fonseca, marcio alves da - michel foucault e o direito

Upload: caio-et-dik

Post on 14-Apr-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    1/20

    CAPTULO 1 UMA GENEALOGIA DA NORMA

    Norma (e normalizao): no h aqui, tal como quanto ao direito, um conceitopreciso, mas uma srie de estados e situaes heterogneos, porm mais facilmentelocalizveis no pensamento de Foucault que quanto quele; no se referem s categorias

    formais do direito, lei, s regras postas por um poder constitudo e competente para tal,mas sim ao funcionamento dos organismos e aos domnios de saber e de prticas que lhescorrespondem cincias como a medicina, a psiquiatria, que tm como objeto a vida.

    Genealogia da norma: apesar de no ser apresentada por Foucault como tal, h ummomento em que as elaboraes em torno desse tema ganham um sentido diferente doempregado nos primeiros textos, talvez mais preciso, aps os primeiros cursos no Collgede France (Le pouvoir psychiatrique e Les anormaux), em que h uma delimitao dumcerto domnio, que permitiu certos desdobramentos dessa noo, como as idias denormalizao disciplinar e de normalizao enquanto mecanismos de regulao ligados aobiopoder.

    O pensamento do autor se divide segundo trs diferentes nfases metodolgicas:arqueolgica (Histria da loucura, 1961, O nascimento da clnica, 1963,As palavras e ascoisas, 1966, A arqueologia do saber, 1969) genealgica (Vigiar e punir, A vontade desaber, pesquisas realizadas enquanto professor do Collge de France entre 1971 a 1980) etica (O uso dos prazeres e O cuidado de si, cursos do Collge de France de 1981 a 1984).

    Arqueologia: aproxima-se de uma histria conceitual das cincias, mas no temcomo referencial fundamental a prpria noo de cincia, encaminhando-seprogressivamente para uma anlise dos saberes, estratos de saber e prticas discursivas,como acontecimentos, que se ordenando segundo diversas regras de formao,articulariam os domnios dos discursos tericos, das prticas sociais e das escolhaspolticas.

    A norma caracteriza a forma que determinados saberes assumem na modernidade,sendo que o carter normativo deles seu trao distintivo, pelo qual os objetos e os sujeitosneles implicados ou por eles estudados so separados em dois campos, o do normal e o doanormal ou patolgico.

    Histria da loucura (1961):H quatro formas de conscincias da loucura: conscincia crtica ou dialtica,

    que a denuncia em oposio ao valor e forma que so enunciados pela razo, servindo demedida a essa; conscincia prtica, social e normativa, ocorrida com a separao por umgrupo do domnio da razo e o da loucura, pertencendo a este ltimo os que transgridem asnormas sociais estabelecidas; conscincia enunciativa, indicativa, que designa a loucura

    segundo uma pura apreenso perceptiva, sem qualific-la nem desqualific-la e quepressupe ao sujeito uma slida conscincia de que no se (louco); e conscinciaanaltica, expressada na forma de um saber objetivo, em que a loucura aparece isolada desuas formas, de seus fenmenos e de seus modos de aparecimento). H trs tipos deexperincia ou percepo fundamental da loucura (experincias csmica, ontolgica eantropolgica) que podem ser percebidas a partir da justaposio de dois planos ou pontosde vista inerentes a trs pocas (um plano dos gestos e das prticas sociais que cercam aloucura e um plano dos saberes e dos textos que procuram defini-la ou explic-la).

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    2/20

    Renascena (e final da Idade Mdia), em que se privilegia a conscincia dialtica, ese vivencia uma experincia trgica ou csmica da loucura, em que razo e loucura no seopem, mas remetem uma outra; quanto ao plano dos textos h uma conscincia dialticada loucura, que aparece em relao com a razo, lembrando a cada um a sua verdade epronunciando palavras que fazem sentido; a loucura no est ligada ao mundo, mas ao

    homem e a suas fraquezas e iluses, desembocando num universo moral; h o incio dadiviso entre o elemento trgico, da viso csmica, e o elemento crtico, dos movimentosda reflexo, que marcar a percepo da loucura na Idade Clssica.

    Idade Clssica, na qual em lugar de uma experincia csmica da loucura, umaontolgica; quanto medicina e filosofia ela compreendida como Desrazo, comoDelrio, como um contrrio absoluto, em oposio fundamental razo, manifestando ono-ser da razo, numa distncia ontolgica a esta; no plano textual h privilgio dasconscincias enunciativa, loucura como diferena, como no-ser da razo, e analtica,loucura como um Nada que no pode ser conhecido, como obstculo. Quanto s prticassociais, em que so privilegiadas as conscincias crtica (loucura como pura contrariedade,negao da moral) e prtica (loucura como segregao, separada do mundo da Razo e dosvalores), a loucura internada, pois no vai sozinha aos locais fechados, trazendo com eladiferentes figuras, sem nenhuma unidade, mas que trazem a marca da Desrazo, que rejeitada por ser contrria aos valores (famlia, religio e cidade burguesa); o espao dointernamento correcional, e no mdico-teraputico.

    poca Moderna, em que h uma experincia antropolgica da loucura, em que estadeixa de expressar o no-ser da Razo para significar uma alterao das faculdadeshumanas; o medo de uma epidemia de seus efeitos, maior do que o papel curativo desses,gera o aumento da presena mdica nos locais de internamento; surgimento do Asilo paraloucos, com tcnicas de tratamento moral, a manter a loucura no interior de uma dimensoque a culpabiliza, constituindo-se numa estrutura objetivante. Privilgio de umaconscincia analtica, que busca definir a loucura em termos de um saber mdico-cientfico,designando-a Doena Mental, que necessita de uma interveno mdico-curativa parareconduzi-la normalidade.

    A norma aparece (como aparecer em Vigiar e punire A vontade de saber) comoum princpio de excluso ou de integrao, ao mesmo tempo que revela a implicao deduas formas que assume historicamente, ou seja, a forma de norma de saber, anunciandocritrios de verdade cujo valor pode ser restritivo ou constitutivo, e a forma de norma depoder, fixando para o sujeito as condies de sua liberdade, segundo regras externas ouleis internas.

    O nascimento da clnica (1963):Norma como princpio de separao dos indivduos (normal X patolgico),

    segundo a medicina. H uma crtica ao modelo tradicional de histria das cincias, que sed com a elaborao de uma outra histria da medicina, diversa da progressista(moderna, cincia emprica, identificadora de erros e narradora de possveis correes esuperao de teorias e tcnicas equivocadas). Mudana de enfoque sobre os documentoshistricos, enfoque arqueolgico, procurando perceber a trama que tornou possvel osdiscursos (acontecimentos, prticas). A medicina moderna se tornou possvel a partir daclnica, que congrega prtica curativa e ensino do saber mdico.

    A cincia mdica o modelo das cincias humanas, pois a cincia do indivduo ea cincia da interveno sobre o indivduo.

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    3/20

    Medicina clssica: classificatria; a doena consiste numa entidade ideal e deveocupar um lugar num quadro classificatrio de suas espcies, definidas pelos sintomas, pelasua externalizao. O doente mero veculo da doena, figura contingente, acidental. Olharde superfcie.

    Medicina moderna: com a clnica (final do sc. 18), o olhar passa a penetrar no

    corpo do doente e descobre, na espessura dos seus tecidos, o mal que o atinge. Refere-seantes normalidade que sade. Olhar de profundidade, que perpassa o doente e tambmmanifesta o que v na forma de ensino. Envolve, tambm, um conhecimento do homemno doente e uma definio do homem modelo; toma uma postura normativa que a autorizaa reger relaes fsicas e morais entre os homens.

    As palavras e as coisas (1966):Arqueologia das cincias humanas, segundo as condies histricas que permitem o

    surgimento e a organizao de um tipo de saber sobre o homem.pistme: solo histrico deAs palavras e as coisas, objeto da arqueologia.pisteme moderna: a que se organiza em torno da figura do homem;

    aparecimento de um tipo de homem, como figura de saber, como dobra do saber (no saberclssico h uma ausncia do homem quadro Las Meninas de Velsquez); a condiohistrica de possibilidade dos objetos dos domnios da vida, do trabalho e da linguagemser o homem, enquanto sujeito racional; desse momento de reverso para a interioridadedas coisas nascem as cincias empricas.

