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Vagner Rodrigues FORA DA MÍDIA E DENTRO DO SALÃO: SAMBA-ROCK E MESTIÇAGEM Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC / SP 2006

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Vagner Rodrigues

FORA DA MÍDIA E DENTRO DO SALÃO:

SAMBA-ROCK E MESTIÇAGEM

Mestrado em Comunicação e Semiótica

PUC / SP

2006

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Vagner Rodrigues

FORA DA MÍDIA E DENTRO DO SALÃO:

SAMBA-ROCK E MESTIÇAGEM

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profa. Dra. Helena Tânia Katz

PUC / SP 2006

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BANCA EXAMINADORA

PUC / SP 2006

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Agradecimentos

A todos os integrantes do grupo de estudos. Foi com vocês que tudo começou. Para Helena Katz. Que fez minha vida girar e rodopiar de alegria nesses dois anos de parceria. Aos casais sambaroqueiros: Carol e Magoo, Ana e Moskito, Zanza Nostalgia e Cláudio Nostalgia, Liliane e Elias. Aos djs: Toni Hits e Loo. Para Maíra e seu olhar cinematográfico do samba-rock. Ao Tiago pelo vídeo. Ao Raul, Vera, Heleninha, Rosa e Maurício, pelos risos e gargalhadas. Para Amalio. Do samba-rock um sambarroco. Para as minhas parceiras de dança, Luciana Mayumi e Luciana Franco. À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo pelo auxílio bolsa mestrado. Ao Junior, Sidnei, Luciana, Wonder, Marcão,Baiano e Simon À minha família e à Maria Antonia, minha mãe. Com carinho para Má e Shaya. Vocês são lindas.

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Para todos os

sambaroqueiros

de São Paulo

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RESUMO

Do encontro entre elementos de uma cultura local com os de uma

estrangeira emergiu, nos bairros populares da cidade de São Paulo um híbrido

que já tem quarenta anos de permanência: o jeito Samba Rock de dançar.

Curiosamente, a mídia impressa, o rádio e a tevê o mantiveram sempre na

marginalidade, sem com isso, diminuir o seu poder de contaminação e

sobrevivência. Este é o objeto de pesquisa da presente dissertação, que busca

oferecer recursos teóricos para se entender a singularidade do seu processo de

hibridação, que se organizou contando somente com a mídia disco/cd e com

eventos a ela vinculados (bailes, festas domiciliares etc). Nesse percurso

investigativo, a compreensão do que ocorre com o corpo que dança samba-

rock, se revela central e, por essa razão, a teoria do corpomídia desenvolvida

por Helena Katz e Christine Greiner serve como viés de leitura da bibliografia,

que inclui obras dedicadas ao estudo político da cultura de Homi Bhabha,

Zygmunt Baumam e Nestor Garcia Canclini. Para lidar com o contexto do

samba-rock fez-se necessário refletir sobre a cultura nos tempos de agora, em

comunhão com a produção bibliográfica de evolucionistas como Richard

Dawkins e Daniel Dennett. As relações propostas entre a bibliografia neo-

evolucionista e a dos políticos da cultura se darão a partir de uma metodologia

que se pautou pela revisão bibliográfica e por uma investigação de campo, que

inclui depoimentos.

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ABSTRACT

Through forty years of gradual interaction of certain elements between local and foreign cultures in the popular districts of São Paulo, the permanence of Samba-Rock, a hybrid dance form, has come in to being. Even though it has been marginalized by the written and broadcast media, Samba-Rock survives and keeps its power to contaminate. This research will offer some theses on this singular hybrid dance form, which has come about only through CD's LP's, family parties, balls and so on. In this investigation, an understanding of what happens to the body when dancing Samba-Rock is fundamental, and for this reason the Theory of Corpomidia, develeloped by Helena Katz and Christine Greiner serves as a guide to a bibliography which includes works dedicated to the political cultural studies by Homi Bhabha, Zygmunt Baumam and Nestor Garcia Canclini. To understand Samba-Rock in context it is necessary to reflect on present day culture in communion with the bibliographic works of neo evolutionists like Richard Dawkins and Daniel Dennett. The proposed relatioship between neo evolutionists and political culture studies will be seen through a methodology based on bibliographic revision and in situ investigation including interviews.

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Índice

Introdução

Capítulo 1 Dança de salão e samba-rock

1.1 Corpo, mestiçagem dança de salão

1.2 A dança de salão no Brasil

1.3 O surgimento do samba-rock

1.6 O samba-rock

1.7 O bairro

1.8 A emergência do samba-rock

Capítulo 2 São Paulo e o samba-rock

2.1 A mestiçagem e o samba-rock

2.2 A banda Clube do Balanço

2.3 A aula de samba-rock

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INTRODUÇÃO

Não há registros escritos que apresentem o samba-rock e sua história. É

curioso imaginar que uma dança apreciada e dançada por milhares de

paulistanos, há mais de quarenta anos, seja desconhecida na própria cidade e

também no Brasil. Investigar a história do samba-rock revela-se uma

oportunidade para descobrir traços da cultura paulistana ainda não conhecidos

pela maioria das pessoas.

O objetivo aqui é o de apresentá-lo como uma manifestação da cultura

popular urbana da cidade. Para acompanhar seu surgimento, e a sua

consolidação, é importante frisar que não se fará um retorno ao passado tal e

qual, pois se sabe que isto é impossível pela própria dinâmica do tempo.

Nesta dissertação, o acesso à história do samba-rock propõe-se através

de relatos orais de quem faz parte deste universo cultural.

A presente dissertação trata deste assunto, focando o modo como o

samba-rock emergiu e permaneceu na cultura paulistana durante quarenta

anos, sem contar com a divulgação da sua existência e sem o reconhecimento

do que significava por parte de quem não o praticava. Fora das mídias, criou

estratégias de permanência sem precisar de um reconhecimento divulgado por

elas. Ele se difundiu em comunidades de bairro, em bailes familiares e tornou-

se cotidianamente apreciado.

O samba-rock traz uma história que ainda não foi contada: a história dos

dançarinos anônimos da cidade de São Paulo, que criaram uma nova dança

ignorada pelos meios de comunicação (jornais, rádio, tevê e revistas) por

quase quatro décadas. É como híbrido que surge o jeito samba-rock de dançar.

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Capítulo I - Dança de salão e samba-rock

1.1 Corpo, mestiçagem e dança de salão

A dança de salão é também chamada de dança de casal. Ela é dançada

com passos pré-determinados, característicos para cada um dos seus tipos, que

são muitos: tango, samba de gafieira, samba-rock, forró, salsa, mambo,

merengue, valsa e etc. Tradicionalmente, costuma-se atribuir a condução da

dança ao homem, pois cabe a ele decidir quais variações de passos serão

incluídas e à mulher deixar-se conduzir, estando atenta às solicitações de

movimento de seu parceiro. Todavia, em qualquer tipo de dança, quando duas

pessoas estão dançando juntas, o ideal é que haja uma escuta corporal de

ambas as partes. Isto se dá, no caso da dança de salão, quando ambos

percebem o corpo do outro pelas transferências de peso, pelo

acompanhamento sincronizado e pelo tônus muscular que varia em cada parte

do corpo. É condição indispensável para que a movimentação flua de maneira

dinâmica e se construa uma sintonia entre o casal. Essa sintonia nasce de uma

atenção permanente e deve-se manter do começo ao fim para que as

seqüências de movimento se alterem constantemente.

É interessante notar na dança de salão que quando um casal dança, ele,

ao mesmo tempo, improvisa. Ao se começar a dançar não há nada combinado

entre os participantes sobre a seqüência de passos a ser desenvolvida. Ambos

começam a sua dança em conjunto tendo, cada qual, o conhecimento dos

passos daquela dança específica, mas a combinação que surgirá é sempre

variável e improvisada. Daí a importância de uma sensível escuta corporal

entre os dois.

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Na dança de salão, a comunicação entre o casal se dá de maneira tátil-

sinestésica. Todas as ações são desenvolvidas através do contato corporal, pois

não há comunicação verbal informando sobre o próximo passo a ser realizado.

A condução que o homem toma para si durante o processo acontece via

código. Um código necessariamente compartilhado com sua parceira. Certos

giros do samba-rock, por exemplo, são iniciados através de um jeito específico

de elevar o braço. A mulher que sabe dançar samba-rock reconhece esse

código rapidamente e inicia seu giro mantendo-se sempre atenta ao próximo

código, dado logo após o final do giro. A superfície de contato entre os corpos

favorece a comunicação e possibilita ao casal alterar rapidamente suas ações

motoras para a configuração dos passos: elevações de braços, enlaces,

deslocamentos frontais e laterais, mudanças de ritmo etc. Comandos verbais

seriam menos eficientes para esse tipo de relação, pois envolveriam

acionamentos de outra natureza cognitiva, agregando a necessidade de

tradução do verbal para o cinético.

Pode-se dizer, em suma, que a dança de salão se desenvolve através do

contato e da comunicação corporal entre os casais, com passos codificados e

vocabulários de movimento próprios a cada dança, montados em seqüências

não combinadas previamente, ou seja, cada dança de salão acontece

improvisando as misturas dos passos conhecidos.

A dança de salão geralmente é praticada em bailes e festas. Sua história

tem início, segundo Perna (2001), durante o século XV, na Europa

renascentista. Apreciada tanto por nobres, quanto pela plebe, chegou ao Brasil

no século XV através dos portugueses e outros imigrantes europeus.

A mistura de culturas desses imigrantes com os indígenas e negros africanos, propiciou a formação de nossa cultura e foi muito importante para a nossa música e dança. Essas primeiras danças

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eram de salão, mas não a dois, de pares enlaçados (Perna, 2001: 11).

Ou seja, as danças de salão praticadas atualmente diferem muito das

primeiras formas de se dançar a dois. No minueto1, por exemplo, os pares

ainda não dançavam abraçados. O enlace entre o casal aparece somente no

século XVIII, em Paris, com a valsa (Perna 2001).

1.2 A dança de salão no Brasil

A organização de bailes dançantes em salões teve início, no Brasil, com

a vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro. Por volta de 1837 se

registra a primeira dança a dois enlaçada, a valsa.

A valsa é uma dança ternária que, no Brasil, desenvolveu características próprias, como os andamentos bem lentos e um esquema de modulações similar ao das polcas, sendo dançada ainda hoje em bailes de debutantes e casamentos (Perna, 2001: 16).

Em seguida à valsa, aparece a polca. Essa dança, ao contrário da valsa,

se popularizou rapidamente e virou uma mania. Chegou ao Brasil em 1845, na

cidade do Rio de Janeiro, onde foi dançada por uma companhia francesa de

teatro. Ainda nesse mesmo ano passa a ser dançada, constantemente, nos

bailes do teatro São Pedro, e, segundo Perna (2001), no ano seguinte, forma

uma sociedade:

A polca tornou-se mania a ponto de formar a sociedade Constante Polca em 1846, além de bailes oferecidos pelo Hotel Itália, localizado no Largo do Rocio (grande), atual Praça Tiradentes. De dança de salão, a polca logo ganhou teatros e ruas tornando-se música eminentemente popular (...) (Perna,2001:17).

1 Minueto: “dança francesa de ritmo ternário, de pares ainda não enlaçados, caracterizada pela graciosidade e equilíbrio dos movimentos (...) . No minueto, damas e cavalheiros de cabeleiras empoadas acompanhavam o andamento lento e cerimonioso da música, fazendo mesuras e dando passinhos” (Perna, 2001: 12).

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Por volta do final de 1870, também na cidade do Rio de Janeiro, surge o

maxixe, a primeira dança de salão brasileira. Jota Efegê (1974), em seu livro,

Maxixe, a dança excomungada, traz uma grande contribuição para a história

da cultura urbana do Rio de Janeiro em suas relações com a dança e a música.

Com o maxixe, a cultura da dança de salão começa a ganhar cada vez

mais popularidade e passa a se disseminar por todas as camadas sociais.

É (o maxixe) a nossa dança típica da cidade. Custou muito a sair das classes populares, porque os preconceitos severos de antigamente o condenavam sem restrição.

Mas, empolgou completamente a todos. Negros e brancos, pobres e ricos, aristocratas e plebe sentiam-lhe a atração quase irresistível. (Lira apud Efegê, 1974: 49).

O maxixe é a mistura de danças e sons. Segundo Efegê (1974), esta

dança apareceu antes do ritmo musical chamado maxixe. Era dançada ao som

da polca, da habanera, do tango brasileiro, da polca-lundu ou seja, não havia

ainda, um ritmo específico para esta dança. A música só se firmou como tal

depois da dança se haver caracterizada plenamente (Efegê,1974).

Formou-se assimilando os elementos rítmicos e melódicos que já vinham proporcionando aos dançarinos condições capazes de conduzí- los nos volteios, requebros e algo de acrobacia compreendidos na desabusada dança (Efegê, 1974:41).

A música estruturou-se tendo como estratégia uma maneira de dançar a

dois, em que a adaptabilidade e a plasticidade de seus movimentos pode ser

encadeada de forma a proporcionar a inclusão de diversos ritmos musicais

(através de uma complexa relação de idas e vindas entre músicas e

movimentos) a uma maneira de dançar. O maxixe, ao longo do tempo, foi

construído coletivamente em um ambiente repleto de diferentes sons e danças,

onde proliferavam intercâmbios múltiplos entre o corpos dançantes e suas

possibilidades de mesclas.

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A dança do maxixe é a própria mistura entre o fora e o dentro do corpo,

o som no e com o movimento.

Há uma teoria recente, chamada de corpomídia2, que trata das relações

intercambiante entre o corpo e o ambiente. Esta teoria trabalha com a hipótese

de que o corpo constrói-se com o ambiente através de um fluxo de

informações em que mudanças ocorrem tanto no corpo como também no

ambiente. “Algumas informações do mundo são selecionadas para se

organizar na forma de corpo” (Greiner, 2005: 130). De maneira ampla, pode-

se dizer que no corpo que dançava maxixe aparecia a adaptabilidade e a

tendência da cultura para reorganizar sons e danças diferentes. O maxixe,

neste sentido, é o corpo mestiço que se organizou como dança, com e pela

mistura.

O conceito de corpomídia carrega o de mestiçagem. Dentre muitas

outras características, a mestiçagem acontece, de forma mais complexa,

quando seus elementos se combinam não hierarquicamente, ou seja, todos são

fundamentais. A hipótese é que, para emergir, o maxixe incluiu, sem

hierarquias3, uma trama repleta de interconexão entre seus elementos. Para

que um sistema mestiço aconteça é necessária uma combinação produtora de

entrelaçamentos entre os elementos que o constituem, pois, “o que está em

menor quantidade é tão importante, na mescla, quanto o que está em maior

quantidade, nesta relação nada permanece igual ao que era antes”4(Pinheiro,

2005).

2 Trata-se de uma teoria gestada por Helena Katz e Crhistine Greiner em diversos artigos (1999, 2000, 2003, 2004, 2005) e livros (GREINER, 2005: KATZ, 2005), em seus cursos no Programa em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. 3A hierarquia, neste caso, seria a sobreposição de uma dança em relação à outra, o que impossibilitaria o amalgamento de seus movimentos, ou seja, impediria a mestiçagem. 4 Anotação da aula dada pelo Profº Amalio Pinheiro no Programa em Comunicação e Semiótica da Puc-SP, em 16/08/2005

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No seu início, o maxixe era considerado pelas famílias mais

tradicionais uma dança inferior, com valor menor, por conta de suas

referências eróticas, sendo indigna de ser dançada. Apesar disto, torno-se uma

moda e passou a ser dançado em salões considerados da elite.

O maxixe, que surgiu espúrio, combatido pela decência, repudiado pelos preconceitos familiares, ficou escondido nas cavernas, longe dos catões, muitos dos quais nem sempre legítimos. Mas, provocante, “gostoso como ele só” (tal a qualificação de uma quadrinha irreverente) acabou, embora contido um pouco em sua coreografia lasciva, penetrando nos salões. Tornou-se moda, desfrutou grande voga (Efegê, 1974: 15-16).

Os preconceitos relativos ao maxixe não são exclusivos a esta dança. O

argentinoHorácio Salas em seu livro El Tango (1999) coloca que o tango, em

seu início, também sofreu discriminação por parte da sociedade.

Por ello no puede extrañar que en los primeros tiempos el tango fuese muy mal mirado incluso en los ámbitos más humildes. Como señala José Sebastián Tallón, “ lo que odiaban y temían las familias obreras y las de los barrios centrales de la classe media era la disolución moral que encarnaba el compadre” (...) Sin embargo, poco a poco, el baile, apesar de sus connotaciones, ingresó en patios de conventillos primero y en salas de familias de classe media después (...) (Salas, 1999: 86).

Tais fenômenos se assemelham à história do samba-rock, visto que o

mesmo surgiu ao final da década de sessenta, do século xx enfrentou

restrições específicas e, só recentemente começa a ser conhecido por um

público mais amplo.

O samba-rock existe desde 1957, em vários pontos da cidade de São Paulo. O problema é o seguinte: quem ouve falar de samba-rock, acha que é novidade, uma coisa que foi criada recentemente. O fato é que só agora ele foi divulgado. Houve a descoberta da mídia, da imprensa, do rádio e da tevê. O samba-rock não é uma moda, mas uma cultura muito sólida que já existe há quarenta anos (Hits, 2005: em anexo).

O fenômeno samba-rock está associado a uma série de fatores

ideológicos, econômicos e midiáticos inter-relacionados de maneira complexa

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e não dizem respeito apenas ao samba-rock, mas à cultura brasileira de

maneira geral. Muitas outras danças e formas de arte são hoje atingidas pelo

descaso, pois também estão fora das mídias, precisando encontrar modos

eficientes para sua disseminação.

A tendência de determinados grupos sociais por afastarem-se do

múltiplo e do heterogêneo leva-os a uma homogeneização que ordena a sua

relação com o mundo, a cultura e, conseqüentemente, com a sua própria vida.

Daí a importância da mídia e também da universidade em promover a

diversidade - o que está ainda longe de acontecer com a freqüência necessária.

Quando se abre espaço para a pesquisa de fenômenos como o samba-rock,

inteiramente ausente das mídias por quase quatro décadas, abre-se junto a

possibilidade para que a sociedade se aproprie deste bem cultural.

A presente dissertação trata deste assunto, focando o modo como o

samba-rock emergiu e permaneceu na cultura paulistana durante quarenta

anos, sem contar com a divulgação da sua existência e sem o reconhecimento

do que significava por parte de quem não o praticava. Fora das mídias, criou

estratégias de permanência sem precisar de um reconhecimento associado aos

veículos de comunicação. Ele se difundiu em comunidades de bairro, em

bailes familiares e tornou-se cotidianamente apreciado.

1.3 O surgimento do samba-rock

Com a colonização inicialmente, e, posteriormente, com as intensas

imigrações, aos poucos a dança de salão começou a proliferar-se e a integrar-

se à cultura latinoamericana. O modo de se dançar a dois ganhou intensas

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contribuições5 e acabou por produzir diversas maneiras de se dançar. Em

países como a Argentina e o Brasil, por exemplo, a dança de salão se difundiu

com enorme popularidade. Exemplos como a milonga, o tango, o maxixe, o

samba de gafieira, o forró, o samba-rock e outros, denotam o fenômeno da

mestiçagem em sua misturas. O Brasil tem uma diversificada teia cultural, na

qual músicas e danças representam elementos de extrema importância.

Durante a colonização, o massacre, a violência e a subserviência

aconteceram de forma intensa, mas junto com essa abominável forma de

exploração emergiu uma cultura extremamente rica e aberta. Desde o

descobrimento do Brasil, a cultura que se formava localmente teve, como

tendência, uma facilidade em acolher elementos de culturas vindas de fora,

transformando-se sempre pelo viés da mistura. Sobressaía uma forte tendência

a agregar, incluir e reconfigurar aquilo que Pinheiro (2005) chama de objetos

da cultura6: do que compõe cada cultura, como por exemplo, danças, comidas,

festas, músicas, contos, vestuários e etc. A contribuição destes elementos deu

ao Brasil um dinamismo efervescente, formando (dentre outras coisas) um

quadro diverso de danças e festas populares. Só para exemplificar a

abrangência desses objetos da cultura, além das danças de salão já

mencionadas, emergiram também novos modos de se tomar banho, vestir,

comer, amar, cozinhar, andar, rezar, beijar e etc.

Há estudos que se dedicam a pesquisar as misturas culturais como um

tipo de relação entre culturas distintas e, também, dentro de uma mesma

cultura, ou seja, refletir como e porque uma cultura se apropria de outras que

lhe são exteriores, ou como as informações culturais circulam e se 5 Contribuir não é o mesmo que influenciar. A ressalva se faz necessária para o entendimento da mestiçagem, como será desenvolvido posteriormente. 6 Anotação da aula dada pelo Profº Amalio Pinheiro no Programa em Comunicação e Semiótica da Puc-SP, em 16/08/2005.

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transformam dentro de uma mesma cultura. Segundo alguns destes estudos, o

nome que se dá ao processo que promove tais misturas é justamente a

mestiçagem. Vale destacar, de início, que esta terminologia (mestiçagem) aqui

diz respeito às transformações culturais e não às miscigenações raciais.

