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Editor: Instituto Politécnico de Santarém
Coordenação: Gabinete coordenador do projecto
Ano 6; N.º 233; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.59]
FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013
As Mondas de Talavera de la Reina, açafates de Ceres
Texto preliminar de contextualização
Hoje em dia todas as tradições culturais estão em contacto. No mundo contemporâneo
nenhuma cultura é uma ilha e cada vez se torna mais difícil manter o seu isolamento pois uma
das consequências da globalização pode tender para o reforço das identidades locais.
O significado deste Folha Informativa prende-se com dois factores:
1 – A existência de um protocolo de colaboração entre o Instituto Politécnico de Santarém e o
pólo universitário de Talavera de la Reina.
2 – A existência de vários paralelismos entre as tradições culturais religiosas do distrito de
Santarém e da comarca de Talavera de la Reina, nomeadamente no que diz respeito aos
cortejos de louvor a uma divindade (Ceres) e da entrega de bens da terra em favor de
instituições de solidariedade social.
Cortejos de Oferendas
Num texto publicado no Boletim Informativo Nº 42 da Santa Casa da Misericórdia de Santarém
(SCMS) lê-se que a conceção dos Cortejos de Oferendas nasceu pela mão de uma benfeitora
de Paços de Ferreira, Sílvia Cardoso, com o objetivo de acudir às despesas de administração do
hospital da Misericórdia local, para o qual ela contribuía com bens próprios e através de
peditórios que realizava pelas freguesias do concelho. A partir de 1923, Sílvia Cardoso,
organiza comissões por cada freguesia do concelho, com o intuito de recolher géneros e os
fazer transportar (em carros de tração animal) para Paços de Ferreira. Estava criado o conceito
de Cortejo de Oferendas que se espalhou por todo o país.
Em 1932, o 3º Congresso das Misericórdias Portuguesas defendeu uma maior autonomia das
Misericórdias em relação ao Estado e a sua dependência financeira. Nessa altura decidiu-se
por uma maior ligação à caridade particular incrementando-se a partir de então a tradição dos
Cortejos de Oferendas, que o povo organizou e animou como uma autêntica “festa de dar”.
Há notícia de que em Santarém, a partir de 1940, foram realizados peditórios de azeite junto
dos produtores por altura da apanha da azeitona e em 1941 o Governador Civil aprovou a
realização de um peditório, por todo o concelho, a favor do Hospital de Jesus Cristo e do Asilo
de Órfãos e Inválidos da Misericórdia.
O primeiro Cortejo de Oferendas em benefício da SCMS realizou-se em 1947 e surgiu como
resposta às dificuldades financeiras da instituição, devidas ao significativo aumento do
movimento do Hospital de Jesus Cristo, a seu cargo, e ao consequente crescimento das
despesas com o Asilo. A organização do evento implicava, entre outros aspectos, o
investimento na divulgação e na sensibilização e a constituição de comissões de angariação de
oferendas. O Cortejo consistia num conjunto de carros engalanados que transportavam as
oferendas de cada freguesia envolvida, desfilando pelas ruas de Santarém e terminando junto
ao Hospital. As ruas apinhavam-se de gente entusiasmada, muita música e muita cor. Era um
dia festivo que atraía à cidade centenas de populares das redondezas que vinham aclamar o
desfile das bandas e dos carros das suas freguesias.
Para além do significado económico, dando um contributo fundamental para o equilíbrio das
contas da SCMS, o Cortejo destacava-se pela sua grande capacidade mobilizadora e
representatividade social e assumia-se como “símbolo de caridade” no concelho. Este primeiro
Cortejo foi de tal modo exitoso que as seguintes Mesas Administrativas da SCMS mantiveram
na planificação das atividades anuais a realização de um Cortejo de Oferendas. Realizaram-se
Cortejos até 1954, porque em 1955 o Decreto-Lei 39.805 transformou o Hospital de Jesus
Cristo num hospital regional e a Mesa Administrativa deliberou que não se realizasse o
tradicional Cortejo de Oferendas de modo a não onerar os habitantes do concelho em
benefício dos outros concelhos do Ribatejo.
