe-rante as providências requeridas, de feição assumidamente conservatória, à fundamentação de ambos julgamentos, estribados na análise da verificação dos pressupostos de decretamento das mesmas, repousa no entendimento, quanto ao fumus non malus iuris, ínsito na segunda parte da alínea b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA de 2002/2004 - aplicável por não se verificarem os pressupostos da alínea a) do mesmo artigo - segundo o qual não é manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular no processo principal, na medida em que “...à partida e sem prejuízo de posição eventualmente diversa, em sede da acção principal, considera[m] haver alguma probabilidade (algum fumus boni iuris) de se reconhecer a sua ofensa, pelo artigo 38-1, do ED/PSP/90, na medida em que determina um efeito automático, tirado da circunstância de ser proferida decisão de pronúncia por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.”. A premissa consistente em afirmar que se trata, in casu, de uma providência cautelar conservatória, é, apesar da ausência da sua discussão nesta jurisprudência, mais do que óbvia e acertada, pois: (i) estabelecendo-se, no CPTA de 2002/2004 – tal como no de 2015 – que “ O princípio da tutela jurisdi-cional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a as-segurar o efeito útil da decisão” (n.º 1 do artigo 2.º, replicado especificamente, quanto às providências cautelares, no n.º 1 do artigo 112.º);(ii) e, ainda que sem se incluir no Código uma definição legal de providência cautelar conservatória, dispondo-se, na sequência da previsão segundo a qual “Quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.” (n.º 1), que “as providências cautelares a adotar podem consistir designadamente na (...) Suspensão da eficácia de um ato administrativo...” (n.º 2);

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(iii) a suspensão de atos administrativos dos quais resultam modificações significativas de agravamento das esferas jurídicas dos seus destinatários, enquanto agentes da PSP, suspendendo-lhes as atividades que antes tinham e baixando-lhes as remunerações, é, naturalmente, a suspensão da eficácia das al-terações que ambos agentes sofreram, destinada a repô-los, enquanto aguardassem a decisão final da ação de anulação do ato administrativo de afastamento das funções e corte do vencimento, na situação em que se encontravam antes da imposição dessa alteração desfavorável nas suas esferas jurídicas; (iv) pelo que se trata de providência cautelar conservatória, normalmente definida como toda aquela por meio de cujo decretamento “... o interessado pretende manter ou conservar um direito em perigo, evitando que ele seja prejudicado por medidas que venham a ser adotadas [, da qual constitui exemplo mais acabado] a situação paradigmática do interessado que, sofrendo os efeitos de um acto adminis-trativo de conteúdo positivo, reage contra esse ato [, que é como quem diz, reage contra uma modifi-cação introduzida na ordem jurídica por um ato de conteúdo positivo...”,] através da sua impugnação [e dispõe enquanto] providência cautelar a adoptar [d]a providência conservatória por excelência [, que é] a suspensão da eficácia do ato administrativo, prevista no artigo 112.º, n.º 2, alínea a), e a que especificamente se referem os artigos 128.º e 129.º” (cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 423); (v) em direta oposição às providências antecipatórias, pelas quais “... o interessado pretende obter uma prestação, a adopção de medidas, que podem envolver ou não a prática de atos administrativos [, justamente quando], no processo declarativo, o interessado aspira à obtenção de um efeito favorável, [em termos tais que (...) a tutela cautelar concretiza-se na intimação à adopção das medidas necessárias para minorar as consequências do retardamento da decisão sobre o mérito da causa.” (idem, p. 424) e não - acres-centaríamos nós - no decretamento de medidas neutralizadoras de modificações jurídicas, como vimos suceder nas providências conservatórias (cfr., para semelhante distinção entre providências cautelares antecipatórias e conservatórias, no Contencioso Administrativo, para além da referência acabada de fazer e entre tantos: VIEIRA DE ANDRADE, Justiça Administrativa (Lições), 14.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 290, nota 715; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., Coimbra, 2010, anotação ao artigo 112.º; ISABEL CELESTE FONSECA, Introdução ao estudo sistemático da tutela cautelar no processo administrativo: a propósito da urgência na realização da justiça, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 125 e ss.; Idem, «Os Processos Cautelares na Justiça Administrativa – Uma Parte da Categoria da Tutela Jurisdicional de Urgência», in Temas e Problemas de Processo Administrativo, 2.ª ed., e-book do ICJP (coord. Vasco Pereira da Silva), Lisboa: ICPJ, 2011, disponível em http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/

ebook_processoadministrativoii_ isbn_actualizado_jan2012.pdf , p. 254; ANA GOUVEIA MARTINS, A tutela cautelar no contencioso administrativo. Em especial nos procedimentos de formação dos contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 336-337; ou, paradigmaticamente, na jurisprudência administrativa, os Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-11-2004, proferido no Processo nº 1011/04; e de 12-01-2012, proferido pela 2 SUBSECÇÃO do Contencioso Administrativo no 0857/1. Como é sabido, esta distinção teve origem, no processo civil, em CALAMANDREI: cfr. Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari, Padova, Cedam, 1936, pp. 56 e ss. Na doutrina processual-civilista portu-guesa, é usada por Autores mais antigos como ARTUR ANSELMO DE CASTRO; cfr. Lições de Processo Civil, I, Coimbra, Almedina, 1964, pp. 228 e ss; tal como em obras mais recentes, e referencialíssima obra de RUI PINTO, A questão de mérito na tutela cautelar: a obrigação genérica de não ingerência e os limites da responsabilidade civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2009.).