    A constituio dos saberes sobre os domnios de objetos citados na Renascena sed na ordem da semelhana (ligao que se d segundo formas de similitude, entre aspalavras e as coisas); na Idade Clssica a organizao dos saberes opera-se na ordem darepresentao (conhecer compor quadros, comparar, classificar, ordenar segundo umprincpio racional universal); na poca Moderna se d na ordem da histria (aparecimentodo homem em sua finitude, como sujeito e objeto de conhecimento, sendo a refernciaessencial ordem dos saberes).

    O nascimento das cincias empricas contemporneo ao pensamento kantiano,filosofia transcendental (conhecer uma faculdade do sujeito, e este pode descobrir averdade, podendo faz-lo a partir de si mesmo). Surge o ser emprico-transcendental, ohomem, condio de possibilidade das cincias humanas, conjunto de discursos. O homemcomo seu a priori histrico.

    As cincias empricas so a anlise do que o homem por natureza. A filosofiatranscendental estuda o homem enquanto condio de possibilidade do saber. J as cinciashumanas estudam as representaes do homem acerca da vida, do trabalho e da linguagem,sendo anlises de representaes referidas ao ser emprico-transcendental

    As trs cincias humanas so: a psicologia toma o conceito de funo da biologia (ohomem um ser que tem funes) para estudar as representaes que o homem faz emtermos de "normas" que encontra e que lhe permitem exercer suas funes; a sociologia, daeconomia (homem enredado numa situao irredutvel de "conflito"), estuda asrepresentaes que o homem faz neste campo em termos de "regras" que o permitemlimitar ou dilatar tais conflitos; e o estudo da literatura e dos mitos, da filologia (idia de"significao") estuda as representaes que os homens fazem dessas significaes emtermos de um "sistema" de signos que deixam atrs de si.

    Nas cincias humanas h um privilgio da norma sobre a funo, da regra sobre oconflito, do sistema sobre a significao. Remetem idia de separao, bipolaridade do

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    4/20

    normal e do patolgico. De um lado a negatividade (o homem face sua finitude), de outroa positividade da norma.

    Genealogia: nfase ao no-estratificado do poder (Deleuze); subjetividademoderna enquanto resultado de intervenes de poder; anlise dos lugares institucionais emque os agenciamentos de poder se efetuam; poder normalizador (disciplinas e biopoder) e

    de dispositivos, noo mais abrangente que pitme, central na histria arqueolgica.tica: as anlises das prticas de poder do lugar s discusses sobre as prticas desi, numa hermenutica de si, proposto a partir do estudo das prticas morais daAntigidade Clssica e do perodo helenstico; contraponto entre a formao de umasubjetividade no presente, marcada pelos mecanismos da normalizao, a formas diversasde constituio de si.

    Quanto ao contexto da genealogia, marcado por uma analtica do poder, o tema danorma deslocado segundo formas muito mais prximas de mecanismos e tecnologias depoder, sem que represente uma ruptura entre a sua abordagem no contexto da arqueologia,segundo o pressuposto de que no h norma em si, no se trata de uma separao entrelcito e ilcito; h a afirmao de imanncia da norma, no se podendo pens-la em simesma, nem como exterior ao seu campo de aplicao, pois ela o produz e, principalmente,produzindo-o, produz a si mesma; as prticas discursivas no so independentes dasprticas de poder, mas so constitudas por estas.

    Normalizao: nos trabalhos da genealogia, torna-se mais pertinente que se fale emnormalizao, pois a norma no mais funciona como princpio de distribuio de objetos esujeitos nos campos do normal e do anormal, mas passa a remeter idia de mecanismos eestratgias de constituio dos objetos e sujeitos, ou de interveno do poder nessaconstituio; no remete s noes de represso ou excluso, no significa impor limites adeterminadas condutas, mas remete, ao contrrio, idia de estados ou situaes a partirdos quais, e por meio dos quais, uma tecnologia positiva de poder possvel, de tal formaque, normalizar, significaria agenciar a produo de condutas esperadas; no um princpiode represso, mas um mecanismo produtivo de poder.

    Deslocamento: no o realizado em relao a um sentido inalterado, assim comouma espcie de essncia, mas sim o encontro de diferentes formas ou usos de um tema emfuno de diferentes preocupaes e problemas que conduzem suas abordagens quando eleaparece; no se trata nem de se descobrir realidades essencialmente diferentes presentes emcada um dos deslocamentos, nem de se descobrir uma realidade nica comum a eles.

    Os cursos do Collge de France tm carter didtico-pedaggico (coerncia naseqncia das aulas e clareza no desenvolvimento) e experimental, so pesquisas inditas,hipteses de trabalho, que aps so retomadas, aprofundadas ou mesmo abandonadas.

    Le pouvoir psyquiatrique (1974)A ordem asilar funciona como regulao permanente das atividades e dos

    momentos, penetrando os corpos, at seus nervos, sendo condio para a constituio deum saber mdico e a obteno de um efeito de cura permanente daqueles que ali habitam. Opoder como dispositivo de domnio da loucura produz prticas discursivas, um certo jogoda verdade; poder mltiplo, disciplinar.

    Poder psiquitrico: submisso vontade e ao saber do mdico; antes de ser umacura, seria uma certa maneira de administrar, uma direo, que s possvel graas a umespao disciplinar, em que as individualidades se distribuem de maneira precisa, tm seus

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    5/20

    atos previstos e controlados por um mecanismo de vigilncia e um sistema de sanesconstantes; ocorreu uma generalizao, ou uma migrao, desse poder para todos os lugaresem que se tornou necessrio fazer a realidade funcionar como poder (usinas, exrcito,prises, escolas), possibilitada pela psiquiatrizao da infncia (criana imbecil ouidiota).

    Desenvolvimento: noo entendida como processo que atuaria sobre a vidapsicolgica e orgnica de todos os indivduos e que, segundo um critrio temporal, poderiaservir de norma em relao a qual todos poderiam se situar; classificou-se, com relao infncia, estados, que no seriam doenas, mas desvios em relao a uma norma, seriamdiferentes anomalias.

    Anomalias: elementos ao mesmo tempo naturais e anrquicos que se constituiriamem instantes no processo de desenvolvimento; estado em que algum se situa face aoprocesso de desenvolvimento; comea por ser categoria apenas aplicada a crianas, mas adifuso do poder psiquitrico se d justamente com a confiscao dela pela medicina, apartir da psiquiatrizao da infncia; associao com a noo de perigo, essencial para apassagem de um fato de assistncia para um fenmeno de proteo social, donde comea aesboar-se a categoria de anormais.

    Les anormaux(1975):Anlise do surgimento da categoria dos anormais a partir do monstro humano, do

    onanista e dos chamados incorrigveis.Saber mdico-legal: cruzamento entre os discursos da instituio judiciria e do

    saber mdico, que, ao menos formalmente, concernem aos dois domnios simultaneamente;seu contedo estranho s regras de um discurso cientfico e tambm s regras de direito,fugindo quilo sobre o que as leis dispem; so discursos que falam no do criminoso ou dodoente, mas do irregular, do anormal; est ligado a um mecanismo de poder que faz dopoder judicirio e do saber psiquitrico instncias de controle do anormal, mais do que detratamento das doenas e do controle do crime.

    Anormais: todos aqueles que podem apresentar um perigo sociedade; espcie dedescendente das figuras do monstro humano, do indivduo incorrigvel, da crianamasturbadora.

    Genealogia do anormal: permite descrever, em torno das noes de norma e denormalizao, um conjunto de estados e situaes que se reportam fundamentalmente aoexerccio de um certo tipo de poder, que produtor de condutas, gestos, discursos,subjetividades; faz aparecer a norma como o elemento a partir do qual tal exerccio depoder torna-se possvel, como veculo, e a normalizao o prprio movimento descritopor tal exerccio; indica que, sobretudo aps a configurao das noes de normal e deanormal no seio do saber e das prticas da psiquiatria, que ser possvel a difusomacia das tecnologias do poder de normalizao para todas as outras instncias dasociedade.

