formacao do pensamento empresarial

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Formacao Do Pensamento EmpresarialVergara_Yamamoto

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  • A formao do pensamento empresarial no Japo - o resgate da era Edo* Sylvia Vergara * * 18ao Yamamoto***

    Sumrio: I. Introdu,): 2. A era Edo; 3. A base tica da era Edo: 4. O sistema de cas-tas: 5. Influncia da ela Edo nos dias atuais: 6. Fatores relevantes para a modernizao ulterior; 7. Concluso. Palavras-chave: auto-"ecluso: confucionismo: paternalismo; vida comunitria: nvel educacional.

    Estudo da era Edo, fundamental para a formao do modo de pensar e do padro com-portamental do povo Jlpons, to discutidos no mundo dos negcios ocidental.

    lhe formation of the entrepreneurial thought in Japan - the rescue in the Edo age This paper is based on the assumption that the available bibliography on Japanese com-panies, despite being abundant, may not be sufficiently based on a historical viewpoint ando in resulto is not wcll-grounded. From this standpoint. lhe Edo era, the stage prior to the Meiji era which is frequently mentioned by researClers, is focused with special attention. Our argument is that the Edo era, with its almosl 270 years under the regime 01' national isolation from the out-side world. might have been decisive in the formation 01' the thinking and behavior pat-terns of the Japanese ['eople. that is discussed frequently in the business world today.

    1. Introduo

    Com a presena cada vez maior das empresas japonesas no contexto mundial, a administrao japonesa comeou a ser analisada prodigamente e por diversos ngulos, a partir da dcada de 70. Entretanto, muitos estudos apresentados ao mundo acadmico e ao pblico em geral carecem de viso histrica, ficando pois fragilizados em suas explicaes.

    Partindo dessa reflexc e da convico de que sempre existem motivos ou condies para que um fenmeno surja em determinado momento, o presente ar-tigo visa identificar a formao histrico-cultural do pensamento bsico da admi-nistrao japonesa concentrando-se na era Edo, durante a qual o pas se isolou do resto do mundo devido auto-recluso. Consideramos que esse perodo, que apa-gou o Japo da histria mundial, foi decisivo na formao cultural que prevaleceu como padro comportamenral do povo japons e da empresa japonesa.

    * Artigo recebido em out. 1996 e acei to em fev. 1997. ** Doutora em educao/UFRJ. mestra em administrao pblica. EBAP/FGV. e professora da EBAP/FGY. *** Mestre em administrao de empresas, PUC/RJ.

    RAP RIO DE JAI'EIRO 31 (2)22-32. \1 "R./ABR 1997

  • o artigo est estruturado em seis sesses. A primeira contextualiza a era Edo, retrospectivamente, partindo da era atual; a segunda apresenta a base tica da era Edo; a terceira discute o sistema de castas; a quarta relaciona possveis influncias da era Edo nos dias correntes; na quinta relacionam-se os fatores considerados re-levantes para a modernizao da era Meiji; na sexta so apresentadas as conclu-ses do estudo.

    2. A era Edo

    na era Heisei que vive o Japo dos dias correntes. A era antecedente, Showa, terminou em 1989. Inaugurada em 1926, a era Showa sucedeu a era Taisho, iniciada em 1912, quando terminou a era Meiji. Essa era, na qual o gover-no introduziu ajaint-stack campal/.\' do estilo ocidental, tem sido privilegiada pe-los estudiosos de todo o mundo que buscam a formao histrica do pensamento bsico da administrao no Japo contemporneo. Todavia, praticamente im-possvel falar do perodo Meiji sem abordar a poca antecedente, o perodo Edo (1603-1867), que durou quase 270 anos.