Em finais de 1958 para aquiescer a um pedido da Direção Geral de Assistência, a Mesa
Administrativa decidiu recuperar a realização do Cortejo de Oferendas mas tal não veio a
acontecer pois, mais tarde, decidiu não o levar a efeito devido ao mau ano agrícola que
ocorreu na região.
Cortejo de Oferendas em Santarém. Foto gentilmente cedida pela Santa Casa da Misericórdia de
Santarém.
Após a Reforma da Previdência de 1962 começa-se a desenhar uma mudança da organização
institucional da previdência, da cobertura material e pessoal dos riscos sociais, da grandeza da
despesa com as prestações sociais relativas a esses riscos, assim como a sua distribuição pelas
instituições que tinham a responsabilidade dessa cobertura e os Cortejos de Oferendas
começam a deixar de fazer sentido, no entanto voltaram a ser organizados em 1963, 64, 65 e o
derradeiro realiza-se em 1966.
Vivificará no imaginário da história recente de Santarém a memória das ofertas altruístas,
associadas ao espetáculo colorido do desfile dos carros alegóricos e à solidariedade das
populações no apoio à Santa Casa da Misericórdia.
Festa dos Tabuleiros, em honra da deusa Ceres
Em Tomar a “Festa dos Tabuleiros” ou “Festa do Divino Espírito Santo” é uma das
manifestações culturais e religiosas mais antigas, cuja origem se encontra nas festas de
colheitas à deusa Ceres.
Esta Festa de "Acção de Graças" e de oferendas manteve as suas características inalteráveis
até ao século XVII.
A tradição continua e muitas das cerimónias como o cortejo da chegada dos bois do Espírito
Santo, conhecido por Cortejo do Mordomo, o Cortejo dos Tabuleiros, a sua bênção, a forma do
tabuleiro, os vestidos das raparigas portadoras dos Tabuleiros e a Pêza, ou distribuição do pão
e da carne, mantêm-se.
A principal característica da Festa dos Tabuleiros é o Desfile ou Procissão, com um número
variável de tabuleiros, em que estão representadas as freguesias do concelho.
Esta procissão de dignidade, cor, brilho e emoção percorre as principais ruas da cidade, num
percurso de cerca de 5 Km, entre colchas pendentes nas janelas, milhares de visitantes nas
ruas e uma chuva de pétalas que de forma entusiástica é lançada sobre o Cortejo.
A Festa dos Tabuleiros realiza-se de quatro em quatro anos no início de Julho.
Festa dos Tabuleiros, em Tomar
Lurdes Véstia
EVOCAÇÕES DE TALAVERA DE LA REINA
Introdução
Pelo menos desde o século XVI que historiadores, clérigos, advogados, viajantes, mestres,
antropólogos, etnógrafos e humanistas nos têm dado a sua visão e interpretação sobre “As
Mondas”, que geralmente coincide com o momento em que cada um as viveu. Para uns são
ritos pagãos, para outros religiosos, para terceiros a combinação de ambos e para a grande
maioria pura festa. Assim “As Mondas”, por diferentes razões, foram proscritas ou exaltadas
segundo a caneta que as referiu. Mas em todos os autores que as viveram causaram
admiração pelos seus luxos, touros, cânticos, bailes, procissões, devoção cristã e algaraviada
buliçosa. Toda a cidade e o concelho vestidos de pompa e circunstância.
Neste novo fac-simile é-nos oferecido outro testemunho, inédito até agora, sobre tão
singulares manifestações. Ainda que sem a parafernália de séculos anteriores, mas sim como
prova firme de um dos rituais mais ancestrais e arreigados da nossa geografia.