Mestiçagem e hibridação dizem respeito tanto a processos objetivos, observáveis em fontes variadas, como à consciência que têm deles os atores do passado, podendo essa consciência se expressar tanto nas manipulações a que eles se dedicam como nas construções que elaboram ou nos discursos e condenações que formulam (Gruzinski, 2001: 62).

A mestiçagem é intrínseca a qualquer cultura. Desde o homo sapiens

isto já é considerado um fato. Qualquer cultura é mestiça mesmo que (por

questões ideológicas) não se considere como tal.

Há evidentemente mestiços que seguem a perspectiva do que outrora se designava mulatismo: o mestiço que quer ser branco. Muitos híbridos não têm consciência da mescla. São híbridos que se imaginam “puros”. E, para respaldar essa perspectiva, podem reacender etnocentrismos de grandes nações. O híbrido, ao contrário, é marcadamente heterogêneo: um processo em contínua transformação sem ponto de chegada... (Abdala Júnior, 2004: 19).7

Mestiçagem e hibridação são conceitos usados por alguns autores como

sinônimos e referem-se tanto às questões raciais como à cultura. Nesta

dissertação ambos são empregados com o enfoque centrado nas questões

culturais.

O fenômeno das misturas sempre ocorreu de forma universal, mas é

importante ressaltar que, em cada período histórico e em cada sociedade, a

mestiçagem se efetivou e se efetiva de maneira diferente. Por exemplo: há

7 Apesar de não serem totalmente sinônimos, os conceitos de hibridismo e mestiçagem podem ser tratados como tal, visto que a bibliografia utilizada nesta dissertação se apóia em teóricos que utilizam ambos os termos quando descrevem seus objetos culturais.

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sociedades que tendem mais a se homogeneizarem do que outras, ou seja, têm

uma tendência a se afastarem de outras culturas, ficando cada vez mais

parecidas consigo mesmas. Tal tendência enfraquece a mobilidade cultural e

prejudica seu enriquecimento.

(...) O conceito de hibridismo, não obstante, favorece o

entendimento entre pessoas e povos desde que não se reduza a um

pastiche sem história. É das formas misturadas, crioulas, diríamos,

que é possível se promover uma coexistência contraditória, onde

cada unidade considerada não se anule na outra; ou então se feche

nas perspectivas da guetização ou dos fundamentos (Abdala Júnior,

2004: 19).

No estudo sobre danças de salão aqui proposto, é fundamental a

compreensão de que o fenômeno da mestiçagem se deu de maneira singular na

América Latina. Aqui a mestiçagem estará associada à colonização da

América Latina, e, mais especificamente, à do Brasil.

A colonização portuguesa, no Brasil, teve um diferencial que colaborou

imensamente, desde o descobrimento, para a formação de uma cultura

mestiça. Para Freire (2000), o fato de o Brasil ter sido colonizado pelos

portugueses (isso não exclui a Espanha deste processo, visto que os espanhóis

também ocuparam, nesta época, as terras e as fronteiras do Brasil) é um fator

que já o singulariza, pois, Portugal e Espanha têm, na sua história, diferenças

culturais em relação ao resto da Europa.

(...) Mas a verdade é que nem essas origens nitidamente portuguesas ou hispânicas, nem suas raízes católico latinas, fazem do Brasil simples e pura extensão da Europa, como a nova Inglaterra da Velha Inglaterra, e ainda, como a Nova Inglaterra do Cristianismo evangélico ou protestante que veio a predominar na América do Norte. E isto pelo fato universalmente conhecido de que a Espanha e Portugal, embora convencionalmente Estados europeus, não foram nunca ortodoxos em todas as suas qualidades, experiências e

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condições de vida européia ou cristãs, antes, por muito e importantes aspectos, parecendo um misto de Europa e África, de Cristianismo e Maometismo (Freire, 2000: 69).

“O Brasil é, de partida, mestiço”8 (Pinheiro, 2005). Um Brasil mestiço

desde sempre difere de outros países onde a mestiçagem (com maior

intensidade) acontece depois de sua formação. Configura-se, assim, no Brasil,

um ambiente em que a busca das origens primeiras, ou seja, de suas raízes, se

mostra uma tarefa infecunda e ficcional.

Na América Latina, o anterior puro nunca existiu. Somos uma sociedade de partida, mestiça. Tudo que aconteceu aqui nasceu com a confluência de inúmeros processos civilizatórios. Nós somos de partida, internacionais. 9 (Pinheiro, 2005).

Na Argentina, acerca do tango, Salas (1999) se serve de um tipo de

abordagem que desenvolve, de forma coerente, o jogo de relações que há entre

os elementos de uma cultura com o de outras, quando nela emerge uma nova

dança. O modo como analisa a complexa rede que constituiu e propiciou o

surgimento do tango na Argentina ajuda a compreender fenômenos

aparentados que ocorrem em outras danças.

Salas considera como fundamentais para a formação do tango as

inúmeras contribuições andaluzas, hispânicas, italianas, africanas, cubanas e

portenhas que ele contém. Curiosamente, ao apontar tais contribuições, não

atribui a qualquer uma delas uma soberania perante as outras10 (Pinheiro,

2005).

8 Anotação da aula dada pelo profº Amalio Pinheiro, no Programa em Comunicação e Semiótica da Puc-SP em 13/09/2005. 9 Anotação da aula dada pelo profº Amalio Pinheiro, no Programa em Comunicação e Semiótica da Puc-SP em 13/09/2005. 10 Anotações da aula dada pelo profº Amalio Pinheiro, no Programa em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, em 16/08/2005.

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Eis aí um exemplo de como tratar adequadamente, e de forma legítima,

um texto cultural mestiço, sem se utilizar a idéia de influência.

Junto com el final de siglo la confusión entre tangos andaluces y tangos criollos tiende a desaparecer y los temas de origem hispánicas quedarán sólo como antecedente, como el regusto de antiguas melodias, algunas de las cuales, convertidas en nullius, serán la base, e incluso la columna vertebral, de nuevos tangos. Ese cúmulo de habaneras, de tanguitos acupletados, constituirán el aporte español al tango. La otra inmigración y terminaría por imprimirle el aire melancólico, nostálgico, característico de la música rioplatense (Salas,1999:53).

Esse modo de tratar o tango pode ser aplicado às danças de salão e, mais

especificamente, ao samba-rock, pois se trata de dança que estampa, no seu

nome, duas geografias culturais. O tango emergiu reunindo diversos

elementos que se interpenetraram, tanto pelo viés musical como pela dança,

além também da poesia e das letras das canções que narravam a vida dos

portenhos. São elementos eróticos e dramáticos encontrados nas letras das

músicas, juntamente com uma dança de corpos colados e fechados um no

outro com um abraço um íntimo e introspectivo, “ uma danza introvertida: um

pensamiento triste que se baila” (Salas, 1999: 14). O tango portanto, está co-

relacionado com seu ambiente e nele a vida portenha é contada. O samba-rock

e o modo como surgiu também conta uma história de pessoas e lugares na vida

urbana de São Paulo.

Assim como o tango, todas as danças de salão são híbridas.

Historicamente, elas se formam sempre por contato com outras danças que,

por sua vez, já eram híbridas, sendo esse contato a condição necessária para o

seu surgimento. Ou seja, não existe dança pura, pois todas nascem de

processos de mistura, que são chamados de mestiçagem ou hibridação.

(...) entendo por hibridação processos sócioculturais nos quais

estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se

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combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe

esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de

hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes

puras (Canclini, 2003: XIX).

Nesse sentido, a mestiçagem já coloca a dança de salão fora de qualquer

rótulo de pureza, bem como fora também de discussões sobre identidade ou

originalidade. Seus passos são, geralmente, registros contaminados de outros

passos.

Por conta dessa mobilidade contaminatória que as caracteriza, as

fronteiras entre as danças de salão sempre foram bastante permeáveis - o que

possibilitou o aparecimento de diversas danças, ao longo do tempo. A hipótese

aqui é a de que a mestiçagem, na dança de salão, se mostra como uma

estratégia evolutiva, possibilitando que a mesma consiga emergir e

permanecer no mundo. Trata-se de uma construção que vai modificando-se e

atualizando seu modo de existir, favorecendo a produção de outras danças. Tal

estratégia funciona a partir de redes de comunicação que se tecem com as

informações do corpo e do ambiente, e que a teoria corpomídia explica como

se processam. A tristeza e o erotismo do tango, por exemplo, se relacionam

com a sociedade Argentina da época. Essa é uma das razões que corroboram

com esta teoria, e permite afirmar, portanto, que o tango é o corpomídia da

vida portenha.

O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação ( Greiner, 2005: 131).

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A contaminação, neste sentido, promove a comunicação e o aumento da

complexidade. No caso do tango, há um amalgamento relacional entre a

cultura e a vida. Funciona como estratégia de sobrevivência indispensável e,

ao mesmo tempo, intrínseca à cultura. Nessa dissertação, a cultura será tratada

como um sistema coevolutivo. O tango do início do século XX não é mesmo

dançado atualmente, como também o samba-rock dançado na década de

setenta se alterou com, por exemplo o aumento da velocidade dos passos.

Como qualquer produção humana, a dança modifica-se ao longo do tempo, articulando-se no mundo à maneira de um sistema cultural: através de trocas informativas de caráter contaminatório. Inteiramente diferente da noção de transferência de características, contida na idéia de influência, a idéia de contaminação contém um sentido não diretivo e nem autoral, mas constante e inevitável: refere-se ao caráter residual da interatividade processada entre os múltiplos agentes. Um relacionamento gerador de efeitos não planejados que se propagam ao longo do tempo (Brito, 2002: 14).

De modo inicial, pode-se dizer que um híbrido, e suas contaminações,

emergem a partir do encontro e da re-organização de informações que antes

existiam em outra relação com o ambiente. Uma vez organizado como um

existente, depois que as informações se juntaram, não se torna mais possível

identificar no híbrido exatamente onde começa ou termina esse processo

contaminatório. Com o híbrido, não se lida buscando identificar os elementos

que o originam, mas, sim, as formas de suas combinações.

Depois que um código de dança ganha estabilidade e se organiza em

inúmeros corpos pela contaminação, o exercício para compreender onde estão

cada um de seus elementos e onde termina a combinação das danças que se

hibridaram é inútil, pois, no corpo, as fronteiras são borradas. No caso do

samba-rock não se pode dizer qual movimento é única e exclusivamente de

um ou de outro.

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A dança de salão sobrevive no mundo como manifestação cultural

porque funciona estrategicamente como um sistema eficiente. Para que isto se

dê, está sempre se transformando para continuar a existir. Para permanecer, as

transformações acontecem pelas trocas das danças com o seu entorno e com

outras danças, em uma constante reelaboração de seus textos11 culturais.

A cultura é dinâmica quando os textos se hibridizam, ou seja, quando um texto colhe elementos de outros textos. A leitura destes objetos deve se dar pela mescla. Os híbridos não são textos próximos um do outro, ou organizados hierarquicamente, onde um elemento elimina o outro. São dois ou mais textos presentes que formam um terceiro móvel, portanto não causal e acabado 12 (Pinheiro, 2005: ????).

Sempre que há o cruzamento mestiço de uma dança com outra, a

organização de seus passos se complexifica. As danças de salão não resultam

da soma ou junção de outras danças. Conceitos como soma e junção não nos

ajudam a compreender este fenômeno em sua singularidade. Explicar as

misturas pelo viés da soma favorece um entendimento de cultura associado às

concepções pacíficas e harmoniosas de transformação e reforça uma visão da

cultura como sendo um campo em que a suposta influência de algo anterior e

mais acabado (Pinheiro, 2005) é o ponto original de algo que vem depois.

Já não servem isoladamente, sem readaptações, as aplicações teóricas que examinam as culturas híbridas a partir de binariedades (tradição e ruptura, alto e baixo, centro e periferia...) ainda que seja para invertê- las ou sintetizá-las. As articulações e deslizamentos entre local/internacional e o internacional/local esquivam-se de

11 Segundo Iuri Lotman, “entemos por texto, em um sentido amplio, cualquier comunicación que se haya registrado (dado) em um determinado sistema sígnico. Desde este punto de vista, podemos hablar de um ballet, de un espetáculo teatral, de un desfile militar y de todos los demás sistemas sígnicos de comportamiento como de textos, en una misma medida en la que aplicamos este término a un texto escrito en una lengua natural, a un poema o a un cuadro”. In: semiótica de la cultura. Nieves Méndes: ediciones Cátedra, 1979: 41). 12 Anotações da aula dada pelo profº Ama lio Pinheiro, no Programa em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, em 16/08/2005.

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qualquer tentativa de explicação dualista ou generalizante. Veja-se, por exemplo, o pequeno mapa de circulação musical (que inclui, como é sabido, corpo, dança, voz, espaços urbanos, filme, vídeo e assim por diante)´entre América Latina e Andaluzia, em ida e volta (Pinheiro, 2005???)

A leitura de um objeto híbrido deve ser feita com parâmetros apartados

de binariedades. A dualidade não dá conta de apresentar a complexidade

destes objetos. O samba-rock, por exemplo não é uma ruptura da tradição do

samba, mas ao contrário, ele reinventa-se com o rock.e se torna mais um

elemento dentro do universo dos sambas.

O entrecruzamento mestiço, portanto, pode confundir a percepção. Sua

trama se organiza em camadas descontínuas, onde as fronteiras entre o

conhecido e o não conhecido, ou entre o familiar e o não familiar, aparecem

transfiguradas. Essa trama, talvez, cause no espectador uma confusão. Aquilo

que Baumam (1999) chama de ambivalência.

A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas (Baumam 1995: 9).

A classificação e a nomeação de algo a partir de concepções que não

dão conta da realidade tal como ela se apresenta pode estar associada à

infrutífera tentativa de busca da ordem.

É por causa da ansiedade que a acompanha e da conseqüente indecisão que experimentamos a ambivalência como desordem – ou culpamos a língua pela falta de precisão ou a nós mesmos por seu emprego incorreto. E, no entanto a ambivalência não é produto da patologia da linguagem ou do discurso. É, antes, de tudo um aspecto normal da prática lingüística. Decorre de uma das principais funções da linguagem: nomear e classificar (...) (Baumam, 1999: 9).

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Tomando-se como moldura tais entendimentos, percebe-se que o

samba-rock é híbrido e ambivalente13. Observando um casal dançando samba-

rock, não se encontra de maneira ordenada onde há só elementos do “rock”,

ou só do “samba”, pois o híbrido re-combina de forma complexa a

organização dos movimentos do corpo e altera o jeito como as duas danças se

davam antes do contato. A comparação do samba-rock com os elementos que

o constituíram antes da mistura pode confundir o espectador se este, por

exemplo, tentar buscar na construção dos movimentos a soma de passos das

duas danças.

A prática de nomear, que depende da eficiência do ato de classificar, nos treina a condicionar a comunicação ao seu exercício. Tal entendimento, todavia, depende da crença de que o mundo é formado por objetos e/ou fenômenos discretos e distintos que se reúnem em grupos. Esse nomear que desenha topologias tem uma duração que lhe independe, pois tudo o que se põe no mundo segue um percurso que a mistura de acaso e causalidade configura (Greiner e Katz, 2005: 125-126).

Pesquisar o samba-rock, assim como qualquer outro objeto da cultura

brasileira, requer muito cuidado e atenção para que não se recaia em

entendimentos equivocados sobre o modo como se dinamiza esta cultura.

Neste sentido, “leituras homogeneizantes e totalizantes” (Pinheiro, 2005), não

servem à presente discussão, na qual vigoram tendências heterogêneas e

singulares. É o caso do prefixo afro, para querer dizer que algo vem

exclusivamente da África (dança afro, música afro). Esta classificação carrega

com ela a idéia de influência e, desconsidera a singularidade e a mistura.

Essas leituras homogeneizantes aparecem como tendências que

caminham no sentido de generalizar a cultura e a própria vida. São modos de

entendimento que desviam as pessoas da complexidade e da mobilidade. 13 Mais adiante, a pesquisa se detém nestes aspectos.

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A heterogeneidade e a singularidade geralmente incomodam as pessoas. Trazem com elas questões existenciais que perturbam a psique humana. Acreditar que a vida respeita uma ordem de causa e efeito seria um exemplo disto. São leituras “fáceis”, que insistem na passividade e podem aparecer, por exemplo, quando se pesquisa um determinado fenômeno cultural14 (Pinheiro, 2005).

A América Latina culturalmente tendeu a organizar-se de maneira

singular, como sucede a cada cultura. Exatamente por conta desse traço

singular, cada qual pede uma leitura que leve em conta as suas característica

próprias.

Nessa perspectiva, pode-se propor a dança de salão como sendo um

fenômeno composto de elementos lúdicos, eróticos, sonoros e corpóreos,

todos miscigenados, complexos, em permanente transformação. Na América

Latina, ela é apreciada e dançada por milhões de pessoas em múltiplas formas

de dança.

O hibridismo é, portanto, uma estratégia de sobrevivência da cultura

humana pautada pela ambivalência. Mas, para impedir que essa característica

comum se torne inespecífica, ela nos interessa aqui como acontecimento

localizado no samba-rock.

Na hibridização ocorre sempre uma reorganização de informações e

nada se preserva fora da ação desse contágio. Quando o processo acontece, as

informações disponíveis no ambiente se misturam. Tudo que emerge, dentro

do universo da cultura humana, pode ser entendido a partir desse viés. Sendo

assim, quando duas ou mais danças co-habitam um mesmo ambiente, há

grande possibilidade de ocorrer, ao longo do tempo, uma mistura entre elas. É

da natureza de qualquer organismo vivo, que deseja permanecer vivo,

14 Anotações da aula dada pelo profº Amalio Pinheiro, no Programa em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, em 16/08/2005.

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estabelecer trocas e acordos com o seu ambiente. Na cultura, por analogia,

acontece a mesma tendência da natureza. Os híbridos culturais representam

esse tipo de acordo.

(...) O relacionamento entre o mundo, o corpo que nele vive e a dança que este corpo faz, está baseado em mecanismos de comunicação, ou seja, mecanismos agregatórios de caráter interativo cujos efeitos se propagam ao longo do tempo, resultando em níveis variados entre as partes envolvidas. Mais do que uma estratégia de sobrevivência, este modo de operar é a maneira através da qual as coisas definem seu formato de existência e, portanto, suas condições para estabelecer seus nexos com tudo o que está à sua volta. Relacionar-se é ação comunicativa e dela depende o formato de uma identidade. Comunicar-se é, portanto, estratégia evolutiva (Brito, 2002:8).

É como híbrido que surge o jeito samba-rock de dançar. Do encontro

entre elementos de uma cultura local e elementos de uma cultura estrangeira,

ele emerge nos bairros populares da cidade de São Paulo. Seu surgimento

lembra o sucedido com o maxixe, pois estas duas danças tiveram uma relação

co-evolutiva com as suas músicas.

Com o passar do tempo, alguns ritmos aparecem, alguns permanecem e

outros desapareceram. O maxixe é um exemplo desse modo transitório de

permanência. Depois de surgir, ao final do século XIX, e ter o seu auge de

popularidade no início do século XX, desapareceu, deixando, no entanto, seus

rastros e vestígios no que hoje conhecemos como samba. E, se uma dança

sempre surge a partir de outras, basta lembrar que o maxixe teve como modelo

as formas de dançar dos europeus imigrantes, que trouxeram de seus países a

cultura de dançar a dois em salões de baile. O maxixe, portanto, também

surgiu junto com um quadro cultural infestado de várias danças e ritmos

musicais.

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Com o samba-rock se deu algo semelhante. Poucas pessoas se dão conta

de que ele é dançado com vários tipos de música.

Há uma variedade muito grande de músicas dançada no samba-rock: swing brasileiro, swing americano, rithm blues, uma boa parte do jazz, o partido alto brasileiro, a batucada brasileira, as baladas dos anos 60. Com Brenda Lee, uma cantora country americana, há mais de vinte músicas que são samba-rock.

Jimy Smith, jazzista, fantástico, músico e arranjador. Há um monte de músicas dele que são samba-rock.

George Benson, que é uma pessoa que tem um som, dos anos 70, e tem um som atual. Um músico que sempre se atualizou, musicalmente durante a carreira. O som dele tem samba-rock e também as melodia que a gente toca nos bailes para se dançar a lenta.

Herbert Albert, por exemplo: um maestro latino, de muito sucesso. Ele toca músicas guaranenhas. Há várias músicas dele que servem para a gente dançar.

Perez Prado, por exemplo: o mambo oito, o mambo cinco.

Toca-se bossa nova e também coisas que os djs produzem (Hits, 2005: em anexo).

O samba-rock tem essa mobilidade rítmica, e a multiplicidade das suas

contribuições musicais foi vital para o seu surgimento.

Como a cultura se organiza de maneira co-evolutiva, a troca de

informação possibilitada pela presença heterogênea de sons e danças gerou

“efeitos não planejados que se propagaram ao longo do tempo” (Brito, 2002:

14). Com o passar do tempo, os passos que constituem o samba-rock foram se

combinando e recombinando tendo como parâmetro a eclética sonoridade de

suas músicas. “A cultura é dinâmica quando um texto colhe elementos de

outros textos” (Pinheiro, 2005). Dança e música criaram, entre si, textos

entrelaçados, em que as escolhas das músicas e o jeito de dançar co-evoluiram

e criaram conjuntamente um repertório musical específico, repleto de passos

construídos simultaneamente.