    Monstro: antes do sc. 18, ser que transgredia a ordem natural, a ordem civil e aordem religiosa, (noo de coexistncia, em um s indivduo, do sexo masculino efeminino, o hermafroditismo, do reino humano e do reino animal); aps o incio do sc. 18,substitui-se pela noo de irregularidade, distanciando-se do carter jurdico-natural epassando a concernir aos desvios da conduta, de comportamento, malformao (caso dohermafroditismo), de um indivduo: figura do monstro moral.

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    6/20

    Mostro moral: primeiramente os grandes representados pela figura do rei tirano(que quebra o pacto fundamental devido ao abuso do poder) e do povo revoltado (violnciae traio contra o pacto social), sendo o rei relacionado ao incesto, e o povo revoltado antropofagia; aps, reencontra-se essas duas figuras na temtica mdico-jurdica domonstro sendo reduzida at a figura menor, cotidiana do anormal.

    Instinto: desejo quase irresistvel, presena de um agente extraordinrio,estranho s leis regulares da organizao humana, energia de uma paixo violenta;noo central para o problema da anomalia e para a passagem da figura dos grandesmonstros do anormal; permite tornar inteligvel ao mecanismo penal um crime seminteresse (que seria impassvel de ser punido) e psiquiatria permite transformarcientificamente a ausncia de razo de um ato num mecanismo patolgico positivo.

    Com a generalizao do poder e do saber psiquitrico, a partir da problematizaodo instinto, surgem trs processos: o cruzamento entre a psiquiatria e a regulaoadministrativa, tornando-a disciplina mdica, no preocupada com o indivduo serdemente, ser juridicamente capaz, mas sim com a capacidade de ele perturbar a ordem ou asegurana pblica; a demanda familiar da psiquiatria, principalmente com a lei de 1838que possibilitou famlia o pedido de internamento, se obtivesse certificado mdico, emque no se atestava incapacidade jurdica do agente, mas se reconhecia o perigo para afamlia; a demanda poltica da psiquiatria (entre 1850-1875), consiste em se pedir psiquiatria um discriminante poltico acerca dos movimentos polticos a que se podiavalidar e daqueles a que se devia desqualificar.

    A psiquiatria se organiza como um campo fenomenologicamente aberto e ao mesmotempo cientificamente modelado e coloca em contato a norma, como regra de condutaa que se ope a anormalidade, irregularidade, e a norma enquanto regularidadefuncional, a que se ope o patolgico, disfuncional, ajustando-os parcialmente.

    D-se a substituio do modelo da excluso, como no caso da lepra em que aquelesque possuam a doena eram excludos da cidade, pelo modelo de incluso, como no casoda peste em que se criava um sistema de controle nas cidades que possuam indivduoscontaminados, que corresponderia ao processo histrico da inveno de tecnologiaspositivas de poder, que teriam uma implicao necessria com a norma, e seusprocedimentos seriam finalizados por dispositivos de normalizao.

    CAPTULO 2 O NORMAL E O LEGAL

    H uma oposio conceitual entre o normal e o legal que permite aidentificao de uma imagem do direito em Foucault. O direito como lei, como o conjuntodas estruturas da legalidade. Essa imagem do direito decorre da elaborao de uma novaconcepo de poder, calcada num modelo estratgico (analtica do poder), em oposio auma concepo descrita segundo um modelo jurdico.

    Analtica do poder: difere de uma teoria sobre o poder, que suporia a identificaode um objeto, o ser do poder, possibilitando descries de sua estrutura, suas regras defuncionamento, seus efeito, por outro lado, se limita a perceber diferentes situaesestratgicas a que se chama poder; o poder s o nome dado a uma situao estratgicacomplexa numa determinada sociedade (concepo nominativa); leva a uma distino entreum modelo do direito, representao jurdico-discursiva, e um modelo estratgico,representao do poder enquanto mecanismo.

    H nos dois textos seguintes um sentido explicativo acerca da analtica do poder:

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    7/20

    Histria da sexualidade, 1: A vontade de saber(1976): em relao ao sexo, umarepresentao jurdico-discursiva comandaria tanto a temtica da represso (represso dosinstintos) quanto a teoria da lei enquanto constitutiva do desejo (lei do desejo),diferenciando-se as duas segundo a maneira que cada qual conceberia a natureza e a

    dinmica das pulses, mas no como conceberia o poderRepresentao jurdico-discursiva do poder: caracterizao do poder por ummodo de ao essencialmente negativo, tendo em todas as instncias a forma do direito,definido pelo jogo entre o lcito e o ilcito, a transgresso e o castigo; h uma aceitaottica desse modelo, pois a identificao do poder a um puro limite liberdade mascarariaaspectos essenciais de seu funcionamento e de sua abrangncia, tornando as condies desua aceitao mais facilmente preenchidas, e h tambm uma aceitao histrica, queremete ao desenvolvimento das monarquias e dos Estados no final da Idade Mdia (poder-lei, poder-soberania); permanecemos atados a essa representao, sem perceber ofuncionamento concreto e histrico dos novos mecanismos de poder, que se d pela tcnica,pela normalizao e pelo controle, mais do que pelo direito, pela lei e pelo castigo.

    Em defesa da sociedade (curso de 1976):Ttica genealgica: realiza a insurreio dos saberes sujeitados como parte de

    uma estratgia de poder, que esto presentes, ainda que disfaradamente, no interior dosconjuntos sistemticos de saber, longe de ser apenas procedimento terico-metodolgico;tem como ponto constitutivo central a pergunta pelos mecanismos de poder, liberando-se deuma representao jurdica do mesmo; a arqueologia seria o mtodo prprio da anlise dasdiscursividades locais e a genealogia, a ttica que faria intervir, a partir dessasdiscursividades locais descritas, os saberes dessujeitados que da se desprendem.

    Tanto a concepo jurdica liberal do poder (filosofia poltica do sculo 18),quanto a concepo marxista, tem como referncia a economia, sendo que para a primeirao economismo entendido como um direito, um bem que se poderia alienar, transferir e arespeito do qual se poderia contratar, e para a segunda o economismo apareceria demaneira mais evidente j que a razo histrica do poder poltico decorreria de seu papel namanuteno das relaes de produo.

    H duas hipteses libertas dos esquemas econmicos de anlise do poder: hiptesede Reich, em que o poder atuaria pelo mecanismo da represso (quanto aos instintos, aosindivduos, aos grupos), hiptese que predomina no horizonte da teoria poltica; hiptesede Nietzsche, em que o fundamento da relao de poder seria o enfrentamento belicosodas foras, a guerra continuada. Em sua genealogia, Foucault tenta explorar a hiptese deNietzsche, fazendo com que o principal critrio para se pensar o poder sejam osagenciamentos de foras em constante enfrentamento.

    Histria da loucura na Idade Clssica (1961):Nos dois perodos em que a loucura internada, a lei (decretos, ordenanas) o

    principal veculo de concretizao da internao:Na Idade Clssica, no Hospital Geral, regido segundo fatores de ordem econmica,

    social e jurdica, ocasionando um espao em que a lei civil dos Estados e a lei moral dosindivduos se encontram (sensibilidade jurdico-social, pessoa como ser social e a loucuracomo modificadora moral). Havia ainda que de forma muito restrita, como exceo,hospitais em que se identifica uma sensibilidade em relao loucura abordada segundo

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    8/20

    um critrio mdico, o nico que seria competente para julgar acerca do estado de loucura deum indivduo; o aspecto jurdico estava igualmente presente como referncia fundamental(sensibilidade mdico-jurdica, pessoa como sujeito de direito e a loucura comomodificadora no sistema das obrigaes).