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III. A divergência jurisprudencial motivadora do Acórdão em causa eclude quando, havendo recorrido o Ministério da Administração Interna das duas referidas decisões de decretamento de suspensão de eficácia para o Tribunal Central Administrativo-Sul, os dois distintos julgamentos pelos quais se de-cidem os dois recursos se mostram, entre si, sobre a mesma questão e no mesmo contexto factual, diametralmente opostos, de maneira que: a) Relativamente a um dos decretamentos, o Tribunal Central Administrativo-Sul, no Acórdão recorrido nos autos em que foi proferida a decisão de uniformização de jurisprudência ora em comen-tário (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06-08-2014, proferido no Processo n.º 11314/14) decidiu no sentido da revogação da sentença da primeira instância que tinha decretado a suspensão de eficácia do despacho que determinou a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base (e ainda, como medida cautelar, o desarmamento do agente), tendo para tal efeito invocado o “decaimento em sede de formulação negativa da aparência do bom direito alegado (fumus non malus iuris)”, na sua condição de pressuposto da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º, em virtude: (i) da expressa rejeição da qualificação como inconstitucional da norma contida no n.º 1 do artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP, fundada, designadamente, na doutrina do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 439/87, de 04.11.87 – “tirado no caso paralelo do artigo 6.º do DL 24/84 de 16.01, Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aquando da suspensão de funções de médica do Hospital de Santa Maria com fundamento na pronúncia transitada, em autos de querela, por crimes de roubo, furto qualificado, associação de malfeitores e detenção de armas e explosivos, em que foi invocada a inconstitucionalidade do mencionado artigo 6.º do DL 24/84 por violação dos arts. 30.º n.º 4 e 32.º n.º 2 CRP, sem contudo se ter dado provimento a essa invoca-ção, com base nos entendimentos de que: “...a razão de ser desta medida reside em considerações de ordem funcional, na defesa do prestígio dos serviços públicos, não implicando qualquer antecipação de aplicação de pena nem um imediato juízo de censura...”; “...não se trata de antecipação, ou aplicação provisória, da pena de demissão, porquanto durante a suspensão ao funcionário continua a ser abo-nado o vencimento da categoria, apenas lhe sendo retirado o vencimento de exercício”; e a “... garantia [constitucional da presunção de inocência] não torna ilegítima toda e suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação.”, pois “A própria prisão preventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso de «flagrante delito» ou por «fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior» [artigo 27.º, n.os 2 e 3, alínea a)].”; (ii) da consequente consideração de que, não sendo esta norma inconstitucional, e sendo o seu con-teúdo claro e a sua aplicação totalmente vinculada, não haveria como não concluir que a acção principal sempre soçobraria; ou, para resumir as duas proposições numa só, (iii) de que, dada a defendida in-sustentabilidade do juízo de inconstitucionalidade formulado em sede de sentença, não se encontraria preenchido o requisito da aparência do bom direito na sua formulação negativa e, deste modo, não se justificaria a manutenção da providência cautelar de suspensão de eficácia decretada pela primeira instância;

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b) Já no acórdão fundamento (de 06-02-2014, proferido no Processo 10745/1), a mesma jurisdição decidiu no sentido de confirmar a sentença da primeira instância, que decretara a suspensão da eficácia de um em tudo idêntico despacho, tendo-o feito com base no entendimento segundo o qual se encontrava preenchido o requisito do fumus non malus juris, em virtude de a simples possibilidade do n.º 1 do artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP (RD/PSP) vir a ser considerado violador da Constituição, quando no âmbito da ação principal, “bastar para que não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo, com o que não valeu pela emissão de qualquer pronúncia expressa sobre a constitucionalidade da norma em apreço, mas antes sufragou a decisão da primeira instância, justamente segundo a qual a mera possibilidade de a norma ser considerada inconstitucional na acção principal é suficiente para fundar o preenchimento daquele requisito das providências cautelares previsto na alínea b), in fine, do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004.

IV. O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo ora em comentário vem optar, na fixação da sua competente doutrina uniformizadora, pelo primeiro dos termos da alternativa, ou seja, pelo entendimento perfilhado no Acórdão recorrido e segundo o qual a mera possibilidade de a norma ser considerada inconsti-tucional na acção principal não é de todo suficiente para fundar o preenchimento daquele requisito das providências cautelares previsto na alínea b), in fine, do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004; entendimento que - diga-se desde já - nos suscita as maiores reservas, para não as qualificar, em início de argumentação, como “completo desacordo”. Sujeitemos, pois, à prova de resistência de que toda, a argumentação jurídica carece para efeitos da respetiva consistência, as premissas decisórias do Supremo Tribunal Administrativo no presente Acórdão.

V. Em primeiro lugar, no âmbito desta doutrina uniformizadora: (I) “Dado como assente que, no caso vertente, estão preenchidos os requisitos de admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, [quanto à] questão controvertida que se consubstancia, não na diferente interpretação do n.º 1 do ar-tigo 38.º do RD/PSP, que (...) possui um conteúdo claro e é de aplicação totalmente vinculada, mas em distinto entendimento quanto à verificação do requisito do fumus non malus juris, e, consequentemente, quanto à manutenção da decisão da primeira instância (nos respectivos processos) — [tal como] (...), portanto, quanto à própria manutenção da providência cautelar de suspensão de eficácia do acto impugnado por aquela decretada”; (II) o Supremo Tribunal Administrativo: (i) colocado diante da doutrina do “...acórdão fundamento, [nos termos da qual,] não se tendo expressamente decidido pela inconstitucionalidade da norma em apreço, [se] sustentou, todavia, que a possibilidade/probabilidade de esta ser julgada inconstitucional na acção principal era suficiente para considerar preenchido o requisito do fumus non malus juris”;