O autor é um religioso agostinho César Morán Bardón, que nasceu em 1882 no povo leonês de
Rosales. Ingressou no Seminário dos Agostinhos Filipinos de Valladolid. Estudou Filosofia e
Teologia, ordenando-se posteriormente sacerdote. Mudado para Salamanca, para o Colégio de
Calatrava, começa a sua dedicação pela arqueologia e outras ciências afins. Foi membro
correspondente da Real Academia da História e da Academia de Ciências de Lisboa, sócio
honorário da Sociedade Ibérica de Ciências Naturais e da Sociedade Espanhola de
Antropologia, Etnografia e Pré-história. Realizou diferentes escavações na província de
Salamanca, onde é considerado pai da arqueologia, e em Zamora.
Faleceu em Salamanca em 1951, no mesmo ano em que publica este artigo sobre “As Mondas
de Talavera” na revista portuguesa “Guimarães”, devido seguramente á sua vinculação com a
Academia de Lisboa.
O seu amplo campo de investigação levou-o a divulgar trabalhos nas mais diversas disciplinas,
costumes, monumentos, lendas, filologia, dialectologia, arqueologia, arte, historia, folclore, e
etnografia, sobre tudo das províncias de Zamora, Léon e Salamanca.
A publicação que foi adquirida pela edilidade está dedicada, em nota manuscrita, a D. Juan
Munoz García, pessoa sobre a qual não temos dado mas que devia ser íntima do nosso
agostinho.
A edição fez-se na “Revista de Guimarães” uma das mais antigas revistas científicas
portuguesas, que começou a publicar-se em 1884.
O artigo sobre “As Mondas de Talavera”, com o título original de “Evocações de Talavera de la
Reina”, saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a Dezembro de 1951, nas páginas 406 a 415,
ainda que o que aqui trazemos à colação seja uma separata das páginas 1 a 14.
O artigo “Evocações de Talavera de la Reina” está dividido em dois capítulos intrinsecamente
unidos para os talaveranos. Em primeiro lugar o autor fala-nos da Virgem do Prado e da Praça
de Touros, com os circundantes e belos jardins do Prado, que impressionaram o agostinho sem
dúvida nenhuma. Da dualidade do amor pela Virgem e pelos touros.
Une o santuário mariano à tradição pagã e vincula-os com os jogos taurinos, para de seguida
os ligar à tradição religiosa mariana.
Vista da praça de toiros de Talavera de la Reina, que é geminada com a Ermida de Nossa
Senhora do Prado.
Faz uma incursão sumária nos rituais antigos compatíveis com as novas crenças e como ele
mesmo diz:
(…) por isso, ermida e praça de touros se tocam ainda hoje em amigável consórcio e boa vizinhança e a seu lado tem lugar, desde tempos imemoriáveis, o concorridíssimo mercado de gado, separado daqueles edifícios unicamente pela calçada romana que, por Trujillo, conduzia de Mérida a Toledo, e hoje está convertida em estrada de 1ª classe, de Madrid a Badajoz. Recordações e vinculações, que não conseguirão dissipar-se, com o decurso dos séculos.
A segunda parte dedica-a às Mondas propriamente ditas incidindo nos seus aspectos rituais
ancestrais, já cristianizados, em que faltam elementos certamente pagãos; a munda, ou
oferenda, converte-se no eixo deste capítulo. São descritas as paragens urbanas por onde
passa a procissão. O cortejo ficou reduzido ao carrinho com os carneiros ricamente adornado
de flores, e ao acompanhamento de algumas autoridades junto com crianças, autênticos
protagonistas nestes anos de pós-guerra. Alguns dados que dá são inéditos, como por exemplo
a desaparição, durante a Guerra, da tribuna em que as autoridades procediam à mudança de
atribuições de autoridade ou intercâmbio de bastões. Também a lide dos touros que, ao invés
de uma vintena, agora é só uma, à corda ou amarrado.
Carrinho com os carneiros
A publicação está ilustrada com 3 fotografias da época; uma da ermida e duas dos cortejos e
do carrinho, que são um autêntico documento gráfico e histórico sobre esta antiquíssima
tradição.
