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FORMAÇÃO DE DOCENTES QUE ATUAM EM CLASSES MULTISSERIADAS: RESGATANDO A EXPERIÊNCIA DOCENTE Penha Souza Silva FAE/ UFMG [email protected] Maria Isabel Antunes-Rocha FAE/ UFMG [email protected] Resumo Esse artigo discute sobre o uso da metodologia Relato de Experiência utilizada como uma estratégia de formação continuada de educadores que atuam em classes multisseriadas em escolas do campo no Estado de Minas Gerais. A metodologia em foco foi construída na perspectiva de garantir a presença da prática docente como eixo estruturante do processo formativo. Partiu-se da constatação que está presente na cultura educacional brasileira uma desvalorização desta prática bem como a implantação de projetos que propõem técnicas, mas sem levar em consideração o que já existe como referência. A formação tem como fundamentação teórica a perspectiva histórico-cultural, a partir dos conceitos de desenvolvimento real (Relato Inicial), potencial (Relato Final) e zona de desenvolvimento proximal (estratégias para elaboração dos Relatos Intermediários), o paradigma da Educação do Campo e as referências construídas no campo de estudos relacionados a formação de professores. Os cursos em tela foram desenvolvidos no período de 2012/2013, objetivando construir uma leitura e reelaboração da prática a partir do Paradigma da Educação do Campo (histórico, princípios, conceitos e práticas). Observa-se no Relato Inicial a presença de múltiplas formas de intervenção em sala de aula, demonstrando que não se trata de práticas precárias. No Relato Final constatou-se que o Paradigma da Educação do Campo contribuiu para organizar e instrumentalizar os educandos no sentido de uma prática fundamentada em termos políticos, pedagógicos, teóricos e metodológicos. Palavras-chave: Classes Multisseriadas; Formação Continuada; Educação do Campo Introdução Nesse artigo apresentamos uma discussão sobre a formação continuada de professores que atuam em classes multisseriadas, focalizando a organização do trabalho pedagógico desenvolvida em dois cursos de aperfeiçoamento realizados pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo EduCampo sediado na Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. Falar de classe multisseriada no Brasil é inserir-se em uma trama complexa, visto que não é muito fácil identificar as pontas dos fios. Mas é possível ver que em sua totalidade a trama nos aparece como desqualificada no cenário sócio educacional, vista como atraso, com baixo rendimento do aluno e do professor. É voz corrente no discurso Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 04051

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FORMAÇÃO DE DOCENTES QUE ATUAM EM CLASSES

MULTISSERIADAS: RESGATANDO A EXPERIÊNCIA DOCENTE

Penha Souza Silva – FAE/ UFMG

[email protected]

Maria Isabel Antunes-Rocha – FAE/ UFMG

[email protected]

Resumo

Esse artigo discute sobre o uso da metodologia Relato de Experiência utilizada como uma

estratégia de formação continuada de educadores que atuam em classes multisseriadas

em escolas do campo no Estado de Minas Gerais. A metodologia em foco foi construída

na perspectiva de garantir a presença da prática docente como eixo estruturante do

processo formativo. Partiu-se da constatação que está presente na cultura educacional

brasileira uma desvalorização desta prática bem como a implantação de projetos que

propõem técnicas, mas sem levar em consideração o que já existe como referência. A

formação tem como fundamentação teórica a perspectiva histórico-cultural, a partir dos

conceitos de desenvolvimento real (Relato Inicial), potencial (Relato Final) e zona de

desenvolvimento proximal (estratégias para elaboração dos Relatos Intermediários), o

paradigma da Educação do Campo e as referências construídas no campo de estudos

relacionados a formação de professores. Os cursos em tela foram desenvolvidos no

período de 2012/2013, objetivando construir uma leitura e reelaboração da prática a partir

do Paradigma da Educação do Campo (histórico, princípios, conceitos e práticas).

Observa-se no Relato Inicial a presença de múltiplas formas de intervenção em sala de

aula, demonstrando que não se trata de práticas precárias. No Relato Final constatou-se

que o Paradigma da Educação do Campo contribuiu para organizar e instrumentalizar os

educandos no sentido de uma prática fundamentada em termos políticos, pedagógicos,

teóricos e metodológicos.