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(ii) dela discorda frontalmente, porquanto, “...ainda que, no que toca às providências conservatórias, a formulação negativa do fumus boni juris presente na alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA [de 2002/2004] signifique a admissibilidade de uma menor intensidade do juízo de evidência respeitante à procedência da pretensão de fundo formulada ou a formular no processo principal, bastando-se com que não seja manifesta a sua falta de fundamento (juízo de viabilidade baseado numa análise perfunctória, típica da tutela cautelar), a verdade é que a mera possibilidade ou mesmo a probabilidade de uma norma aí vir a ser julgada inconstitucional não é de molde a condicionar — e nem sequer a orientar — o julgador cautelar no sentido de este concluir inevitavelmente que não é evidente a improcedência da pretensão do requerente cautelar”, tanto mais “...nos casos, como é manifestamente o dos autos, em que o acórdão (fundamento) não sustenta solidamente a possível ou a provável inconstitucionalidade da norma em causa”, quando, “Bem vistas as coisas, o julgador cautelar não estava impedido, ele próprio, de controlar a suposta inconstitucionalidade da norma e, muito simplesmente, optou por não o fazer”, ao mesmo tempo que “O artigo 204.º da CRP atribui -lhe essa faculdade, e o TC já reconheceu que a tutela cautelar não é “uma área de jurisdição estanque aos imperativos de constitucionalidade” (cf. Ac. do TC, n.º 624/09). Para o Supremo Tribunal Administrativo, em tal conformidade, “O facto de o julgador cautelar não ter apreciado a constitucionalidade da norma em causa – daí que no acórdão fundamento apenas se fale na possibilidade/probabilidade da inconstitucionalidade ser decidida já em sede de processo princi-pal – parece-nos sintomático de que ele próprio não estava minimamente convencido de uma qualquer violação da Constituição”. É com dificuldade que fugimos à qualificação desta premissa argumentativa como uma premissa vi-ciada de erro de Direito. O problema é, na verdade, um problema de interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, tal qual é reconhecido no voto de vencido lavrado no Acórdão, da Autoria do Venerando Conselheiro ALBERTO DE OLIVEIRA mas subscrito por mais quatro dos doze juízes da Secção de Contencioso Administrativo do STA. E nessa tarefa, seguindo, para não se levantar polémica para além da estritamente suscitada pelo objeto do comentário, os cânones mais ou menos universalmente - pelo menos na jurisprudência - tidos por válidos em matéria de interpretação, constantes do artigo 9.º do Código Civil, reconstitua-se o “pensamento legislativo” inspirador da solução prevista na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA 2002/2004, desde logo “...a partir dos textos” (artigo 9.º/1), lembrando sempre o quanto “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil). Já perante os termos isolados da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, preceito a lograr aplicação efetiva ao caso dos autos e ao caso-fundamento, por se tratar - conforme o já assi-nalado supra - do decretamento de uma providência conservatória: (1) logo que, em tais termos, “as providências cautelares são adotadas quando, estando em causa a adoção de uma providência conser-vatória, haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito”;

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(2) parece admitir-se o decretamento da providência cautelar conservatória mesmo que se verifique a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo, desde que essa falta de fundamento não seja manifesta, i.e., seja discutível, de feição a reunirem-se argumentos quer a favor do seu diagnóstico, quer a favor da sua infirmação; (3) o que se consubstancia num significado, diga-se, muito pouco compatível, desde logo, com a afirmação de que “...a mera possibilidade ou mesmo a probabilidade de uma norma aí vir a ser julgada inconstitucional não é de molde a condicionar — e nem sequer a orientar — o julgador cautelar no sentido de este concluir inevitavelmente que não é evidente a improcedência da pretensão do requerente...”, pois, quando passasse do diagnóstico da mera possibili-dade da decisão de inconstitucionalidade da norma no processo principal, para proferir um juízo defini-tivo de inconstitucionalidade e desse juízo fizesse depender o decretamento da providência cautelar, o julgador condicionaria o decretamento da providência cautelar não ao pressuposto de não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo, mas ao pressuposto da verificação líquida do fundamento que, segundo o juiz, baseasse líquida e definitivamente a satisfação da pretensão formulada ou a formular no processo, o que é bem diferente. VI. Se se avançar mais um pouco, recorrendo ao cânone interpretativo de aceitação geral no Direito Português, para se reconstituir o “pensamento legislativo” que está por detrás da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, “...tendo sobre tudo em conta a unidade do sistema jurídico...” (artigo 9.º/1, do Código Civil), considere-se, ainda sem mais: (I) a contraposição: (i) da interpretanda alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º, de acordo com cujos termos “...estando em causa a adoção de uma providência conservatória, [a mesma só pode ser decretada quando] haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito...”; (ii) com a subsequente alínea c), de acordo com cujos termos, “...estando em causa a adoção de uma providência antecipatória, [ela só pode ser decretada quando] haja fun-dado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente pretende ver reconhecidos no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”; (II) que é como quem diz, a contraposição entre a exigência de que “...não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo...”, por um lado, e a exigência de que “...seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, por outro;

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COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO N.º 1/2016 ADMINIS-TRATIVO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015 (PROCESSO N.º 985/14 – PLENO DA 1.ª SECÇÃO; DR, 1.ª SÉRIE, N.º 25, DE 5 DE FEVEREIRO DE 2016); UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS DE ADOPÇÃO DE PROVIDÊNCIAS CAUTELARES (PROCESSO ADMINISTRATIVO) (CONTINUAÇÃO)

(III) contraposição a cuja luz condicionar-se – como se faz no vertente aresto uniformizador da juris-prudência interpretativa da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, o decretamento de uma providência cautelar à exigência de se ir mais além do que o diagnóstico da mera possibilidade ou mesmo da probabilidade de uma norma aí vir a ser julgada inconstitucional para condicionar – e (...) orientar – o julgador cautelar no sentido de este concluir inevitavelmente que não é evidente a improcedência da pretensão do requerente cautelar, bem como àqueloutras exigências da sustentação da possível ou provável inconstitucionalidade da norma em causa, de que o juiz houvesse apreciado a própria inconstitucionalidade no juízo cautelar ou de um convencimento na inconstitucionalidade da norma por parte do juiz cautelar, é muito mais realizar o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º, não aplicável ao intento conservatório aqui em causa e que condiciona o decretamento das providên-cias por ela reguladas a que “...seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, do que a própria alínea b), cuja aplicação aqui cabe mas que, jamais exigindo certezas, declarações constitutivas ou até probabilidades, apenas condiciona o decretamento das providências conservatórias tão-só a que “...não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo...”.