O nosso agostinho devia ter chegado a Talavera, possivelmente, devido à existência do
convento das Agostinhas de Santo Ildefonso, pois sempre que tem oportunidade menciona-o
na sua narrativa. Conhece a celebração das Mondas mediante algum informante directo e
também através da história de Talavera escrita por Ildefonso Fernández Sánchez, publicada em
1896, a qual toma como referência para o seu artigo. Inclusive chega a fazer alguma incursão
na arqueologia urbana da cidade, em concreto sobre a torre da Cabeza del Moro, da qual não
pode evitar dar a sua opinião.
Torre Cabeza del Moro
Alguns dos dados que proporciona sobre as celebrações da festa são erróneos ou, pelo menos,
desconhecidos para nós, principalmente no que diz respeito às comarcas e povos que acodem
à festa e sobre as diferentes datas que aporta para o desenvolvimento da mesma em
princípios do século XX.
Contudo, traz ao conhecimento aspectos da festa em plena pós-guerra. Gamonal e o seu
carrinho puxado por carneiros é o eixo principal em torno do qual gira a celebração. Também
refere a presença de alguns povos que originariamente participavam no evento, e que
mudaram a oferenda da monda por uma quantia em dinheiro. Este facto deu-se até ao ano de
1908.
Mondas del Pueblo de Gamonal
O padre agostinho César Morán Bordón, com o seu artigo, responde às inquietações e
interesses despertados sobre As Mondas e que, desde outrora, se perguntaram muitos
autores. É possivelmente o primeiro profissional que aborda um estudo sobre elas, ainda que
certamente não com a profundidade que a muitos teria gostado. Mas não deixa de ser um
testemunho mais dentro da rica tradição escrita do que aquilo que sobre o tema existe e que
seguramente não será a última.
Rafael Gómez Díaz
(Arquivista no Arquivo Municipal de Talavera de la Reina)
O TEXTO
Padre César Morán Bardón
I – A Virgem do Prado e a Praça de Touros
À margem do caudaloso Tejo, descansando da sua jornada ultrabimilenária, circundada de
encantadores e férteis pomares, os quais, semelhantes ac esplendidos adereços, a decoram e
embelezam, assenta a formosa Talavera, meditando os fastos da sua história, rindo ou
chorando, tal o destino da vida humana.
O Passeio do Prado, jardim que parece cuidado por mãos de fadas, é como que uma ponte ou
traço de união entre a cidade e o Santuário da Virgem, de onde brotou, qual rebento novo, a
de touros, famosa nos eus anais. S mais acendrados amores dos talaveranos são dedicados à
Virgem e aos touros, amores enraizados no firme subsolo das gerações pretéritas. Ermida e
praça surgem unidas, como mãe e filha que não querem separar-se. A ermida é uma bela pagã
convertida ao Cristianismo; foi inicialmente templo de Ceres, de Palas ou de qualquer outra
divindade feminina. Como os templos foram sempre frequentados pela multidão dos devotos,
à beira dela congregavam-se os feirantes e os mercadores, para realizarem os seus negócios, e
ali, em honra dos deuses, eram celebradas festas cívico-religiosas, em que a juventude
mostrava as suas habilidades em diversos jogos – corridas, equitação, simulacros de lutas,
pugilato e ainda outros, menos honestos. Tal como em Espanha, isto mesmo tinha lugar no
Egipto, na Grécia e nas Ilhas do Mediterrâneo. Da Grécia, são universalmente conhecidas as
Olimpíadas festas que se realizavam na cidade de Olimpia, em honra de Zeus ou Júpiter, em
torno do seu templo, onde tiveram origem, chegando a revestir grandíssima importância em
todos os sectores da vida social, politica, intelectual e administrativa. Em Espanha, não era
possível faltar, a par de quaisquer outras diversões, a luta do homem com o touro; trazemo-la,
como costuma dizer-se, na massa do sangue. Conta Estrabão que os iberos tinham um feitio
alegra e divertido, tudo celebrando a cantar, e que a sua festa favorita era a lide dos touros.