Palavras-chave: Classes Multisseriadas; Formação Continuada; Educação do Campo

Introdução

Nesse artigo apresentamos uma discussão sobre a formação continuada de

professores que atuam em classes multisseriadas, focalizando a organização do trabalho

pedagógico desenvolvida em dois cursos de aperfeiçoamento realizados pelo Núcleo de

Estudos e Pesquisas em Educação do Campo – EduCampo sediado na Faculdade de

Educação/Universidade Federal de Minas Gerais.

Falar de classe multisseriada no Brasil é inserir-se em uma trama complexa, visto

que não é muito fácil identificar as pontas dos fios. Mas é possível ver que em sua

totalidade a trama nos aparece como desqualificada no cenário sócio educacional, vista

como atraso, com baixo rendimento do aluno e do professor. É voz corrente no discurso

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304051

dos gestores, dos educadores e, até recentemente, das políticas públicas, que se trata de

uma prática que precisa ser extinta. O Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172/2001)

expressava a posição governamental a favor da extinção, transformando em meta a

mudança progressiva das multisséries em oferta seriada.

Mesmo com o fechamento das classes multisseriadas em ritmo acelerado havia,

em 2007, 93.884 turmas multisseriadas, sendo 19.229 na região norte, 55.618 no nordeste,

11.962 no sudeste, 4.729 no sul e 2.346 no centro-oeste segundo o Censo Escolar 2007

do INEP/MEC.

A extinção das multisséries encontrou resistências por parte dos Movimentos

Sociais/Sindicais do campo que em suas lutas por direitos focalizam a educação como um

território a ser ocupado, pois em grande parte do espaço camponês essa é a única forma

possível de garantir a existência da escolarização. O Movimento Pela Educação do

Campo assume a discussão sobre as classes multisseriadas como um dos seus principais

desafios (FERNANDES; CERIOLI, CALDART, 1998). A depreciação da classe

multisseriada é colocada sob suspeita, desnaturaliza-se um ideário já consolidado,

interrogam-se os limites e possibilidades desta forma de organização como caminho para

garantir o acesso das crianças ao contexto escolar. A princípio o estranhamento necessário

diante de um quadro desolador: não se verifica, por parte das políticas públicas, a

preocupação com materiais didáticos, com a formação e prática docente e com a

infraestrutura das escolas.

Sem esses aportes ficava difícil questionar a viabilidade ou não dessa forma de

organização, pois a precariedade não poderia ser resolvida somente pela extinção. Era

necessário perguntar pelas causas da situação de abandono em que permaneciam as

classes multisseriadas. Os Movimentos Sociais e pesquisadores empreenderam esforços

para conhecer as múltiplas determinações que geravam essa condição (ANTUNES-

ROCHA; HAGE, 2010) na perspectiva de encontrar caminhos. Aos poucos vai se

desvelando a relação da escola rural com o contexto econômico, político, social e cultural

mais amplo. Arroyo (2010:10) sinaliza que “ ...essas imagens tão negativas do campo e

de suas escolas tiveram e têm uma intencionalidade política perversa: reduzir o campo,

suas formas de existência e de produção de seus povos à inexistência. ”

A formulação do conceito de Escola de Direito cria novas possibilidades de

entendimento. Não se trata de opor série ou multissérie, pois ambas são formas legítimas

de organização de classes. Mas de garantir formas de organização que garantam o acesso

e permanência das crianças em uma escola que esteja em diálogo com suas realidades,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304052

com suas demandas, mas que também crie condições concretas para a permanência. Hage

et al (2010, p.414) anunciam que a Escola de Direito refere-se à transgressão do

paradigma multisseriado:

De fato é preciso ter a clareza da complexidade que envolve a solução

dos problemas que afligem as escolas do campo multisseriadas e saber

que as mudanças de mentalidade, de cultura que se almeja não são

muito rápidas, automáticas e definitivas. De todo modo, a

materialização dessas mudanças exigirá o empoderamento dos sujeitos

do campo e o empoderamento das escolas, para que possam interferir

em sua autodeterminação, formulando e implementando políticas e

práticas educacionais [...].