VII. A contraposição acabada de fazer e em cujo quadro se regista como que o erro de subsunção assacável à jurisprudência em causa, mediante a qual parece imputar a alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004 o conteúdo da subsequente alínea c), é, aliás, nem mais nem menos, do que a contraposição, de ressonância muito tradicional, entre o “fumus boni iuris” exigido pela alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º e a exigência de um mero “fumus non malus iuris” susceptível de ser lida na alínea b) do mesmo preceito. É assim que, na vigência do CPTA de 2002/2004, doutrina e jurisprudência se exprimiram em ter-mos nos quais, por exemplo: “Como se escreveu na Exposição de Motivos do CPTA [de 2002/2004], «no que se refere ao critério de aparência de bom direito, adota-se um critério gradualista, admitindo que esse critério deva ser de indagação mais exigente quando esteja em causa a adoção de uma providência antecipatória do que a adoção de uma providência meramente conservatória - com o que, no que diz respeito a providências conservatórias como a suspensão da eficácia de actos administra-tivos, se evita a adoção de um regime mais restritivo, que conferisse à aparência de bom direito um papel decisivo que tradicionalmente não lhe é atribuído»”, razão pela qual, “...quando está em causa a atribuição de uma providência conservatória, o artigo 120.º, n.º 1, alínea b), estabelece que, uma vez demonstrado o periculum in mora, a providência será concedida a menos que “seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal ou a existência de circun-stâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito””, sendo que “Estão aqui em causa providências destinadas a manter o status quo, não permitindo que ele se altere, como paradigmaticamente su-cede com a suspensão da eficácia de atos administrativos, cuja atribuição não dependia, no regime precedente, da formulação de qualquer juízo sobre a aparência de bom direito [, a qual] assume, por isso, neste caso, um papel mais limitado, intervindo apenas numa formulação negativa [de acordo com cujos termos] se não existirem elementos que tornem evidente a improcedência ou a inviabilidade da pretensão material, não será por esse lado que a providência será recusada” (cfr. AROSO DE ALMEIDA, Manual... cit., 1.ª ed., 2010, pp. 477-478).

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Ora, como é que os simples factos de o juiz cautelar ter apenas afirmado a hipótese da inconstitucionali-dade da norma habilitante do ato suspendendo enquanto possibilidade, e não apreciado e decidido a inconstitucionalidade da norma habilitante do mesmo ato, ou até o mero risco de a fundamentação da pressuposição de uma não mais do que possível inconstitucionalidade, como fumus non malus iuris de um juízo cautelar, poder esbarrar no não acolhimento dessa inconstitucionalidade na decisão principal, podem ser lidos, sem se incorrer em erro de Direito, enquanto “...elementos que tornem evidente a improcedência ou a inviabilidade da pretensão material”, quando: (i) mesmo que o juiz cautelar, ao invés de ter decretado a providência cautelar com base na mera possibilidade da inconstitucionalidade da norma vinculativa à prática do ato suspendendo, a tivesse decretado com base numa explícita decisão de inconstitucionalidade dessa norma, o valor indiciário de ambos os tipos de pronúncia seria exata-mente o mesmo, pois até os Autores mais favoráveis ao total acesso do juiz cautelar ao exercício do poder-dever previsto no artigo 204.º da Constituição, não deixam de ressalvar que, até nos casos em que se conceba uma decisão de inconstitucionalidade liquidamente proferida pelo juiz cautelar e con-firmada pelo Tribunal Constitucional em decisão de provimento de recurso de fiscalização concreta, “a resolução da questão de constitucionalidade (...) não determina inexoravelmente o sentido da decisão [do processo principal] (...) E, ainda quando assim suceda, tratar-se-á apenas de uma consequência indireta, a ser retirada da decisão do Tribunal Constitucional pelo juiz a quo [, pois] (...) O bom senso poderá recomendar ao juiz da causa principal que se atenha ao sentido da decisão de constitucionali-dade formulada pelo Tribunal Constitucional a propósito da aplicação de certa norma no âmbito do cor-respondente processo cautelar”, mas “a verdade é que ele não estará vinculado por esse julgamento, do qual sempre poderá afastar-se” e “a provisoriedade que caracteriza a decisão cautelar não significa apenas que esta se destina a caducar quando for proferida a decisão na causa principal [, pois] (...) significa também que as razões de decidir na decisão principal poderão divergir daquelas que foram sumariamente adoptadas em face da necessidade de decidir com urgência no processo cautelar, de modo a assim se neutralizar o periculum in mora” (cfr. SÉRVULO CORREIA, “A Jurisprudência Consti-tucional Portuguesa e o Direito Administrativo, comunicação efectuada por ocasião do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional”, apud Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 624/2009... cit.); (ii) ou, dito de forma mais condensada, dada a provisoriedade do juízo cautelar, a decisão de inconstitucionali-dade nesse juízo é sempre, em termos do Direito a dizer na causa em moldes definitivos, uma mera possibilidade, em face da também sempre possível emergência de uma decisão no processo principal de sinal totalmente oposto; (iii) e inclusivamente a recusa da suspensão de eficácia com base na não inconstitucionalidade da norma vinculante do decisor administrativo à prática do ato suspendendo, vis-tas as coisas da perspetiva simétrica, nunca constitui elemento seguro da improcedência da pretensão relacionada com a decisão de inconstitucionalidade na causa principal, pois essa decisão positiva pode sempre ter lugar na fase decisória principal?