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Seria impossível tentar demarcar onde os elementos de um certo tipo de

música e sua presença no corpo estão presentes, pois o híbrido, uma vez

organizado como existente, não permite a identificação de onde começa ou

termina o processo de contaminação que produz (pg.15). No seu contato com

um repertório musical variado, o samba-rock construiu em seus passos um

conjunto de movimentos que se organizaram de forma coerente com as

variedades sonoras e possibilitaram o acompanhamento rítmico de suas

músicas.

A pluralidade de músicas trouxe um traço distintivo ao samba-rock: fez

da atuação do dj um marco fundamental no seu desenvolvimento. Desde a

década de sessenta, os bailes são dançados com música mecânica (toca

discos), o que significa que a escolha do que tocar cabe ao dj. Seu Oswaldo15 o

primeiro dj do Brasil, precursor desta idéia montou um toca discos com

amplificador e animava festas familiares com músicas. Estes profissionais

eram, e ainda são, pesquisadores que procuraram e continuam a procurar

sonoridades musicais possíveis de serem dançáveis como samba-rock. Foram

os djs que construíram, ao longo do tempo, a trilha sonora dos bailes de

samba-rock.

Tudo que se toca de samba-rock foi descoberto por djs. Foram eles que pesquisaram. Eles compravam discos e ouviam para escolher a faixa que serviria para tocar. Percebendo que a música tinha um ritmo, decidiam tocar nos bailes. O Jorge Ben, por exemplo, fazia um som nos anos 70. A gente o intitula como o pai do samba-rock, mas ele nem sabia o que era samba-rock. Ele fazia um som que era o som dele. A gente pegava as músicas dele e colocava nos bailes. Há pouco tempo, falaram para o Jorge Ben sobre samba-rock e, ele disse que tocava samba, dizendo: eu toco swing, eu não toco samba-rock.

Os djs compravam muitos discos, gastavam bastante dinheiro. Faziam isso para pesquisar, e muitas vezes, só conseguiam tirar

15 A história de seu Oswaldo será contada na página ???????

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uma música do disco todo. Os discos que continham músicas de samba-rock passaram a ser raros, pois quando elas faziam sucesso, todos corriam para comprá-la e, em pouco tempo, os discos ficavam escassos (Hits, 2005: em anexo).

Como esta dança não acontece com um único tipo de música, seus djs

fizeram uma verdadeira garimpagem para encontrar os sambas-rock do

mundo. Vale sublinhar que as músicas encontradas e usadas nas trilhas

sonoras dos bailes não foram compostas para o samba-rock. A maioria de seus

compositores e cantores jamais ouviu falar em samba-rock, apesar de sua

música fazer sucesso nesses bailes. Há que destacar ainda que músicas nunca

tocadas em rádio também se tornaram hits nas pistas dos bailes.

Um exemplo é o Jimy Smith, um organista de Jazz, muito famoso. As pessoas adoram dançar samba-rock com algumas músicas dele. Agora, eu tenho certeza que se falassem a ele sobre o samba-rock ele perguntaria: - o que é samba-rock, meu amigo? - Eu sou um organista de Jazz. O mesmo acontece com Ray Charles. Mas isso acontece também, com músicos e cantores brasileiros. A Sônia Santos, por exemplo, gravou uma faixa num disco chamada de Poema rítmico do Malandro. Essa música nunca chegou a fazer sucesso em rádio e nem foi composta para se dançar o samba-rock, mas, entre os djs ela foi garimpada e divulgada nos bailes e se tornou um clássico no universo do samba-rock (Matoli, 2005: em anexo).

Recentemente a tecnologia computacional agregou outras sonoridades

ao samba-rock. O dj Loo é um dos profissionais que criam no computador as

novas músicas para o samba-rock. Tais djs fazem isso misturando uma música

na outra.

Atualmente, eu produzo minhas músicas no computador. Há recursos, nessa tecnologia, que permitem a mistura de várias músicas, para que se torne uma só. Este é o meu trabalho, eu mudo a música completamente. Com esta possibilidade tecnológica, eu rearranjo tudo e chego fazer com que uma música que não é um samba-rock transforme-se em samba-rock. É o que eu denomino de “suingar” a música. Acrescento, por exemplo, sons de ximbau e bateria e baixo.

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Uma de minhas músicas virou sucesso nos bailes e até as pessoas mais tradicionais gostam dela. Uma música francesa que eu misturo com a orquestra do Ray Coniff. O sucesso foi tão grande que produzi um disco de vinil com ela. Foram singelas cem cópias, pois a produção de um vinil atualmente é caríssima.

Tudo é aproveitável. Eu misturei seis músicas neste em um outro trabalho e tive o cuidado, como sempre, de equalizá- las de forma a não produzir a sobreposição de uma música com a outra. Há uma harmonia que deu certo nesta produção. Fazer este tipo de trabalho é o mesmo que fazer uma boa salada; não é só misturando todos os ingredientes de maneira aleatória que o gosto será bom. Há uma combinação de quantidade de ingredientes e também de tempero.

Quando eu estou fabricando estas músicas eu imagino o casal dançando. A criatividade surge com esse parâmetro (Loo, 2006: em anexo).

Como se observa, a dança chamada de samba-rock continua inventando

suas trilhas sonoras. Para Loo, estas novas sonoridades16 atraíram os mais

jovens para o samba-rock. Sim, pois há uma nova geração de samba-

roqueiros. Nas pistas eles dançam de modo distinto ao das gerações anteriores,

acompanhando essas novas texturas musicais com movimentos rápidos,

altamente complexos e difíceis de serem realizados. Segundo Loo, estas

músicas não agradam ao público mais antigo do samba-rock, que freqüenta os

bailes há mais de trinta anos.

De maneira geral, pode-se dividir, didaticamente, o público do samba-

rock em duas tendências: os que gostam das músicas mais antigas e dançam

mais lentamente, e os que apreciam músicas mais rápidas e misturadas. Essa é

uma divisão bem precária, visto que uma mesma pessoa pode gostar de dançar

das duas maneiras, mas serve como um parâmetro para se observar o samba-

rock e suas tendências.

16 Estas novas músicas não são somente as produzidas pelo dj Loo. Há músicas (que não foram feitas para o samba-rock), vindas de outros países que ele, assim como outros djs, baixam pela internet e t razem para seus bailes.

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O professor e dançarino profissional Flávio da Silva Assunção

(conhecido como Magoo) destaca alguns profissionais que representam o que

vem ocorrendo com o samba-rock.

Eu faço parte da nova geração do samba-rock, juntamente com, Cláudio Nostalgia, Cláudio Negrão, Edson, Marquinhos. Dançamos de outra forma. O Cláudio negrão deu um jeito diferente para o samba-rock, aquela coisa meio funk. Diferente do estilo trançado em que se dá muita ênfase aos enlaces dos braços. O estilo trançado é atual, porque antigamente dançava -se diferente (Magoo, 2006: em anexo).

Esta nova maneira de dançar está muito presente nos bailes e convive

com o jeito conhecido como “da antiga”. Este traço cultural deve ser

observado nas suas variadas maneiras de se dançar mas, especificamente, na

não exclusão de um ou de outro modo, pois se trata de uma característica que

faz parte das adaptações que colaboram para a permanência do samba-rock no

mundo.

1.4 O samba rock

As diversas danças de salão possuem, entre elas, certas

similaridades e, também, diferenças, fato que possibilita a nomeação de cada

qual. O samba rock surgiu a partir de dois códigos de dança de salão: o samba

e o rockabily17. Apesar de fazerem parte de uma mesma categoria de dança, a

dança de salão, ambos são diferentes em sua estrutura. No rockabily, a ênfase

é dada nos giros do casal, bem como nos saltos e nas acrobacias. No samba-

rock as pernas e o quadril aparecem como elementos para o acompanhamento

da cadência da música, enquanto os braços constróem enlaces pelo corpo.

17 Rockabily é uma vertente do rock & roll, onde sua música é dançada por casais. Ele surgiu nos Estados Unidos na década de 60.

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Além disso, musicalmente o samba e o rock & roll não possuem

semelhanças. O interessante começa já aí, nessa mistura entre os elementos

das duas danças que, no seu passado individual, apresentam formas distintas

de organização, sofrendo, portanto, processos próprios de transformação e

adaptação. A hibridação que ocorreu entre as duas danças merece atenção

especial por reunir culturas que, aparentemente, não se combinavam.

O aparecimento e a consolidação do samba-rock ocorreu entre as

décadas de 60 e 80. As duas informações (samba e rockabily) sobreviviam em

ambientes distintos, separados por milhares de quilômetros: o samba, no

Brasil (América do Sul), e o rockabily, nos Estados Unidos (América do

Norte). Ambos se encontraram devido a dois canais midiáticos: a tevê e o

rádio. Cabe destacar que foram os meios de comunicação que promoveram o

seu nascimento e, depois, o segregaram.

Não foi somente o rockabily, mas todo um modo de vida do cidadão dos

Estados Unidos que chegou ao Brasil pela televisão e pelo rádio. A tevê e o

rádio são veículos de comunicação com alto poder de fazerem memes18

proliferarem. Os memes dizem respeito ao processo de fazer com que uma

idéia se espalhe pulando de alguém para outro alguém. O meme seria na

cultura uma unidade replicadora de idéias. A sua alta taxa de reprodutibilidade

se dá por conta da amplitude de sua comunicação pelos veículos (contato

diário com todas as camadas sociais) e pelo modo como espetacularizam as

suas informações.

A transmissão cultural procede com a mesma lógica operativa da transmissão genética: de luta pela permanência no tempo, criando máquinas de sobrevivência para a unidade replicadora das suas espécies informativas. Dawkins batizou de meme esta unidade de

18 Termo utilizado por Richard Dawkins (1979) para tratar de questões ligadas à transmissão cultural. Este tema será mais aprofundado na página ??????????????????? .

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replicação da informação cultural, cujas máquinas de sobrevivência podem ser objetos, atitudes, discursos, crenças, valores, ou qualquer outro formato de idéias gerado pelo homem ao longo de sua vida (Brito, 2002: 39).

No pacote chamado rock & roll vieram, além da música, uma

quantidade de idéias e comportamentos, atitudes e modos de consumo da

sociedade estadunidense. Rock and roll era não somente um tipo de música,

mas também de dança, de como se vestir, do que beber e comer, de quais

lugares freqüentar, etc...

O rock & roll, que migrou pela mídia e chegou ao Brasil pela imagem,

trouxe, então, muito mais que somente a sua música nesse modo de vida a ser

copiado, desejado, e, preferivelmente, consumido. E entender o que aconteceu

com estas informações ao longo do tempo e como elas se transformaram em

samba-rock e qual o corpo daí nascido, é o que se busca refletir nessa

dissertação.

Vale atentar para uma peculiaridade: o samba-rock não é conhecido

internacionalmente como o tango e a salsa, por exemplo. O samba-rock

também não é popular, mesmo entre a maioria dos brasileiros. Muitos

desconhecem que ele surgiu em São Paulo, uma cidade com alta taxa de

complexidade, e que nasceu e continua concentrado em seus bairros

populares. Existem, hoje, inúmeros bairros populares que abrigam o samba-

rock, mas ele se difundiu, principalmente em seu início, nos lugares com alta

concentração de população negra. Para citar apenas alguns, podemos começar

pela Zona Norte: Vila Guilherme, Vila Brasilândia, Pirituba e Imirim.

Apesar de não ser popular em outras regiões do Brasil, e de não ter sido

divulgado nem reconhecido pelos veículos de comunicação de massa como

um fenômeno da cultura paulistana, o samba-rock permanece muito forte, até

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hoje, entre as pessoas que moram no que esses veículos chamam de periferia,

na qualidade de uma opção de lazer.

Nas festas familiares19 ou em bailes, ele continua sobrevivendo no

tempo e ganhando cada vez mais adeptos, o que indica que tem desenvolvido

uma boa estratégia de replicação. Mesmo durante muito tempo fora do rádio,

da tevê e do jornalismo impresso, ganhou estabilidade – o que revela um

projeto eficiente de sobrevivência, pois são poucas as danças que conseguem

permanecer durante quatro décadas em um mundo onde existem danças que

duram um único verão, ou aparecem e desaparecem em curtos espaços de

tempo. Conviver e competir com quem é divulgado pelos meios de

comunicação e sobreviver ainda forte e em franca expansão, até os dias atuais,

não é nem foi uma tarefa fácil. E nela, o bairro popular e seu tipo de

conviviabilidade específico, ocupam um papel central.

As danças que continuam no tempo, o fazem por conta dos acordos que

estabelecem com o seu ambiente. Esta não é uma tarefa simples e pacífica,

mas, ao contrário, complexa e conflitante, pois faz-se necessário enfrentar

todos os outros conjuntos de danças que também lutam para permanecer. Tudo

o que chega ao mundo luta para nele sobreviver e o sucesso dessa

sobrevivência depende do sucesso dos acordos adaptativos empreendidos.

Na biologia, são os genes que levam as informações adiante, passando-

as de um corpo vivo ao outro, através de sua descendência. E na cultura, é o

meme que faz esse papel, mas não por descendência e, sim, por propagação

horizontal. Basta um cérebro encontrar com outro para estar sujeito a ser

contaminado por outras idéias. Quem replica tal tipo de informação é o meme,

19 Festa familiar não deve ser entendida somente como uma festa entre as pessoas da família, mas como sendo um evento social no qual a vizinhança também participa.

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que corresponde ao papel do gene na biologia. Esse modo de descrever a

transmissão da informação cultural, proposto por (Dawkins, 1976), pode

colaborar para entender porque o samba-rock não desapareceu.

Os memes devem ser considerados como estruturas vivas, não apenas metafórica, mas tecnicamente. Quando você planta um meme fértil em minha mente, você literalmente parasita meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exatamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. E isto não é apenas uma maneira de falar – o meme, por exemplo, para “crença numa vida após a morte” é de fato, realizado fisicamente, milhões de vezes, como uma estrutura nos sistemas nervosos dos homens, individualmente, por todo o mundo (Dawkins, 1979: 214).

O ambiente do bairro popular favoreceu a permanência do samba-rock,

pois o tipo de convivência cotidiana que o caracteriza, com suas oralidades,

danças e festas, criou laços afetivos onde os memes do samba-rock foram

compartilhados, se fortaleceram, se distribuíram, se consolidaram.

1.5 O bairro

A cidade é o local onde culturas diversas se encontram.

(...) as fronteiras entre países e as grandes cidades são contextos que

condicionam o modo como a hibridação se processa, podendo

ocorrer de modo não planejado ou como resultado imprevisto de

processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou

comunicacional (Canclini, 2003: xxix).

Os bairros populares de São Paulo se caracterizam por uma população

formada por uma alta taxa migratória. Foi neles que o samba-rock emergiu e

continua sendo produzido. O tipo de convivência por relações interpessoais

intensas praticado nesses bairros forma o ambiente que possibilitou a

sobrevivência do samba-rock. Esses bairros diferem de muitos outros lugares

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da cidade justamente pela sua configuração como a de um espaço de

convivência interpessoal. Neste sentido, a rua, ainda hoje, é o lugar de

encontro, onde as pessoas conversam, ouvem música, brincam e desenvolvem

uma intensa sociabilidade. No bairro popular, a rua é um local onde se

constrói um universo de relações em que valores e crenças são

compartilhados.

Por outro lado, as vizinhanças favorecem o intercâmbio afetivo e a

construção de valores culturais. A estrutura arquitetônica, social e econômica

dos bairros populares favorece o encontro e a articulação de seus habitantes a

partir do tipo de relação que se estabelece entre as pessoas e o ambiente.

Santos (2000) salienta a necessidade de considerar as soluções fundadas

no tripé formado pelo território, pelo cotidiano e pela cultura.

A cidade é lugar onde há mais mobilidades e mais encontros. A anarquia atual da cidade grande lhe assegura um maior número de deslocamentos, enquanto a geração de relações interpessoais é ainda mais intensa. O movimento é potencializado nos países subdesenvolvidos, graças à enorme gama de situações pessoais de renda, ao tamanho desmesurado das metrópoles e ao menor coeficiente de “racionalidade” na operação da máquina urbana (Santos, 2002: 319).

Para Santos (1994), a horizontalidade está associada à noção de lugar,

ou seja, o espaço geográfico envolto numa relação de solidariedade entre

aqueles que co-habitam determinado fragmento espacial tomado por uma

contigüidade territorial. Já a idéia de verticalidade se faz verificar na relação

de desterritorialidade, ou seja, de pontos descontínuos, distantes, ligados por

interação virtual entre os agentes sociais e econômicos.

No bairro, há uma singularidade de construção cultural em que o

intercâmbio afetivo se intensifica com as intervizinhanças. Segundo Santos

(2002), a configuração geográfica da cidade grande é o lugar da diversidade

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sócioespacial, e pode se comparar com a biodiversidade ecológica do mundo.

A cidade grande possibilita a subsistência dos mais fracos.

Palco da atividade de todos os capitais e de todos os trabalhos, ela pode atrair e acolher as multidões de pobres expulsos do campo e das cidades médias pela modernização da agricultura e dos serviços. E a presença dos pobres aumenta e enriquece a diversidade sócio-espacial, que tanto se manifesta pela produção da materialidade em bairros e sítios tão contrastantes, quanto pelas formas de trabalho e de vida. Com isso, aliás, tanto se ampliam a necessidade e as formas da divisão do trabalho, como as possibilidades e as vias da intersubjetividade e da interação. É por aí que a cidade encontra o seu caminho para o futuro (Santos, 2002: 323).

Evidentemente, há similaridades e diferenças entre os diversos bairros

da cidade de São Paulo. De maneira geral, bairros são identificados pelos

veículos de comunicação por uma noção de geografia atualmente contestada,

pois se apóiam na dualidade entre centro e periferia. Apontar que um bairro se

localiza na periferia quer dizer bem mais do que identificar sua localização

geográfica em zonas (norte, sul, leste, oeste). Como São Paulo é uma cidade

muito grande, tecida por fluxos migratórios e imigratórios constantes, tratá-la

no viés do que é central ou periférico amputa a sua complexidade.

A questão geográfica também não deve ser pensada como se fosse

universal. Não há uma distinção clara entre o pertencimento entre coisas

originalmente locais ou nacionais. Segundo Canclini (2003), as diferenças

entre local, nacional e global se dão de maneiras distintas entre as cidades da

Europa, Estados Unidos e América Latina. Há uma forte tendência, nos

Estados Unidos, à guetificação e ao isolamento entre os grupos étnicos e,

também, uma intolerância e desconfiança para com os forasteiros.

Na Europa e nas cidades latino-americanas formadas a partir de modelos europeus, sobretudo espanhóis e portugueses, as cidades cumpriram funções modernizadoras e integradoras dos migrantes, tanto estrangeiros como de diversas regiões do próprio país. Mesmo

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estabelecendo uma relação entre bairros ricos e pobres, centro e periferia, fomentaram a convivência interética. Foi um modo desigual, mas, em geral, menos segregador, de articular o local com o proveniente de outras partes do mundo (Canclini, 2003: 154).

No caso de São Paulo, a articulação e o encontro entre as pessoas dos

bairros populares não se dá por uma estrutura segmentada, o que favorece o

enriquecimento e a proliferação da cultura. Segundo Santos (2003), os guetos

urbanos tendem a proporcionar uma proximidade comunicacional entre os

indivíduos devido a uma percepção das situações pessoais e de grupo e a uma

afinidade de destino, de caráter econômico e cultural.

Santos (2002: 327) diferencia a cultura de massa da cultura popular,

salientando que a primeira “se alimenta das coisas” enquanto a segunda “se

nutre dos homens”. A cultura de massa é “indiferente à ecologia social” e não

abre espaço para a diversidade, uniformizando e indiferenciando o mundo.

A cultura popular tem raízes na terra em que se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, através da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e seu meio, mas seu alcance é o mundo (Santos, 2003: 327).

A cultura popular emerge naquilo que Santos (2003: 284) conceitua

como “horizontalidade”, ou seja, num espaço geográfico onde a solidariedade

favorece a co-relação entre o ambiente e o individuo, não hierarquizando

ambos. Ao se tratar de qualquer fenômeno cultural da cidade de São Paulo,

este conceito deve ser levado em conta, poisem seus bairros bairros populares

não vigoram idéias de gueto ou de pertencimento a uma etnia fechada,

diferentemente do que acontece, segundo (Canclini 2003), em determinados

bairros dos Estados Unidos.

A comparação entre cidades da Europa, Estados Unidos, e América Latina é um bom recurso para verificar que a articulação entre as diferenças de cada urbe- e do local- nacional, e global nelas -varia

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notoriamente. Nos Estados Unidos, muitas cidades vêm se transformando segundo Amalia Singorelli, “em constelações de guetos miseráveis ou de luxo, reciprocamente segregados, que, quando conectam a circuitos nacionais de integração política, econômica e cultural, fazem-no de maneira isolada, cada um por si” (Canclini, 2003: 153).