    Na Idade Moderna, no asilo psiquitrico, regido segundo um saber e prticas

    mdicas, admitindo-se como dada, no interior da Doena Mental, a coincidncia entre aalienao do sujeito de direito e a loucura do homem social. O Hospital Geral passa a servisto como smbolo do Antigo Regime, e o internamento passa por um remanejamento, emque o louco conduzido a um local de cuidados mdicos e de excluso (loucura comodoena mental e psiquiatria positiva), presena do direito, como lei (novos critrios quedeterminam as medidas de internamento), mas principalmente no mbito de estruturas deconjunto que arrastariam as formas de experincia num movimento indefinido, em que oespao do internamento se confunde com um espao mdico formado em outro domnio, aloucura e aquele que a conhece e a julga tm um relacionamento de ordem objetiva, e aloucura se confronta com o crime e habita nele de alguma forma (procedimentos descritosem termos de interdio, que determinam os deslocamentos compulsrios do louco emrelao ao meio social, tambm procedimentos de organizao do espao institucionalrepresentado pelo asilo, segundo um modelo judicirio de culpabilizao, julgamento ecorreo, matriz dos procedimentos mdicos em relao loucura)..

    Vigiar e punir(1975) eA sociedade punitiva (curso de 1973):A normalizao disciplinar uma tecnologia positiva do poder, que tem como

    referncia um domnio (estrutura) institucional. Trata-se de estudar as transformaes nosmodos de punio a partir de um investimento poltico sobre o corpo (tecnologia polticado corpo histria da alma moderna em julgamento).

    Priso: lugar institucional e forma de punio para quase todos os crimes, que temo papel de um laboratrio, pois permite identificar e descrever o funcionamento dasdisciplinas como conjuntos de estratgias de interveno sobre os corpos; sucede ossuplcios e a forma de punio decorrente da reforma humanista no Direito Penal (sc. 18);seu surgimento no se limita evoluo das regras da justia penal ou descrio deformas sociais gerais que poderiam ser reconhecidas por detrs das figuras punitivas(Durkheim) o que representaria ou uma mudana na sensibilidade coletiva em direo auma humanizao, ou considerar como princpio da suavizao punitiva processos deindividualizao que seriam causa das novas formas penais.

    Suplcio: pena fsica que impe ao corpo algum tipo de sofrimento por meio deinmeras formas de violncia, podendo ou no causar a morte; aquilo que se v atravs docorpo marcado ou dilacerado daquele que sofre um suplcio a lei, esta que foradesrespeitada, que a expresso da vontade do soberano e que evidencia a dissimetria dopoder que o separa de seu agressor (o criminoso); est em jogo a economia do poder(soberano), jogo entre um comando e uma sano, conseqncia a uma desobedincia;ritual pedaggico que reativa o poder soberano, em que a lei vale como sua vontade e emque a fora da lei a sua fora (funo jurdico-poltica); o corpo supliciado tanto pontode aplicao do castigo quanto o lugar de extorso da verdade; remete forma dalegalidade (cerimonial judicirio para descobrir a verdade de um crime); a lei representada pela prpria forma que o suplcio assume e representa a vontade do soberanoque fora lesada e que o prprio objeto da disputa judiciria concluda com o suplcio.

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    9/20

    Penas proporcionais aos crime: tem lugar no contexto da reforma do Direito Penal(sc. 18, Beccaria, Servan, Dupaty, Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse),apontando para uma humanizao das penas, uma forma de castigo sem suplcio; nofundo o que se denunciava era uma justia penal irregular, em que sua funo erarealizada de forma lacunar, deveria se estabelecer uma nova economia poltica do poder

    de punir.Vagabundo: aquele que se recusa ao trabalho, aparece como categoria fundamentalda delinqncia, como matriz geral do crime, pois se encontraria numa posio nociva aoprocesso de produo, numa posio de hostilidade em relao sociedade; concepo docriminoso como inimigo social.

    Sociedade punitiva: apesar de os reformistas dizerem que as penas deviam seadequar aos crimes (crime como perigo pblico), a priso (sistema penitencirio) seafirma no inicio do sculo 19, formando a sociedade punitiva, na qual o aparelho de Estadodesempenha as funes corretivas, paralelamente s ditas penitencirias, representadaspelas prticas de aprisionamento.

    Ilegalismo (illgalisme): espcie de jogo no interior, ou ao lado, da legalidade,ou ainda, jogo em torno da legalidade e das ilegalidades efetivamente praticadas no interiorde processos econmicos e sociais presentes num grupo qualquer, sendo aceitas ou mesmoincentivadas, e que noutro contexto poderiam deixar de ser toleradas e passariam a serperseguidas; com a Reforma, houve uma transformao em relao gesto dasilegalidades, ocorrida com o aumento geral das riquezas conseguido pela burguesia e com ocrescimento demogrfico da poca, na qual o alvo principal se deslocou dos ilegalismos dosdireitos, que eram tolerados ou mesmo necessrios aos processos econmicos, para osilegalismos dos bens, que deveriam ser punidos; mais do que um ato ilegal, ilegalismo um certo regime funcional de atos considerados ilegais no interior de uma dadalegislao, em vigor no interior de uma sociedade, uma espcie de gesto desses atos querepresenta uma certa regularidade; no um acidente, uma imperfeio, porm umelemento absolutamente positivo do funcionamento social, cujo papel est previsto naestratgia geral da sociedade, de forma que a lei no feita para impedir tal ou tal tipo decomportamento, mas para diferenciar as maneiras de se fazer circular a prpria lei; no apenas um certo tipo de comportamento transgressivo das normas postas, mas um conjuntode atividades de diferenciao, categorizao, hierarquizao e de gesto social dascondutas definidas como indisciplinadas.

    O suplcio unia o excesso do poder soberano a um amplo espao de liberdade para oexerccio de ilegalismos e contra esses dois aspectos surge a reforma penal, quanto teoriapenal e quanto estratgia punitiva (gesto dos ilegalismos, que no os suprime, mas osadministra diferencial e permanentemente). Surge a necessidade de uma codificao dasatividades ilcitas, fundamental proporcionalidade (correspondncia entre a gravidade dapena e o perigo de uma possvel repetio do crime punio referente aos efeitos docrime) de maneira explcita e exaustiva a partir da fixao das penas, calcada na idia deespecificao e individualizao do crime que se d indiretamente tambm em relao aoprprio infrator (que depois de um certo tempo se realizaria concretamente na figura dohomo criminalis), objeto definido dentro do campo cientifico, indivduo a se conhecer (areincidncia, por exemplo, aparece como qualificao do prprio delinqente, que podemodificar a pena aplicada).

    Lei: no contexto de diferenciao entre um modelo de poder jurdico-discursivo eum modelo de poder da normalizao, Foucault apresenta uma concepo imperativista da

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    10/20

    lei, porm isso ocorre numplano conceitual, que possui a exata extenso da necessidade dese identificar a diferena terica entre lei e mecanismos de normalizao, diferentemente doque ocorre numplano das prticas; uma lei quando instaurada, probe ou condena num sgolpe um certo nmero de comportamentos, e logo aparece, em torno dela, uma aura deilegalismos, que no so tratados nem reprimidos da mesma maneira pelo sistema penal e

    pela lei propriamente dita.A preocupao de Foucault em relao ao conceito de lei (e tambm a outrosconceitos) no com o conceito propriamente dito, que serve apenas de ferramenta para aanlise de outras noes e prticas, como para, num primeiro momento, isolar a noo denormalizao e para, num segundo momento, mostrar os diferentes modos deagenciamentos dos mecanismos de normalizao.

    Para Kelsen, h entre a lei e a norma (num sentido diferente da norma em Foucault)uma relao fundamental, todo sistema de leis se reportaria a um sistema de normas. ParaFoucault, essa normatividade intrnseca lei no se confunde com os procedimentostcnicos de normalizao, o que no exclui que possam se implicar mutuamente.

    CAPTULO 3 DIREITO, DISCIPLINAS E ARTES DE GOVERNAR

    Segundo um plano das prticas, h, em Foucault, uma imagem do direito comovetor dos mecanismos de normalizao, como produzido e produtor de prticas da norma;um direito normalizado-normalizador, identificado a partir de uma perspectiva deimplicao entre normalizao e direito, relaes de coexistncia no-conflituosa e, mais,de dependncia e de complementaridade. No possvel estabelecer para o direito ummbito totalmente distinto, isento dos mecanismos de normalizao, um mbito depureza, ainda que referido apenas a um domnio estritamente terico, pois no hdomnio de saber isento de relaes de poder.

    Desdobramentos da idia de normalizao: disciplina, forma de atuao e camposde aplicao; mecanismo de regulao e de gesto de vida e seus processos, vetor dobiopoder, mecanismo de seguranas e instrumentos de artes de governar.