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Do ponto de vista da própria teoria da inconstitucionalidade, como encarar um juízo provisório de in-constitucionalidade de uma norma em face de um juízo definitivo que o pode confirmar ou infirmar, por mais invólucros de que se revista, como outra proposição de caráter mais certo e líquido do que a equa-ção de uma possibilidade, em face da circunstância, aqui fundamental e já de há muito descrita - com recurso a fórmula lapidar por VITALINO CANAS (cfr. Introdução às Decisões de provimento do Tribunal Constitucional: objeto, conteúdo e efeitos, 2.ª ed., Lisboa, Lex, 1994, p. 57), de que “A inconstitucionalidade de uma norma não é um dado objetivo, verificável independentemente de qualquer intermediação...”, na medida em que “A suprema abstração da Constituição impõe que a concretização das suas normas pelo órgão que tem a última palavra sobre o que é constitucional e não é, resulte de uma opção desse órgão (não totalmente desvinculada, é certo) sobre qual, em seu entender, deva ser o seu conteúdo e alcance” e “É inegável que no seu preenchimento não há mera declaração de um dado anteriormente presente, mas constituição de um significado da norma.”; circunstância essa a explicar, por exemplo, uma hipotética mudança de posição sobre a inconstitucionalidade, do juízo cautelar para o juízo princi-pal, em virtude, nomeadamente, de o iter processual conducente ao último, ao invés de quanto sucede com o que conduz ao primeiro, acarretar a precedência de alegações de Direito, em que o bem-fundado de uma argumentação referida à inconstitucionalidade de normas é exposto com muito maior largueza do que num requerimento cautelar, avultando assim o confronto entre duas decisões - cautelar e principal - dotadas de arsenal de argumentação jurídica prévio muito diferente entre si? E atentando-se agora numa outra proposição explicativa da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, de acordo com a qual “Se a providência pedida for apenas uma providência conser-vatória, já não é preciso que se prove ou que o juiz fique com a convicção da probabilidade de que a pretensão seja procedente, bastando que não seja manifesta a falta de fundamento [, ou,] Por outras palavras, a lei basta-se com um juízo negativo de não improcedência (non fumus malus) da procedência da acção principal para fundar a concessão de uma providência conservatória”; (cfr. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça... cit., 13.ª ed., p. 315), teremos então que, em total contrariedade face a este conteúdo nor-mativo assim determinado, a jurisprudência uniformizada em comentário preenche a exigência legal de um mero “...juízo negativo de não improcedência (non fumus malus) da procedência da acção princi-pal para fundar a concessão de uma providência conservatória” através da exigência, in casu, de uma probabilidade ou mesmo de uma certeza sobre a inconstitucionalidade da norma habilitante da atuação administrativa na fase cautelar como fator decisivo da aparência de bom Direito a que se condiciona o decretamento da suspensão de eficácia, o que constitui, naturalmente, uma contradição nos termos. Em boa verdade, ao exigir, no âmbito da questão jurídica vertente, a certeza ou a séria probabilidade da inconstitucionalidade da norma habilitante do ato administrativo em crise logo na decisão cautelar, mediante a tomada de uma verdadeira e própria decisão de inconstitucionalidade nos termos do artigo 204.º da Constituição, a doutrina subjacente a esta jurisprudência uniformizada exige, para o de-cretamento de uma providência conservatória, a convicção na probabilidade da procedência do provi-mento, na decisão do processo principal, da pretensão cautelarmente formulada, quando, à luz da lei contenciosa aplicável ao caso, “Se a providência pedida for apenas uma providência conservatória, já não é preciso que se prove ou que o juiz fique com a convicção da probabilidade de que a pretensão seja procedente...”, o que se consubstancia, como está bem de ver, em erro de Direito patente de forma considerável.

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COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO N.º 1/2016 ADMINIS-TRATIVO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015 (PROCESSO N.º 985/14 – PLENO DA 1.ª SECÇÃO; DR, 1.ª SÉRIE, N.º 25, DE 5 DE FEVEREIRO DE 2016); UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS DE ADOPÇÃO DE PROVIDÊNCIAS CAUTELARES (PROCESSO ADMINISTRATIVO) (CONTINUAÇÃO)

Explorando ainda todas as virtualidades da proposição explicativa de VIEIRA DE ANDRADE há pouco citada, se, para se decretar uma providência cautelar conservatória, “...basta (...) que não seja mani-festa a falta de fundamento”, então a falta de fundamento da providência e do fumus boni iuris no processo principal subjacente a fundar o decretamento na equação da mera possibilidade da inconsti-tucionalidade da norma habilitante do ato suspendendo: (I) se, como se lê no citado voto de vencido lavrado no aresto em comentário, “Evidente” é o que se capta e constata “de visu”, sem a mediação necessária de um discurso argumentativo cuja disposição metódica permitirá o conhecimento, «in fine», do que se desconhecia “in initio”[, em tais termos que,] Porque as evidências não se demonstram, nunca é evidente a ilegalidade do ato fundada em vícios cuja apreciação implique demonstrações, ou seja, raciocínios complexos através dos quais se transite de um inicial estado de dúvida para a certeza de que o vício afinal existe”; (II) então, a falta de fundamento para o decretamento da providência cautelar isolada na doutrina uniformizadora em comentário é tudo menos evidente, ao não ser consen-sual: (i) nem no Tribunal Central Administrativo-Sul, no seio do qual dois acórdãos se degladiam sobre a qualificação de um determinado estado de coisas como falta de fundamento para o decretamento da suspensão de eficácia; (ii) nem na própria formação que proferiu o aresto uniformizador de juris-prudência em comentário, pois, contra a maioria pouco mais do que tangencial de sete Venerandos Conselheiros que depuseram o seu voto a favor da solução uniformizadora, cinco outros Venerandos Conselheiros subscreveram o já citado voto de vencido em que se defende a tese segundo a qual basta o diagnóstico da mera possibilidade da inconstitucionalidade da norma habilitante do ato suspendendo, em sede de decretamento da providência cautelar conservatória, para que se cumpra o pressuposto desse mesmo decretamento previsto na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004.