A leitura de tais lugares não deveria ser pasteurizada, apagando as

singularidades. Apesar disso, tal prática é a comum nas tevês, nas rádios e na

imprensa. Há saberes e práticas muito diversos na cultura popular urbana que

se apresentam com lógicas próprias.

A cultura popular fala então não de algo estranho, mas de um resto e um estilo. Um resto: memória da experiência sem discurso, que resiste ao discurso e se deixa dizer só no relato. Resto feito de saberes inúteis à colonização tecnológica, que assim marginalizados carregam simbolicamente a cotidianidade e a convertem em espaço de uma criação muda e coletiva. E um estilo esquema de operações, modo de caminhar pela cidade, habitar a casa, de ver televisão, um estilo de intercâmbio social, de inventividade técnica e resistência moral ( Barbero, 1997: 115).

Os bairros populares compartilham modos de vida semelhantes,

independentemente de sua localização. Este é um fato curioso, já que, apesar

da separação entre um local e outro da cidade (zona norte e zona leste, por

exemplo), algumas práticas, principalmente no que tange à cultura, são bem

parecidas. Hábitos como os de jogar futebol na rua, empinar pipa, brincar com

bolas de gude, sair à rua para conversar com os vizinhos, sentar na calçada etc,

são comuns aos bairros, mesmo separados por distâncias grandes.

Para os que não freqüentam esses bairros, à princípio pode parecer

estranho, no entanto, um dos locais onde o fluxo de informações mais ocorre

e, portanto, mais promove difusão e contaminação, são as ruas dos bairros. É

claro que em outros lugares como, por exemplo, na escola, isso também se dá,

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mas a rua não pode ser ignorada quando se pretende falar de cultura e

mestiçagem em contextos urbanos.

A rua de um bairro popular é um local de encontro, uma extensão da

casa e não apenas um local de passagem de carros e pessoas. As crianças, os

jovens, os idosos e os adultos se encontram na rua. A conversa, o ‘bate papo',

o futebol, a fofoca, a brincadeira, a paquera etc, acontecem de maneira

freqüente neste espaço. A socialização de costumes passa por esse ambiente.

De uma rua a outra, de vizinho a vizinho, bairro a bairro, região a região

há um ir e vir de idéias que seguem trajetos, que se ramificam por uma lógica

complexa. O fluxo de informações circula por vias que não excluem os

veículos de comunicação, mas, ao mesmo tempo, no bairro popular, não

dependem somente deles para se replicar. Portanto, ao se falar em fluxo de

informação e em contaminação cultural, a rua deve ser levada em conta,

principalmente quando se trata de um bairro popular. Para compreender a sua

eficiência como veículo propagador de memes, basta lembrar que a

transmissão de informações nesse ambiente (rua) se dá principalmente pelo

canal da oralidade que ela propicia. Por essa eficiência é que o samba-rock

pôde sobreviver, mesmo estando desabrigado dos veículos de comunicação.

Para Barbero (2002), o bairro se constitui como um mediador

fundamental entre o universo privado da casa e o mundo da cidade,

proporcionando a construção de um “nós” e, de uma sociabilidade mais ampla

que a família e, mais densa e estável que a imposta pela sociedade.

El espacio social donde mejor se expressa el sentido de la dinámica que, desde lo popular, da forma a nuevos movimientos urbanos es el barrio, en cuanto territorio de despliegue de la resistencia y la creatividad cultural. Pero acordes con una sociedad en la que la separación entre trabajo y vida opera en desvalorización de lo segundo, la mayoría de los estuios sobre la vida en el barrio lo

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reducen a espacio de la reproducción, a espacio de lo familiar y lo doméstico, negándose así a ver el barrio como espacio de reconocimiento y construccion de identidades sociales (Barbero, 2002; 143).

Entender o bairro popular como um espaço de convivência específico,

onde se dão, simultaneamente, diversos processos de sociabilidade e um

contínuo ir e vir de informações, é pré-requisito para tratá-lo sem recair em

leituras precárias que estigmatizam e homogeneízam a complexidade destes

ambientes. No caso do samba-rock, sem compreender o funcionamento de um

bairro popular não se lida com a singularidade de sua constituição como um

objeto da cultura.

Colocar o corpo no e com o bairro é fundamental, já que, como vimos

com Santos (2003), os lugares não os são sem as pessoas e vice-versa. A teoria

corpomídia explicita a transmissão de informação entre corpo e ambiente,

ajudando a compreender os processos de conexão lugar-pessoa de que Santos

(2003) fala. Embora sejam propostas teóricas com especificidades próprias,

aqui estão empregadas cada qual com referência a um aspecto importante de

compreensão do funcionamento de bairro.

Falar em co-evolução significa dizer que não é apenas o ambiente que constrói o corpo, nem tampouco o corpo que constrói o ambiente. Ambos são ativos o tempo todo. A informação internalizada no corpo não chega imune. É imediatamente transformada e como explicou Edelman, mesmo quando o tema é a memória (que sinaliza fluxo de informação com alta taxa de estabilidade), há processos incessantes de recategorização. Não estoque, apenas percursos transcorridos e conexões já experimentadas (Greiner 2005: 43).

É bem provável que o samba-rock tenha emergido e se popularizado

através desse ir e vir de informação, visto que o mesmo sobreviveu na cultura

sem difusão pelos veículos de comunicação.

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Pode-se dizer que a cultura popular ‘sambou’ o rock estadunidense,

transfigurou-o já de partida, não possibilitando nenhum tipo de cópia ou

mímica exata. Um corpo que era acostumado a sambar, de repente teve que

criar novos ajustes motores para aprender a dançar rock e, nesta passagem de

um movimento a outro, houve uma reorganização de padrões motores que, ao

longo do tempo e coletivamente, se estruturou como uma nova dança.

Povos diferentes realizam experiências diferentes, que circulam e promovem contaminações. As diferenças não se desfazem, ao contrário, elas enriquecem o processo de contágio que regula os fluxos de informação entre corpos e seus ambientes. O resultado desse processo é a mestiçagem. E se há algo onde estamos mergulhados, é na mestiçagem. Por isso, a atualidade de Oswald de Andrade a nos conclamar a promover deglutições para impedir que nos tornemos escravizados uns dos outros. (Katz, conferência no Centre National de la Danse, Paris, out/2005).

Os bailes, na década de 70, aglutinavam as pessoas e promoviam um

encontro entre os dançarinos da cidade. O samba-rock, além de ser dançado

nos bailes, também era dançado (atualmente isso também acontece) em casa,

em festas de aniversário e de casamento, por exemplo. Essa é uma

característica importante do samba-rock. Ele não se restringe exclusivamente

aos lugares públicos mas, também, a um contexto em que se misturam o

familiar e o público no mesmo ambiente. As festas domiciliares tinham um

pouco desses dois universos e se constituíram como um outro espaço

propiciador da replicação dos memes do samba-rock.

Flavio da Silva Assunção, mais conhecido no samba-rock como

Magoo20 acentua, de maneira poética, esse dado.

Tem uma música que diz assim:

(...) “eu nunca fui numa casa de bamba

20 Magoo é professor de danças de salão em São Paulo, mas seu primeiro contato com a dança se deu pelo samba-rock. Ele representa uma geração de pessoas que aprenderam a dançar com os pais e familiares, fato comum no universo do samba-rock.

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dessas de partido alto, quintal e varanda”. (trecho do samba, ...)

Eu fui e vou nessas festas, onde se puxa uma lona no quintal.

O que acontece nessas festas: reúnem-se a família e os amigos, chama o vizinho, chama o gato, chama o cachorro, faz um churrasquinho e o rock come solto, com o bolachão (disco de vinil) lá do lado, é só samba-rock. E isso acontece até hoje. Foi desses lugares que saíram os grandes djs e as grandes equipes (Assunção, entrevista em anexo).

O professor Moskito, também cita a importância das festas e dos bailes.

Comecei a freqüentar os bailes de samba-rock com doze anos. Naquela época, eu morava na periferia de Osasco. Freqüentava os bailes tradicionais e também as festas de bairro. Todo sábado, junto com os amigos, ia perambulando pelo bairro à procura de alguma festa. Havia sempre o que se costumava chamar de “bailinho”. O bailinho poderia ser tanto uma festa de aniversário como uma festa de casamento. Era comum as festas acontecerem no quintal das casas. Usava-se sempre uma lona para cobrir o quintal e abrigar as pessoas. Nesses “bailinhos” tocava-se muito samba-rock e música lenta. Às vezes, nós nem conhecíamos quem estava casando ou aniversariando, mas entrávamos na festa mesmo assim. Não tinha muito essa coisa de ser barrado na entrada (Moskito,2005: em anexo)

Das relações entre amigos, conhecidos e desconhecidos, o samba-rock

sobreviveu. E o bairro, com sua vivência nas ruas e nos bailes, foi

fundamental em toda esta história.

(...) O bairro surge, então, como o grande mediador entre o universo privado da casa e o mundo público da cidade, um espaço que se estrutura com base em certos tipos específicos de sociabilidade e, em última análise, de comunicação: entre parentes e entre vizinhos. (Barbero, 1997: 274).

Um exemplo que relaciona as reflexões de Barbero (1997) e Santos

(2003), sobre o espaço geográfico como catalizador de sociabilidades que

mesclam o privado e o público, produzindo formas de vida e de trabalho, é a

história da carreira do dj Loo.Em Pirituba, bairro paulistano onde ele nasceu,

acontecia um baile semanal que era uma referência neste bairro entre 1965 e

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1985, tinha um pouco da mistura entre o universo familiar e as ruas, pois esses

bailes reuniam as vizinhanças de rua e de bairro. O dj Loo começou sua

carreira neste baile.

Minha história com o samba-rock começou desde criança. No quintal da minha casa tinha um barracão onde meu tio realizava bailinhos nos finais de semana. Minha mãe trabalhava na bilheteria. Era o baile do Toninho. Quando eu tinha por volta de quinze anos, o Toninho me presenteou com todos os seu discos e sua aparelhagem. Foi deste então que eu iniciei meus trabalhos como dj. Aqui, no bairro de Pirituba eu era a pessoa com o acervo mais completo de música de baile (Loo, 2006: em anexo).

Como se vê, as texturas da relação do samba-rock com o ambiente

foram construindo os seus modos de ser dançado. O jeito samba-rock de

dançar foi e continua acontecendo nestes lugares por um contínuo processo de

troca. Por não ser originado em um lu gar específico ou uma única região da

cidade, o fenômeno do samba-rock é marcado pela estruturação em rede. Uma

rede formada pela rua, casa, família, festas, vizinhos, amigos e os bailes.

1.6 Seu Oswaldo

Não se pode falar em baile de samba-rock sem citar uma pessoa que é

considerada, entre os freqüentadores dos bailes, como a precursora desta

história toda. Ele é chamado de “seu Oswaldo”, tem 70 anos de idade e foi o

primeiro dj21 do Brasil.

No livro, “Todo DJ já Sambou”, de Claudia Assef (2003), há um rico e

importante registro sobre a história dos djs no Brasil. Através de entrevistas,

os djs, daquela época contam como eram os bailes. O que se segue traz

depoimentos contidos neste livro. E também informações retiradas de uma

21 No final dos anos cinqüenta, não existia a expressão “dj”. Esses profissionais eram chamados de discotecários.

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entrevista cedida por “seu Oswaldo” a um programa de rádio, no ano de 2005.

O dj Toni Hits foi quem realizou a entrevista. Colocar a referência

completa em nota de rodapé procurar no site

Em 1957, o então técnico em concertos de rádio, Oswaldo Pereira,

funcionário de uma loja que montava e vendia aparelhos de som, teve uma

brilhante idéia. De maneira muito criativa, montou um sistema de som para

amplificar o volume de sua pequena vitrola caseira. Acostumado a discotecar

as festas de sua família, seu Oswaldo resolveu inovar o equipamento para,

segundo ele, abrilhantar mais o ambiente. As chamadas vitrolas-móveis não

dispunham de recurso para amplificação de som, mas “seu Oswaldo” “deu um

jeito” para que isso acontecesse. A vitrola, depois da modificação, tinha duas

saídas de canal com 50 watts cada uma, o que, na época, era considerado um

aparelho de grande potência. Com esse aparato tecnológico, “seu Oswaldo”

iniciou sua carreira como discotecário e, pode-se dizer, deu início a esta

profissão.

No bairro da Vila Guilherme (local onde nasceu e vive até hoje), zona

norte de São Paulo, ele começou a ser convidado para animar as festas de

casamento e aniversário, assim como piqueniques, com seu toca-disco. A idéia

deu certo e em pouco tempo seu Oswaldo ficou bastante conhecido pela

região.

Segundo Aseef (2003), em 1959, seu Oswaldo promoveu o seu primeiro

baile de salão. Foi no Clube 220, localizado no Edifício Martinelli. Havia

muitos bailes pela cidade, mas o baile no Clube 220 tinha um diferencial: não

era orquestrado. A trilha sonora da festa só acontecia com toca-disco, uma

coisa incomum na época. Foi uma invenção para atender aos que não podiam

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pagar o preço do baile orquestrado (freqüentado pela elite paulistana), porque

o bilhete de entrada custava muito caro. A idéia de seu Oswaldo era a de

promover um baile voltado para as pessoas que não tinham poder aquisitivo,

mas apreciavam as músicas orquestradas”.

Hoje aposentado, seu Oswaldo descreve, orgulhoso, a sensação de segurar um baile só com música mecânica: “Montei meu toca discos no palco, distribuí as caixas de som pelo salão. As pessoas que iam chegando não entendiam direito como um som tão potente saía da minha vitrolinha. Tinha gente que subia no palco para ver. Às vezes, eu ficava escondido num cantinho ou deixava a cortina fechada. Aquele sonzão todo e nenhum músico, o pessoal ficava meio assim” (Assef, 2003:22).

O nome que seu Oswaldo deu à sua equipe de som, não poderia ser

outro: Orquestra Invisível Let’s Dance.

Segundo Assef (2003), seu Oswaldo, nos seus bailes, escolhia como

trilha sonora músicas estrangeiras e também as nacionais. Entre os

estrangeiros estavam: Glenn Miller, Stan Getz, Ray Charles, Frank Sinatra,

Johnny Mathis, Ray Conniff. Entre os nacionais: Bolão e Valdir Calmon,

Golden Boys, Elza Soares e Miltinho, Eduardo Lincoln, Claudete Soares, Trio

Ternura.

No final dos anos 50, São Paulo tinha bons salões de baile. Os mais

famosos eram o Clube Holms e o Alepo, ambos na avenida Paulista; o Clube

220, no Edifício Martinelli; o Coimbra e o Salão 28, ambos na avenida São

João; o Salão Campos Elíseos, na Barra Funda; o Royal, na rua Lopes Chaves;

o Palácio Mauá, no viaduto Maria Paula; o Paulistano, na rua da Glória; o

Clube Piratininga, na alameda Barros; a Casa de Portugal, na avenida

Liberdade; e o som de Cristal, na rua Rego Feitas (Assef, 2003:21).

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Segundo Hits (2005), além dos bailes nas regiões centrais, era comum a

sua realização nas Sociedades Amigos de Bairro e também nos domicílios.

Os primeiros bailes black foram criados para as pessoas de poder aquisitivo menor, pessoal que não tinha dinheiro para ir nos bailes orquestrados. Porque nos anos 50, os bailes que prevaleciam eram os bailes de orquestra. Eram bailes onde a pessoa precisava comprar um terno, precisava ter um sapato bom para ir. O povo de bairro não tinha condições financeiras para ir a essas festas. Então, foram criados esses bailes, com som mecânico (sem orquestra). Eram bailes baratos, feitos em casa, na garagem, nas Sociedades Amigos de Bairro, nos salões dos bairros, para dar condições para que essas pessoas pudessem também participar de festas. Isso foi se alastrando por toda a grande São Paulo. (Hits, 2005: em anexo).

Desde então, surgiram inúmeras equipes especializadas na produção de

bailes. Muitas não existem mais e, atualmente, duas delas cresceram muito e

organizam grandes bailes: a equipe Musicália e a Clássicos da Nostalgia.

Os Carlos, que são os pioneiros, e ainda estão fazendo os bailes. Eles começaram em 1966. Há também, Mistura Fina, Musicália etc.

A equipe: Clássicos da Nostalgia é a mais nova. É uma equipe que nós criamos há cinco anos.

Há equipes de porte menor, que fazem os bailes para um público menor. Isso acontece em salões menores, nas periferias. Em salões de Sociedade Amigos do Bairro. As festas, aqui em São Paulo, acontecem em grandes bailes e também em pequenos bailes. Há bailes para duas mil e, também, para trezentas pessoas (Hits, 2005: em anexo).

Devido à recente popularização do samba-rock pela mídia, estas festas

voltaram a acontecer com mais freqüência e com um aumento da oferta de

locais para se dançar. Depois de quarenta anos, desde seu surgimento, só

atualmente o samba-rock vem ganhando espaço na televisão e nas rádios. É

preciso dizer em quais programas, como isto pode ser percebido e desde

quando começou essa mudança.

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1.7 A emergência do samba-rock Se diante do índio a tendência mais forte é pensá-lo como primitivo e,

portanto um outro, fora da história, diante do popular urbano a

concepção mais freqüente é negar pura e simplesmente sua existência

cultural (Barbero, 1997).

As questões em torno da relação colonizador-colonizado e da noção de

identidade cultural desenvolvidas pelo crítico indiano pós-colonial Homi

Bhabha, em seus textos sobre crítica literária, fornecem subsídio para se

afirmar que não há uma essência imutável em nenhuma cultura. Os conceitos

desenvolvidos por este autor estão ligados ao contexto da presente discussão

(hibridismo, tradução cultural e ambivalência), especialmente porque tratam a

respeito do papel da cultura nas relações de poder. Bhabha (1998), em seu

estudo sobre mímica e ambivalência, foca especificamente a construção

híbrida da identidade do sujeito colonial inglês - o que não quer dizer que seus

estudos não possam ser deslocados para outras áreas onde a questão do

colonialismo também vigora. A questão da mímica, por exemplo, é central na

replicação do samba-rock.

Aqui, faz-se necessária uma co-relação entre esses conceitos vindos da

crítica literária e os estudos contemporâneos das ciências cognitivas e

neurociências, visto que o foco desta dissertação se apóia, em sua maior parte,

na relação entre corpo e ambiente. O conceito de corpomídia desenvolvido por

a Katz & Greiner. deixa clara essa evidência:

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Quando se olha para o corpo humano, percebe-se que se trata de um exemplo privilegiado para deixar explícito o tipo de relacionamento existente entre natureza e cultura. Não há outro tão apto a demonstrar-se como um meio para que a evolução ocorra. O objetivo de apresentar o corpo como mídia passa pelo entendimento dele como sendo o resultado provisório de acordos contínuos entre mecanismos de produção, armazenamento, transformação e distribuição de informação. Trata-se de instrumento capaz de ajudar a combater o antropocentrismo que distorce algumas descrições do corpo, da natureza e da cultura (Katz & Greiner, 2001).

Greiner (2005) coloca que o corpo não é um mero processador das

informações que chegam até ele, pois estas são sempre negociadas com as que

nele já estão. No corpo, as informações não são abrigadas, pois a informação

se torna o próprio corpo. A noção de abrigo carrega uma ligação com o

conceito de corpo-embalagem, que o corpomídia nega.

As idéias de mímica e tradução cultural de Bhabha, (1990);

Pinheiro,(2005); Baumam, (1999), e alguns estudos desenvolvidos

recentemente nas ciências cognitivas a respeito de como as informações co-

habitam o corpo e o ambiente, via Pinker (2004) e Dennet (1998), serão

empregados como operadores teóricos para o entendimento aqui proposto, ou

seja, para se investigar como o samba-rock se formou. Mas não serão

exploradas nas suas singularidades conceituais, uma vez que tal não é a

proposta da presente dissertação.

Souza (2004), ao apresentar o conceito de hibridismo desenvolvido por

Bhabha, coloca que este autor entende a cultura enquanto uma construção

híbrida, em que há sempre um processo de tradução cultural. Tradução, neste

caso, não como um livro traduzido, no sentido estritamente lingüístico mas,

pela incompletude e o deslocamento.

Perseguindo esse conceito, a tradução é também uma maneira de imitar, porém de uma forma deslocadora, brincalhona, imitar um original de tal forma que a prioridade do original não seja reforçada,

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porém pelo próprio fato de que o original se presta a ser simulado, copiado, transferido, transformado etc: o” original nunca é acabado ou completo em si. O “originário” está sempre aberto à tradução (...) nunca tem um momento anterior totalizado de ser ou de significação – uma essência. O que isso de fato quer dizer é que as culturas são apenas constituídas em relação àquela alteridade interna, a sua atividade de formação de símbolos que as torna estruturas descentradas – é através desse deslocamento ou limiaridade que surge a possibilidade de articular práticas e prioridades culturais diferentes e até mesmo incomensuráve is (Bhabha 1990: 210-1, apud Souza 2004:125).