    Disciplina: noo desenvolvida no contexto da analtica do poder em oposio auma concepo do poder enquanto soberania passvel de localizao e quantificao, umatecnologia positiva de exerccio do poder, conjunto de tticas, mecanismo estratgico; no a imposio de limites e restries, mas sim o investimento poltico sobre o corpo que sejaessencialmente produtor, e no inibidor; se d com o desenvolvimento de hbitos em tornode prticas e posturas esperadas; atravs da norma, permite medir-se o lugar e o valorde cada indivduo em relao mdia do grupo em que est inserido, medindo sua naturezano sentido no de uma essncia a ser descoberta, mas de um estado a ser percebido pelacomparao com os outros indivduos de seu grupo, dividindo-os em normais eanormais, de tal forma a situ-los, ambos, no interior do critrio de sua separao, anorma.

    A ordem do discurso (aula inaugural de 1970): apontamento para um mtodogenealgico de anlise dos saberes, pesquisando as condies reais de aparecimento dosdiscursos no interior de tramas e lutas de poder (na raiz no h uma essncia, mas relaesde poder).

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    11/20

    Acontecimento: resultado de conformaes de poder que, ao atravessar os outrosdiscursos e prticas que lhes so contemporneos, os colocaria em relao, geraria efeitos,permitiria que outras prticas discursivas se formassem.

    Realizao de uma abordagem histrica do direito, no de sua teoria ou cincia, esim dos acontecimentos representados por tais prticas e saberes em suas relaes com o

    problema do poder e da produo da verdade (incurso transversal), uma vontade de saber,indissocivel dos regimes de poder a que estaria ligada, permitindo a anlise de umapoltica da verdade.

    A vontade de saber(curso de 1971): estudo da funo que pode ter um discurso deverdade no interior do discurso da lei penal, recolocando o jogo da verdade na rede daslutas e das dominaes, de forma que o sistema do verdadeiro e do falso possa revelar umaface que lhe seria prpria e que h muito est ocultada, a face de sua violncia; estudo dasformas do saber-poder: Grcia arcaica e o sistema de provas, Grcia clssica (dipo Rei)e o testemunho.

    Teorias e instituies penais (1972): as relaes de poder no desempenhariam, emrelao ao saber, um papel de facilitao ou de obstculo, no se limitariam ao papel defavorec-lo ou falsific-lo, ao contrrio, no haveria formao de um saber sem umexerccio de poder que o sustentasse, tal como no haveria um exerccio de poder sem aextrao e a circulao de um saber (poder-saber); estudo do inqurito como forma deproduo da verdade judiciria no Estado medieval, que se deslocou e transformou numadas instncias de formao das cincias empricas; estudo, por fim, do exame como novaforma de controle social (aparelho policial, vigilncia nas cidades)

    A sociedade punitiva (curso de 1973): estudo da funo punitiva como expressoda implicao saber-poder, exercida na modernidade pela priso; crtica noo deexcluso (Lvi-Strauss), que implicaria procedimentos essencialmente negativos ourestritivos, por uma afirmao da concepo positiva (incitao e produo) do poder;estudo da positividade da priso, em que os mecanismos da incluso e controle assumiriamtoda sua complexidade.

    A verdade e as formas jurdicas (conferncias de 1973): recuperao do mesmopercurso realizado pelos primeiros cursos no Collge de France; a primeira confernciaenuncia o papel da anlise das prticas jurdicas (prticas sociais que fariam nascer formasnovas de sujeitos, em funo de diferentes regimes de verdade que fariam circular) nointerior de uma pesquisa em torno das relaes entre formaes de saber e relaes depoder; a segunda analisa a forma do inqurito na tragdia dipo Rei, que apresenta umaforma de pesquisa pela verdade que substitui a das provas baseada no testemunho dequem presenciou os fatos, representativa de um mito ao qual estamos ainda ligados, deque o poder poltico seria cego e o verdadeiro saber s existiria quando purificado dastrama do poder; a terceira estuda um segundo nascimento do inqurito reportado s sriesde transformaes de ordem poltica e econmica; as duas ltimas dedicam-se ao estudo doexame, inserido no contexto da sociedade disciplinar.

    Sociedade disciplinar: caracteriza-se pela formao (nos sculos 19 e 20) de umarede de instituies em que os indivduos so submetidos a um sistema de controlepermanente, permitindo a sua fixao aos aparelhos produtivos em funcionamento nummodo de produo capitalista.

    Funes de seqestro: objetivam o controle como forma de exerccio do poder; aprimeira o ajustamento do tempo todo da vida do individuo ao tempo da produo,

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    12/20

    inclusive com atividades no propriamente produtivas, como o lazer; a segunda a pluri-funcionalidade dessas instituies, que no so mono-funcionais; a terceira, por fim, incluiuma instncia de julgamento, que faa com que todos sejam submetidos continuamente aapreciaes, punies e recompensas, formando uma discursividade.

    Priso: exerce a funo de seqestro em relao s prticas jurdicas; forma

    concentrada, exemplar, simblica de todas as instituies de seqestro; representa umfracasso penal e um sucesso institucional, por isso no deve se pensar em alternativas ela em termos de teoria penal e teoria sociolgica acerca do crime e de seu significado nassociedades, mas segundo o problema da gesto dos ilegalismos, em face da sua utilizaoeconmica e poltica, possibilitando que se pense na existncia de uma sociedade em que opoder no tivesse necessidade de ilegalismos; no o lugar de produo de uma normacomo medida, mas de produo de uma individualidade normalizada, a do delinqente;local de toque entre os discursos penal e psiquitrico na noo de indivduo perigoso,como anomalia, como doena, como objeto de investigao cientfica; sobre o aspectomaterial (lucrativo) cria formas de delinqncia til ou de ilegalismo profissional(prostituio, trfico de armas, drogas).

    Anatomia poltica do detalhe: definio da disciplina no sentido em que o corpo que se constitui no principal alvo de um investimento poltico realizado por uma srie demecanismos, que tm seu ponto de aplicao nas mincias e sutilezas da existncia fsicados indivduos (investimento capilar pelo poder).

    Vigilncia hierrquica: um dos recursos que tornam possvel a efetivao dasfunes disciplinares, consistente numa visibilidade ininterrupta a que algum pode estarsubmetido, ainda que de forma indireta e pelo acoplamento de diversos olhares (o modeloideal seria o acampamento militar).

    Sano normalizadora (infra-penalidade): no incide sobre delitos especificadospelas leis, mas sobre atitudes menores, ligadas ao tempo, s atividades, aoscomportamentos no interior de um espao institucional, pequenas inobservncias a regrasinternas institucionais; mais do que envolverem um castigo, impem um exerccio daprtica (hbito) esperada e no cumprida; no como uma esfera independente das prticase dos saberes do direito, pois constitui-se num contedo efetivo das regras de direito,tornando-se possvel concretamente a partir das estruturas mais gerais das formas jurdicas.

    Exame: veculo de obteno da articulao das estratgias de poder com a formaode domnios de saber; utiliza-se da notao, do arquivo e da organizao de informaessobre os indivduos num contexto disciplinar para a formao de um domnio de saberligado instituio em questo; privilegia o homem comum, ao contrrio do heri, dopoltico, do sbio, permitindo a constituio de uma individualidade dcil e til,normalizada, impossvel de ser sujeito autnomo.

    Panoptismo: vetor de formao da sociedade disciplinar; no se restringe somente forma arquitetural dos edifcios e s suas funes, concretizveis no interior de espaosdefinidos, descritos por Bentham, mas se trata de um modelo generalizvel defuncionamento do poder, como uma maneira de definir as relaes do poder com a vidacotidiana dos homens, difundindo-se no corpo social.