    A era Edo, de regime feudal, aconteceu sob o forte domnio do xogunato Tokugawa. Entenda-se por xogunato o estabelecimento e a afirmao do sistema feudal centralizado, com as caractersticas prprias de uma poltica absolutista. No perodo Edo no havia conflitos internos significativos, e o Japo vivia na auto-recluso. No difcil imaginar a profundidade da influncia dessa poca no modo de pensar e no padro comportamental do povo japons. Afinal, foi ento que os japoneses, voltados para si mesmos, sem quaisquer contatos efetivos com o mundo ocidental, consolidaram sua cultura.

    At recentemente, o Ocidente via a era Edo de modo desfavorvel. De acordo com pesquisa de Kojima (1989), Montesquieu, por exemplo, a percebia como di-tadura e smbolo de opresso poltica e desumanidade. Voltaire, apesar de ter po-sicionamento menos exacerbado que Montesquieu, tambm criticou severamente o regime de Tokugawa. Segundo Bodart-Bailey (1994), Kant. Goethe e Oliver Goldsmith igualmente a criticaram. Todos esses pensadores se basearam nas obras do holands Engelbert Kaempfer, que esteve no Japo como mdico da Companhia das ndias. A eles agreguem-se os nomes de Herbert Spencer, Perci-val Lowell e Lafcadio Hem.

    Todavia, depois da vitria nas guerras contra a China e a Rssia, outros pen-sadores comearam a reavaliar a era Edo. Entre eles destacam-se Max Weber, Carlos Lamprecht, Edward Sylvester Morse, Rabindranath Tagore e Si,. George Bailey Sansom, que viram a Edo como etapa que tornou possvel a modernizao levada a efeito na Meiji. No foi outra a posio assumida j na dcada de 60 por japanologistas como Edwin Reischauer, Marius Jansen e Ronald Philip Dore. Re-visitar a Edo , ento, instigante.

    FORMAO DO PENSA~IE1\'TO DIPRESARIAL 1\'0 JAPO 23

  • 3. A base tica da era Edo

    A poca precedente era Edo caracterizou-se por total desordem e lutas em diversas regies. Segundo o pensamento ento prevalecente, se o senhor feudal perdesse suas virtudes, algum poderia substitu-lo, ainda que pelo uso da fora. Essa era a orientao divina. Interpretado sem restries, esse pensamento justifi-cou a desordem poltica, proliferada em diversos feudos. Assim, maior objetivo do fundador do xogunato Tokugawa, Tokugawa Ieyasu (1542-1616), foi eliminar a desordem, transformando o pas numa sociedade hierrquica ordenada.

    Um sistema de castas foi estabelecido. Os samurais estavam no topo, os agri-cultores na segunda classe, os artesos na terceira e os comerciantes na ltima. Essa colocao dos comerciantes se deve crena confucionista segundo a qual a pessoa que no produz simplesmente nada vale na sociedade.

    De acordo com estimativas de historiadores, a classe dos samurais correspon-dia a apenas 7% da populao japonesa. Para controlar os 93% restantes, o xogu-nato precisava de um instrumento eficiente, que valesse tanto do ponto de vista prtico quanto doutrinrio. O confucionismo foi, ento, deliberadamente escolhi-do. Yoshino (1968:5) confirma da seguinte maneira o significado social do con-fucionismo para a classe dominadora: "A filosofia do confucionismo enfatizou, entre outras coisas, a rgida observncia de relacionamentos sociais numa socie-dade hierarquicamente orientada. Portanto fcil compreender por que o regime de Tokugawa entusiasmou-se tanto pela filosofia do confucionismo".

    Por sua vez, Mente (1992:30-1) diz o seguinte: "Um princpio supremo, ado-tado pelo confucionismo, era a harmonia entre o cu e a terra e entre governantes e governados. Isso levou ao desenvolvimento de um comportamento altamente controlado, destinado a manifestar subservincia e respeito para com os seus su-periores".