VIII. Esta jurisprudência uniformizada surge, aliás, ao completo arrepio de toda a jurisprudência anterior do próprio Supremo Tribunal Administrativo quanto à interpretação da exigência formulada na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004. Assim, pode ler-se no já citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-01-2012, que “O fumus boni juris tem uma formulação positiva e uma formulação negativa [, sendo que] (...) Na formulação positiva é preciso acreditar na probabili-dade de êxito do recurso principal [, i.e.] (...) Tem de se verificar uma aparência de que o recorrente ostenta, de facto, o direito que considera lesado pela actuação administrativa; [enquanto] na formulação negativa basta que o recurso principal não apareça à primeira vista desprovido de fundamento.”. E precisamente, transpondo esta clarividente leitura da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004 para a doutrina do Acórdão em comentário, temos que com a última se lavra em erro ao ver-se na circunstância da não decisão peremptória da inconstitucionalidade por ocasião do juízo cau-telar uma razão pela qual “...o recurso principal apareça à primeira vista desprovido de fundamento”. A ação principal não aparece, no caso vertente, à primeira vista desprovida de fundamento porque a qualificação do levantamento da hipótese de inconstitucionalidade, sem o respetivo julgamento, como declaração da aparência do bom Direito para efeitos do decretamento de providência cautelar conser-vatória é, desde logo, tida por parte significativa da jurisprudência das três instâncias da jurisdição ad-ministrativa como diretamente subsumível à exigência formulada na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, circunstância ante a qual só se pode entender tal caminho como insuficiente para o decretamento da providência “a uma segunda vista”, consideradas as razões contrapostas, e não “...a uma primeira vista”, ou seja, sem a necessidade de se considerarem razões que militem em contrário.

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Esta conclusão surge até reforçada pelo facto de, no mesmo Acórdão do Supremo Tribunal Adminis-trativo de 12-01-2012, em reedição da doutrina já firmada em variadíssimos arestos anteriores cujo elenco figura na fundamentação do mesmo Acórdão, se afirmar que “o fumus boni juris tem de dar-se como verificado sempre que a falta de fundamento da pretensão subjacente à providência não seja manifesta (ostensiva, notória), evidentemente, à luz de uma apreciação meramente perfunctória [,] (...) Para (...) [cujo] efeito a aparência de uma acção viável é suficiente”. E como ensinava, de modo inigualável em clareza, o Prof. JOSÉ ALBERTO DOS REIS (Cfr. “A figura do processo cautelar”, in Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n.3 (Nov.1947), p. 48) – para cujo estudo agora em referência também se remete no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-01-2012, em tema de providências cautelares no Contencioso Administrativo: “O juiz faz uma análise ou uma indagação perfunctória dos requisitos legais da providência; com base neste conhecimento sumário é que decreta a providência. A medida pedida ao tribunal destina-se a acudir a uma necessidade premente, a remover uma ameaça iminente de lesão; tem, por isso, o carácter de urgente. Não se compadeceria com esta urgência uma apreciação jurisdicional desenvolvida e demorada”. Menos sentido fará, por consequência, exigir-se, como se faz no aresto em comentário, que um “fumus non malus iuris”, para existir como pressuposto da suspensão de eficácia de um ato administra-tivo reportado à inconstitucionalidade da norma habilitante desse ato, se veja preenchido pela tomada de uma decisão líquida de inconstitucionalidade logo por ocasião do juízo cautelar, pois - e digamo-lo agora com JAVIER VECINA CIFUENTES (“La trascendencia del fumus boni iuris como presupuesto de las medidas cautelares: especial consideración a los procesos administrativo y constitucional”, in Revista de derecho procesal, Madrid, n.1(1995), pp. 266-267), “De grande problemática se reveste a aferição pelo julgador da aparência de ilegalidade do ato impugnado, e o juízo cautelar que se há-de realizar sob esse particular ponto de vista, pois se, por um lado, a justificação documental da ilegalidade resulta difícil, por outro, correr-se-á o risco, quando não se estabeleçam limites precisos, de “pré-julgar” numa fase processual ainda preliminar o fundo da causa [, e] Assim ocorrerá, sobretudo, quando o conteúdo do pedido obrigue o órgão judicial a realizar um mero controlo abstrato entre o ato ou norma impugna-dos e aquele que lhe seja hierarquicamente superior e faça as vezes de seu parâmetro de juridicidade (v.g. ato administrativo que se estima conteudisticamente contrário a uma lei ou lei que se considera materialmente lesiva da ordem constitucional)[, altura em que] “Exigir em tais casos a apresentação de uma prova por escrito de que se possa fazer derivar, à primeira vista, a ilegalidade da atividade pública, constituiria, como facilmente se compreende, um requisito cuja prática se tornaria certamente de realização impossível para o Autor[; do mesmo passo que, quando, por outro lado] (...) a cognição cautelar sobre o “fumus boni iuris” se pudesse fazer-se depender da boa fundamentação do pedido, ou, o que é o mesmo, do provável êxito suscetível de ser inferido dos argumentos jurídicos usados pelo Autor[, sempre] (...) um juízo positivo sobre a correta fundamentação do recurso, encaminhado a evidenciar, ainda que provisoriamente, a ilegalidade do ato ou disposição impugnada, corre o risco de pré-julgar o objeto do litígio [e] (...) de antecipar o controlo abstrato de legalidade[;] (...) Pelo que parece preferível, em casos como os descritos, e só neles, afastar-se de certo modo uma concepção estrita do “fumus boni iuris” e identificar o mesmo não tanto com a boa fundamentação do pedido, quanto com a valoração sumária da sua não manifesta – embora possível – falta de fundamentação, tal como sucede, ainda que com caráter geral, em Itália, onde a “non manifiesta infondatezza” do pedido, ou do recurso, constituem o requisito para a adoção da medida cautelar”.

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Razões mais do que de sobra a concorrerem, feitas as contas, para a uma boa fundamentação da correção da solução exatamente contrária á da doutrina uniformizadora aqui em comentário. Em última análise, a mera possibilidade, ou plausibilidade, de uma inconstitucionalidade da norma habilitante do ato suspendendo, da qual não se possa dizer que lavra em erro de Direito, há-de servir como “fumus malus iuris” suficiente para o decretamento de uma providência conservatória por defluir da parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CTTA de 2002/2004 que, “...para o decretamento da providência conservatória, o tribunal deve considerar suficiente a aparência de não mau direito ― o fumus non mali iuris ―, porque a solução para a causa deve permanecer sempre em aberto...” (cfr. ISABEL FONSECA, “Os processos...” cit., loc. cit., p. 254).