    Direito normalizado-normalizador: as disciplinas no so o meroprolongamento das estruturas jurdicas ou a forma de os mecanismos da justia penalchegarem at os pormenores da existncia cotidiana, mas, formadas por processos diversose ligadas a funes diversas, teriam inventado um novo funcionamento punitivo, queteria, pouco a pouco, investido o aparelho punitivo do direito, os mecanismos disciplinares

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    13/20

    colonizam a instituio judiciria, que servir de envelope queles; h um continuumjurdico-disciplinar em que existe uma difuso das tcnicas disciplinares at as disciplinasmais inocentes, no havendo independncia rigorosa entre essas instncias, j que osregulamentos das instituies no podem ser considerados separadamente das regras maisgerais do direito; a verdade produzida sobre os indivduos pelo exame, que permite a

    definio de perfis, tem seu contedo retomado pelas estruturas formais do direito, quediro quais as medidas a serem tomadas em relao a tais indivduos; essa imagem dodireito refere-se tanto normao, mecanismo da tecnologia disciplinar, quanto normalizao em sentido estrito, mecanismo da tecnologia de segurana.

    Mecanismos de segurana e arte de governar: arranjo de poderexemplificado no controle das epidemias a partir do final do sculo 18 que difere domecanismo de disciplina (quarentena da cidade acometida pela peste), pois se trata de saberquais os efeitos estatsticos da epidemia sobre uma determinada populao, envolvendo nouma excluso ou uma disciplina, mas um governo, cujo foco central seriam os processosinerentes vida, como forma de atuao de uma biopoltica.

    Biopoltica e/ou biopoder: (srie: mecanismos de segurana populao governo) conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que na espcie humana constitui seustraos biolgicos fundamentais vai poder entrar no interior de uma poltica, de umaestratgia poltica, de uma estratgia geral de poder; o poder no reprime nem interdita(modelo jurdico-discursivo de Marx em que o poder teria por forma de atuao principal aopresso organizada e exercida pelas classes dominantes), mas incita e produz, e no ainstaurao da paz e da ordem (modelo dos filsofos contratualistas, em que o poder seconfundiria com a Ordem, decorrente de um Estado legtimo, em que a Lei se constituiriana sua manifestao essencial), mas uma guerra perptua; o poder um conjunto demecanismos que tm na vida (e seus processos) seu ponto de incidncia mais importante;o poder no manifesta mais sua fora no direito de decidir sobre a vida e a morte dealgum, mas por meio de medidas de gesto de vida, capturando o corpo como objeto deinterveno, como mquina (antomo-poltica do corpo humano), e centrando-se nocorpo como espcie (mecnica da vida e suporte de processos biolgicos).

    A vontade de saber: (1976):Sexualidade: a lgica da represso no suficiente para dar conta de uma histria

    da sexualidade no Ocidente, deve-se, ao contrrio, pensar nas tcnicas de poder inerentesa uma vontade de saber sobre o sexo e sua configurao como objeto de discurso e deinterveno poltica; trata-se de reparar nas instncias que, pouco a pouco, assumiro opapel de organizar e de abrigar estas funes (escolas, psiquiatria); aquilo que entendemospor sexualidade seria resultado de nossa vontade de saber sobre o sexo, que o toma porobjeto de saber e ao mesmo tempo como objeto de interveno de tcnicas de poder; saber-poder sobre o sexo (scientia sexualis), o suporte de verdades sobre aquele que o pratica e, portanto, entendido tambm como lugar de interveno; revelao da articulao entreo eixo disciplinar e o eixo dos mecanismos de regulao, enquanto componentes de umatecnologia poltica da vida.

    Em defesa da sociedade (curso de 1976): no momento em que a burguesia torna-seo povo e o Estado, ocorre o desaparecimento das dualidades, das naes, dosenfrentamentos, das guerras entre as raas e no cenrio do poder centralizado do Estado,a nica guerra que pode ser travada ser contra aqueles que, no interior da nao, ou doEstado, ameaam a sociedade por constiturem, em seu interior, como que um corpoestranho, por apresentarem uma distncia em relao norma desta sociedade, pondo-a

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    14/20

    em perigo; essa guerra em defesa da sociedade corresponde aos procedimentos de umabiopoltica.

    Scurit, territoire, population (curso de 1978): quanto ao agenciamento doespao, tomando-se a cidade como referncia, um tipo de poder soberano o organiza apartir de um eixo que vai do centro, onde est a capital, para a periferia (capitalizao de

    um territrio); um poder disciplinar constitui um espao fechado, preenchido pormultiplicidades artificiais (cidades artificiais) que vo se organizar segundo o princpio dahierarquizao e do controle exaustivo das atividades que tm lugar em seu interior(arquitetura de um espao); um biopoder realiza recondicionamentos em cidades jexistentes (naturais) sobre um certo nmero de materiais, majorando os elementos positivose minimizando os negativos, atuais e futuros (organizao de um meio, em funo deuma srie de acontecimentos possveis que devem ser regularizados num quadro mltiplo etransformvel).

    Dispositivos de segurana: tecnologia e mecanismo do biopoder, ao contrrio danormalizao disciplinar (procedimento mais de normao que de normalizaopropriamente dita, em que a norma anterior em relao quilo que ser definidoposteriormente como normal ou anormal), trata-se de combater certas normalidadesconsideradas mais desfavorveis, mais desviantes em relao a uma curva normal geral;realiza-se primeiro uma apreenso do normal e do anormal e faz jogar as diferentesdistribuies de normalidade umas em relao s outras (norma como um jogo no interiordas normalidades diferenciais); especficos para um determinado grupo, em relao a umasituao, de acordo com uma srie de condies.

    Normalizao: abrange tanto a normao, pela qual parte-se da norma e distribui-se algo ou algum nas categorias de normal e anormal, efetiva pelos mecanismos datecnologia disciplinar, quanto a normalizao em sentido estrito, pela qual parte-se de umjogo entre normalidades diferenciais e deduz-se a norma, ligada ao biopoder e seusmecanismos de segurana.

    Populao: singularizada pelos mecanismos da biopoltica como um novo corpo,que coletivo, formado de muitas cabeas, portador de numerosos fenmenos e processos;aquilo que se gere como objeto e sujeito central das intervenes de poder na populao sua naturalidade, que continuamente acessvel aos agentes e s tcnicas de transformao,que se constitui por indivduos diferentes, e que tem uma constncia de fenmenosreconhecveis, regulares, apesar de variveis.

    Governamentalidade: no significa a habilidade do prncipe em conservar seuprincipado (Maquiavel), que implicaria uma noo de exterioridade em relao quilo quese governa, mas refere-se a um conjunto de homens e de coisas, definido-se como umamaneira correta de dispor as coisas para conduzi-las no ao bem comum, mas a um objetivoadequado a cada uma das coisas a governar; provm do pensamento religioso pastoral pr-cristo (hebreus) e cristo, cujo poder no se exercia sobre um territrio, mas sobre umamultiplicidade de indivduos que se movimenta o pastor aquele que alimenta e cuida eseu poder individualizante de modo que nenhum dos indivduos que compem o grupo seperca, o poder pastoral implica formas de interveno permanentes sobre as condutascotidianas e a gesto das vidas individual e coletivamente, levando-as a um estado desalvao.

    Governamentalidade segundo a razo de Estado: h um momento de distinoentre uma ratio pastorale uma ratio governamentalpropriamente dita, no qual o governodos homens no mais procurar seu cdigo de conduta nas regras transcendentais, mas na

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    15/20

    imanncia de sua prtica, de acordo com uma razo de Estado, organizando uma polticaexterna com objetivos limitados (cada Estado limitar suas atividades isentando-se deinterferir na soberania dos outros) e uma poltica interna norteada por princpios ilimitados(o Estado de polcia dever encarregar-se exaustivamente daqueles a quem governa e detodas as suas atividades).

    Governamentalidade liberal: o mercado passa a funcionar como mecanismo deformao da verdade sobre a funo de governar e sobre o Estado, que o deixar atuar coma menor interveno possvel a fim de que ele possa formular sua verdade e prop-la comoregra prtica governamental; a interveno do Estado sobre a vida e as atividades dosindivduos dever obedecer a um princpio de limitao intrnseco, tendo como instrumentointelectual a economia poltica e como funo assegurar o crescimento do Estado e oexerccio mesmo do poder de governar (enraizamento da economia poltica sobre a razode Estado).

