formosura de deus

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FICHA 17: Poema “Formosura de Deus!” O texto e o seu contexto. Por dados de crítica interna, assim como por outras referências implícitas do Livro da Vida (cf. 28,3; 29,2; 37,4; 38,17-18), todos os teresianistas coincidem em que este poema foi composto em 1560 e é também o mais seguro do seu poemário, de autenticidade indiscutível, já que ela mesma o transcreveu dezassete anos mais tarde ao final da carta a seu irmão Lorenzo a 2.1.1577: Pensei que nos enviasse vossa mercê o seu cântico, porque estes [os que faziam as monjas de Toledo] não têm pés nem cabeça, e tudo cantam. Agora lembro-me de um que fiz uma vez estando em muita oração, e parecia que descansava mais. Eram... já não sei se eram assim [os versos]. E ara que veja que desde aqui lhe quero dar recreio: Formosura que excedeis A todas as formosuras! Sem magoar dor fazeis, Como sem dor desfazeis O amor das criaturas. Oh! Laço, que assim juntais Duas coisas sem igual! No sei porque desatais, Pois atado força dais a ter por bem o que é mal. Juntais quem não tem ser Com o Ser que não acaba: Sem acabar acabais, Sem ter que amar amais, Engrandeceis nosso nada». Não me lembro de mais. Que senso de fundadora! Pois eu lhe digo que me parecia estava com muito quando disse isto. Deus lhe perdoe, que me faz gastar tempo. E penso que o há-de enternecer este cântico e fazer-lhe devoção. E isto não o diga a ninguém. Dona Guiomar e eu andávamos juntas neste tempo. Dê-lhe os meus cumprimentos. O texto é muito revelador. Sobretudo porque deixa bem claro que «tal composição forma parte do ato místico: era um meio para aprofundar mais na sua vivência. Por isso não tem interesse em comunica-lo aos outros; se, passado algum tempo, o envia a seu irmão é para lhe fazer devoção» 1 e no clima de estrita confidencialidade e intimidade que se tinha gerado entre ambos. Mas, além disso, o texto é revelador pelo que manifesta do costume da santa com estos poemas mais místicos e pelas suas consequências para a crítica textual: não transcreveu o poema e, portanto, duvida da sua precisão ao recordar os versos para o seu irmão (Eram... já não sei se eram assim) 2 e ao mesmo aponta claramente que o poema original devia ser mais longo (Não me recordo de mais). Acerca do conteúdo. Para Victor Garcia nos falta uma parte bem importante do mesmo: «Aqui encontro eu um dos indícios de que a composição que a nós chegou, não está completa: no esquema geral da 1 GARCÍA DE LA CONCHA,VÍCTOR, El arte literario de Santa Teresa, Ariel, Barcelona 1978, pg. 320. Se trata, en efecto, de un poema místico, en cuanto que forma parte de ese mismo acto y se ha generado en él, con ese procedimiento que explica en Vida 16,4: surge «de presto», por un impulso interior repentino, y no hecho «de su entendimiento», es decir, sobre un planteamiento racional programado, sino que fluye como una válvula de escape para la crecida tensión vivencial (cf. ibídem 319). 2 De hecho y como hacen la mayoría de los editores modernos, habría que invertir el enunciado del primer verso de la tercera estrofa para igualar su rima con las anteriores (abaab), de modo que el verso quede así: Quien no tiene ser juntáis.

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Formosura de Deus

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  • FICHA 17: Poema Formosura de Deus!

    O texto e o seu contexto.

    Por dados de crtica interna, assim como por outras referncias implcitas do Livro da Vida (cf.