Nesse sentido as multisséries emergem como uma condição em que é possível

realizar um trabalho pedagógico de qualidade. Nessa perspectiva surgem proposições no

sentido da necessidade de lutar por políticas que pudessem garantir o funcionamento das

multisséries. Uma primeira tentativa deu-se com a oferta por parte do Ministério da

Educação no sentido de reformular e ampliar o Programa Escola Ativa (PEA), já em

desenvolvimento no país desde 1996.

Já no início da implantação configura-se que o PEA ancorava-se em referências

políticas e educacionais incompatíveis com os princípios do Movimento Pela Educação

do Campo (D’AGOSTINI et al, 2012, p. 315). O Programa foi implantado, com críticas

por parte das instituições universitárias e movimentos sociais, notadamente no que diz

respeito a sua perspectiva focalizada na oferta de instrumentos metodológicos. A ênfase

nesse modelo restringia à compreensão dos desafios vividos pelos docentes ao uso de

técnicas. Subordinava-se assim o contexto gerador de conhecimentos produzidos pelos

professores, pelos alunos e pelos camponeses em diferentes espaços socioculturais

(BICALHO et al, 2010).

Em 2012, extingue-se o PEA iniciando-se a formulação do Programa Escola da

Terra, como um dos eixos do Programa Nacional de Educação do Campo

(PRONACAMPO). O Programa Escola da Terra é uma ação que visa promover o acesso,

a permanência e a melhoria das condições de aprendizagem dos estudantes do campo e

quilombolas em suas comunidades. Para isso pretende disponibilizar apoio às escolas

com classes multisseriadas dos anos iniciais do ensino fundamental atuando na formação

de professores e disponibilizando recursos didáticos e pedagógicos que atendam às

especificidades formativas das populações do campo.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304053

A atuação do EduCampo/FaE/UFMG na formação de Educadores

O EduCampo se organiza em torno da construção, na Faculdade de

Educação/Universidade Federal de Minas Gerais, de um conjunto de ações formativas

vinculadas ao Movimento Por Uma Educação do Campo. Foi criado em 1998, com a

implantação de programas de alfabetização de adultos em assentamentos rurais. Na

sequência implantou o curso de Licenciatura em Educação do Campo, Especialização em

Educação do Campo e uma Linha de Pesquisa no Mestrado Profissional. Nesse conjunto

de práticas desenvolve projetos de pesquisa, ensino, extensão, produção de material

didático e coordenação de publicações de livros e periódicos.

O projeto de Formação Continuada de Educadores que atuam em classes

multisseriadas inicia-se com a adesão ao PEA, no período de 2008 - 2010. Foram

atendidos cerca de 200 municípios por meio da formação de multiplicadores que

deveriam replicar os ensinamentos junto aos professores. Em que pese todos os esforços

no sentido de ressignificar a proposta do programa, com produção de material didático,

participação dos movimentos sociais, relativização da metodologia como referência da

prática, dentre outras ações, considerou-se que a proposta não se viabilizava em uma

perspectiva de criar condições para a construção de um projeto de escola, de campo e de

sociedade, tripé básico dos princípios da Educação do Campo (Bicalho et al, 2010).Sendo

assim, a equipe coordenadora do projeto envolveu-se com a discussão nacional no sentido

de extinção do programa e construção do Programa Escola da Terra.

Entre 2010 e 2013, após a finalização do PEA, foram ofertados dois cursos, com

participação de cerca de 250 (duzentos e cinquenta) professores. Esses cursos tiveram

apoio da Universidade Aberta do Brasil (UAB), no âmbito da proposta UAB Diversidade.

Pela flexibilidade na orientação metodológica foi possível construir formas de diálogo

com os professores e com as redes municipais em uma perspectiva de construção de

saberes e práticas ancoradas no paradigma da Educação do Campo. Na atualidade estamos

na fase de planejamento para execução da primeira versão do Programa Escola da Terra.

Na formulação do projeto partimos da reflexão sobre que campo demanda esse

profissional. A partir desta reflexão perguntamos quais necessidades estão presentes na

Escola do Campo para em seguida elaborar o perfil de profissional que se demanda.