Isso mesmo nos diz, também, as moedas antigas e as pinturas rupestres. Nenhum taurólogo,
portanto, poderá atrever-se a precisar quando, em nossa pátria, tiveram começo as corridas
de touros, visto elas remontarem aos alvores da história.
Com a pregação do Cristianismo, e quando a maior parte desta região já havia aceitado o
Evangelho, o templo da deusa talaverana converteu-se em ermida ou santuário da Virgem.
Mudado o culto, não mudaram porém os homens, nem as instituições, nem os costumes com
patíveis com as novas crenças. Por isso ermida e praça de touros tocam-se ainda hoje em
amigável consórcio e boa vizinhança, e a seu lado tem lugar, desde tempos imemoriais, o
concorridíssimo mercado de gados, separado daqueles edifícios unicamente pela calçada
romana que, por Trujillo, conduzia de Mérida a Toledo, e hoje está convertida em estrada de
primeira classe, de Madrid a Badajoz. Recordações e ligações estas, que não conseguiram
dissipar-se, no decorrer dos séculos.
A Universidade de Salamanca e, em geral, todas as velhas universidades surgiram das
catedrais, ou seja, das escolas que as catedrais sustentavam. Do Santuário do Prado, em
remota antiguidade, surgiu também a praça de touros, que de começo seria um campo raso,
depois um cercado de estacaria, em seguida uns humildes taipais, e finalmente uma praça
monumental.
O santuário começou por ser uma simples ara ou altar, destinado a libações e sacrifícios, um
pequeno recinto, sacellum, em que só penetravam os sacrificantes, e não a multidão, que
permanecia no exterior. Triunfante a doutrina de Jesus Cristo, e consagrado o templo ao culto
de Maria, muitas vezes ele se terá arruinado e outras tantas houve de ser reconstruido, pela
piedade dos fieis, chegando mesmo a ser designado a “rainha das ermidas”, conforme a
expressão de Filipe I, na sua viagem a Talavera.
Durante o domínio romano, certos magistrados regulavam as festas religiosas e os jogos, como
coisa inseparável, em honra da divindade; e assim, as leis de Osuna determinavam que os edis
realizassem festas e jogos por três dias; que os duúnviros concedessem, durante a
magistratura, quatro dias de festas e jogos, em honra de Júpiter e dos outros deuses e deusas.
“Era obrigação dos Séviros Augustais celebrarem periodicamente certos sacrifícios, darem
espectáculos públicos e fazerem distribuições de víveres ao povo” (Hinojosa). Quer dizer que os
jogos eram considerados como algo de integrante, de inseparável da religião.
Com o advento do Cristianismo separaram-se as duas funções, ficando a religião nas mãos dos
sacerdotes, sem que estes todavia abdicassem por completo da jurisdição que ainda lhes
pudesse caber nos jogos, pelo menos nas lides de touros, nas quais nunca deixaram de intervir,
como a história nos mostra. Até data avançada dos tempos modernos, as corridas de touros
em Talavera, com todos os seus preâmbulos e consequências, ainda eram organizadas pelos
cónegos da Colegiada, de acordo com o Município, ora alternando nessa missão as duas
entidades, ora actuando conjuntamente, e por vezes também com violentas discussões de
permeio entre o poder espiritual e o temporal.
Segundo nos conta D. Ildefonso Sanchez na sua “História de Talavera”, no século XVI, eram um
cónego e um regedor os encarregados de escolher e comprar os touros que se haviam de
correr nas solenidades de quinta-feira, sexta, sábado e domingo seguintes ao domingo de
Páscoa. A chave do touril era guardada alternadamente, um dia pelo cónego, outro dia pelo
regedor. Em cada corrida lidavam-se onze touros, que obrigatoriamente deviam ser pagos pelo
Deão, pelo Cabido, Câmara, Mordomo da Vila e pelos diferentes grémios, de tecelões,
carniceiros, oleiros, etc. As corridas tinham lugar na praça da ermida, isto é, no mesmo sítio
actual, onde já se vem realizando desde o tempo dos Celtiberos.