    Governamentalidade neo-liberal alem: fundao legitimadora do Estado,calcada no exerccio garantido da liberdade econmica, sendo que a economia teria o papelde produzir a soberania poltica a partir do jogo institucional que faria funcionar; nolegitima o Estado a partir de uma afirmao do prprio Estado (o que traria uma ameaa deressurgimento do nazismo), mas a partir de um domnio no-estatal representado pelaliberdade econmica, que seria um princpio organizador e regulador do prprio Estado.

    Governamentalidade neo-liberal estadunidense: definio da anlise docomportamento humano como uma das tarefas da economia, que no ser somente a anliseda lgica histrica de um processo, mas tambm a anlise da programao estratgicaacerca da atividade e do comportamento dos indivduos; o trabalho capital do trabalhador,pois gera salrio, gerando a figura do homo economicus, um empresrio de si mesmo; aeconomia de mercado passa a ser utilizada para a decifrao de relaes que no seriampropriamente relaes de mercado, so fenmenos sociais diversos, e o mercado no maisum princpio de auto-limitao do governo (liberalismo clssico), mas um princpionormativo que se invoca diante dele, uma espcie de tribunal econmico permanente frente poltica governamental; (exemplo: o crime poderia ser definido nessa linha como todaao do indivduo que faz com que este corra o risco de ser condenado a uma pena, isto , osujeito considerado como homo economicus, que calcula seus atos em funo da perda edo ganho que tais atos podem trazer por esse aspecto ele ser governamentalizvel;outro exemplo: quanto a droga, representa um problema de mercado, pois o endurecimentoda lei causaria o aumento do preo da droga trazida ao mercado, concretamentecontrolando e desmantelando as redes de produo e de distribuio, que na prticaocasiona o fortalecimento dos oligoplios de grandes redes de distribuio e no fazdiminuir o consumo, favorecendo uma criminalidade paralela assim, qualquer seja umapoltica penal, e Foucault no procura ratificar uma ou outra delas, como qualquer outraforma de atuao no domnio do direito, no pode ser pensada independentemente da rededa governamentalidade em que est inserida).

    Governo: domnio que integra a governamentalidade e que constitui o campoprprio da biopolotica, ou seja, a srie mecanismos de segurana populao governo;o domnio restrito do corpo e das instituies (disciplina) ampliado para o domnio amploda vida e das formas de sua gesto.

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    16/20

    CAPTULO 4 UM DIREITO NOVO

    Direito novo: tendo como referncia o plano das prticas, h uma nova oposioentre normalizao e direito, um direito antidisciplinar, resistente aos mecanismos desegurana e liberto do princpio da soberania; h uma postura negativa consistente numa

    atitude quase generalizada de desconfiana de todas as formas do direito tais como asconhecemos (produo legislativa, instncias de julgamento e de aplicao das regras dodireito, organizao e reproduo do saber jurdico), associadas ao princpio da soberania eaos mecanismos de normalizao, e uma postura positiva, que remete possibilidade,sempre renovada concretamente, de prticas implicadas com o direito nas quais se realizaalgum tipo de resistncia ou oposio normalizao; a noo de um direito novocorresponderia a uma forma tica do direito e se expressa por prticas do direito quepoderiam ser entendidas como sendo prticas de resistncia s formas degovernamentalidade apoiadas nos mecanismos da normalizao (prticas refletidas daliberdade)..

    Isso implica compreendermos em que medida o governo de si mesmo pode seopor ao governo em que se submetido por um outro. No se trata mais de mostrar comoas formaes de saber e as formas de subjetividade so produzidas pelos mecanismos depoder (eixo saber-poder), mas sim pens-los como trs domnios que se articulam nointerior de uma arte de governar, pontos de articulao de processos degovernamentalidade. Pode-se resistir s formas de um governo na medida em que se poderecusar ser governado de um modo ou de outro, a partir de uma atitude crtica.

    Atitude crtica: uma primeira expresso dessa atitude poderia ser encontradaligada a uma arte de governar religiosa, reencontrar a verdade presente nas Escrituras eraum modo de limitar o magistrio eclesistico; uma segunda forma teria se formado emrelao ao domnio das leis, associando-as ilegitimidade, consistente na oposio a essasleis direitos que seriam considerados universais e imprescritveis, aos quais todo governoteria o dever de se submeter, oposio ao direito natural; um terceiro exemplo seria aatitude de no querer ser governado que teria se configurado em relao ao domnio doconhecimento, que seria a no aceitao de uma verdade que dada como tal simplesmentepor decorrer de uma autoridade reconhecida no interior de um domnio de saber qualquer,referente ao problema da certeza diante de uma autoridade e no aceitao de algo comoverdadeiro porque uma autoridade assim o definiu, aceitando como verdade aquilo arespeito do que se pode encontrar, em si mesmo (e no numa autoridade qualquer), boasrazoes para ser admitido como verdadeiro.

    Poder: no uma substncia, nem algo que se possui, algo de que se dotado oudesprovido, mas sim uma estratgia, algo que circula em toda espessura e extenso dotecido social, um exerccio, um modo de ao de uns sobre outros.

    tica: O uso dos prazeres (1984) e O cuidado de si (1984), cursos do Collge deFrance de 1980 a 1984 (Du gouvernement des vivants, Subjectivit et vrit,Lhermneutique du sujet,Le gouvernement de soi et des autores: le courage de la vrit),artigos, entrevistas e ensaios reunidos no volume IV de Dits et crits. Domnio de umaproblematizao geral do tema da constituio da subjetividade a partir das tcnicas e dasprticas pelas quais o indivduo institui uma relao consigo mesmo. No o campocompreendido pelos sistemas de regras e de valores, pelos cdigos de conduta que vigoramnuma determinada sociedade ou grupo, assim como tambm no o domniocompreendido pelas aes, pelos comportamentos dos indivduos e dos grupos diante dos

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    17/20

    cdigos; mas sim o campo das relaes que o indivduo estabelece consigo mesmo a fim dese constituir como um sujeito moral, em funo de um estilo que procura das prpriaexistncia. O estudo das implicaes entre as formaes de saber, os mecanismos de podere os modos de subjetivao realizado a partir de um certo deslocamento no interior daprpria noo de artes de governar (governamentalidade) no foi o poder, mas sempre

    o sujeito o tema das pesquisas de Foucault.Parrhsia: noo oposta retrica que visa persuaso, um modo de usar umapalavra cujo efeito visado a verdade e no a persuaso, oposta tambm bajulao quetem o objetivo de seduzir e exercer um domnio sobre o outro, um modo de usar a palavracujo efeito visado a independncia do outro e no uma atitude de servido; falarfrancamente, palavra verdadeira pronunciada no domnio da poltica, sendo que aqueleque a pronuncia assume, por sua prpria conta, os riscos implicados em sua fala, coragemem dizer a verdade.

    Direito novo no uma noo conjuntural acerca do direito, e sim especfica porque este no aparece como expresso de um modelo de poder que serviria de contrapontoao modelo da normalizao, tambm no aparecer ligado aos mecanismos disciplinares ereguladores, mas sim como um objeto a ser pensado em sua autonomia, ainda quedesprovido de uma essncia, objeto de uma interrogao autnoma.

    Arbitragem: no que as escolhas e decises acerca das medidas a serem tomadasnum determinado domnio da sade, caibam exclusivamente a um certo nmero de tcnicose especialistas, mas alago como um conjunto de decises que se ordenariam em torno deuma espcie de eixo normativo, que precisaria ser representativo, tanto quanto fossepossvel, dum certo estado da conscincia das pessoas, da natureza de sua demanda edaquilo que pudesse ser objeto de seu consentimento; efeito duma espcie de consensotico, para que o indivduo possa se reconhecer nas decises tomadas e nos valores que asinspiram; jogo da regulamentao social a ser realizado pelos indivduos que compemuma determinada sociedade, sobre cada um dos domnios que lhes so pertinentes; apesarde ser sempre o estabelecimento duma norma, de critrios normativos para a tomada dedecises concretas no interior dos diversos domnios da vida social, seu objetivo seria evitarque a norma funcionasse em termos disciplinares, evitar que se tornasse um mecanismo dereduo da multiplicidade, das diferenas, da pluralidade ao unitrio e uniforme, o que s possvel na medida em que se pensa o eixo normativo como uma linha mvel, comportandoum gr sensvel de permeabilidade ao jogo das reivindicaes sociais, mudana dasorientaes culturais, incidncia de novas necessidades materiais.