    Como diz Kitajima (1971), o xogunato Tokugawa significou o estabeleci-mento, pela primeira vez no Japo, de feudalismo com poder absoluto. quela poca, existiam no Japo diversas religies e sistemas de pensamento, como o bu-dismo, o zen e o xintosmo. Como o governo Tokugawa precisava de uma doutri-na forte, que garantisse a superioridade de uma classe sobre as outras e introduzisse a aceitao do xogum como autoridade suprema logo depois do im-perador, que, ademais, j no tinha poder poltico efetivo, pois dependia da prote-o dos poderosos da poca, o confucionismo serviu muito bem. Ele j havia sido testado com xito na China. onde a hierarquizao era muito mais sentida do que no Japo. O xogunato Tokugawa adotou ento o confucionismo, justificou seu do-mnio, manteve a sociedade em ordem. O confucionismo tomou-se a base da tica feudal e ainda hoje a base do sistema tico do povo japons.

    A escola de Chu Hsi foi adotada oficialmente pelo governo. Esse pensador chins, descontente com a nfase excessiva na interpretao e na leitura dos cdi-gos, estudou o mecanismo do universo e a natureza do homem e conseguiu elevar o confucionismo categoria de filosofia.

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  • Na poca Edo, surgiram alguns pensadores importantes como Suzuki Shosan (1579-1655) e Ishida Baigan (1685-1744). Na opinio de Yamamoto (1989), a in-fluncia deles foi grande no padro comportamental que facilitaria o capitalismo japons dos dias de hoje. Suzuki, pensador anticristo e influenciado pelo zen, di-zia multido de pobres que, independentemente de sua profisso, se cada um fi-zesse de seu trabalho um meio de auto-ensinamento, poderia livrar-se de desejos incmodos e chegar ao mundo dos pensamentos livres e sadios. Ishida, por sua vez, adotando a tica progressista do confucionismo, exaltava a virtude de traba-lhar. A questo do bem e do mal depende de trabalhar ou no trabalhar. Ele acre-ditava que o trabalho e o no-desperdcio, junto com o sossego psicolgico, fazem o homem ser honesto e realizado.

    Por outro lado, Dazai Shundai (1680-1747), samurai e pensador, considerava nobres aqueles que trabalham muito e ganham pouco e abominveis aqueles que trabalham pouco e possuem muitos bens materiais. Admitia, porm, que a estabi-lidade econmica indispensvel para manter a moral das pessoas.

    Ninomiya Sontoku (1787-1856), pensador ainda hoje muito popular entre os japoneses, apresentou dois tipos de virtude como o verdadeiro caminho a ser se-guido pelo homem: o primeiro transferir o consumo da colheita do ano para o ano seguinte, o que significava a exaltao do esprito de economia, que deveria ser estendido ao xogunato; o segundo ceder em favor de outros. Ele recomenda-va que todos fizessem algum tipo de concesso, voluntariamente, em favor de amigos, parentes, da comunidade local e at do pas (Minamoto, 1973). poss-vel, pois, dizer que no Japo os conceitos de bem e mal no esto associados a um padro absoluto de virtude; trata-se, antes, da aprovao ou no da sociedade (Yoshino, 1968). O pensamento de Sontoku unia xintosmo, budismo e confucio-nismo. A essa unio ele agregava suas prprias experincias como agricultor. O governo Meiji, que sucederia a era Edo, aproveitou o pensamento de Sontoku no movimento de consolidao e exaltao da moral nacional.

    Na poca Edo, de paternalismo predominante, a obedincia ao chefe da fam-lia era absoluta, tendo ele poder irrestrito no que se refere preservao do nome da famlia. Se julgasse necessrio, expulsava ou at matava membros da famlia para defender-lhe a honra. Entre irmos, aquele que sucedesse na chefia da famlia era tratado com cuidados e privilgios.

    4. O sistema de castas

    Como visto, o sistema de castas do perodo Edo foi estabelecido com a classe samurai no topo. Os samurais viviam ao redor dos castelos de seus senhores e tra-balhavam como servidores ou tecnocratas, recebendo, como salrio, arroz ou di-nheiro. Quando a situao financeira ficava ruim, havia a reduo do salrio, o que se assemelha situao dos assalariados do Japo de hoje.