    28,3; 29,2; 37,4; 38,17-18), todos os teresianistas coincidem em que este poema foi composto em

    1560 e tambm o mais seguro do seu poemrio, de autenticidade indiscutvel, j que ela mesma o

    transcreveu dezassete anos mais tarde ao final da carta a seu irmo Lorenzo a 2.1.1577:

    Pensei que nos enviasse vossa merc o seu cntico, porque estes [os que faziam as monjas de

    Toledo] no tm ps nem cabea, e tudo cantam. Agora lembro-me de um que fiz uma vez estando

    em muita orao, e parecia que descansava mais. Eram... j no sei se eram assim [os versos]. E

    ara que veja que desde aqui lhe quero dar recreio:

    Formosura que excedeis

    A todas as formosuras!

    Sem magoar dor fazeis,

    Como sem dor desfazeis

    O amor das criaturas.

    Oh! Lao, que assim

    juntais

    Duas coisas sem igual!

    No sei porque desatais,

    Pois atado fora dais

    a ter por bem o que mal.

    Juntais quem no tem ser

    Com o Ser que no acaba:

    Sem acabar acabais,

    Sem ter que amar amais,

    Engrandeceis nosso nada.

    No me lembro de mais. Que senso de fundadora! Pois eu lhe digo que me parecia estava com

    muito quando disse isto. Deus lhe perdoe, que me faz gastar tempo. E penso que o h-de enternecer

    este cntico e fazer-lhe devoo. E isto no o diga a ningum. Dona Guiomar e eu andvamos

    juntas neste tempo. D-lhe os meus cumprimentos.

    O texto muito revelador. Sobretudo porque deixa bem claro que tal composio forma parte do

    ato mstico: era um meio para aprofundar mais na sua vivncia. Por isso no tem interesse em

    comunica-lo aos outros; se, passado algum tempo, o envia a seu irmo para lhe fazer devoo1 e

    no clima de estrita confidencialidade e intimidade que se tinha gerado entre ambos.

    Mas, alm disso, o texto revelador pelo que manifesta do costume da santa com estos poemas

    mais msticos e pelas suas consequncias para a crtica textual: no transcreveu o poema e, portanto,

    duvida da sua preciso ao recordar os versos para o seu irmo (Eram... j no sei se eram assim)2 e

    ao mesmo aponta claramente que o poema original devia ser mais longo (No me recordo de mais).

    Acerca do contedo. Para Victor Garcia nos falta uma parte bem importante do mesmo: Aqui encontro eu um dos

    indcios de que a composio que a ns chegou, no est completa: no esquema geral da

    1 GARCA DE LA CONCHA,VCTOR, El arte literario de Santa Teresa, Ariel, Barcelona 1978, pg. 320.

    Se trata, en efecto, de un poema mstico, en cuanto que forma parte de ese mismo acto y se ha

    generado en l, con ese procedimiento que explica en Vida 16,4: surge de presto, por un impulso

    interior repentino, y no hecho de su entendimiento, es decir, sobre un planteamiento racional

    programado, sino que fluye como una vlvula de escape para la crecida tensin vivencial (cf.

    ibdem 319). 2 De hecho y como hacen la mayora de los editores modernos, habra que invertir el enunciado del

    primer verso de la tercera estrofa para igualar su rima con las anteriores (abaab), de modo que el

    verso quede as: Quien no tiene ser juntis.

  • FICHA 17: POEMA OH FORMOSURA!

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    comunicao teresiana constante a bipolaridade Deus/alma; neste poema, pelo contrrio, s se nos mostra a ao de Deus. Fica ainda algo mais decisivo. Os vv. 3-5 da segunda estrofe denotam

    um transe gmeo ao que originou as glosas do Vivo sem viver em mim. O n desatou-se; quer dizer, a alma saboreou ocasionalmente a unio mstica e agora se encontra em secura. Da o seu

    lamento. Pois bem, enquanto a terceira estrofe se dedica por inteiro a desenvolver os dois primeiros

    versos daquela Oh! lao que assim juntais / duas coisas sem igual! essa segunda parte de queixa e nostalgia no desenvolvida. Conhecendo o rigor dialtico da santa, provado, bem de

    perto na perfeita quase diria excessivamente lgica conexo dos dois poemas anteriores [Meu Amado para mim e Vivo sem viver em mim], torna-se-me muito difcil aceitar como definitiva esta

    verso (o. c. 357). Estar to incompleto o poema (quase meio) ou bastaria praticamente com

    inverter a ordem das duas ltimas estrofes, pondo a terceira no centro (a unio) e a segunda ao fim