    O direito, no momento em que se concretiza, no realiza uma instncia universal ouum valor absoluto, ao contrrio, integra o sempre malevel jogo da arbitragem social. Essaimagem do direito se constri referida ao primado da prxis, organizando-se na esfera deuma transao permanente, no havendo, em nenhum momento, a recorrncia a um critrioracional geral para o estabelecimento do consenso.

    A deciso acerca do que deve ser objeto da atuao do direito, o estabelecimento desuas estruturas formais, a determinao dos meios concretos de sua aplicao no so deresponsabilidade exclusiva de um grupo; no cabe apenas aos governantes ocupar-se dodireito. O domnio do direito, assim como qualquer domnio da vida social, deresponsabilidade de todos os indivduos.

    Quanto aos Direitos do Homem, Foucault definiu a nossa poca como marcada pelamorte do homem, pela morte daquela figura do homem universal, tal como fora definida nofinal do sculo 18. os valores que podiam, at ento, parecer os mais unvocos, se tornaram

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    18/20

    problemticos e objeto de divises acerca da sua interpretao. Em toda pretenso aouniversal existe a recusa de certas particularidades, como que qualquer universal , pois,particular, como que no pode haver saber absoluto. S tem sentido que se fale emdireitos do homem se liberados da forma que encerra qualquer pretenso ao universal,voltando-se para a pluralidade.

    Foucault no um relativista. O fato de a figura do homem de 1789 ser transitriano implica que os direitos do homem sejam sem valor. Pelo contrrio, o pensamento deFoucault permite levar esse valor muito a srio: os direitos do homem permitiram, mastambm impossibilitaram, certas coisas: foram muito mais do que uma simplesreivindicao moral. E, longe de no terem, hoje, valor, o problema , antes, de os fundartais como se tornam, hoje, praticveis.

    O direito novo se refere ao refletida dos indivduos, continuamente renovada,que, ao extrapolar o domnio das formas codificadas e positivadas do direito, funda apretenso a novos direitos e antecipa novas formas que esse pode vir a assumir. a posioestratgica assumida pelos indivduos, so os acontecimentos concretos, o gesto factual dese posicionar que podem fundar a existncia de um direito para Foucault. A ao no opredicado de um enunciado legal, ela , ao contrrio, o momento juridicamenteindiferenciado que funda a pretenso de novos direitos.

    Contra a concepo positivista, que tende a definir a legitimidade em termos delegalidade, na imagem dum direito novo a legitimidade do direito somente pode estarreferida prtica dos indivduos, esta sim capaz de reivindicar pretenses a serem definidascomo direitos.

    Positivismo crtico: a conjuntura epistemolgica nos obriga a falar em positivismo,postura que pouco se modificou desde que Kelsen formulou o programa de uma Teoriapura do direito; relatividade dos valores, impossibilidade de articular o direito positivo como direito natural, ausncia de toda referncia possvel a uma objetividade transcendente; anossa poca pertence disperso, sem princpio unificador; poca do particularismo dasparticularidades, em que o direito j no pode se apoiar seno na sua prpria positividade;mas uma positividade crtica, no sentido que deve continuamente pr a si mesmo emquesto, pensando a si mesmo segundo a perspectiva da sua historicidade, sabendo-se nointerior duma batalha perptua, em que todas as prticas que tornar possveis sero sempreparticulares e provisrias; o direito no encontrado originariamente no discurso da norma(jurdica) e tambm no pr-existe como uma evidncia antropolgica ou naturalirrefutvel.

    CONCLUSO

    Caso Pierre Rivire:O caso pode ser considerado banal porque em si no provocou uma repercusso

    extraordinria na poca, j que os casos de parricdio eram relativamente numerosos nostribunais do jri daquele momento. Mas h uma srie de relatrios mdicos que no traziamas mesmas concluses e que tinham cada um uma origem e um estatuto diferente nainstituio mdica. Tambm havia em seu dossi judicirio peas bastante detalhadas, queapresentavam declaraes de testemunhas acerca da vida, da maneira de ser e do carter deJean-Pierre; por fim havia um memorial, redigido pelo prprio acusado durante sua prisopreventiva, no qual se encontra a narrao dos detalhes e a explicao sobre seu crime.

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    19/20

    Nesse caso vieram a se cruzar uma diversidade de discursos: o do juiz de paz, doprocurador, do presidente do Tribunal do Jri, do Ministro da Justia; tambm os discursosdos mdicos (o mdico da provncia, o mdico da cidade e os grandes especialistas), osdiscursos dos aldees (inclusive o do prefeito e o do padre); por fim, o discurso do prprioassassino. Esses compunham uma luta singular, um confronto, uma relao de poder, uma

    batalha de discursos e atravs dos discursos.Representa um drama do direito, se passa na poca subseqente ao incio daaplicao do Cdigo Civil francs, promulgado vinte anos antes, em que o campo sedebatia com um novo universo jurdico, que repercutia sobre as questes da terra, docasamento e do regime dos bens. H tambm uma srie de implicaes entre a lei e anorma, em torno do crime e dos procedimentos de pesquisa pela verdade, as instnciasjudiciria e mdica se mesclaram nas consideraes sobre a pessoa do acusado e sobre ocarter do seu ato, que foram exaustivamente avaliados pelos parmetros da lei e peloscritrios da norma.

    O Memorial redigido por Rivire que revela em profundidade a dimenso dessedrama do direito e d ao caso um carter trgico, fazendo aparecer os sofrimentos que suame havia causado ao pai e falando tambm sobre sua vida e seu carter. Revela ainda aconscincia da implicao do seu ato com o mundo da lei: quis desafiar as leis, pareceu-me que seria uma glria para mim, que me imortalizaria morrendo por meu par. Assimcomo as tragdias gregas so sempre histrias do direito, esse caso, sendo uma histriabanal de um campons e seu drama familiar, expressa uma relao que tem a intensidadeprpria do trgico: a relao da lei com os homens.

    possvel enxergar no caso a imagem do direito enquanto lei (o crime tipificado noCdigo Penal, o processo judicial etc.), enquanto implicao com a normalizao (desde oincio h a presena constante da instancia mdica), que o avalia segundo o jogo donormal e do anormal. Mas h, por fim, uma imagem diferente, aquele que parecia serfantoche duma trama anterior, passa a ser autor de sua prpria tragdia, apenas o esboode uma certa resistncia, oposio s outras duas, pois possui uma forma e produz efeitosque no podem ser reduzidos ao jogo entre lei e norma, no permitem que sua vida e seuato sejam reduzidos s apropriaes da lei nem sejam submetidos inteiramente sdistribuies da norma.

    No interior do processo judicial a que Rivire foi submetido, a narrativa de si queele realiza tem a capacidade de aproveitar dos cruzamentos de saber e poder inerentes trama da lei e da norma. Da sua palavra revestir-se de um sentido de resistncia,representar uma forma de oposio malha de saber e poder que a envolvia e procuravanormaliz-las, mas que no conseguiu faz-la calar-se indefinidamente. Sua fora estavaem irromper no prprio lugar em que os mecanismos da normalizao das prticas mdico-legais a submetiam. Isso nos remete justamente para a possibilidade de os indivduos, nointerior dos mecanismos de poder e de saber que os prende, poderem se manifestar, seremcapazes de uma atitude crtica, poderem, enfim, exercitar de modo refletido sualiberdade.

    Em Foucault somos levados insistentemente a pensar o direito, mas pens-lodiferentemente. Pens-lo a partir da indeterminao do prprio objeto direito, pens-loatravs de imagens que no permitem a formulao uma teoria precisa. Entretanto, caberiaperguntarmos neste momento se esse no seria ainda o papel de uma Filosofia do Direito.Se pensar o direito precisamente o papel da Filosofia do Direito, ento a filosofia de

  • 7/27/2019 Fonseca, Marcio Alves Da - Michel Foucault e o Direito

    20/20

    Michel Foucault tem muito a propor para tal disciplina. Ainda que, talvez justamenteporque ela nos leve a pensar o direito diferentemente.