Uma vez que o samba-rock emergiu a partir de questões ligadas ao

trânsito de informações entre corpo e ambiente, isso significa que ele nasce e

se mantém como uma ação tradutória permanente, fazendo parte do fluxo

inestancável de transformações que as informações promovem. Portanto, o

corpo com suas estruturas neurais promove o trânsito entre o fora e o dentro

do corpo de maneira tradutória

O primeiro passo para ligar a cultura às ciências da natureza é reconhecer que a cultura, apesar de toda a sua importância, não é um miasma que penetra nas pessoas através da pele. A cultura depende de um conjunto de circuitos neurais responsável pela proeza que denominamos aprendizado. Esses circuitos não fazem de nós imitadores indiscriminados; têm de funcionar de modos surpreendentemente sutis para possibilitar a transmissão da cultura. Por isso é que o enfoque sobre as faculdades inatas da mente não é alternativa a um enfoque sobre aprendizado, cultura e socialização, e sim uma alternativa de explicar como essas faculdades funcionam (Pinker, 2004: 92-93).

Pinker22, (2004) trata a cultura não como algo que está fora do corpo,

num mundo de idéias transcendentais e independentes, mas como um espaço

de relações informacionais entre o que está dentro e o que está fora. O corpo

não é uma tábula rasa onde a cultura se inscreve, pois existe uma

complexidade de acordos presentes no processo de transmissão cultural.

22 Steven Pinker é professor de psicologia em Harvard, foi professor assistente da Universidade de Stanford e diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do MIT. No Brasil, tem os seguintes livros traduzidos: O Instinto da Linguagem ( )Como a Mente Funciona (1998) e Tábula Rasa (2004).

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Vejamos o caso da língua nativa de uma pessoa, que é uma habilidade cultural aprendida por excelência. Um papagaio e uma criança aprendem alguma coisa quando são expostos à fala, mas só a criança possui um algoritmo mental que extrai palavras e regras das ondas sonoras e as usa para emitir e entender um número ilimitado de novas sentenças. O dom inato da linguagem é, de fato, um mecanismo inato para aprender a língua. Da mesma forma, para aprender sobre cultura as crianças não podem ser meras câmara de vídeo que registram passivamente visões e sons. Elas têm de ser equipadas com mecanismos mentais capazes de extrair as crenças e valores que fundamentam o comportamento de outras pessoas, para que possam tornar-se, elas próprias, membros competentes da cultura (Pinker, 2004: 93).

Entender como o cérebro funciona ajuda a desconstruir uma idéia muito

presente ainda no discurso, tanto acadêmico como do senso comum, ao

entenderem o corpo como um recipiente passivo onde a cultura se inscreve, ou

então, do corpo como um agente que produz a cultura na natureza. O cérebro

desse corpo, segundo alguns cientistas (Antonio Damasio, Daniel Dennet,

Richard Dawkins), age em relação co-dependente com o ambiente, através de

um processo recíproco e co-evolutivo de construção. É na relação do corpo

com o ambiente que se constrói evolutivamente a cultura. Olhando o corpo

com estes entendimentos, nos tornamos aptos a não separar natureza de

cultura.

Devo dizer desde já que considero essas “mais novas e melhores” teorias da tábula rasa altamente implausíveis – de fato, dificilmente coerentes. Nada vem do nada, e a complexidade do cérebro tem de provir de algum lugar. Não pode nascer apenas do ambiente, pois todo propósito de possuir um cérebro consiste em realizar certos objetivos e o ambiente não tem idéia de que objetivos são esses. Determinado ambiente pode acomodar organismos que constroem diques, migram orientados pelas estrelas, trinam e gorjeiam para impressionar as fêmeas, marcam árvores com seu cheiro, escrevem sonetos etc (Pinker, 2004: 113).

As diversas culturas, ao se encontrarem, podem criar conexões que

propiciam, ao longo do tempo, a possibilidade da mestiçagem entre seus

elementos. Isso pode se dar no corpo através da mímica, que é uma estratégia

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de sobrevivência. Não à toa, foi também a mímica um dos formantes do

samba-rock.

As pessoas têm desejos e necessidades e quando culturas entram em contato, fatalmente as pessoas pertencentes a uma não deixarão de notar quando seus vizinhos estão satisfazendo suas necessidades melhor do que elas próprias. Quando notam, a história nos mostra, desesperadamente tomam de empréstimo o que quer que funcione melhor. Longe de serem monólitos autopreservativos, as culturas são porosas e fluídas (Pinker, 2004:100).

O empréstimo começa pela imitação. A imitação é a primeira

ferramenta que o ser humano utiliza para aprender. “É por imitação, em um

sentido amplo, que os memes podem replicar-se” (Dawkins, 1979: 216).

Bhabha (1998) também apresenta a mímica como estratégia, salientando

que ela emerge como uma das estratégias mais ardilosas do poder e do saber

coloniais.

Se me permitem adaptar a formulação de Samuel Weber sobre a visão marginalizante da castração, então a mímica colonial é o desejo de um Outro reformado, reconhecível, como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente. O que vale dizer que o discurso da mímica é construído em torno de uma ambivalência; para ser eficaz, a mímica deve produzir continuamente seu deslizamento, seu excesso, sua diferença (Bhabha, 1998: 130).

O samba-rock se construiu por essa mímica – uma estratégia que produz

não uma cópia autêntica de um original, mas, pelo contrário, constrói, pela

ambivalência, uma dança que é quase a mesma, mas não exatamente.

É apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação que começamos a compreender porque as reivindicações hierárquicas de originalidade ou “pureza” inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes de recorrermos às instâncias históricas empíricas que demonstram se u hibridismo (Bhabha, 1998: 67).

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O corpo e suas informações neurais não são imitadores indiscriminados.

Há, nesse processo, um jogo complexo de inter-relações que, por sua vez,

favorece a emergência do novo. Em termos evolutivos, a imitação foi

selecionada por favorecer aos seres sociais de qualquer espécie o aprendizado

de uma determinada técnica. O samba-rock é um exemplo disto.

Entender como isto se processa, tanto num nível macroscópico (um

passo do samba-rock, por exemplo) quanto num nível microscópico (como o

corpo e suas estruturas neurais se organizam), pode contribuir para o desafio

de entender cultura e natureza de uma maneira co-evolutiva.

(..) A questão é que para apostar na estabilidade sistêmica de uma cultura, sobretudo em ambiente predatório, é preciso criar táticas de sobrevivência que garantam um mínimo de preservação e adaptabilidade evolutiva. Neste universo em que a história e a memória são construções sígnicas e a cultura é processo, vale apostar na estabilidade das relações e na continuidade dos processos cognitivos, ao invés de investir todos os esforços na durabilidade das coisas. A taxa de permanência das idéias encontra o seu lastro no continuum entre natureza e cultura. Prova, a todo o instante que é resultado de atividades de outra natureza, senão da própria carne. “Carne que pensa”, como lembra o cientista Steven Pinker (2000). O percurso sensório motor, dentro e fora do corpo, garante a fome epistemológica que tratará de nos manter vivos (Greiner, 2005: 104).

Portanto a cultura não adentra no corpo. O corpo é cultura.

Neste caminho bibliográfico o jeito de lidar com os fenômenos culturais

(Dennet, Pinker, Damásio, entre outros) transita entre as ciências biológicas e

humanas. São produções de conhecimento que emergem das fronteiras entre

os campos das ciências humanas, exatas e biológicas, e compartilham zonas

caracterizadas por uma alta taxa de permeabilidade. Natureza e cultura, duas

instâncias que são vistas, na maioria das vezes, como se fossem apartadas,

têm, com esses teóricos, um tratamento que salienta as relações entre ambas.

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Com tais entendimentos, pode-se falar de questões culturais fora da

hierarquização entre natureza e cultura. Ao relacionarmos teóricos de

diferentes campos do saber, como Bhabha na literatura e cultura, Pinker e

Dennet nas ciências cognitivas, Souza na sociologia da cultura, um eixo

comum se orienta e, é central para a compreensão do fenômeno samba-rock

em São Paulo: o hibridismo na relação corpo e cultura, ou seja, como

elementos de culturas diferentes, a estadunidense do rock & roll e a brasileira

do samba, num determinado momento são mimetizados por corpos que

sambam e, numa mescla criativa, organizam um modo de dançar que não é

uma coisa nem outra, mas uma terceira móvel e aberta.

O conceito de meme nos ajuda a entender como o samba-rock resistiu

ao silêncio da mídia.

O novo caldo é o caldo da cultura. Precisamos de um nome para o novo replicador, um substantivo que transmita a idéia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. “Mimeme” provém de uma raiz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como “gene”. Espero que meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada a “memória”, ou à palavra francesa même ( Dawkins, 1976: 214).

Na mídia, o universo cultural dos bairros populares é, muitas vezes,

deixado de lado, e o samba-rock nem sequer é citado. O que do bairro se fala

está reduzido, em sua grande maioria, aos noticiários policiais que exploram a

pobreza e a violência e perpetuam um estigma desvalorativo em relação às

pessoas que moram nessas regiões.

Os estudos sobre a cultura podem se realizar com o entendimento de

que existe, além da evolução biológica explicada por Darwin (1859), uma

outra evolução, a cultural, que Dawkins (1979) chama de evolução memética,

se baseia na teoria da evolução para desenvolver seus argumentos.

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Quando Darwin nos ensinou, em 1859, com seu livro divisor de águas Sobre a Origem das Espécies, que a luta pela existência é o princípio unificador da vida, humana ou não humana, e que a vida não passa de um estado precário, que tem a seleção natural como seu motor, os entendimentos sobre a cultura tornaram-se carente de uma revisão (Katz, 1998: 14).

O meme, segundo Dawkins (1979), é uma unidade de transmissão

cultural, um novo tipo de replicador que surgiu nesse planeta e se propagou

pelos corpos humanos de modo análogo ao gene. Quando Dawkins apresenta

seus argumentos sobre o meme, ele o faz por analogia ao gene. Assim como o

gene promove a replicação das células nos organismos, o meme, na cultura

age de maneira análoga.

Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido em uma palavra: cultura . Não usei a palavra em um sentido esnobe, mas como os cientistas a usam. A transmissão cultural é análoga à transmissão genética no sentido de que embora seja basicamente conservadora, pode originar um tipo de evolução (Dawkins, 1979: 211).

Um meme pode desaparecer sem deixar vestígios, pode se transformar a

tal ponto de ser impossível delimitar suas misturas, pode se perpetuar durante

centenas de anos, mas sempre dentro do processo evolutivo. A capacidade de

se replicar é um ponto fundamental na sobrevivência de um meme. Portanto,

quanto mais ele for conhecido, mais chances de sobrevivência terá.

Da mesma forma como os genes se propagam no ‘fundo’pulando de corpo em corpo através dos espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no fundo de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação (Dawkins 1976: 214).

Dennett (1998) chama a atenção para um detalhe importante a respeito

da analogia entre meme e gene proposta por Dawkins, enfatiza que o mesmo

entende a evolução dos memes não apenas por analogia à evolução genética

mas sublinhando que a evolução memética obedece exatamente às leis da

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seleção natural. Dennett se refere a Dawkins, a respeito desse assunto, com o

seguinte argumento:

A teoria da evo lução pela seleção natural é neutra, ele sugere, considerando as diferenças entre memes e genes; estes são apenas tipos diferentes de replicadores evoluindo em meios diferentes e em ritmos diferentes. E assim como os genes de animais não poderiam ter começado a existir neste planeta antes que a evolução das plantas pavimentasse o caminho (criando a atmosfera rica em oxigênio e nutrientes facilmente disponíveis que poderiam ser convertidos), a evolução dos memes não poderia ter se iniciado antes que a evolução dos animais abrisse o caminho criando uma espécie- homo sapiens- com cérebros que pudessem proporcionar abrigo e hábitos de comunicação que pudessem fornecer os meios de transmissão dos memes (Dennett, 1998:359-360.).

A replicação de genes acontece pelo DNA, uma molécula replicadora.

Os memes se proliferam pelo que Dennet (1998) chama de veículo memético,

que inclui: quadros, livros, ferramentas, danças, prédios etc. A existência de

um meme se materializa nos mais diversos objetos. Um meme, para

sobreviver, precisa de um lugar para se configurar e se multiplicar, pois

quanto mais cópias se replicarem, mais chances de sobreviver o meme terá.

Assim como na evolução pela seleção natural, a evolução memética acontece

por competição.

O estoque de mentes é limitado, e cada mente tem uma capacidade limitada de memes; portanto, há uma forte competição entre os memes para entrar no maior número de mentes possível Essa competição é a principal força seletiva na infosfera, e, assim como na biosfera, o desafio tem sido enfrentado com grande engenhosidade (...) Como um vírus irracional de um meme depende de seu projeto – não de seu projeto “interno”, não importa qual seja ele, mas do projeto que ele mostra ao mundo, o seu fenótipo, a maneira como ele afeta as coisas em seu ambiente. As coisas em seu ambiente são as mentes e outros meme (Dennet, 1998:363-364).

Tendo em vista tudo isso, vale se deter no fenômeno samba-rock

buscando as estratégias nele desenvolvidas para enfrentar a ausência do

veículo de distribuição de memes por excelência: os meios de comunicação.

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Fora dos jornais, revistas e tevês, o samba-rock não desapareceu porque

encontrou outras formas de replicação de si mesmo.

Se os veículos meméticos carregam em seu design uma idéia ou um

conjunto de idéias a respeito de algo, a dança e o modo como ela se organiza

no corpo podem ser investigados como sendo também um conjunto de idéias e

entendimentos de mundo. O samba-rock, portanto, pode ser tratado como um

conjunto de memes corporificados. O local onde ele se materializa não é um

livro, uma pintura, ou em qualquer outro artefato, mas sim no corpo que

dança.

Vale destacar aqui que o conceito de corpo não é o de um suporte para a

dança, mas o de um trânsito permanente das informações que nele se dão a ver

(corpomídia). A dança é um fazer corpóreo, ela se faz corpo. Tal compreensão

não é da dança como aquilo que um corpo expressa, pois o corpo não é aqui

entendido como sendo um recipiente que espera por conteúdos que o

preencham para que possa expressá-los. Portanto, o meme não é uma idéia

que adentra num corpo. Ela se torna corpo porque promove acordos.

As chances de um sistema garantir sua continuidade no tempo estão, portanto, diretamente relacionados com a plasticidade do seu design, ou seja, a capacidade do sistema de alterar a configuração da sua estrutura para garantir a continuidade dos seus processos de permanência (operações interativas) respondendo a condições de conectividade representadas pelo desing dos outros sistemas, e de seu ambiente (Brito, 2003:49).

Capítulo 2- São Paulo e o samba-rock

2.1 A Mestiçagem do samba-rock

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Não há registros escritos que apresentem o samba-rock e sua história.

É curioso imaginar que uma dança apreciada e dançada por milhares de

paulistanos, há mais de quarenta anos, seja desconhecida na própria cidade e

também no Brasil. Investigar a história do samba-rock revela-se uma

oportunidade para descobrir traços da cultura paulistana ainda não conhecidos

pela maioria das pessoas. O objetivo aqui é o de apresentá-lo como uma

manifestação da cultura popular urbana da cidade. Para acompanhar seu

surgimento, e a sua consolidação, é importante frisar que não se fará um

retorno ao passado tal e qual, pois se sabe que isto é impossível pela própria

dinâmica do tempo.para o resumo

Nesta dissertação, o acesso à história do samba-rock propõe-se através

de relatos orais de quem faz parte deste universo cultural. Isso não quer dizer

que as informações coletadas por este método de investigação estejam

preservadas e intactas. Só se fala do passado com a interferência do presente,

sabemos do passado pela sua ressonância na atualidade (Brito, 2002:57).

As informações não permanecem intactas no tempo: expandem-se continuamente no mundo, replicando-se sempre que as condições do meio forem favoráve is à sua atividade interativa. E o estoque de informações acumulado no ambiente, ao longo do tempo, altera-se constantemente por conta das novas estruturas que emergem da auto-organização de todo o sistema, e dos erros de cópia gerados nas replicações sucessivas. Compreender a configuração cultural atual é compreender que o que está aí permaneceu no tempo sob diferentes designs devido à sua plasticidade, que permitiu acordos adaptativos com o ambiente (outras estruturas), os quais, por sua vez, mostraram-se eficientes como estratégia de continuação dos nexos de sentido entre os sistemas envolvidos ( Brito, 2002: 58).

Os registros históricos do samba-rock estão no universo da memória

coletiva. Os relatos orais são os arquivos disponíveis para o acesso à sua

história.

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Segundo Katz (2005), o presente expandido é do fluxo de informações

entre corpo e ambiente (...).

Um corpo que samba hoje, requebra diferente do samba dançado há quarenta anos, quando as relações entre carnaval e televisão não eram como agora, nem tampouco o contato entre morro e cidade. Com isso, a própria noção de como era o samba e o corpo que sambava há quarenta anos também se modifica, uma vez que é com olhar de hoje que os lembramos. As informações vão encostando e transformando, tanto a si mesmas (o passo do samba no caso), quanto o ambiente (o corpo que dança esse passo), quanto a própria idéia de samba, tanto a de hoje quanto a do passado. São conexões que não obedecem à seqüência temporal linear do relógio, pois se dão em rede, em todas as direções. Olhamos o passado a partir do que se sucedeu no tempo depois dele. É com o futuro que se lê o passado (Katz, conferência no Centre Nacional de lá Danse, Paris, out/2005).

São Paulo reúne um mosaico de pessoas e lugares, nela não há uma

cultura mas, sim, um caleidoscópio de culturas, responsável por uma contínua

transformação do contexto cultural da cidade, complexo e profundamente

hibridado. Portanto, não se quer aqui conferir qualquer tipo de essencialidade

ou originalidade ao fenômeno samba-rock. Muito pelo contrário, o que se

deseja atribuir a essa dança é o modo peculiar como ela se apropriou do

diferente para continuar existindo.

(...) novamente, há que se ressaltar que quando se fala em cultura brasileira, fala-se também em dominação e resistência. É o primeiro passo para não se esperar que a dança brasileira porte algo de ‘original’ que expresse a autenticidade das suas raízes. Ou alguém espera que a dança francesa carregue o can can como uma matriz que habilite a ser identificada como francesa? (Katz, conferência no Centre National de la Danse, Paris, out/2005).

Quando se fala em dominação e resistência, fala-se em colonização.

Segundo (Barbero 1997), é preciso estar atento para evitar o equívoco comum,

atribuindo à cultura colonizada apenas duas opções independentes de

contágio: a resistência ou a dominação. É preciso estar atento à trama, ou seja,

às idas e vindas da relação entre a cultura popular, a hegemonia e a

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cotidianidade, impedindo assim um raciocínio simplificador, que apresenta a

dominação ou a resistência como ações praticadas ou pelo colonizador

(dominação) ou pelo colonizado (resistência).

Quer dizer que frente a toda tendência culturalista, o valor do popular não reside em sua autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade sociocultural, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as estratégias através das quais filtram, reorganizam, o que vem da cultura hegemônica, e o integram e fundem com o que vem de sua memória histórica ( Barbero, 1997: 105).

Estas questões ajudam a entender como o samba-rock se constituiu,

visto que musicalmente o rock & roll se proliferou enormemente pela cultura

brasileira e foi aqui não só assimilado, mas também reestruturado. Isso

aconteceu na música e também na dança. O músico Jorge Benjor fez samba

com guitarra elétrica. Muito antes, Valdir Calmon fez um novo arranjo para a

música Rock Around The Clock, colocando uma percussão de samba com

pandeiro e chocalho.

Os dançarinos anônimos de São Paulo sambaram o rockability para dar

nascimento ao samba-rock.

O nome samba-rock, na verdade, só apareceu nos anos 70. Antes disso,

as pessoas usavam a expressão ‘rock’ para classificar esta dança. O convite

para dançá-la se dava da seguinte maneira: - ‘vamos dançar um rock?

Segundo relato de Toni Hits (2005)23 um conhecido dj do universo do

samba-rock e também um colecionador e comerciante de discos, afirma que

no início havia uma distinção clara na maneira de se dançar o rock e o samba,

mas com o tempo, isso foi mudando.

23 Estas informações foram retiradas da entrevista que se encontra em anexo.

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Quando o rock and roll estourou, a partir de 1954, se espalhou pelo mundo. No Brasil (1954/1955), se dançava rock. As músicas chegavam aqui através de discos. O que aconteceu com a gente, nessa história toda: antigamente, rock era rock, samba era samba. Dançava-se dois e dois, caidinho e gafieira. O rock and roll dançava-se trançando os braços. O negro24 de São Paulo, quando criou o samba-rock, foi por causa da música25. Há uma música que define tudo isso: ‘Rock around the clock’, do Bill Haley, só que tocada em samba. Em 1958, Valdir Calmon fez esse arranjo. No dia que tocou essa música pela primeira vez, o pessoal ficou confuso, não sabia se dançava rock, se dançava samba. Então, partiram para dançar rock, só que com outro jeito. Eles criaram um swing nos pés. Eles trançavam os braços como no rock, só que no pé havia um swing diferente (Hits, 2005: em anexo).

Toni Hits foi um dos primeiros organizadores de bailes black26 em São

Paulo. Na década de 70, os bailes eram divididos em baile branco e baile

black. O baile branco era freqüentado por pessoas da elite, que dançavam ao

som de orquestras, o que encarecia o preço do ingresso. No baile black, as

músicas eram tocadas em toca-discos (de vinil), o preço era acessível a seu

público (pessoas de baixo poder aquisitivo) e as músicas eram bem variadas.