Ainda havia uma outra corrida, cujos touros eram pagos cada qual por uma das paróquias.
Santa Leocádia, a velha paróquia, essa, pagava o touro do lenho, assim chamado pelo costume
que havia de um cónego e um regedor solicitarem dos paroquianos, no dia da Ressureição, um
certo número de carros e de cavalos para transporte da lenha dos montes, destinada ao
hospital da Virgem do Prado. No monte celebrava-se missa dedicada aos lenhadores. Em
segunda e terça-feira de Páscoa transportava-se a lenha, que entrava pela porta de Mérida,
dirigindo-se à ermida do Prado, acompanhada pelo clero das paróquias, de cruz alçada,
acompanhada pelos mestres e crianças das escolas, e por numeroso público. Após a corrida,
cada paróquia conduzia, numa carreta, o seu touro morto e degolado, a fim de a carne ser
distribuída pelos hospitais, clero, munícipes e pobres. A que sobrava dava-se a quem a pedia. A
última entidade a fechar o cortejo, como de maior categoria, era a Colegiada, cujo Cabido
tinha de ir a cavalo.
Figura 1: A ermida do Prado vista da praça de touros
Abdicaram os eclesiásticos da sua interferência nas corridas de touros, actualmente
monopolizadas pelo poder civil; só o público não variou, rezando diariamente aos pés da
Virgem, nunca a abandonando, e divertindo-se durante alguns dias na praça, para admirar e
aplaudir os ases do toureio, até os ver sucumbir, como aconteceu a Joselito.
II – As Mondas
A palavra Mondas, do latim mundus, parece que significa açafate de Ceres, mundus Cereris,
açafates sagrados de Ceres, com tudo quanto continham dentro (Apuleyo). Todos os
dicionários de certa extensão referem-se às Mondas de Talavera. O de Salvat (Paris, 1863) diz:
“En Talavera de la Reina es una espécie de manga grande de parroquia, que los pueblos
circunvecinos conducen en carro, adornada de cera, y la ofrecen ante la imagen de Nuestra
Señora del Prado. Usado en plural, significa las fiestas públicas que se celebran con dicho
motivo”. A mesma coisa diz, pouco mais ou menos, o dicionário da Real Academia, o de Calleja,
o de Espasa e o de Casares. Por aqui se vê que os léxicos consideram a palavra digna de ser
conhecida de todos os leitores em geral.
As Mondas ou mundas, puras, são efectivamente oferendas dedicadas à Virgem do Prado,
assim chamada talvez porque as oferentes, espécie de vestais, deveriam estar mundas, limpas,
reminiscência das velhas sacerdotisas que ofertavam à divindade precursora da Virgem,
anteriormente ao Cristianismo. Essas oferendas não foram interrompidas: transformaram-se,
apenas cristianizaram-se, por assim dizer.
Em todas as religiões, sempre existiram sacrifícios e oferendas para aplacar a divindade
ofendida pelo pecado do homem, isto como voz da natureza e lembrança da cena do Paraíso.
Como tais oferendas eram compatíveis com a mudança de religião, perseverou o costume
estabelecido.
A primitiva divindade de Talavera não devia ter pertencido aos diis minores, ou locais, mas
seria alguma daquelas cujo culto se estendia por um dilatado território. Talvez por isso mesmo
não tivesse sido substituída por qualquer santa de categoria secundária, Santa Catarina, Santa
Inez, etc. mas sim pela primeira de entre todas, a Virgem Maria. Razão pela qual as ofertas não
provinham somente da região de Talavera, mas concorriam de muitas províncias de Espanha,
cujos portadores acampavam em frente ao templo do Prado, permutando os seus produtos
durante a semana de Páscoa, e continuando assim costumes ancestrais, semelhantes aos que
se praticavam em Olimpia, junto ao templo de Zeus. De entre as várias regiões, acudiam os
povos de Alcarria, que ofereciam favos de doce de mel, os da Mancha, que traziam queijos e
ânforas de leite e os da Estremadura, que apresentavam ricos enchidos; em suma cada região
era portadora daquilo que de mais precioso possuía. Estas oferendas já tinham raízes num
costume tradicional pagão.1 Nada foi, preciso, portanto, inventar; bastou adaptar o existente
ao culto da Hiperdulia, que a Igreja manteve sempre pela Mãe de Deus.