    Foi Yamaga Soko (1622-85), pensador da era Edo, quem estabeleceu a dou-trina do samurai (bllshido). Se antes o comportamento do samurai era baseado no

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  • pensamento zen e no relacionamento senhor-subordinado do tipo give and take, com Yamaga isso mudou. Para ele, a relao senhor-servidor era suprema ordem do cu e algo inviolvel. Yamaga exaltava o esprito nobre do samurai e ensinava que, se a situao exigisse e o senhor precisasse, o servidor deveria matar-se sem perguntar por qu. Ao mesmo tempo, insistia no aprimoramento do samurai nos estudos, na tcnica, na arte marcial e na tica. Tentava. assim, justificar o domnio dessa classe sobre as outra~, embora ela nada produzisse.

    Cada feudo abriu uma escola oficial, na qual os samurais estudavam com afin-co. Sua intelectualidade as~im desenvolvida e sua tica confucionista ofereceram o backgrollnd de que necessitava o governo Meiji para modernizar o pas. Acres-cente-se ainda o fato de qUe. segundo inmeros historiadores (Minamoto, 1973), a formao dos samurais impediu que o Japo fosse colonizado pelos pases po-derosos ocidentais da poc .. L

    A tica da obedincia era to forte que os samurais deveriam prov-Ia, por exemplo, atravs do ato de vingana por espada, quando percebessem alguma ameaa a seus senhores. NJ. poca Edo, o xogunato Tokugawa recebia a solicita-o de vingana por escrito e dava permisso ao solicitante para vingar a afronta sofrida por seus superiores e assim preservar o nome da famlia do senhor. Vale acrescentar que a permisso s era concedida aos inferiores dos que tivessem so-frido a afronta ou injusti.l e que os lugares sagrados ou histricos da famlia Tokugawa eram excludos dos atos sangrentos. Ao longo dos anos, a tica da vin-gana passou a ser to enfatizada que aquele que sasse em busca do inimigo no podia voltar sem atingir seu objetivo. Conta-se at o caso de um samurai que al-canou seu inimigo depois de percorrer o pas inteiro durante 53 anos. Segundo Kitajima (1971), os atos de vingana registrados oficialmente durante a poca Edo chegaram a aproximadamente 100. Mas acredita-se que houve inmeros casos no-registrados. A proibio oficial do ato de vingana s veio em 1873.

    Se os samurais estavam no topo da hierarquia, seguiam-lhe os agricultores. Nos vilarejos, que eram a base do sistema de controle feudal, segundo Wakita (1971), alguns agricultores. os de maior influncia, eram nomeados mantenedores da ordem e do domnio do xogunato.

    Os agricultores tinham que viver em grupo de cinco famlias (goningulIli) e pagar impostos sob regime solidrio. Tal regime era utilizado no em benefcio dos prprios agricultores, mas em favor do controle do sistema feudal. Quando um agricultor deixava de pagar o imposto, as outras quatro famlias assumiam a responsabilidade. No Japo de hoje, quando um empregado no comparece ao tra-balho, os outros assumem sua funo.

    Os agricultores eram registrados no cadastro geral do vilarejo e no podiam mudar-se para outro. Viv.lm em regime de quase-escravido. Como os campos somente se tomam produti vos com a ao do homem, a base da poltica do gover-no era fixar os agricultore~ no campo. Honda Masanobu, assessor de Tokugawa Ieyasu, assim definiu a poltica adotada em relao aos agricultores: "O importan-te no deixar os agricuItc\res morrerem; eles devem viver, mas com normas bas-

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  • tante rgidas, de modo a que se possa arrecadar os maiores impostos possveis" (Wakita,1971).