Toni Hits promoveu seu primeiro baile black em 1972, na Sociedade

Amigos de Santa Catarina, no bairro do Jabaquara. Em 1980, numa

churrascaria no centro da cidade de São Paulo chamada Grenn Express, teve,

juntamente com Marcos Grenn, a idéia de promover um baile black que atraiu

centenas de pessoas. O lugar ficou tão famoso que passou a ser usado

exclusivamente para festas de samba rock e, até hoje, cont inua promovendo

seus bailes black.

24 . Etnicamente negros, mas mestiços culturalmente. Se a cultura brasileira é mestiça, convém esclarecer que ao se identificar certas autorias coletivas, como a dança e a música do samba-rock, não se pode essencializá-las. 25 Nesta dissertação a música é entendida de forma diferente: ela contribui para o surgimento do samba-rock, mas não foi exclusivamente para o fenômeno, visto que a dança também colaborou de forma ativa para esta mestiçagem. 26 Baile black é uma festa organizada por equipes compostas por djs e organizadores. Da-se também o nome de baile da nostalgia.

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Segundo o professor de dança Inácio Loiola de Souza Júnior, mais

conhecido no mundo do samba-rock como “Moskito”, nas décadas de 70 e 80,

o ritmo atingiu seu auge nos bailes black da periferia, que tinham como trilha

sonora as músicas do cantor e compositor Jorge Benjor(Nota de rodapé p/

o benjor, procurar no site) (naquela época, o cantor tinha outro nome:

Jorge Ben). Moskito esclarece que a cidade de São Paulo foi onde o samba-

rock nasceu e também relaciona os elementos com os quais essa dança se

hibridou.

O samba-rock, como forma de dança, sofreu influência27 do rockabily dos anos 50 e 60, só que com movimentos mais suaves, sem passos aéreos, porém com muitos giros, tanto do cavalheiro quanto da dama. O samba-rock, nesta reedição do movimento, está deixando seu caráter de música e dança de periferia e atingindo um público cada vez maior, chegando aos salões da moda (Moskito, 2005: em anexo).

2.2 A Banda Clube do Balanço

Com o aumento da popularidade do samba-rock na cidade de São Paulo,

juntamente com sua entrada no roteiro de baladas da classe média, novas

bandas começaram a aparecer. São bandas que se dedicam exclusivamente a

tocar as músicas para se dançar e, dentre elas, se destacam o Clube do

Balanço, Opalas, Sandália de Prata e Na Esquina.

O Clube do Balanço é a primeira banda a tocar exclusivamente samba-

rock. Desde o ano 2000, fazem este tipo de som e iniciaram esta nova proposta

pelo contato com pessoas ligadas à produção de bailes.É formada por quem?

27 O conceito de influência não é usado nessa dissertação, pois carrega consigo uma idéia de hierarquia entre os elementos envolvidos no processo de hibridação.

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Minha história com o samba-rock começa com o samba. Eu comecei profissionalmente com a banda Guanabara. Entre 1998 a 2000, nós fazíamos um som pop com percussão de samba, e essa fase foi a semente do meu trabalho musical atualmente. Nós, da banda Guanabara fomos descobertos por uma turma que fazia baile black. Eram pessoas da Band Brasil, Marquinhos Silveira, Bene Alves. Eles ouviram o nosso som e disseram que aquilo que a gente tocava era samba-rock. Eu não sabia que gente tocava samba-rock (Matoli, 2006).

Quem era da band brasil

Segundo Toni Hits (2005), nunca houve interesse da mídia em relação

ao samba-rock. As gravadoras também não achavam que este tipo de música

era um produto vendável, pois se tratava de uma música antiga, já gravada e

portanto, não emplacável.

(...) Nunca houve interesse, não. Nem de gravadora, nem da mídia. A mídia se interessou de cinco anos para cá. Eu fui uma das primeiras pessoas a colocar isso na mídia; a mostrar para a mídia que isso era um produto bom. Eu não digo em relação às vendas das gravadoras, porque as gravadoras se preocupam com venda. Nós, que fazemos bailes, estamos preocupados em mostrar essas músicas. Mas como são músicas do passado, então o interesse das gravadoras é muito menor. É muito pouco, tanto que eles não fazem nenhuma coletânea, em cd, de samba-rock.

Então, o que eu pensei: comecei a mostrar isso para a mídia, houve interesse dos jornais e revistas. Eles começaram a fazer uma nota de jornal aqui, outra ali. Mas como eu vi que não tinha jeito de alguma gravadora se interessar, porque achavam que era coisa antiga, eu tive a idéia de chamar algumas pessoas como o Matoli28, por exemplo, para criarem bandas de samba-rock (Hits, 20005: em anexo).

A formação de bandas de samba-rock poderia atrair a mídia e as

gravadoras se, através das bandas, o samba-rock conseguisse atingir um novo

público: a classe média. Foi o que aconteceu com o Clube do Balanço. Este

fenômeno é muito recente e teve início por volta do ano 2000.

O que havia eram bandas (na década de setenta), que tocavam músicas que serviam para se dançar. Mas, de seis anos para cá, foi

28 Atual vocalista da banda Clube do Balanço.

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quando a gente começou essa história, e tivemos idéia de se criarem bandas. Juntar músicos que tinham uma musicalidade um pouco parecida com a do samba-rock, como é o caso do Matoli. Fo i então que se criou o Clube do Balanço, a primeira banda de samba-rock da nova era. (Hitz, 2005: em anexo).

Com a formação dessas bandas, o samba-rock passou a virar um show

musical. As pessoas, em sua grande maioria, iam (e ainda vão) para assistir 29

ao show e dançar da maneira que quiserem. As músicas que são

consideradas30 ‘samba rock’, contagiam as pessoas e deixam todos com

vontade de (no linguajar popular) sacudir o corpo – o que democratiza ainda

mais a sua difusão.

Em pouco tempo, esse gênero de música começou a fazer sucesso

junto ao público que freqüentava a Vila Madalena. O fator preponderante para

o sucesso do samba-rock junto ao público da classe média foi o fato de ter se

transformado em um show. Num baile, as pessoas vão para dançar. Já no

show, o que importa não é só saber dançar.

Nos shows, permanecem num mesmo espaço tanto quem só quer

“sacudir”o corpo como também quem veio para dançar samba-rock. Esta

mescla de público atraiu o interesse dos não dançarinos em aprender a dançar.

A criação dessas bandas, portanto, constitui mais um dos elementos que

estão contribuindo para a permanência do samba-rock na cultura brasileira.

2.3 Corpo mestiço que samba o rock

29 A palavra “assistir”, não quer dizer que as pessoas vão aos shows para somente ver a banda. “Assistir está querendo dizer que o público, em geral, (por não saber dançar) assiste ao show e" balança “o corpo, mas não dança samba-rock. Isto não é uma regra, pois há sempre, pessoas que sabem dançar”. 30 O samba-rock n ão é um estilo de música, é um tipo de dança.

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Como já exposto anteriormente, danças como o samba, maxixe, tango,

salsa e o samba-rock, dentre outras, surgiram a partir da convivência entre

diferentes tipos de dança. Junta-se aí, sem hierarquia, a memória cultural

repleta de sons, erotismos, risos, festas, crenças, brincadeiras que colaboraram

para a sedimentação de tais dança em seus países. O corpo é o lugar onde

todas esses objetos culturais aparecem como dança. Canclini (2003) apresenta

a hibridação como um processo fundamental para emergência do novo. Isto

vem de encontro ao fenômeno do samba-rock.

Como a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas práticas?Às vezes, isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional. Mas freqüentemente, a hibridação surge da criatividade individual e coletiva (Canclini, 2003: xxii).

Os passos que compõem cada tipo de dança são, eles mesmos, um

registro da sua história, o que significa dizer que também pertencem a um

fluxo de transformações. Não sendo, portanto, passos puros, é a história de

seus processos de hibridação que aparece quando o corpo dança. Este tipo de

relato que está no corpo que dança samba-rock.

O samba-rock é uma dança codificada, ou seja, composta de giros,

enlaces e diferentes deslocamentos pelo espaço. O modo como ele é dançado

atualmente difere, em alguns aspectos, do modo como era dançado no final

dos anos sessenta, quando surgiu. Não há registros visuais sobre esse dado,

mas, segundo Hits (2005), no baile, samba se dançava com a música do

samba, e rock com a do rock. Havia, no início, esta distinção. Com o tempo,

as fronteiras entre essas danças se tornaram mais permeáveis.

O giro do rock entrou no samba quando os dançarinos, ao invés de

permanecerem agarrados durante a dança do samba, se afastaram, liberando

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espaço entre eles, conectando-se somente pelas mãos. Essa postura deu ao

corpo a possibilidade de girar31. Pode-se dizer que este tipo de giro, sendo uma

unidade que compunha a dança rockabily, transferiu-se para o jeito de se

dançar o samba.

O giro foi um meme, uma cópia que se replicou entre os dançarinos e

ganhou estabilidade ao longo do tempo. Quando uma informação “adentra” no

corpo, ela pode ou não se estabelecer com permanência e longevidade. Toda

informação nova promove acordos com as informações que já eram estáveis

antes de sua entrada. Um acordo bem sucedido pode ser chamado de híbrido.

Portanto, o giro foi um meme poderoso, que contribuiu para o surgimento do

samba-rock. Essa unidade32 migrou para o samba e lá se amalgamou e se

transformou. O giro, ao longo do tempo, pela trocas e acordos que foi

realizando se transformou também em rodopio 33 (que acontece quando o

corpo gira e ao mesmo tempo se desloca lateralmente).

Observando hoje um casal dançando samba-rock, nota-se um rico

repertório de enlaces que se combinam com giros e rodopios, promovendo

figuras que aparecem e desaparecem, construindo, com isso, entrelaçamentos

maleáveis que iludem a percepção.

No samba-rock, através dos giros e rodopios e do enlace dos braços, o

casal desenha inúmeras figuras. Os braços se cruzam e se torcem de diversas

maneiras; nós são feitos e desfeitos com torções e enlaces que acontecem no

tronco, no pescoço e no quadril. As articulações dos braços, ombros, mãos e

31 Que, neste caso, significou a possibilidade do corpo dar uma volta de 360º em seu eixo vertical. 31 Não no universo do samba-rock o termo “rodopio”, aqui ele é usado para diferenciar-se do giro. 32 O rock desta época era composto, não somente de giro, mas também de salto e elevações de pernas, entre outras coisas. O giro é uma unidade desta dança. 33 No universo do samba-rock o termo “rodopio” não é usado.

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dedos se dobram e redobram como fios que tecem um bordado, chegando ao

máximo grau de entrecruzamento, para, logo em seguida, se desfazerem com

novos rodopios e desenlaces. Estes movimentos acontecem sem interrupção e

compõem continuamente um mosaico de figuras móveis que se interpenetram

umas nas outras. O tronco se torce à frente, atrás e ao lado, com curvas que

dão aos braços maiores possibilidades de encaixe. Toda a condução dos passos

se dá pelo leve contato entre as superfícies das mãos, que deslizam umas nas

outras como eixos e dão às articulações dos braços e ombros graus de

liberdade que favorecem seus enlaces e permitem os giros e rodopios do

corpo.

As pernas do casal dançam de modo diferente. A mulher se desloca

lateralmente, afastando e unindo as pernas, ou rodopiando seu corpo e

marcando o compasso da música em quatro tempos. Com esta base rítmica,

que não se altera do início ao final da música, ela se desloca à frente, atrás e

ao redor do homem. Ele se desloca no sentido contrário ao movimento dela,

transferindo e variando os apoios dos pés sem necessitar acompanhar a

cadência do tempo musical da mesma forma que ela. Com movimentos à

tempo e à contratempo, o homem se aproxima e se distancia, gira em seu eixo

corporal, rodopia e se desloca ao redor dela.

O homem e a mulher são o Mestre Sala e a Porta Bandeira do samba-

rock.

O samba-rock pode ser considerado uma fusão34 do samba com ritmos americanos, como o bebop, o jazz e o soul. A expressão samba-rock apareceu no final dos anos 60 para designar essa mistura do samba brasileiro com a harmonia americana do blues, o pai do rock. Em 1958, Jackson do Pandeiro, na sua canção chiclete com banana usou o termo samba-rock. Na década de 70, existiam

34 Fusão é um conceito não adotado nesta pesquisa, visto que o mesmo não explica o fenômeno da mestiçagem, mas, ao contrário, deixa de evocar as diferenças e acaba homogeneizando-as.

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várias expressões para designar o ritmo: samba-jazz, sambalanço etc (Moskito, 2005: em anexo).

O samba-rock traz uma história que ainda não foi contada: a história

dos dançarinos anônimos da cidade de São Paulo, que criaram uma nova

dança ignorada pelos meios de comunicação (jornais, rádio, tevê e revistas)

por quase quatro décadas.

Para compreender a dança como um relato de hibridações, será preciso

considerar que as informações do ambiente se transformam em corpo e que

esse corpo também atua no ambiente. Uma via de mão dupla. Ao se trabalhar

com processos de transformação das informações pelo corpo e pelo ambiente,

sempre simultaneamente e em mão dupla, é possível dar à dança de salão um

modo de explicação que não separa o conceito de natureza do conceito de

cultura. Torna-se possível apresentá-los formando uma parceria co–

dependente. Esse é o princípio que norteia a presente dissertação.

O organismo e o ambiente não são realmente determinados de maneira separada. O ambiente não é uma estrutura imposta do exterior aos seres vivos, mas, de fato, uma criação co-evolutiva35 com eles. O ambiente não é um processo autônomo, mas uma reflexão da biologia das espécies. Assim como não há organismo sem ambiente, dificilmente há ambiente sem nenhum organismo. O ponto chave é que os seres vivos e seus ambientes se situam em relação, uns com os outros, através de suas especificações mútuas ou de uma relação de co-determinação. As regularidades ambientais são resultado de uma história conjunta, de uma harmonia que nasce desta história co-evolutiva. Assim o organismo é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da evolução (Greiner, 2005: 44).

2.4 Aula de Samba-Rock

35 Coevolução é um conceito que vem da Biologia. Segundo Dawkins (2000), a coevolução é um termo normalmente usado para indicar uma evolução mútua em diferentes espécies. Um exemplo está entre as flores e os insetos que dentro do processo de polinização coevoluem. Ou também: a corrida de alta velocidade de um predador coevolui com acorrida de alta velocidade de sua presa.

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O Samba-rock é a dança de salão da cidade de São Paulo, assim como o

tango é a de Buenos Aires, e a gafieira é a do Rio de Janeiro. Estas danças

surgiram junto com sua cidade e formam uma rede de relações em que a

história das danças se intercombinam com a história da cidade. São danças

que, em seu início, se aprendiam pela informalidade. A aprendizagem de seus

passos via professor aconteceu depois de seu estabelecimento como dança de

salão.

Foi na cidade de São Paulo que o samba-rock surgiu, teve, e ainda tem,

um jeito de ser aprendido adequado perfeitamente à expressão “é passado de

pai para filho”. É um aprender que se relaciona com o cotidiano, com o viver,

com um modo de se situar culturalmente no seu entorno. Antes era

exclusivamente aprendido de maneira informal, no quintal, na sala da casa,

nas festas familiares e, também, nos bailes. Aprendia-se com a tia, com a mãe,

com o pai, com o vizinho, enfim, não havia professores de samba-rock,

tampouco escolas.

(...) Como eu já disse, nos anos 70 o samba-rock era muito mais restrito. A partir do final dos anos 90, mais ou menos, até os dias atuais, o samba-rock foi divulgado para um outro tipo de público. (...) hoje as pessoas de faculdade, os intelectuais, o ‘cara que tem grana’, o empresário, enfim, todo mundo está dançando samba-rock. Todo mundo indo para as escolas de dança para aprender a dançar. Há cinco anos, não se via uma escola com propaganda do tipo: aulas de samba-rock. Atualmente, todas a escolas de dança têm aulas de samba-rock. Desenvolveram-se professores para essa dança (Hits, 2005: em anexo).

A década de 90 foi marcada pela proliferação de escolas de danças de

salão, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Entre as danças

tradicionalmente ensinadas nestas escolas o samba-rock não era incluído.

Nelas aprendia-se bolero, samba de gafieirra, tango e salsa. Hoje, há inúmeras

escolas de dança de salão, em São Paulo, que incluíram o samba-rock em sua

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oferta de aulas. Ele entrou, de forma mais intensa, para o mercado de escolas

de dança, bem recentemente, no ano 2000. Mas, já em1995, havia pessoas

como o professor Moskito, que iniciavam suas carreiras como professores de

samba-rock.

Minha carreira como professor começou por acaso, em 1995. Nessa época, o samba-rock não era tão dançado como hoje. Dançava-se bastante o pagode. Eu comecei a aprender o pagode com um amigo que não era professor, mas estava iniciando este trabalho a convite de outros amigos, pois se tratava de um exímio dançarino de pagode. No meio dessa aula tinha um intervalo, e eu sempre dançava sem compromisso um pouco de samba-rock com as meninas. Isso começou a virar um hábito no intervalo,e foi minha primeira experiência como professor. Depois de algum tempo acabei formando uma turma de samba rock e passei a dar aulas. O primeiro lugar onde dei aulas foi numa choperia, em Osasco.

No primeiro dia de aula, havia por volta de cinqüenta pessoas. Foi um sucesso. Depois deste lugar, passei a dar aulas numa academia de ginástica. Foi nessa época que desisti do emprego de ajudante de caminhoneiro e passei a me dedicar ao ensino do samba-rock (Moskito, 2005: em anexo).

As aulas de samba-rock ministradas pelo professor Moskito são

sistematizadas e obedecem a um método de ensino próprio. Segundo ele, seu

método modifica um pouco o jeito do homem dançar. Isto acontece no início

da aprendizagem, com o objetivo de fazer o aprendiz entender melhor as

combinações dos passos. Moskito diz que se trata de uma maneira eficiente de

se aprender a dançar e, assim, propõe que o o homem marque

sincronizadamente os quatro passos laterais juntamente com a mulher. No

samba-rock tradicional estes passos são realizados repetidamente somente

pelas mulheres.

A base de passos para se dançar o samba-rock obedece ao tempo quaternário da música. Essa base de passos é feita pela mulher, que se desloca lateralmente, abrindo e unindo as pernas em quatro tempos. O homem não marca esta base da mesma maneira que a mulher. Ele acompanha a mulher, geralmente mais lentamente, sem

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se deslocar lateralmente.Os braços do casal estão sempre sincronizados, mas as pernas não.

O samba-rock ensinado atualmente não obedece rigorosamente a essa maneira de dançar. Por questões didáticas, eu introduzi nas aulas o que eu chamo de base. Nela, ambos fa zem o deslocamento lateral em quatro tempos. No final, fica quase a mesma coisa, mas para iniciantes é preciso aprender essa base (Moskito, 2005: em anexo)

A atual procura do samba-rock por pessoas que querem aprender a

dançar a dois abre mais uma oportunidade para mantê-lo no universo da

cultura, deixando-o mais ascessível ao público. Conhecer o samba-rock é uma

forma de conhecer São Paulo por um outro viés. É uma história que fala do

não-conhecido, do não-oficial e que, justamente por isso, representa um traço

cultural da cultura paulistana.

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Anexos

Depoimentos colhidos no dia 06/05/ 2006.

Local: Carioca Clube, localizado na av. Cardeal Arco Verde, Vila Madalena-São Paulo.

Com: Flávio da Silva Assunção; idade: 24 anos.

Apelido: Magoo.

e

Professor e dançarino de samba-rock

Edson Modesto Junior; idade: 24 anos.

Apelido: modesto.

Professor e dançarino de samba-rock

Eu faço parte da nova geração do samba-rock, danço de outra forma. Eu, Cláudio nostalgia, Cláudio Negrão, Edson, marquinhos. O Cláudio Negrão deu jeito diferente para o samba-rock, aquela coisa meio funk, meio James Brow. Diferente do estilo trançado em que da-se muita ênfase aos enlaces dos braços. Esse estilo trançado é atual, porque antigamente dançava-se diferente, sem aquilo que se chama no samba-rock de “nó”. Eu tenho uma critica a fazer sobre esse modo de dançar, por que a obsessão de exagerar no trançar dos braços acabou por destacar demais a performance do homem e diminuir o papel da dama durante a dança. Ninguém lembra da dama. Essa é minha preocupação atual como professor e pesquisador dessa dança.

Eu e Edson que também convivemos no mundo das outras danças de salão percebemos que o samba-rock é meio marginalizado. As vezes as pessoas brincam dizendo que o estilo trançado parece uma briga.

Hoje levando em consideração essas e outras críticas de pessoas do universo da dança de salão estamos reformulando nosso jeito de dançar.

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Como você dança outros estilos de dança de salão, isso acaba te ajudando reconfigurar seu modo de dançar?

Magoo: Na minha dança tem Salsa, rock, funk, black, tem tudo. É a globalização.