    (a desunio, o desatar do n)? Desta maneira se compreenderia melhor o lamento e a ignorncia da

    autora que todavia no sabe dar razo dessa ausncia que inquieta: No sei porque desatais.

    Nos cingimos verso do poema da carta teresiana, a qual, tenha as limitaes que tiver, seguro

    que nos permite partilhar hoje aquilo que a santa quis revelar s ao seu irmo, no contexto do Natal,

    as festas da Encarnaco do Senhor, de h quase 440 anos: um testemunho que evoca as

    reminiscncias de um encontro intensamente vivido com Deus em Jesus como Formosura suprema;

    um n, mas j desatado (no sei porque desatais); testemunho composto, portanto, depois de uma

    forte impresso de realidade (excesso de presena) ao mesmo tempo que de um incipiente estado de

    ausncia3.

    Para orar, rever a vida 1. Certamente o primeiro seria orar com o poema sem maiores glosas nem pistas. Decerto que ao

    orar com estes versos h aspetos que nos ressoam mais, onde me sinto convidado a deter--me Bem seja que o perceba no mesmo momento orante meditativo, ou bem seja depois ao rever a

    orao se foi mais contemplativa. Seja como for, sem dvida dar que saborear e entender.

    2. Por outro lado e em vista do assinalado em cima, cabe perguntar-se que incidncia tm em mim e no contexto dos tempos litrgicos, pelo menos nos mais fortes e nas suas celebraes cultuais

    e tambm populares (p. ex. aqui os vilancicos). Alimenta-se a minha experincia do senhor

    deles? Posso recordar e agradecer algum em concreto, especialmente no tempo de Natal e/ou

    vinculado sua Humanidade? Se no assim, sempre me posso abrir a isso e comear a

    suplicar essa graa.

    3. Que lugar ocupa na minha vida o belo, a formosura em geral, e particularmente a do Senhor? Tenho experincia de como isto me liberta e ajuda a situar o amor das criaturas?

    4. Reparaste no paradoxo de que nesta extraordinria unio percebe-se mais do nunca que Deu e homem so duas coisas sem igual, quem no tem ser e o Ser que no acaba? Decerto no

    como humilhao, mas como reza o final do poema ao mesmo tempo que a pessoa se v acabada (plenificada), amada e engrandecida: nada mas dignificada, igualada com esse Ser.

    Tens experincia, ainda que no seja to extraordinria como esta, desse tipo de paradoxos com

    o Senhor? Sabem-te a gratuidade, soberania amorosa sua ou a qu?

    5. Por outro lado, contraditria essa experincia (to desiguais) com o comeo das Moradas e o seu sublinhado da formosura e dignidade de cada alma, por estar feita imagem e

    semelhana de Deus?

    6. pois atado fora dais / a ter por bem o que mal. Creio-o, peo-o, animo-o noutros?

    3 Que chegar a ser uma experincia de secura terrvel: To impressa fica aquela majestade e

    formosura, que no h pod-lo esquecer, se no quando quer o Senhor que padea a alma uma

    secura e solido grande que direi mais adiante, que at de Deus parece que se esquece (V 28, 9).

  • FICHA 17: POEMA OH FORMOSURA!

    3

    7. No sei porque desatais. Repassa os momentos em que a espera, o silncio de Deus se revelaram fecundos na vida do Senhor, dos santos, na tua prpria Ora tambm por quem o sofre agora, como Teresa ento, sem saber o porqu dessa ausncia