IX. Mesmo do ponto de vista da separação funcional entre Administração e Jurisdição, a interpretação aqui veiculada da parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004 acaba por fazer todo o sentido, assim se lendo na doutrina, por exemplo, que “A razão da distinção quanto aos critérios de ponderação da possibilidade de decretamento da providência reside na maior responsabilização do jul-gador perante a emissão de uma providência antecipatória - que consumirá, total ou parcialmente, a decisão final[, pois] Quanto mais a providência cautelar tender a consumir os efeitos (fácticos) da de-cisão final, maior deve ser o cuidado do juiz na ponderação, forçosamente sumária, da necessidade da sua emissão (cfr. CARLA AMADO GOMES, “O Regresso de Ulisses. Um olhar sobre a reforma da justiça administrativa”, in Textos Dispersos de Contencioso Administrativo, Lisboa, AAFDL, 2009, p. 370).

X. Se a invocação da possibilidade de uma inconstitucionalidade, e não a decisão líquida da mesma, cumpre, substantivamente, o requisito estatuído de acordo com a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, nos termos do qual “... as providências cautelares são adoptadas[,] (...)Quando, estando em causa a adopção de uma providência conservatória, não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada...”, essa falta de fundamento só se verificaria, ainda assim, se a inconstitucionalidade aventada - não decidida - não fizesse manifestamente qualquer sentido, não fosse sequer chamada ao caso, o que, nem no decretamento revidendo, nem nos que o precederam, também não acontece, quando em ponto algum se diz, nomeadamente no aresto uniformizador ora em comentário, que a violação da proporcionalidade ou da presunção de inocência não podem ser invocados como fundamentos da pretensão em causa, manifestamente, em tempo algum e, pelo con-trário: a linha jurisprudencial que faz vencimento nesta uniformização se apoia no já citado Acórdão do Tribunal Constitucional no qual, acerca de lugar o mais paralelo possível com este, quase em moldes de semelhança – uma norma com a mesma previsão e a mesma estatuição, apenas para uma categoria diferente de trabalhadores da Administração Pública: (1) ao invés de se afastar, peremptoriamente, a aplicabilidade da presunção de inocência ou da proporcionalidade ao caso e à norma em crise, se pergunta, ao invés, “Qual a posição preferível? [, quando] Uma das garantias do processo criminal é, efectivamente, a presunção de inocência do arguido, consagrada no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição [...]: Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa [,] (...) Mas essa garantia não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação”;

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COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO N.º 1/2016 ADMINIS-TRATIVO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015 (PROCESSO N.º 985/14 – PLENO DA 1.ª SECÇÃO; DR, 1.ª SÉRIE, N.º 25, DE 5 DE FEVEREIRO DE 2016); UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS DE ADOPÇÃO DE PROVIDÊNCIAS CAUTELARES (PROCESSO ADMINISTRATIVO) (CONTINUAÇÃO)

(2) inclusivamente se enuncia – o que faz cair por terra a manifesta falta de fundamento – que “Tem-se defendido que ela está em oposição com o nº 2 do ar¬tigo 32º da Constituição, na parte em que este dispõe que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de con-denação»[, atendendo a que: (i)] Nesse sentido escrevem José Pinto Júnior, Manuela Blanc de Melo e Joaquim Bento de Melo, Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local Anotado – Formulário, 1984, nota 6 ao citado artigo 6º[, em termos nos quais,] É que a suspensão de funções e do vencimento de exercício não deixa de funcionar como sanção numa fase do processo em que o arguido se presume inocente, sendo que as penas de de¬missão e suspensão temporária só podem ser aplicadas na sentença, nas condições e verificados os requisitos dos artigos 66º e 67º do Código Penal[; (ii)] Ensina, por sua vez, Teresa Pizarro Beleza, Direito penal, 1º vol., 2ª ed., 1985, nº 1.5.2.1[,] (...) que tal preceito contraria a presunção de inocência do arguido constitu-cionalmente estabelecida (Constituição, ar¬tigo 32º, nº 2)[; e (iii)] Finalmente, João Castro Neves, «O Novo Estatuto Disciplinar (1984) – Algumas Questões» (na Revista do Ministério Público, ano 5º, vol. 20, pp. 7, e ano 6º, vol. 21, pp. 9), nº 6.3, citando a Dra. Teresa Beleza, diz [que] (...) A suspensão de funções e do vencimento de exercício do funcionário pronunciado em definitivo por crime a que corres¬ponda processo de querela ou por crime contra o Estado, que é imposta pelo artigo 6º, nºs 1 e 2, viola a presunção de inocência do arguido, consagrada pelo artigo 32º, nº 2, da Constituição.”. Termos em que se fecha o diagnóstico final de acordo com o qual a jurisprudência uniformizada agora em comentário lavra, a todas as luzes, em erro de Direito.

XI. E assim, para que se preencha a exigência de um fumus non malus iuris, prevista na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2002/2004, enquanto pressuposto do decretamento de uma providência cautelar conservatória, caso o “bom Direito” se reporte a uma perspetiva de inconsti-tucionalidade da norma habilitante do ato cuja eficácia se quer suspender por via de uma providência conservatória, há-de bastar, por consequência, a ocorrência: (i) de uma inconstitucionalidade possível, hipotetizável, que faça sentido em termos de uma atração, ainda que prima facie, do conteúdo da norma legal ao conteúdo de um parâmetro constitucional, tal qual sucedeu no caso em comentário; e (ii) a afirmação dessa possibilidade enquanto levantamento de hipótese, sem necessidade de um juízo líquido de inconstitucionalidade, pois só essa afirmação em jeito de levantamento de hipótese é consentânea com a provisoriedade da providência cautelar e com os valores pela mesma tutelados.

XII. Uma última palavra para – consoante o prometido – referir que, no CPTA de 2015, a diferenciação de regimes do fumus boni iuris entre providências antecipatórias e providências conservatórias acabou. À luz da nova redação do n.º 1 do artigo 120.º “as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e [mesmo no caso das providências conservatórias, e já não só no das antecipatórias, como fora o caso até 2015,] seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”.