O campo no qual nos referenciamos refere ao território camponês que se produz

na luta pela terra, pela água e pelo direito de produzir e reproduzir sua existência com

dignidade. Nesse sentido é o campo da disputa pela afirmação de identidades e pelo

fortalecimento dos instrumentos físicos e simbólicos que sustentam a condição como

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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sujeitos coletivos. A escola do campo, que possa atendera esse propósito, demanda um

projeto que se articula com os projetos sociais e econômicos do campo e da cidade, que

cria uma conexão direta entre formação e produção, entre educação e compromisso

político. Uma escola que, em seus processos de ensino e de aprendizagem, considera o

universo cultural e as formas próprias de aprendizagem dos povos do campo, que

reconhece e legitima estes saberes construídos a partir de suas experiências de vida.

O perfil docente para atuação na escola do campo, em classes multisseriadas,

exige um profissional com uma formação mais ampliada, uma vez que ele tem que dar

conta de uma série de dimensões educativas presentes nesta realidade. Neste sentido, a

demanda de formação exigiu um repensar do modelo de formação inicial e continuada

presente nas Universidades brasileiras, centrado no curso de Pedagogia ou em projetos

que focalizam saberes disciplinares ou relacionados à demandas específicas, como

alfabetização, necessidades especiais, dentre outras.

O curso foi planejado para mobilizar o percurso formativo do educador buscando

desenvolver os saberes integrados à sua autonomia e vivências da prática educativa. O

conjunto de atividades realizadas privilegiou a pesquisa, a produção de material didático,

a vivência coletiva, a oferta de conhecimentos teóricos e a produção de novos

conhecimentos. A proposta foi organizada em tempos/espaços diferenciados, dando

ênfase e valorizando a experiência sócio profissional dos educandos, com tempos de

formação no ambiente virtual e tempos presenciais no próprio espaço de atuação e

vivência dos cursistas.

Cada curso teve a duração de 180 horas constituído de quatro módulos. O Módulo

I, com carga horária de 30 horas, apresentou a organização do curso e também a

ferramenta Moodle, plataforma utilizada nos trabalhos ao longo do curso. O objetivo deste

módulo era instrumentalizar e discutir sobre a importância do uso de tecnologia na prática

educacional. O Módulo II, com carga horária de 45 horas, introduziu o debate sobre a

Educação Rural e a Educação do Campo; Histórico, princípios e conceitos da Educação

do Campo; Marcos Legais. Educação do Campo; Movimentos sociais e sindicais do

campo. O módulo III, com carga horária de 45 horas, discutiu a Prática Pedagógica na

perspectiva da Educação do Campo ampliando o debate acerca da Educação do Campo e

seus aspectos ligados ao ensino em diferentes contextos campesinos; introduziu a

discussão sobre currículo e experiências de Educação dos Movimentos sociais do campo.

O Módulo IV, com 60 horas de duração, foi denominado de Integrador, pois foi

desenvolvido ao longo do processo formativo. Através dele é que ocorriam a elaboração,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304055

sistematização, discussão, reelaboração e socialização das experiências. O material

produzido foi gravado em CD-ROM para todos os participantes.

A metodologia do Relato e Reelaboração da Experiência

A utilização da experiência como percurso formativo está alicerçada em pelo

menos três referências. A primeira delas diz respeito ao acúmulo histórico de práticas

desenvolvidas nas classes multisseriadas. Quase sempre ridicularizadas ou consideradas

como inócuas, como a técnica de dividir alunos em filas com a referência seriada, no

curso, foram consideradas como referências metodológicas que comportavam por sua vez

referências teóricas.

A segunda vincula-se às referências teóricas de ensino/aprendizagem propostas

pela abordagem histórico-cultural. Iniciar o processo formativo pelo nível de

desenvolvimento real, trabalhar a partir desse ponto, na perspectiva de alcançar um

desenvolvimento potencial, fertilizou o projeto em sua dimensão formativa.

Denominamos esses momentos como prática inicial, prática em reelaboração e prática

final. O diálogo com Vygotsky vem se construindo e fortalecendo a partir das ações de

educadores que consideram o autor como uma referência teórica próxima dos princípios

que iluminam a Educação do Campo (WOLFF, 2007).