    Os impostos pagos com arroz em espcie eram uma das bases de sustentao do governo. Como sua cobrana era extremamente rigorosa, poucas vezes por ano os agricultores utilizavam o arroz para consumo prprio. Apesar dessa situao, Carl Peter Thunberg, acadmico sueco que esteve no Japo entre 1775 e 1776, afirma que os criados e os soldados dos pases europeus da poca mereciam o nome de escravos, mais do que os agricultores japoneses. Thunberg dizia que, apesar do regime absolutista, ajustia no era ignorada e o povo era tratado igual-mente perante a lei (Kojima, 1989).

    Os vilarejos transformaram-se em uma comunidade fechada, tendo como principal atividade o cultivo de arroz por irrigao. Para administrar o uso da gua e da floresta, bens comuns, cada vilarejo estabelecia normas bastante detalhadas como cdigo comunitrio. Quem no obedecesse a essas normas podia sofrer um castigo extremo: era isolado de todos os habitantes, salvo nos casos de funeral e incndio (murahachibu).

    Como os agricultores no podiam mudar-se para outro vilarejo, a cooperao e a harmonia tornaram-se as duas qualidades mais importantes na comunidade. Diferentemente de outros povos orientais, como os coreanos, por exemplo, para quam a base da unio o lao sangneo, no Japo essa base era algum tipo de acordo. Da a tendncia do povo japons a seguir a opinio da maioria absoluta, em detrimento da opinio individual. No por acaso que George Soros, investi-dor de origem hngara, afirma que "os japoneses falharam nas finanas devido incapacidade de aceitar o pensamento individual" (Exame, 11-10-1995. p. 15).

    Se, por um lado, o sistema de grupos solidrios de cinco famlias proporcio-nava maior coeso (interna), por outro, como diz Yoshino (1968), gerava a ten-dncia ao exclusivismo contra os grupos externos, considerados hostis ou, pelo menos, vistos com desconfiana.

    O mundo dos artesos era formado por mestres e aprendizes. O tempo de aprendizagem era bastante longo, sob a superviso do mestre, a quem os aprendi-zes deviam obedincia. Depois da aprendizagem, o novo arteso podia escolher livremente seu local de trabalho. Alguns continuavam com o mestre e outros co-meavam a trabalhar por conta prpria. De qualquer modo, o novo arteso tinha o dever de ajudar seu mestre por toda a vida, sempre que ele precisasse.

    Nas primeiras fbricas japonesas, os administradores eram samurais nomea-dos pelo xogunato ou pelos senhores feudais de diversas regies. Todavia, muitas vezes os samurais no tinham conhecimentos especializados e utilizavam os arte-sos experientes como supervisores efetivos.

    Quanto aos comerciantes, eram considerados um mal necessrio dentro da ti-ca confucionista, que admitia a necessidade de atividades econmicas, desde que voltadas para o benefcio da sociedade em geral. O ganho pessoal era categorica-mente condenado. No por acaso que at hoje os japoneses se sentem um tanto

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  • hesitantes ou embaraados com lucros pessoais, ainda que obtidos em negcios lcitos.

    No final da era Edo, 0-; desprestigiados comerciantes comearam a mostrar sua fora, provocando o surgimento do mercado de novos produtos e a mudana de canal de distribuio. Alguns, de maior poder, ingressaram nas atividades pro-dutivas com capital prprie'.

    Financeiramente, a classe samurai dependia muito de alguns comerciantes pri vilegiados. Como conseqncia, na opinio de Yoshino (1968), surgiram entre os samurais dois posicionamentos: o primeiro pregava a eliminao do mercanti-lismo, estimulando a claSSe samurai volta terra, frugalidade e auto-sufi-cincia. Era a exortao volta ao agrarianismo puro, premissa bsica do regime Tokugawa. Na poca, um dos ensinamentos do samurai dizia, com certa ironia, que o samurai, mesmo com o estmago vazio, deveria usar o palito com elegncia. O segundo posicionamento foi pragmtico. Reconheceu a inevitabilidade do mercantilismo e concluiu que o nico meio de manter a supremacia da classe samurai era a sua participa o ativa nas atividades comerciais, e no a persistncia no ideal.