Edson: antigamente quem dançava samba-rock não tinha contato com outras danças de salão como a salsa, o bolero, forró, samba de gafieira. Nos bailes havia samba-rock, música lenta e funk. Atualmente algumas pessoas dançam o samba-rock e também outras danças e isso contribui para a modificação da dança. Há muitas coisas que colocadas no samba-rock se encaixam bem.

Atualmente está acontecendo uma coisa interessante com os passos de base realizados pelas damas. Algumas estão modificando o modo de marcar a base de quatro tempos do samba-rock colocando e enfeitando esses passos. Isto está, pelo o que eu tenho visto, um pouco disperso. Eu percebo que há certa tendência de modificação da estrutura dos passos da dama. Ainda está disperso esse jeito de dançar, está espalhado pela cidade em poucas mulheres.

Magoo: O que acontece com o samba-rock em termos de diferenças entre formas de dançar, acontece com o próprio samba. Eu viajei para alguns lugares do Brasil e percebi que em cada cidade se dança o samba de maneiras diferentes. Em Belo horizonte, no Rio de Janeiro, Brasília, salvador.

O samba-rock faz parte da cultura urbana de São Paulo e o próprio Paulistano não sabe disso. Nós, de maneira geral, não valorizamos nossa cultura, parece que precisa vir alguém de fora do país para dizer para nós que aquilo que a gente faz é interessante.

Há quantos estilos de samba-rock?

O mais tradicional, que a gente chama de “da antiga” com dois para lá dois para cá e os giros da dama.

Depois a coisa ficou um pouco mais moderna, com giros da mulher e também giros do homem.

Um outro jeito de dançar é o estilo chamado de “trançado”.

Por último, um outro que ninguém sabe ao certo de onde veio que é o estilo estrela.

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Essas mudanças na velocidade do samba-rock vêem junto com o fato de essa dança ser também montada coreograficamente para Show e demonstrações. Há o samba-rock show e o samba-rock de salão que é mais simples.

Hoje eu e o Edson estamos investindo no samba-rock como show. Com luz, figurino e coreografia. Por isso que nossa pesquisa vai em direção a aproveitar as outras danças de salão para o desenvolvimento de nossa dança. O que tem no bolero, na salsa, na gafieira no tango etc que pode incrementar o samba-rock. Nós estudamos os movimentos para justamente agregar coisas para o samba-rock. Hoje eu tenho o maior orgulho de falar que eu sou professor de samba-rock.

Qual a relação entre o samba-rock e a festas familiares nos bairros.

Tem uma música que diz assim: eu nunca fui numa casa de bamba, dessas de partido alto quintal e varanda.

Eu fui e vou nessas festas. Onde se puxa uma lona no quintal. O que acontece: reúne-se a família, os amigos, chama o vizinho, chama o gato, chama o cachorro, faz um churrasquinho e o rock come solto, com o bolachão lá do lado é só samba-rock. E isso acontece até hoje. Foi desses lugares que saíram os grandes djs, e as grandes equipes.

Edson: antigamente as pessoas aprendiam com o tio com a tia com a prima. Não havia escola de samba-rock.

Atualmente há concurso de samba-rock com premiações para se saber quem dança melhor. Esses concursos estão equivocados em termos de critério de julgamento. Ninguém sabe ao certo avaliar esta dança.Quando eu participei do concurso os avaliadores disseram que eu fazia muita firula e não dançava de verdade.

O que é o Samba-rock para você?

Magoo: O samba-rock para mim é rico, tem muitos movimentos de braços de perna, ele exige da pessoa que quer dançar, uma habilidade maior. Ele é difícil de ser dançado.No samba-rock o corpo todo se altera em função do deslocamento das mãos e dos braços.Todos acham que no samba-rock a mão funciona em função do corpo, mas é ao contrário.

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Eu como já disse procuro agregar outras danças no samba-rock e acho que essa dança pode abrigar muitas outras danças. É isso que eu procuro fazer.Comparando com o Tango, por exemplo, o samba-rock é mais aberto, inclui mais.

Na música também. Dá para se dançar samba-rock em bossa, rock, jazz, blues, funk. E se ele atravessa a fronteira musicalmente quem disse que esta dança não pode transgredir. Eu falo isso porque há algumas pessoas querendo formatar o samba-rock dizendo o que é e o que não é. Eu não acredito nisso.

Só que ao mesmo tempo nem tudo se pode colocar no samba-rock. Tem que haver um cuidado para que as pessoas ao verem continuem percebendo que aquilo é samba-rock, mas tem algo diferente. Eu não posso dançar merengue e acreditar que estou dançando samba-rock.

Nós estamos pesquisando um jeito de dançar que futuramente as pessoas conhecerão. Por enquanto a gente está chamando este jeito de dançar de ‘estilo refinado’.

Qual a diferença entre os baile tradicionais de samba-rock e os que estão surgindo atualmente?

Edson: em relação á música os djs dos bailes tradicionais conhecem seu público e sabem as músicas de samba-rock que eles curtem mais. Esses djs fazem a diferença no baile. Quem vai para esse baile sabe até que horas será o pico da festa, o momento em que o baile estará lotado. Há muitos djs leigos que acham que sabe como se discoteca uma festa. Isso não é para qualquer um. Esses bons djs que eu falo são: Toni Hits, Loo, Grego, Miriti, Tadeu, Paulão entre outros.

As bandas de samba-rock também completam essa história: Clube do Balanço, Na Esquina, Sambasonics, Sandália de Prata e Opalas.

Qual a diferença entre o samba-rock dançado com banda e o samba-rock dançado com dj?

É outra coisa. A banda da uma característica para o samba. O samba swingado, samba balanço. O dj mexe com o psicológico do dançarino, ele atravessa a fronteira, ele usa tudo, é aí que está a piração.Só quem é louco se identifica. O som do dj é mais psicodélico, é como aquela frase: Deus fez os loucos para confundirem os sábios.

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Depoimento colhido no dia 10/01/2005.

Local: Green Express(Toni Hits discos). Av. Rio Branco 90 – Centro –SP.

Com: Boaventura Vieira de Moura

Apelido:Toni Hits.

Dj e proprietário da loja Toni Hits discos

Quem é o Tony Hits? Tony Hits é um nome que a gente criou há seis anos atrás.Eu tinha que

fazer um programa de rádio e tinha que ter um nome artístico. A idéia do programa era mostrar as músicas dos bailes, na qual a referência maior era o samba-rock. A gente fez o programa, que fez muito sucesso, durante três anos, na rádio imprensa. Depois disso, a gente criou uma equipe chamada de Clássicos da Nostalgia, já fazíamos as festas aqui no Grenn Express ás sextas feiras.

Minha história com o samba-rock começou em 1967, quando eu comprei o primeiro disco. Eu conheci essa cultura, esse estilo de dança, essas festas, quando eu era garoto. Me apaixonei pelas músicas, comprei o meu primeiro disco em 1967 (Hit Road Jack) e, a partir daí, eu comecei tocar estas músicas nos bailes. Essa história de samba-rock já existia antes de mim. Isso começou em 1957, no bairro da Barra Funda. Com bailes que eram feitos nos intervalos das grandes orquestras. Havia as orquestras tocando e nos intervalos, colocava-se o som mecânico. E uma das pessoas que começou com essa história foi o Sr. Oswaldo (primeiro DJ do Brasil), que está vivo até hoje para contar essa história.

Os primeiros bailes black foram criados para as pessoas de poder aquisitivo menor, pessoal que não tinha dinheiro para ir nos bailes orquestrados. Porque nos anos 50, os bailes que prevaleciam eram os bailes de orquestra. Eram bailes onde a pessoa precisava comprar um terno, precisava ter um sapato bom para ir. O povo de bairro não tinha condições financeiras para ir a essas festas. Então, foram criados esses bailes, com som mecânico (sem orquestra). Eram bailes baratos, feitos em casa, na garagem, nas Sociedades Amigos de Bairro, nos salões dos bairros, para dar condições

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para que essas pessoas pudessem também participar de festas. Isso foi se alastrando por toda a grande São Paulo.

Na década de 70, quando eu comecei a fazer estas festas, em salão, já existiam vários pontos em São Paulo onde aconteciam estas festas. Só que estas festas eram muito restritas. Estas festas foram criadas pelo negro. É uma festa do gueto. Eles sempre se isolaram muito, com esta história das festas deles.Nestas festas, eles tinham os trajes deles, as formas deles dançarem. Outras culturas, outras pessoas não entendiam muito as festas deles. Então, ficou uma coisa muito fechada, durante muitos anos.

A partir dos anos setenta, isso se alastrou pela cidade de São Paulo. Mas tudo direcionado ao povo black. Direcionado às pessoas que realmente gostavam dessa cultura. Eu sempre fiz isso, sempre toquei esse estilo, embora tenham surgido modas novas, como o funk, o soul, o pop. Vieram um monte de modismos musicais, mas o samba-rock sempre resistiu a tudo isso.

Porque é um estilo de dança. Não é um estilo de música. O samba-rock é um estilo de dança, porque se pode dançar com tom

Jobim, Elza Soares, Jorge Bem, Glenn Miller,Ray Coniff, George Benson. Esses são exemplos da qualidade musical, que há nestas festas.

Tem gente que me pergunta: isso vai virar moda?

Pode virar moda, mas modinha, não.Porque a qualidade musical é muito grande. Então, as pessoas hoje que não conhecerem o samba-rock, que não souberem o que são estas festas, jamais conseguirão fazer igual.Não é que eu queira, que eu fique representando isso a vida inteira. Eu não quero.

Por isso, eu tenho indicado vários djs, bandas como: o Clube do Balanço, Farofino, Sambasonic. Que hoje, estão fazendo muito sucesso em São Paulo.

Eu tenho indicado para isso crescer.Ter uma forma de divulgação muito maior.

Como eu já disse nos anos 70 era muito mais restrito.A partir do final dos anos 90 e 95, mais ou menos, até os dias atuais, o samba-rock, foi divulgado para um outro tipo de público. Haja vista, você, (um universitário querendo conhecer esta história). Isso não existia, era uma festa muito restrita à periferia e ao povo negro. Hoje, não. Hoje as pessoas de faculdade, os intelectuais, o cara que tem grana, o empresário, enfim, todo mundo dançando samba-rock. Todo mundo indo para as escolas de dança, para aprender a dançar samba-rock.

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Há cinco anos atrás, não se via uma escola com propaganda do tipo: aulas de samba-rock. Atualmente, todas as escolas de dança têm aulas de samba-rock.

Desenvolveram-se professores para samba-rock. Eu desenvolvi um projeto junto com o professor Moskito, há dois anos e meio atrás, que se chama: Projeto Dançar. Foi uma idéia de reunir professores, para mostrar a arte dessa dança para muita gente.Hoje, se encontram todos os tipos de pessoa, com níveis sociais diferentes, de cultura, de raça, que dançam samba-rock.

É uma história que se espalhou pelo mundo. Hoje existem vários pontos do mundo que tocam samba-rock.Tocam exatamente o que a gente e eu particularmente cultuei durante trinta e cinco anos da minha vida. Que foi o estilo samba-rock.

Eu toco para universitário, eu toco pro negro (que a gente chama de nego véio), que são pessoa que curtem há mais de trinta anos, eu toco pros garotos de dezesseis, dezessete anos. Todos eles têm a mesma sintonia, todos eles dançam e gostam do samba-rock.

É uma pena que o samba-rock não tenha sido mostrado em outras épocas. Talvez tenha sido por falta de oportunidade, também, em relação á mídia. A mídia tomou conhecimento, só há pouco tempo, um pouco mais que cinco anos.Os jornais e a televisão tomaram conhecimento do estilo, viram que era uma coisa boa e de qualidade. Nas festas, por exemplo, eu posso te garantir, não tem briga, não tem droga. Não rola droga, não rola briga. As pessoas não têm nem tempo para isso. É tão envolvente a forma de se dançar, a pessoa se envolve tanto com aquilo durante a noite inteira, que quando ele vê, o dia amanheceu.

Eu sempre digo para as pessoas: conheçam o samba-rock.

Por que o samba-rock não morreu? Quais foram os lugares, onde ele permaneceu?

Em São Paulo inteira, a vida toda ele continuou. Ele sempre existiu. Desde 1957, em vários pontos de São Paulo. O problema é o seguinte: quem ouve falar agora de samba-rock, acha que é novidade, uma coisa que foi criada agora. O fato é que o samba-rock foi divulgado. Houve a descoberta da mídia, da imprensa, do rádio, da tevê.Houve interesse da mídia, por isso que o samba-rock foi divulgado.Mas tem gente que acha que o samba-rock foi

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criado agora, apareceu agora, é uma moda. O samba-rock não é uma moda, o samba-rock é uma cultura muito sólida, que já existe (como já falei) há todo esse tempo.

O samba-rock tem uma relação com as festas familiares?

Há muita relação com a família. Por que é assim: o pai dança, o filho ouve, absorve essa cultura. A maioria desses garotos dança hoje, porque seus pais dançavam antigamente. Eles cresceram ouvindo o pai tocando aquelas músicas, e aprenderam a gostar desse estilo.

O samba-rock não era dançado apenas nos bailes, mas também nas festas familiares.

O samba-rock começou assim, com as festas familiares. Os filhos aprenderam, os netos também e assim foi indo.Eu digo que, com esse reforço que nós tivemos dos últimos seis anos para cá, em termos de mídia e divulgação, o samba-rock tem vida garantida para mais cinqüenta anos.

Qual o critério para se dizer: essa música é um samba-rock? Há alguma coisa em relação à dança?

Tem sim.A pessoa que dança samba-rock, já sabe o que é samba-rock. Como eu já disse: o samba-rock não é uma música, o samba-rock é estilo de dança.

Então, não há nenhum critério para se saber qual música é um samba-rock?

Não. É pelo ritmo. Quem dança, sabe.Tocou a música, a pessoa sai dançando.

Quais são os estilos de música dançados no samba-rock?

Há uma variedade muito grande de músicas dançada no samba-rock: swing brasileiro, swing americano, rithm blues, uma boa parte do jazz, o partido alto brasileiro, a batucada brasileira, as baladas dos anos 60.

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Dion e Belmonts eram baladistas americanos, dos anos 50 e 60, eles não tinham nada com o rock and rool, inclusive porque eram imigrantes italianos, que criaram um estilo meio melódico. O ritmo deles tinha um swing.

Brenda Lee, uma cantora country americana. Há mais de vinte músicas dela que são samba-rock.

Jimy Smith, jazzista, fantástico músico arranjador.Há um monte de músicas dele que são samba-rock.

George Benson, que é uma pessoa que tem um som, dos anos 70, e tem um som atual. Um músico que sempre se atualizou, musicalmente durante a carreira. O som dele tem samba-rock e tem melodia que a gente toca nos bailes para se dançar a música lenta.

Herbert Albert, por exemplo: um maestro latino, de muito sucesso. Ele toca músicas guaranenhas. Há várias músicas dele que servem para a gente dançar.

Perez Prado, por exemplo: o mambo oito, o mambo cinco.

Toca-se bossa nova e também coisas que os djs produzem.

Como que as pessoa tinham acesso a esse tipo de música naquela época?

Tudo que se toca de samba-rock foi descoberto por djs. Foram eles que pesquisaram. Eles compravam discos, e ouviam para escolher a faixa que serviria para tocar. Percebendo que a música tinha um ritmo, decidiam tocar nos bailes. O Jorge Ben, por exemplo, fazia um som nos anos 70. A gente o intitula como o pai do samba-rock, mas ele nem sabia o que era samba-rock. Ele fazia um som, que era o som dele. A gente pegava as músicas dele e colocava nos bailes. Há pouco tempo, falaram para o Jorge bem sobre samba-rock, e ele disse que tocava samba, dizendo: eu toco swing, eu não toco samba-rock”.

Os djs compravam muitos discos, gastavam bastante dinheiro. Faziam isso para pesquisar, e muitas vezes, só conseguiam tirar uma música do disco todo. Os discos que continham músicas de samba-rock passaram a ser raros, pois quando elas faziam sucesso todos corriam para comprá-la e em pouco tempo, os discos ficavam escassos.

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Como aconteceu a junção entre a danças? Como os negros de São Paulo dançavam naquela época? Eram separados: rock e samba?

Quando o rock and roll estourou, a partir de 1954, ele se espalhou pelo mundo. No Brasil, em 1954/ 1955, se dançava rock. As musicas chegavam aqui através de discos.

O que aconteceu com a gente, nessa história toda: antigamente, rock era rock, samba era samba. Dançava-se samba: dois e dois, caidinho e gafieira. O rock and roll se dançava trançando os braços. O negro de São Paulo, quando criou o samba-rock, foi por causa da música. Há uma música que define tudo isso: “Rock around the clock”, do Bill Haleey, só que tocada em samba. Em 1958, Valdir Calmon fez esse arranjo. No dia que tocou essa música, pela primeira vez, o pessoal ficou confuso, não sabia se dançava rock, se dançava samba. Então, partiram para dançar rock, só que com outro jeito. A partir daí, mudou tudo. Eles criaram um swing no pé. Eles usavam a mesma coreografia do rock and roll- trançando os braços- só que no pé, havia um swing diferente. Foi aí que nasceu o samba-rock. Nesse dia, eles não sabiam o que fazer. Estava tocando gafieira, e no meio da música, o Valdir Calmon colocou “Rock around the clock” com a batida de gafieira.Essa música é o marco zero do samba-rock. As pessoas começavam a dançar uma gafieira, mas, no meio da música, entrava a esse rock, e eles mudavam. Esse é o começo dessa história toda.

Qual a diferença entre o baile de hoje e o baile de antigamente?

Há muita inovação como tudo, na vida. Mas as bases são as mesmas.

Os bailes tocam as mesmas músicas do passado. Não se tocam as músicas de 1957, 1958, quando começou, mas as músicas da década de 60/70. Mas há rock de 1950 que faz sucesso nos bailes.Por exemplo: Brenda Lee, Frank Limon, Dion,

Bandas dos anos 60. Bandas brasileiras como: Os Incríveis, Fivers, Roberto Carlos.

Ice the jazz, que é uma mescla de bossa comm. Nós tocamos também.

Muitas músicas atuais, que têm um ritmo, que dá para se dançar samba-rock, a gente coloca nos bailes também.

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Quais são as equipes que promovem esses bailes?

Há algumas. Umas são mais conhecidas, outras menos.

Os Carlos, que são os pioneiros, e ainda estão fazendo os bailes.Eles começaram em 1966. Há também, Mistura Fina, Musicália, etc.

A equipe: Clássicos da Nostalgia é a mais nova. É uma equipe que nós criamos, há cinco anos.

Há equipes de porte menor, que fazem os bailes para um público menor. Isso acontece em salões menores, nas periferias. Em salões de Sociedade amigos do Bairro. As festas, aqui em São Paulo, acontecem em grandes bailes e também em pequenos bailes. Há bailes para duas mil, e também para trezentas pessoas.

Qual foi a relação entre o samba-rock e a mídia? Nunca houve muito interesse, não.Nem de gravadora, nem da mídia.

A mídia se interessou de cinco anos para cá. Eu fui uma das primeiras pessoas a colocar isso na mídia; a mostrar para mídia que isso era um produto bom.

Eu não digo nem em relação às vendas das gravadoras, porque as gravadoras se preocupam com venda. Nós, que fazemos bailes, estamos preocupados em mostrar essas músicas. Mas, como são músicas do passado, então, o interesse das gravadoras é muito menor. É muito pouco, tanto que eles não fazem nenhuma coletânea, em cd, de samba-rock.

Então, o que eu pensei: comecei a mostrar isso para a mídia, houve interesse dos jornais, revistas. Começaram a fazer uma nota de jornal aqui, outras ali.Mas como eu vi que não tinha jeito de gravadora se interessar, por que achavam que era coisa antiga.Então, eu tive a idéia de chamar algumas pessoas, como o Matoli, por exemplo, para criarem bandas de samba-rock.

Nunca houve bandas de samba-rock?

Não. Nunca houve. O que havia eram bandas que tocavam músicas que serviam para se dançar. Mas, de seis anos para cá, foi quando a gente

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começou essa história, e tivemos a idéia de se criarem bandas. Juntar músicos que já tinham uma musicalidade um pouco parecida, como é caso do Mattoli.

Foi então que se criou o Clube do Balanço, a primeira banda de samba-rock da nova era.

Alguma consideração final a respeito do samba –rock?

Para finalizar, o que eu posso sugerir, talvez, seria, na verdade, fazer um convite: conheçam o samba-rock – é muito bom. Dificilmente, uma pessoa que vai para um baile de samba-rock, sai descontente. A pessoa não sai sem ser “vacinada”. Quando se entra nesse universo do baile, a pessoa, muitas vezes, acaba virando um freqüentador. É assim que eu vejo acontecer durante todo esse tempo: as pessoas chegam, olham, não entendem muito a mistura.

Mas eu sempre digo o seguinte: eu não consigo explicar o que é um baile de samba-rock. Sempre me perguntam: - o que é um baile de samba-rock?

A minha resposta a essa pergunta é: venha no baile, fique lá uma ou duas horas, dentro do baile que você sai entendendo.

Quando eu digo que no mesmo baile toca-se Jorge Bem e também Brenda Lee, a pessoa fica confusa, porque não há nada em comum entre essas músicas. Um outro exemplo: Claudete Soares e Vanuza.