A terceira ancora-se no contexto de discussões e proposições sobre a formação

docente. As reflexões sobre a formação do professor pesquisador, reflexivo e/ou crítico

se constituem como relevantes contribuições à medida que aparecem como críticas ao

modelo de formação baseado na racionalidade técnica. Nesse sentido o diálogo com a

experiência do educador assume relevância, visto que sua habilidade como produtor de

conhecimentos requer a compreensão analítica de sua prática.

O Relato Inicial foi elaborado no primeiro momento de ingresso do docente no

curso. Os relatos eram disponibilizados (via web, impresso ou em CD-ROM) para todos

os participantes de um grupo (geralmente constituído por 20 a 25 pessoas). Nesse

momento cabia ao Professor Formador apoiar os participantes no sentido de produzir uma

síntese (pontos semelhantes, divergentes, dentre outros). Com a síntese o grupo entrava

no percurso formativo do Módulo I. Ao final deste, cada participante reelaborava seu

Relato para em seguida constituir uma nova síntese com o grupo. Assim, sucessivamente,

foram produzidas sínteses individuais e do grupo ao longo do percurso. Ao final do curso

foram disponibilizadas as sínteses finais de cada grupo para que fosse elaborada a Síntese

Final do Curso. Vale ressaltar que cada Relato (individual e do grupo) eram

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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sistematizados e discutidos à luz dos conteúdos trabalhados nos módulos na perspectiva

de incentivar a discussão crítica, problematizadora e propositiva com relação à prática.

De forma geral, o que se observava nos relatos iniciais era uma narrativa descritiva

do relato do docente. Nos módulos II e III, os relatos continuavam sendo descritivos, mas

incorporavam as questões relacionadas à educação do campo que estavam sendo

discutidas no curso. A versão final indica que o cursista estabelece um diálogo entre os

temas que estavam sendo discutidos no curso com sua experiência.

Para evidenciar a materialidade dessa experiência apresentamos um exemplo de

um Relato Inicial e Final de uma participante do Curso de Aperfeiçoamento desenvolvido

no período de 2012/2013.

Relato Inicial de Iara (nome fictício)

Com base na proposta educativa, venho relatar a vivência de ser supervisora em

duas escolas de zona rural, onde cada uma atende em torno de 35 alunos no turno

matutino, onde há 3 (três) professoras para atender da Educação Infantil de 4 e 5 anos

até o 5° ano do Ensino Fundamental.

No dia a dia, encontramos vários desafios para efetivar o processo ensino-

aprendizagem de todos os alunos e, o maior deles, é a participação da família na vida

escolar de seus filhos.

Em uma das escolas, temos uma aluna com alto déficit de aprendizagem, na qual

está matriculada no 4° ano, mas necessita de conteúdos de 1° ano. Ela realiza um

trabalho com a psicóloga da Prefeitura, que a encaminhou para um exame neurológico,

visto que dentro das possibilidades da Instituição, já haviam tentado vários métodos de

aprendizagem sem grandes sucessos.

Sendo assim, foi solicitada a presença da família, que demonstrou ser muito

distante, deixando de dar o apoio necessário. Quando o pai comparecia, chegava em

casa e agredia a menina que tinha medo de admitir que o autor fosse o pai.

Nesse caso, não tínhamos com quem contar, pois era somente eu para cuidar da

parte administrativa e pedagógica das duas escolas e durante um ano, o pai compareceu

à escola somente uma vez depois de enviar vários bilhetes solicitando a sua presença.

Os fatores que mais atrapalham esse caso é a falta de recursos existentes na zona

rural, onde ela tem que perder um dia de aula por semana para frequentar a sala recurso

na escola da zona urbana e, quando chove, ela fica impossibilitada de comparecer às

aulas.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304057

Sabemos que essa aluna precisa de uma atenção maior, mas a docente rege uma

sala de aula multisseriada com alunos do 1°, 2° e 3° ano do ensino fundamental e nem

sempre eu, enquanto supervisora, podia colaborar com uma recuperação paralela, até

mesmo pelo fato de ir à escola somente 3 (três) vezes por semana para atender toda a

demanda de serviço pedagógico e administrativo.