No decorrer do tempo estas singelas homenagens foram rareando, até ficzarem reduzidas à
Comarca de Talavera, isto é, aos povos que dependiam da sua jurisdição e senhorio. Reunidos
no primeiro dia de Páscoa, nomeavam o Mordomo das Mondas, normação que recaia no
individuo mais velho entre os do povo que primeiramente chegasse à Talavera com a sua
oferenda à Virgem. O Mordomo, a cavalo, e vestido à maneira do antigo uso, dirigia-se À
frente dos representantes das várias localidades, para a porta de Mérida, pela qual fazima
todos a sua entrada solene na povoação. Seguido da sua comitiva, batia, de cima do cavalo, à
porta da Câmara. Para esse efeito já se encontravam as aldravas à altura precisa para quem ia
montado. O alcaide da Vila recebia com todas as honras os forasteiros, e, juntos, tomavam o
caminho da Igreja das Ildefonsas ou Agostinhas; dali, com cruz alçada, os agrupamentos de
1 Conserva-se em Talavera um simulacro de falsa divindade. É um pedregulho chamado Cabeça do Mouro, que se encontra cravado, como um silhar, numa das torres da muralha, escultura do tipo dos Touros de Guisando, que abundam nesta terra toledana. São bem conhecidos os varrões ibéricos (porcos que não foram castrados por receberem a função de reproduzir) de Torralba; não tanto o de Alcoba, um outro de Sotocochinos, modernamente a chamada Casablanca, e o do castelo de Bayuela. Tais simulacros são considerados deuses dos criadores de gado. Abundam em Zamora, Salamanca, Ávila, Madrid, Toledo, Estremadura e em Portugal.
todas as paróquias presentes seguiam pela Corredera, Praça Maior,rua de S. Francisco, bairro
da Trindade, Passeio do Prado até ao cruzeiro. Em todas as igrejas do percurso repicavam os
sinos, incluindo o do relógio da Vila. No cruzeiro, o Mordomo, sempre a cavalo, assistia e
tomava conhecimento da mudança de autoridade, que passava do Alcaide de Talavera para o
de Gamonal, assumindo este a representação da comarca e da Vila durante as horas da
cerimónia. Marchavam depois todos para a ermida, o Mordomo à frente, abrindo o cortejo a
cavalo; atrás dele o clero, com os seus guiões, os portadores das Mondas e o povo, formando
uma verdadeira procissão. Percutia o Mordomo uma aldravada, sempre sem apear-se (para o
que os ferrolhos estavam também a respeitável altura), e, aberta a porta, entravam todos: o
Mordom,o a cavalo, até ao momento de ajoelhar-se ante o altar da Virgem, os restantes a pé,
e ali ofereciam as suas Mondas à Rainha dos Céus, entoando cânticos devotos, que ressoavam
do coro, situado aos lados da capela-mor.
Concluída a cerimónia e reunidos todos diante da ermida, sempre sob a presidência do
Mordomo, procedia-se à mudança de atribuições de autoridade entre os Alcaides, numa
tribuna que desapareceu no tempo das invasões francesas. Seguidamente tinha lugar a corrida
do touro, à corda, do qual resta a lembrança ligada ao nome de uma das ruas.
Tais eram as Mondas nos séculos passados, segundo a descrição contida na já citada História
de Talavera.
De cada vez com menor aparato, é certo, mas ritualmente, constantemente, desde tempos
imemoriais se vinham oferecendo as Mondas à Virgem, até ao ano de 1919, data em que
deixaram de efectuar-se.