    Diante da considervel fora econmica acumulada pela classe dos comerci-antes, surge uma pergunta natural: por que no aconteceu a revoluo do tipo bOllrgeois no Japo da poca? Para Minamoto (1973), tal revoluo no se deu por causa da excessiva dependncia da classe samurai em relao aos comerciantes. Aquela fez sua riqueza graas ao parasitismo em torno da classe dominadora e, por isso, no construiu nenhuma ideologia moderna digna de apreciao.

    5. Influncia da era Edo nos dias atuais

    Por serem os principai~ atores da poca Edo agricultores de residncia perma-nente, por ter o governo Te,kugawa conseguido consolidar a paz e a ordem depois de 150 anos de lutas internas, como visto, e por ser proibida a introduo de cul-turas e pensamentos estrangeiros, principalmente o cristianismo baseado no indi-vidualismo, Odaka (1993) define a sociedade Edo como close-knit comllJlInities com base no cultivo de arroz desenvolvido nos vilarejos espalhados por todo o Ja-po. Esse tipo de comunidade faz com que a vida e o destino do indivduo sejam idnticos aos da comunidade. O indivduo vive em funo da comunidade. Odaka acredita que as influncias das close-knit comllJlInities da poca Edo sobre as em-presas japonesas dos anos posteriores so considerveis. Eis, resumidas, as prin-cipais influncias percebidas por Odaka:

    Qualidade de membro permanellte. Quem nascia na comunidade, nela perma-necia at a morte. Se, pOf\'entura, sob permisso oficial, algum sasse dela mo-mentaneamente, levava consigo seu statl/S ou condio de membro da comunidade. Hoje, os emrregados das empresas dizem: "Sou Kimura da Mitsui" ou "Ele Tanaka da Son:", O indivduo identifica-se com o nome da empresa.

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  • At no dia-a-dia e no trato com as pessoas mais prximas, raramente os japoneses usam s os primeiros nomes das pessoas.

    Supremacia do coletivismo sobre o individualismo. Na comunidade, vontades individuais eram sufocadas em favor da coletividade. Contemporaneamente, ain-da que sempre existam desejos pessoais, estes so contidos em favor da coopera-o e da paz de toda a empresa.

    Harmonia ~('sprito de cooperao. Numa comunidade existiam, geralmente, diversas subcomunidades por classe, profisso, faixa etria ou local de moradia. A comunicao e o adequado relacionamento entre essas subcomunidades eram indispensveis para a manuteno da harmonia da comunidade como um todo. Cada grupo tinha seu prprio papel e hierarquia, mas os diferentes grupos deviam sempre cooperar entre si. Os japoneses aprenderam, pois, a trabalhar em equipe.

    Disciplina e economia. Na comunidade, as crianas eram educadas para ser modestas com relao a roupas, comida e moradia e para seguir rigorosamente as normas, respeitando as pessoas idosas e os superiores. Nas empresas de hoje, a obedincia s regras e o princpio do no-desperdcio so ainda duas caractersti-cas primordiais. No por acaso que os programas de qualidade encontraram campo frtil no Japo.

    Administrao participativa. Numa comunidade era impossvel tomar deci-ses de maneira autoritria. A cpula da comunidade no decidia sozinha assuntos de maior relevncia. Em princpio, tais assuntos eram discutidos em reunio na qual todos os membros eram representados. O papel da cpula era, portanto, o de porta-voz das decises tomadas pela comunidade. O sistema de ringi, principal instrumento oficial na tomada de deciso das empresas japonesas contempor-neas, o reflexo institucionalizado da administrao participativa praticada nas aldeias. Atravs de ringi - wriUen proposal system -, um funcionrio da baixa hierarquia, sob a superviso de seu chefe direto, pode preparar uma proposta nova a ser submetida aos administradores da alta hierarquia para aprovao. Como se v, a longa paz da era Edo acabou no favorecendo o surgimento de fortes lide-ranas de estilo ocidental nas aldeias e, talvez, na administrao das empresas.