Por isso, a pessoa deve vir ao baile se quiser entender como são feitas as seleções musicais, para daí, então, entender o que é samba-rock. É por isso que o samba-rock fascina muita gente.Como quase ninguém entende o que é samba-rock, o ideal é que as pessoas freqüentem nossos bailes.

Tenho certeza que, quem passa a conhecer esses lugares, acaba se tornando um freqüentador. Nesse bailes, as pessoas acabam se conhecendo, fazem amizade. Por exemplo: nesses bailes, uma pessoa de setenta anos dança com outra de dezoito; sem nenhum tipo de problema. Todos no baile estão com um desejo que os une: a dança.

Depoimento colhido no dia 02/03/2005

Local: rua: PUC-SP, rua: João Ramalho – Perdizes – SP.

Com: Inácio Loiola de Souza Junior. Apelido: Moskito.

Professor e dançarino de Samba-rock.

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Como você começou a dançar samba-rock?

Comecei a freqüentar os bailes de samba-rock com doze anos.

Naquela época, eu morava na periferia de Osasco. Freqüentava os bailes tradicionais e também as festas de bairro. Todo sábado, junto com os amigos, ia perambulando pelo bairro à procura de alguma festa. Havia sempre o que se costumava chamar de “bailinho”. O bailinho poderia ser tanto uma festa de aniversário como uma festa de casamento. Era comum as festas acontecerem no quintal das casas. Usava-se sempre uma lona para cobrir o quintal e abrigar as pessoas. Nesses “bailinhos” tocava-se, muito samba-rock e lenta. Às vezes, nós nem conhecíamos quem estava casando ou aniversariando, mas entrávamos na festa mesmo assim. Não tinha muito essa coisa de ser barrado na entrada.

Nessa época, eu tinha uma namorada que dançava muito samba-rock. Sua família dançava samba-rock, e ela aprendeu assim. Eu não sabia dançar samba-rock e ficava com ciúme vendo minha namorada dançando com um “monte de negão. Foi aí que comecei a me interessar por samba-rock. Eu aprendi a dançar olhando. Não havia aula de samba-rock nesta época. Minha namorada tentava me ensinar também.

Conta-se que naquela época as pessoas treinavam samba-rock na própria casa. Valia tudo para aprender, inclusive utilizar a porta como parceira para dançar. Empurrando a porta de um lado a outro os homens simulavam o deslocamento da mulher durante a dança. Outro aparato utilizado eram as argolas que puxavam as cortinas. As duas argolas simulavam os braços da mulher.

Aprendi com minha namorada e também com as idas aos bailes e bailinhos. Eu freqüentava os bailes de sexta á domingo, isso no início da década de oitenta.

Minha carreira como professor começou por acaso, em 1995. Nessa época, o samba-rock não era tão dançado como hoje. Dançava-se bastante o pagode. Eu comecei a fazer aula de pagode com um amigo que não era professor, mas estava iniciando este trabalho a convite dos amigos, pois se tratava de exímio dançarino de pagode. Essa aula tinha sempre um intervalo no meio e eu sempre dançava sem compromisso um pouco de samba-rock com as meninas. Isso acontecia sempre durante os intervalos. Depois de algum tempo acabei formando uma turma de samba rock e passei a dar aulas. O primeiro lugar onde dei aulas foi numa choperia, em Osasco.

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No primeiro dia de aula, havia por volta de cinqüenta pessoas. Foi um sucesso. Depois deste lugar, passei a dar aulas numa academia de ginástica. Foi nessa época que desisti do emprego de ajudante de caminhoneiro e passei a me dedicar ao ensino do samba-rock.

Havia lugares em Osasco para se dançar?

Sempre havia, mas não de maneira exclusiva. Eu e meus alunos íamos aos pagodes, onde pouco se dançava samba-rock. Nos intervalos dos pagodes, que geralmente eram tocados ao vivo, havia uma seleção de músicas de discos onde se tocava samba-rock. Eu levava minha turma de alunos para esses lugares e os deixava dançando.E enquanto isso, eu distribuía os panfletos com a propaganda de minhas aulas.

O samba-rock surgiu na cidade de São Paulo?

O samba-rock nasceu na cidade de São Paulo. Mesmo nascendo aqui há muita gente que não o conhece. .Não se dança samba-rock em outros estados brasileiros. A cultura da cidade de São Paulo é quem representa isso fortemente.

O samba-rock é uma coisa hereditária, vai de pai para filho. Os caras que fazem bailes hoje são (alguns deles) filhos de Djs que realizavam bailes há trinta anos.

Para mim, a história do samba-rock está nesses bailes. O pessoal da mídia está indo nas baladas onde se dança com bandas de samba-rock, mas nesses lugares não está a história. A mídia não se interessa pelos bailes de nostalgia porque esses lugares não freqüentados por pessoas da classe média. As pessoas mais comuns freqüentam os bailes da nostalgia.

Eu acho o baile da nostalgia a coisa mais linda. Eu sempre ia aos bailes com um traje social. Não se entra nestes bailes usando tênis e calça jeans. Para ir ao Clube Homes na Avenida Paulista, eu utilizava a seguinte estratégia: chegava de ônibus até o início da Avenida Paulista e depois pegava um táxi, só para fazer um tipo.

O samba-rock nunca ficou conhecido porque ele não era divulgado pela mídia. Os próprios organizadores dos bailes nunca se preocuparam com esta questão. Seus bailes sempre lotaram de gente, e a propaganda via panfleto e também o boca a boca funcionavam bem.

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Algumas pessoas que promovem bailes dizem que não querem que o samba-rock seja conhecido, pois ele pode perder a essência, a raiz.

Como o samba-rock se constituiu?

Hoje, a dança é um pouco diferente. Destes anos para cá, tudo mudou: a política, a sociedade e a dança também.

O samba-rock aumentou seu grau de dificuldade.

Há um tempo atrás, surgiu um grupo de rapazes se intitulavam: Os Cartolas. Esses rapazes introduziram uma nova maneira de se dançar, que é o chamado samba-rock estrela. Eles dominavam muito bem essa técnica e quando dançavam, todos paravam, abrindo uma roda no meio do salão para vê-los dançar. Todos ficavam loucos para aprender com eles, mas eles não ensinavam. Eles dançavam com um alto grau de dificuldade. Eles aumentaram tanto a destreza que até as próprias mulheres não conseguiam acompanhá-los. Houve uma época em que eles dançavam entre eles mesmos, ou seja, homem com homem. Os Cartolas atualmente estão um pouco esquecidos. Eles ainda aparecem nos bailes, mas não como antes.

O pessoal da antiga acha esse modo de dançar deles muito rápido e difícil de ser dançado e prefere continuar dançando á moda antiga - mais lentamente e sem exageros de variações.

O ancestral do samba-rock é o chamado swing americano. Um modo de dançar em que o eixo do corpo é deslocado para trás.

A base de passos para se dançar o samba-rock obedece ao tempo quaternário da música. Essa base de passos é feita pela mulher, que se desloca lateralmente, abrindo e unindo as pernas em quatro tempos. O homem não marca esta base da mesma maneira que a mulher. Ele acompanha a mulher, geralmente mais lentamente, sem se deslocar lateralmente.Os braços do casal estão sempre sincronizados, mas as pernas não.

O samba-rock ensinado atualmente não obedece rigorosamente a essa maneira de dançar. Por questões didáticas, eu introduzi nas aulas o que eu chamo de base. Nela, ambos fazem o deslocamento lateral em quatro tempos. No final, fica quase a mesma coisa, mas para iniciantes é preciso aprender essa base.

As pessoas que dançam samba-rock há muito tempo e não aprenderam em academia, compreendem bem a espacialidade dos passos. Eles sabem onde a mulher está e em que perna ela está apoiada.

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Hoje, os dançarinos de quarenta, cinqüenta anos, não têm a velocidade de um menino de vinte ou vinte e cinco anos, para realizar os giros que são executados atualmente.Os dançarinos mais velhos preferem dançar como sempre se dançou.

Uma parcela da juventude, que cresceu vendo os pais dançando, prefere inovar e procura desenvolver e aprimorar o jeito de dançar, aumentando a velocidade de seus giros e trazendo novos elementos para essa dança.

Não é qualquer pessoa que consegue dançar o samba-rock atual. É preciso de um corpo bem preparado para realizar os movimentos.

As músicas mudaram?

As bandas de samba-rock que surgiram recentemente, apesar de terem suas próprias composições, ainda se remetem ao repertório já conhecido do samba-rock.

No samba-rock se dança com uma variedade de estilos musicais. Os Djs antigamente pesquisavam as músicas em sebos para encontrar o swing que fazia o pessoal dançar. Não havia, nas capas dos discos, prinpalmente os importados, a designação samba-rock. O samba-rock não é um tipo de música, mas um tipo de dança. Atualmente, se faz o mesmo. Músicas como as de Maria Rita são perfeitamente dançáveis.Os djs de ontem e de hoje nunca se interessaram muito sobre a procedência da música, o que importava para eles era o valor sonoro.

Os djs atualmente utilizam a tecnologia para misturar diversas músicas para criar uma nova. No Brasil, quem utiliza bastante isso é o dj Loo.

Sempre houve bandas de samba-rock?

Antes havia os grandes shows.

Eu fui ao show do Tim maia junto com o Jorge Benjor no Clube Cobra em Osasco. Naquela época, esses cantores iam aos lugares mais periféricos. Eles não eram tão conhecidos como hoje. Eles não estavam na mídia. Na verdade a mídia sempre ignorou essa fatia do mercado.

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O Bebeto, por exemplo. Ele é o cara que todo mundo que curte samba-rock conhece muito de suas músicas. Por que ninguém o conhece fora destes lugares? A mídia e as gravadoras não se interessam.

Eu quero entrar a fundo nessa história para saber a fundo o porquê da mídia não se interessar. Gostaria de fazer um documentário sobre os bailes para divulga-lo.

Porque o samba-rock não desapareceu?

Eu acho que o samba-rock não desapareceu por que ele nunca foi divulgado pela mídia. Aquele sentimento de raiz e de essência o manteve. A não divulgação fez com que ele continuasse acontecendo.

As pessoas que vão aos bailes vão porque sempre foram e não porque o samba-rock está na moda. O samba-rock faz parte da vida dessas pessoas.

A mídia atualmente se interessa por uma parte do que é samba-rock. São lugares freqüentados pela classe média. Mas a história do samba-rock está nos bailes da nostalgia. Bailes freqüentados por pessoas da periferia.

O pessoal dos bailes curte toda a atmosfera que acontece nestes lugares. Além do samba-rock, eles também dançam o balanço e a lenta.

A gente sempre entra naquilo que é tentar dizer o que é samba-rock. O que quer dizer a palavra samba-rock.

Um jornalista, por exemplo, que vai para um baile, por exemplo. Se ele vai no “de quinta” (um lugar mais elitizado) e depois vai ao Grenn Express, ele perceberá que há uma diferença, só que ele não consegue explicá-la. Eles ficam instigados e perguntam: o que é o samba-rock realmente?

O samba-rock é um evento com música, com Dj, com dança. A presença do Dj faz a diferença.

Quando chega na definição mesmo, as pessoas dizem que o samba-rock é isto, mas ao mesmo tempo é aquilo também. Fica aquela coisa em que ninguém sabe muito que responder.

Como não se consegue dar uma definição concreta do que seja, a mídia acaba também não achando que seja uma coisa boa para se trabalhar. A mídia não entende, por isso não se aprofunda.

Depoimento colhido no dia 09/04/2006.

Local: residência. Vila Madalena – SP

Com: Marco Matoli.

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Apelido: Matoli.

Vocalista da Banda Clube do Balanço.

Minha história com o Samba-rock começa com o samba. Eu comecei

profissionalmente com a banda Guanabara. Entre 1998 a 2000, nós fazíamos um som pop com percussão de samba, essa fase foi a semente do meu trabalho musical atualmente. Nós da banda Guanabara fomos descobertos por uma turma que fazia baile Black. Que eram pessoas da band Brasil, marquinhos Silveira, Bene Alves. Eles ouviram o nosso som e disseram que aquilo que a gente tocava era samba-rock. Eu não sabia que gente tocava samba-rock.

Eu, depois de ser apresentado ao samba-rock, comecei a freqüentar os bailes e a conhecer melhor esse universo e a ouvir as músicas que tocavam nesses bailes. Eu fiquei fascinado pelo ambiente do baile black, onde se toca samba, música internacional, rithm blues, jazz e as pessoas dançam samba-rock. Foi então que eu comecei a ouvir as musicas de pessoas como: Bebeto, Luis Vagner, Branca de Neve e outros.

Quando a Guanabara acabou, eu lancei um disco solo já referenciado com o samba-rock no chamado “balanço bom é coisa rara” de 1996. Esse trabalho foi a semente do que veio a ser em 1999 a banda de samba-rock “clube do balanço”. Essa banda se dedica a fazer música ao vivo para o baile, que tradicionalmente é feito com música mecânica. Nossa banda escolhe seu repertório e arranjos musicais pensando nos dançarinos. Isso nos difere de outras bandas.

O que há de comum entre as diferentes músicas que fazem parte do universo do samba-rock?

O dança samba-rock é um fenômeno muito interessante. Ele não é um estilo musical, ou um gênero, mas uma dança na verdade. Esteticamente ele não é definido pelos músicos. Ele é definido pelo ambiente de baile, pela dança e pelo dj. Há músicos não tem idéia de que tocam samba-rock. Isso aconteceu por causa dos djs. Eles percebiam junto freqüentadores de baile, quais músicas serviam para dançar. Eles pesquisavam nos discos, eram verdadeiros garimpeiros.

Um exemplo é o Jimy Smith, um organista de Jazz, muito famoso. As pessoas adoram dançar samba-rock com algumas músicas dele. Agora eu tenho certeza que se falassem a ele sobre o samba-rock ele perguntaria: - o

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que é samba-rock meu amigo? Eu sou um organista de Jazz. O mesmo acontece com Ray Charles. Mas isso acontece também, com músico e cantores brasileiros. A Sônia Santos, por exemplo, gravou uma faixa num disco chamada de Poema rítmico do malandro. Essa música nunca chegou a fazer sucesso em rádio e nem foi composta para se dançar o samba-rock, mas entre os djs ela foi garimpada e divulgada nos bailes e se tornou um clássico no universo do samba-rock.

Talvez a banda Clube do Balanço seja a primeira banda que se propôs a tocar samba-rock para as pessoas dançarem. Mesmo o Jorge Bem, ou o Bebeto, ele tinham discos onde algumas músicas eram aproveitadas para se dançar. No inicio eles também desconheciam essa relação da música deles com a dança.

Qual a relação entre Clube do Balanço e a grande mídia?

Nós nunca tivemos a chance de fazer nada grandioso, a gente sempre correu pela berada. Nossos dois discos são independentes, e tocamos no circuito independente.Nunca entramos no circuito comercial de rádio e televisão, mas isso tudo não foi por postura ou ideologia, mas por falta de chances mesmo.

O fato do Clube do Balanço ter começado a tocar no bairro da vila Madalena contribuiu para a divulgação do samba-rock para o público da classe média?

Acho que nós não somos os únicos responsáveis por isto ter acontecido. Eu considero que nós contribuímos bastante para essa divulgação. Até 1999/2000, a classe média não sabia o que era samba-rock. Eles até poderiam conhecer o Jorge benjor, Tim Maia, mas não todo o repertório de músicas e dança também. Este fenômeno era restrito ao baile black, e a festa familiar da periferia.

Nós começamos tocando na vila Madalena no ano de 2000 num bar chamado Grazie Dio. Foi a primeira balada de samba-rock da Vila madalena, e durante o tempo que nós tocamos lá houve muita aceitação de público. Nesse tempo que nós ficamos no Grazie Dio muitos músicos passaram por lá para dar uma canja. Cantaram conosco o Bebeto, Luiz Vagner, Abílio Manuel, Marco Ribas, todos são nomes já consagrados no mundo do samba-rock desde 1970. Outros cantores mais novos também se aproximaram como Simoninha, Seu Jorge, Paula Lima, Marques de Castro.

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Depoimento colhido no dia 05/06/2006

Local: Estúdio do dj Loo; bairro de Pirituba –SP.

Com:Robson Luiz

Apelido: dj Loo

Minha história com o samba-rock começou desde criança. No quintal da minha casa tinha um barracão onde meu tio realizava bailinhos nos finais de semana. Minha mãe trabalhava na bilheteria. Era o baile do Toninho. Quando eu tinha por volta de quinze anos o Toninho me presenteou com todos os seu discos e sua aparelhagem. Foi deste então que eu iniciei meu trabalho como dj. Aqui no bairro de Pirituba eu era pessoa com o acervo mais completo de música de baile.

No ano 2000 eu fui convidado para ser dj do Green Express pelo João Carlos. Este baile é freqüentado pelo pessoal que dança samba-rock há muito tempo, são dançarinos que dançam de um jeito mais lento e cadenciado, o chamado estilo tradicional. O início do meu trabalho neste lugar foi bastante criticado as músicas que eu selecionava não se encaixavam bem naquele contexto. Há uma parcela de pessoas que são muito conservadoras no meio do samba-rock As músicas com novas versões, mais rápidas e sampleadas não agradam este tipo de público.

Por conta deste problema o baile se constitui combinando os dois estilos. Na primeira parte do baile o dj Miriti escolhe seleções de samba-rock tradicionais. Na segunda, eu entro com o samba-rock mais inovador.

Como neste baile se misturam jovens e pessoas (a mãe vai com a filha) mais velhas esta combinação e eficiente.

Além das músicas a própria maneira de se realizar o trânsito entre uma música e outra também é diferente. O dj Miriti abaixa o volume do final de uma música e depois coloca o início da próxima. Eu passo de uma música a outra sem parar com o ritmo, a música fica na mesma batida neste trânsito. A garotada gosta desta técnica, ela é mais dinâmica.

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Eu tinha um visinho que é até hoje muito conhecido que se chama dj Cuca. Entre 1995 e 2000, este dj produziu em estúdio os primeiros sambas-rock. Essa produção era muito avançada e inovadora para a época, e não se tornou algo tocado em bailes.

Atualmente eu produzo minhas músicas no computador. Há recursos nessa tecnologia que permitem a mistura de várias músicas, para que se tornem uma só. Este é o meu trabalho, eu mudo a música completamente. Com esta possibilidade tecnológica eu rearranjo tudo e chego fazer com que uma música que não é um samba-rock transformar-se em samba-rock. É o que se chama de swigar a música. Faço acrescentando, por exemplo, som de ximbau e bateria.

Uma de minhas músicas virou sucesso nos bailes e até as pessoas mais tradicionais gostam dela. Uma música francesa que eu misturo com a orquestra do Ray Coniff. O sucesso foi tão grande que produzi um disco de vinil com ela. Foram singelas cem cópias, pois a produção de um vinil atualmente é caríssima.

Tudo é aproveitável. Eu misturei seis músicas neste em um outro trabalho e tive o cuidado, como sempre de equalizá-las de forma a não produzir a sobreposição de uma música com a outra, há uma harmonia que deu certo nesta produção. Fazer este tipo de trabalho é o mesmo que fazer uma boa salada, não é só misturando todos os ingredientes de maneira aleatória que o gosto será bom. Há uma combinação de quantidade de ingredientes e também de tempero.

Quando eu estou fabricando estas músicas eu imagino o casal dançando. A criatividade surge com esse parâmetro.

Antes de trabalhar com o samba-rock eu produzia músicas de rap. Fui integrante de um grupo que existe mais, chamado RZO (1990). Portanto todo esse modo de produzir músicas vêm do Rap. Todas as músicas de rap utilizam este formato. São células musicais que se repetem do começo ao fim da música.

Uma coisa inovadora também veio também com modo como eu me dirijo ao público pelo microfone. Durante o baile eu brinco e animo o público, falando algumas coisas no meio da música. Isso veio da experiência que tive com o rap. A pessoa que canta o rap é chamada de M.C. ( mestre de cerimônia). É ele que leva a mensagem. O rap é uma mistura do canto com a fala. No baile tradicional o dj fala muito pouco. Nos baile que havia no círculo militar o dj nem aparecia. Ele ficava atrás da cortina trocando as músicas.

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Atualmente o dj é um show à parte, há um sistema de luzes que o ilumina e lhe dá um destaque.

O mercado de musicas do samba-rock acontece paralelamente. Meu cds por exemplo só são vendidos na loja do Toni Hits, no gordo’dicos e na loja do gringo. Nenhuma gravadora se interessa por estas músicas, por que elas não vendem de acordo com os patamares de dinheiro que elas necessitam. Para as gravadoras este é um mercado restrito, para nós em mercado rentável.

O caminho do samba-rock é paralelo ao da mídia. Nós não estamos

preocupados se o samba-rock está na mídia ou não. Nosso trabalho é em

menor escala e mais lento, sem dar notoriedade ao sucesso em grande escala.

A mídia vive de momentos e bombardeiam as rádios com músicas que pela

repetição acabam sendo assimiladas pelo público. Este não é o nosso

caminho, para qualquer oscilação nós já temos nosso público. Um casamento

na periferia toca tudo que a mídia veicula, mas sempre há um momento da

festa em que o samba-rock é tocado e dançado.