Esse caso mexeu muito com minha essência de educadora do campo, pois faltou

maior conhecimento de como lidar com a realidade rural e de como instruir os

profissionais da escola para melhor atender todos os alunos.

Relato Final de Iara

Iniciei o aperfeiçoamento em Educação no Campo sem compreender como

realmente tem que ser. Percebo que há uma grande distância entre a teoria apresentada

no curso e a realidade vivida nas escolas da região onde trabalho. Por esse motivo

tentando compreender o porquê dessa distância que descrevo neste trabalho final um

caso envolvendo minha paixão em vencer as dificuldades educacionais e a “Educação

Rural”.

Neste curso, aperfeiçoei minha prática pedagógica e agora sei a importância de

se lutar por uma Educação no Campo contínua para que aos poucos a Educação Rural

possa concluir sua história.

De forma a caracterizar, por Educação Rural, vê-se “uma escola que evita um

ensino urbanizado e transmite um ensino rural capaz de promover a fixação do homem

ao solo”, a princípio, se era o intuito do governo com o Movimento do Ruralismo

Pedagógico. Assim iniciaram as lutas por melhorias na Educação da zona rural, sempre

com o objetivo de ofertar uma educação de qualidade mas preservando as práticas

culturais por meio da escola. Na luta pela conquista da escola como direito, originou o

“Movimento Pela Educação do Campo”.

Tal movimento retoma indicadores de princípios para a construção de uma

educação comprometida com o interesse dos trabalhadores do campo. Entende-se por

Educação do Campo, “aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ou aquela situada em área urbana,

desde que atenda predominantemente as populações do campo”. Assim é importante

observar a identidade da Educação do Campo definida pela vinculação dos

conhecimentos prévios.

Com base na proposta para este trabalho final, venho relatar a vivência de ser

supervisora em duas escolas do campo, onde cada uma atende em torno de 35 alunos no

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turno matutino, com 3 professoras, em cada Escola do Campo, para atender da Educação

Infantil, de 4 e 5 anos, até o 5° ano do Ensino Fundamental.

No dia a dia, encontramos vários desafios para efetivar o processo ensino-

aprendizagem de todos os alunos e, o maior deles, é a participação da família na vida

escolar de seus filhos. Uma vez que ainda possuem características de Escola Rural

desconhecendo a compreensão da Escola do Campo.

A Escola do Campo São José, possui um histórico movimentado. Foram várias as

mudanças de nomes, de responsáveis administrativos, regentes, perpassando do Estado

para Município, e de localização desde 1952. A comunidade local possui características

peculiares, onde as famílias se mostram mais preocupadas com a lavoura e os alunos

rotulados, por alguns professores, como crianças que possuem dificuldades em reter os

conteúdos em tempo hábil.

Exemplificando, tínhamos uma aluna com alto déficit de aprendizagem, na qual,

em 2012, estava matriculada no 4° ano, mas necessitava de conteúdos de 1° ano. Ela

realizava um trabalho com a psicóloga da Prefeitura, que a encaminhou para um exame

neurológico, visto que dentro das possibilidades da Instituição, já haviam tentado vários

métodos de aprendizagem sem grandes sucessos.

Sendo assim, foi solicitada a presença da família, que demonstrou ser muito

distante, deixando de dar o apoio necessário. Quando o pai comparecia, chegava a casa

e agredia a menina que tinha medo de admitir que o autor fosse o pai.

Sendo assim, não tínhamos com quem contar, pois era somente eu, como

supervisora, para cuidar da parte administrativa e pedagógica de duas escolas. Sem

contar com o fato que, dentro de um semestre, o pai compareceu à escola, somente uma

vez depois de enviar vários bilhetes solicitando sua presença. Aumentando a falta de

interesse da família na vida escolar da filha.

Os fatores que mais atrapalham esse caso é a falta de recursos existentes no

campo, onde ela tem que perder um dia de aula por semana para frequentar a sala

recurso na escola da cidade e quando chove, fica impossibilitada de comparecer às aulas.