    nfase no bem-estar de todos. No pensamento japons, uma comunidade no passaria de uma aglomerao de pessoas se no conseguisse o bem-estar da maio-ria dos membros. Portanto, o maior interesse da comunidade era sempre voltado para a satisfao de seus membros, sobretudo a satisfao de necessidades bsicas como roupa, comida, moradia, educao, segurana e lazer. Era a busca da equa-lizao de recompensas, caracterstica das empresas de hoje.

    Paternalismo lias relaes. Nas casas comerciais da poca Edo, era comum recrutar serventes em troca de diversos benefcios a serem oferecidos pela vida in-teira, e no em troca de remunerao contratual. Trabalhando dedicadamente durante um prazo longo em uma casa comercial, o servente conseguia permisso para abrir uma filial com o capital do patro ou assumia o cargo de gerente na ma-triz. Acredita-se que as casas comerciais da poca deram origem s primeiras in-dstrias no Japo e, logo, s caractersticas paternalistas nelas observadas. Vale

    FORMAO DO PENSAMEj\;TO D.IPRESARIAL 1\:0 JAPO 29

  • ressaltar, contudo, que estudiosos como Minamoto (1973) consideram que as ca-sas comerciais observavam, at certo ponto, os princpios do talento individual, tais como o recrutamento desligado do vnculo de parentesco, o treinamento e a promoo por capacidade. Enquanto os samurais obedeciam hereditariedade dos cargos no xogunato, os comerciantes comeavam a dar maior ateno ao desem-penho dos indivduos.

    A tese de Odaka, segundo a qual a poca Edo caracteriza-se como close-kllit col/Jl/JlIl1ities, assemelha-se ao argumento apresentado por Durlabhji (1993), para quem a organizao japonesa um sistema social do tipo gemeinschaft, isto , uma comunidade formada pela vontade natural de seus membros e caracterizada por uma srie de relacionamentos primrios, tais como maior envolvimento entre seus membros, interao ressoaI, contato freqente. espontneo, informal e de longo prazo.

    Se se aceita que as prticas comumente observadas na administrao japonesa contempornea foram intwduzidas e consolidadas intencional e sistematicamen-te, tomando como exemplo as conquistas das close-knit comlllllnities, vale a pena ressaltar, como faz Odaka, que no se trata de influncia pura, no sentido webe-riano, porquanto incorpora modi ficaes.

    6. Fatores relevantes para a modernizao ulterior

    No contexto global da modernizao japonesa, que viria com a era Meiji, a poca Edo apresentou algumas bases importantes, aqui sintetizadas.

    Evoluo da agricllltura e aparecimento da sobra de prodllo. No final da era Edo, em algumas regies mais prsperas houve sobra de produtos agrcolas, o que forneceria a base da industrializao ulterior. Engelbert Kaempfer, que dei-xou muitas descries detalhadas sobre a histria, a poltica e a religio japonesas, escreveu:

    "O intercmbio entre duas naes acontece sempre quando elas querem algu-ma convenincia indisponvel numa delas ou identificam alguma necessidade para seu comrcio ou indstria. Este um pas onde existem gneros alimentcios e artigos de uso dirio em abundncia. O esprito da nao avanado e sua cul-tura, rica. A religio, a arte e a lei so suficientes para a nao. muito natural que este pas interrompa o intercmbio diplomtico, a fim de impedir a entrada de estrangeiros que podero trazer conflitos e atritos indesejveis." (Kojima, 1989).

    Segundo os dados citados por Kojima, a populao de Edo, a ento capital do Japo e atual Tquio, era de 1,3 milho de habitantes no incio do sculo XVIII. Na mesma poca, a cidade de Londres tinha 700 mil habitantes, Paris, 500 mil e Viena, 250 mil. Edo era, sem dvida, a maior cidade do mundo na poca, o que se associava capacidade dt~ fornecimento de alimentos e ao volume da sobra de produtos em geral.