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Portanto, ao passo que, no domínio da “aparência do bom Direito”, na redação do CPTA de 2002/2004 – em cujo quadro foi proferido o aresto uniformizador de jurisprudência em comentário –, para se decretar uma providência cautelar conservatória bastava que não fosse manifesta a falta de fundamento da pre-tensão formulada ou a formular nesse processo, de modo que podia até ocorrer falta de fundamento, ela só teria de ser discutível; agora, é preciso que seja provável que a pretensão formulada ou a for-mular nesse processo venha a ser julgada procedente. AROSO DE ALMEIDA, na 2.ª ed. do seu Manual de Processo Administrativo, não hesita em afirmar que “...o regime do artigo 120.º ficou, desse modo, mais pobre, ao deixar de estabelecer diferencia-ções que, no plano substantivo, nos pareciam inteiramente fundadas...” (p. 448), “...na medida em que uma providência conservatória é uma providência destinada a manter o statu quo, ao serviço de uma ação na qual se fazem valer situações jurídicas estáticas, reativas ou opositivas, em que o autor desafia o demandante a demonstrar o bem fundado das suas pretensões, lançando sobre ele o ónus material da respetiva prova, ao passo que uma providência antecipatória é uma providência destinada a alterar o statu quo, ao serviço de uma ação na qual se fazem valer situações jurídicas dinâmicas ou pretensivas, no âmbito das quais recai sobre o autor o ónus material da prova do bem fundado das suas pretensões (cfr. supra, n.º 208) [; de modo que] (...) fazia todo o sentido que, de harmonia com a diferenciação enunciada, se distinguisse, como fazia o n.º 1 do artigo 120.º antes da revisão de 2015, entre estes dois tipos de pretensões, para o efeito de se reconhecer que, no que diz respeito à aplicação do critério do fumus boni iuris ou aparência de bom direito, só quando estivesse em causa a atribuição de providências antecipatórias se justificava fazer impender sobre o requerente da providên-cia o encargo de fazer prova perfunctória do bem fundado da pretensão por si deduzida no processo principal [; e] o legislador da revisão de 2015, (...) ao consagrar um regime homogéneo quanto a este ponto para os dois tipos de providências, estabelecendo que, tanto umas, como outras, só podem ser adotadas quando seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente, veio introduzir uma novidade sem precedentes no nosso ordenamento jurídico, com o evidente alcance de limitar o acesso dos cidadãos à tutela cautelar em processo administrativo: a de submeter ao critério do fumus boni iuris, com a configuração que, em processo civil, lhe atribui o n.º 1 do artigo 368.º do CPC, a adoção das providências cautelares conservatórias e, em particular, da providência da suspensão da eficácia de atos administrativos - providência cuja atribuição, importa recordá-lo, nunca, até à entrada em vigor do CPTA, tinha estado dependente da formulação de qual-quer juízo sobre o bem fundado da pretensão impugnatória do requerente” (pp. 451-452). Contudo, à luz das conclusões tiradas por ocasião do comentário ao vertente Acórdão de Uniformiza-ção de Jurisprudência, prolatado ao abrigo do regime anterior, mas – dir-se-á agora – muito inspirado pela solução que veio a obter vencimento na versão atual do CPTA, forçoso se mostra ir ainda mais longe. É que: (I) se, “no que concerne aos processos urgentes cautelares, a técnica da antecipação revela-se sobretudo numa perspectiva qualitativa e funcional...” e “...esta técnica desempenha um papel de-terminante na realização do direito ao processo efectivo e temporalmente justo, uma vez que, mercê dos seus efeitos, a decisão antecipatória assegura, ainda que de diferentes modos, a protecção judicial das pretensões-de-urgência, antes do tempo processual devido” (cfr. ISABEL FONSECA, “Os processos...” cit., pp. 208-209) e, os mesmos processos cautelares, “... tramitando de forma dependente e tendo como função primordial assegurar a efectividade de um processo ordinário, (...) visam assegurar sobretudo a utilidade da sentença principal” (idem, p. 222);

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(II) se se trata, com a tutela jurisdicional efetiva e, em especial, com a tutela jurisdicional efetiva dos administrados, de direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias, isto é, de direitos a que a Constituição manda aplicar o regime de especial proteção dos direitos, liberdades e garantias apesar de não se encontrarem consagrados no apartado constitucional expressamente dedicado a esses últimos (arts. 20.º e 268.º/4, ex vi do art. 17.º, todos da Constituição. No sentido da qualificação dos direitos de tutela jurisdicional efetiva genérica e dos administrados como direitos que, apesar de não inseridos no apartado constitucional dedicado aos direitos, liberdades e garantias, merecem, para os efeitos do art.º 17.º da Constituição, o enquadramento pelo regime especifico de proteção constitucional aplicável a estes últimos, cfr., por todos, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 374); (III) se, enfim, com o exigir-se, como aparência de bom Direito condicionante do decreta-mento de uma providência cautelar consistente em reagir a uma mudança e em deixar tudo - por mais algum tempo - como está no ordenamento jurídico, a mera equação da plausibilidade de um fundamento jurídico, a que se subsumam os factos, é não só suficiente, como, inclusivamente, quando se trans-forma em apuramento da probabilidade de êxito no fundamento da ação principal, redunda numa apreciação do Direito mais demorada e com um pormenor só processualmente comportável por um processo principal, nunca por um processo sumário; (IV) nessa altura, a parte final do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA de 2015, enquanto aplicavel, em tema de “fumus boni iuris”, às providências cautelares conservatórias, é materialmente inconstitucional, porque, na compressão da tutela jurisdicional efetiva, em geral e dos administrados em particular, não se limita “...ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente prote-gidos” - princípio da proporcionalidade das restrições. art. 18.º/2 da Constituição, por referência aos artigos 20.º e 268.º/4., antes se revelando, como as últimas considerações de AROSO DE ALMEIDA há pouco citadas o demonstram, contentora de uma solução normativa sumamente arbitrária.

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