Figura 2: Procissão das Mondas. Carrinho puxado a dois carneiros, em
que o povo de Gamonal apresenta a sua oferenda à Virgem
Recomeçaram em 1925, por iniciativa da Câmara talaverana de então. Em 1932 foram
proibidas pela Câmara republicana, desaparecendo nessa altura o carrinho em que os de
Gamonal, desde há muitos anos, traziam a sua oferenda à Virgem; e desapareceu por motivos
fáceis de compreender, durante essa malfadada e vergonhosa república. Após a libertação de
Talavera, em 1937, Gamonal, cujo povo foi sempre o mais constante, renovou o costume, para
o que a Câmara de Talavera mandou construir outro carrinho igual ao anterior. As autoridades
de Gamonal continuam hoje a apresentar a sua oferenda de cera virgem sobre aquele
pitoresco carrinho, puxado a dois carneiros brancos, que parecem caminhar orgulhosos do
papel que desempenham. O veículo é revestido de tomilho e giestas, pomposamente
adornado e coberto de lindas flores que a risonha primavera faculta, engalanado com
bandeirinhas de cores garridas, tudo disposto com a mais pura devoção e com a melhor
vontade deste mundo. A Gamonal se vêm juntar outros povos, como Casar del Ciego e Velada.
Figura 3: Procissão das Mondas. Meninas da Falange, com açafates de
flores e pombas para oferecerem à Virgem do Prado
Em anos sucessivos tem acudido também Mejorada, que oferece à Virgem a imitação em cera
de uma corrida de touros. Ultimamente com parece por sua vez o povo de Pepino, com o seu
tributo à Virgem do Prado. São os Alcaides e clero destes povos os que respeitam e mantêm a
tradição. A secção feminina da Falange talaverana dá também a sua adesão à homenagem,
conduzindo pombas e açafates de flores.
Por vezes alguns destes povos, em lugar de cera ou de produtos da terra, oferecem uma
quantia em dinheiro, que entregam ao representante do Município junto da Irmandade do
Prado.
As autoridades dos povos oferentes continuam a reunir-se da mesma forma na Câmara, e daí
se encaminham pela rua da Companhia às Agostinhas, onde se junta o clero, cantando as
litanias dos santos, com cruz alçada, seguindo o itinerário tradicional. Penetram no templo do
Prado, aos acordes do órgão e o capelão com os confrades da Irmandade recebem então as
Mondas, cantando-se uma Salve-Rainha. A entrega faz-se na presença dos Alcaides de Talavera
e de Gamonal, estes acompanhados dos povos a que preside, trocando para o acto a vara [o
bastão]2 da sua autoridade com o de Talavera.
Concluída a cerimónia, todos os adornos das Mondas são distribuídos, pelos assistentes que os
levam consigo como piedosa recordação.
A festa, que para os talaveranos constitui motivo de regozijo, celebra-se na terça-feira de
Páscoa, no mês de Abril, que era o tempo em que os pastores e criadores de gado faziam
também as suas oferendas à deusa Ceres, para que ela se mostrasse abundante e pródiga em
bens da terra.
Posto que simplificada e reduzida, hoje em dia, a um acto simbólico, a cerimónia das Mondas
contém em si vestígios de uma tradição multisecular, digna do maior respeito e carinho, como
acto cívico-religioso que, desde a sua origem, sempre tem sido.
A Câmara de Talavera esforça-se, na melhor das intenções, por dar incremento a este costume
tão típico, tão inocente, tão popular e de tão remota ascendência, merecendo por isso os
aplausos de toda a gente honrada.
Separata do volume LXI da “Revista Guimarães”, de 1951
2 Nota dos editores: a vara, bastão ou ceptro, continua a ser hoje o símbolo máximo do município de Talavera de la Reina, simbolizando a ligação do povoado às suas raízes ancestrais.
ANEXOS
Capa da brochura editada pelo município de Talavera
Recibo de gastos com a Festa das Mondas, de 1908
Promoção das Mondas de 2013, considerada uma festa de interesse turístico nacional
In: http://www.talavera.org/