Apesar dos avanços, as escolas do campo continuam sendo desassistidas de recursos,

onde o município alega que devido ao número de alunos, não possui verba o suficiente

para investir em recursos didáticos adequados.

Essa aluna precisava de uma atenção maior, mas a docente regia uma sala de

aula multisseriada, com alunos do 1°, 2° e 3° ano do ensino fundamental e nem sempre,

eu, enquanto supervisora, podia colaborar com uma recuperação paralela, até mesmo

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304059

pelo fato de ir à escola somente 3 (três) vezes por semana para atender toda a demanda

de serviço pedagógico e administrativo.

Há troca de profissionais da escola, praticamente todo ano, por falta de

efetivação da equipe, com isso todos os anos editais são abertos para o preenchimento

das vagas. Meu contrato foi encerrado, os professores foram trocados e a situação foi

repassada para prefeitura, que insistiu muito coma família que a levou ao médico

especialista, no qual encaminhou o laudo à escola. Atualmente, ela está estudando na

APAE da cidade de manhã e participando do Projeto à tarde.

Esse caso mexeu muito com minha essência de educadora do campo, pois faltou

maior conhecimento de como lidar com a realidade do campo e de como instruir os

profissionais da escola para melhor atender todos os alunos e não somente os com

necessidades especiais.

É importante ressaltar que entre estas duas versões existem dois momentos de

reelaboração do texto. O que podemos observar é que na versão inicial, a cursista

apresenta o caso completamente descontextualizado. Na sua narrativa chama a atenção

para os desafios enfrentados no exercício da docência dizendo que o maior é a ausência

da família. Outro aspecto que ela chama a atenção é a falta de especialistas na gestão da

escola e de recursos para atendimento ao aluno. Observe que a cursista não faz nenhuma

menção ao campo na qual está inserida a criança, sendo a maior dificuldade para a sua

aprendizagem, o fato de ficar ausente da escola durante dois dias. No final, ela diz que

lhe faltou conhecimento para lidar com a comunidade rural. Observamos que a cursista

não problematiza a situação.

A versão final mostra um avanço da cursista tanto em relação à escrita do caso

como na estruturação do seu relato. Inicialmente, ela se localiza enquanto sujeito à medida

que começa dizendo da sua formação enquanto profissional. Ela deixa claro que

informando que quando foi ser supervisora de duas escolas do campo ela não entendia o

processo e “levava o que era praticado nas escolas da cidade [...]”. A sua participação no

Projeto de Aperfeiçoamento contribuiu para ampliar suas reflexões sobre as

determinações de sua prática e o fosso entre o que foi estudado e a realidade das escolas

onde trabalha. Agora ela apresenta o mesmo caso, mas as suas dificuldades passam a ser

de ordem educacional e, especialmente, da educação rural. E ela apresenta uma definição

de educação rural exatamente igual ao seu fazer pedagógico. A diferença é que agora ela

passa a entender porque “levava para a escola do campo o que era praticado nas escolas

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304060

da cidade”. Agora, ao invés de se referir às famílias como ausentes da escola, ela informa

que estão mais preocupadas com o sustento do que com a educação dos filhos. Outro

aspecto que menciona é a contextualização da escola na qual ocorre o caso. No relato

inicial, a cursista não se colocava como sujeito e não informava o contexto da escola, ou

seja, o caso poderia ocorre em qualquer lugar. Ela também chama a atenção para os

aspectos que parecem ser responsáveis pela falta de motivação dos alunos como

precariedade das instalações, falta de transporte, profissionais pouco qualificados e que

desconhecem a realidade do campo, falta de material humano.

Assim, observamos que a maioria dos cursistas fazia este movimento de

apresentar o relato totalmente descontextualizado e, durante a reescrita, vai reconstruindo

o mesmo em uma perspectiva mais problematizadora no contexto do campo.

Neste sentido, entendemos que esta metodologia do relato na perspectiva da

formação do professor das escolas do campo tem contribuído com as reflexões realizadas

com estes docentes na medida em que observamos que conseguem no final do curso

estabelecer um diálogo entre o caso relatado, sua experiência, e os temas discutidos no

curso. Isto certamente incentiva a discussão crítica, problematizadora e propositiva com

relação à prática.

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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 304062