    Nvel de edllcao da Iwo. Durante a poca Edo, existiam inmeras escolas populares chamadas terakom, nas quais as crianas e os jovens aprendiam a ler,

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  • escrever e contar, alm do manuseio do baco. Cada feudo, por sua vez, mantinha a escola oficial e nela reunia os filhos dos samurais e os filhos mais talentosos de comerciantes e at de agricultores, excepcionalmente. Certas escolas particulares contavam, na poca, mais de 3 mil alunos. Pesquisadores e historiadores estimam em 70'lc a taxa de alfabetizao de homens e mulheres no final da era Edo (Kojima, 1989).

    Minamoto (1973) calculou em 278 o nmero de escolas oficiais existentes nos feudos em 1871, depois da Edo, portanto, e pouco antes da abolio do sistema de territrios feudais. Baseado em R. Dore, ele afirma que a sociedade japonesa da-quela poca j atingira aquele nvel em que, sem o uso da linguagem escrita, as funes do dia-a-dia no eram possveis. fcil perceber que no sculo XIX, como no sculo XX, as origens do nvel educacional japons, ao qual se atribui significativa parcela de contribuio ao desempenho industrial do pas, remontam era Edo.

    Propagao das lies religiosas e ticas na I'ida cotidiana. Na poca, os en-sinamentos morais e ticos, traduzidos em termos conhecidos e acessveis, esta-vam arraigados entre a classe popular. A importncia da honestidade, do trabalho rduo, da modstia em morar, vestir e comer era repetidamente enfatizada nas fa-mlias e nas escolas. No essa orientao para o trabalho que tem sido to ana-lisada por estudiosos do Japo de hoje?

    Burocracia dos feudos e alta organiz.ao das cOlllunidades agrcolas. As es-truturas scio-polticas de dominadores e dominados. senhores e servos, artesos e aprendizes transformaram-se, com algumas adaptaes. nas estruturas das mo-dernas empresas.

    7. Concluso

    A era Meiji tem sido. quase sempre, o ponto de partida das reflexes sobre o mundo empresarial japons. Este artigo buscou resgatar a era Edo que a antece-deu, por consider-la importante para a conformao do pensamento e do compor-tamento no s da Meiji, como tambm do Japo dos dias correntes.

    Da apropriao do confucionismo e suas regras que to bem servem disci-plina organizacional, ao esprito de coletividade, mitigao da personalidade em favor da organizao, valorizao do trabalho. administrao participativa, ao alto nvel educacional, burocracia, ao no-desperdcio, o caminho percorrido pelo Japo. naquela era, oferecia uma cultura aparentemente slida que tanto tem sido objeto de pesquisas.

    inegvel, tambm, que a auto-recluso da era Edo impediu o Japo de co-nhecer de perto o pensamento e o sistema de valores fundamentais do mundo oci-dental, tais como a democracia e o capitalismo. Essa circunstncia pode ter acarretado, nos dias correntes, algumas contradies e desencontros no compor-tamento das empresas japonesas no cenrio empresarial mundial.

    FORMAO DO PENSAI\IENTO BIPRESARIAL NO JAPO 31

  • Hoje, o pensamento empresarial japons vem sendo imitado por uns e ques-tionado por outros. Se aSSlm, mais do que nunca relevante refletir sobre as ba-ses em que se assenta. Sero elas adequadas ao atual mundo dos negcios? Em que medida? Conceitos le\ados pelos ocidentais encontraram no Japo terreno frtil e reverberaram no prprio mundo onde tiveram origem, abalando suas cren-as. A influncia do Japo no foi, portanto, menor. Se assim, parece importante resgatar a formao do pemamento empresarial no Japo. Esse foi o propsito do presente artigo.

    Referncias bibliogrficas

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