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Editor: Instituto Politécnico de Santarém Coordenação: Gabinete coordenador do projecto Ano 6; N.º 228; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.54] FOLHA INFORMATIVA Nº03-2013 Uma visão da captura de sável, no rio Tejo, na Idade Média O Pescador, de Reiner Musterbuch (ÖNB 507, fol. 2r), c. 1200-1220.

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Page 1: FOLHA INFORMATIVA Nº03-2013 Uma visão da captura de …...O mapa apresentado na página seguinte8 mostra os portos medievais, marítimos e fluviais, assim como alguns trajectos do

Editor: Instituto Politécnico de Santarém

Coordenação: Gabinete coordenador do projecto

Ano 6; N.º 228; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.54]

FOLHA INFORMATIVA Nº03-2013

Uma visão da captura de sável, no rio Tejo, na Idade Média

O Pescador, de Reiner Musterbuch (ÖNB 507, fol. 2r), c. 1200-1220.

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Segundo Maria Helena da Cruz Coelho1 a bacia hidrográfica portuguesa “abrange 298,52 Km2,

para uma área de 88,619Km2 e a navegabilidade de 11 dos principais rios estende-se por 812

km”, por esta leitura facilmente se percebe que o território português, pouco extenso, é no

entanto razoavelmente rico em rios, não só pelos que nascem em solo nacional, como os que

nele desaguam, facilitando a fixação das populações junto das suas águas e portos naturais.

Coelho2 escreve que “a Idade Média, foi, sem dúvida, a idade de ouro do peixe, e por

conseguinte da pesca de água doce, que jamais veio a conhecer uma tal projecção”. E Castro

admite que “(…) uma parte da labuta diária do Homem medieval fosse dedicada a arrancar do

seio das águas as diversas espécies comestíveis e o sal, desde as lampreias aos mariscos, às

baleias e às numerosas variedades piscícolas, fluviais e marítimas”.3

Chinoiserie4 da Igreja de Jesus Cristo de Santarém, séc. XVII-XVIII, pormenor de uma

moldura. Foto de António Monteiro.

1 Maria Helena da Cruz Coelho, “A pesca fluvial na economia e sociedade medieval portuguesa” …, p. 89.

2 Coelho, Maria Helena da Cruz, “A pesca fluvial na economia e sociedade medieval portuguesa”, in Cadernos Históricos, 6, “Actas do Seminário Pescas e navegações na história de Portugal (século XII a XVIII)”, Lagos, 1995, p. 90.

3 Castro, Armando, A evolução económica de Portugal dos séculos XII a XV, vol. IV, Portugália, Lisboa, 1966, p. 93.

4 A principal referência visual utilizada nas chinoiseries é o modo de composição das imagens que imita a pintura chinesa Shan-Shui, que se traduz como “montanha-água”.

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O cruzado Osberto de Bawdsey5, em 1147, exalta o papel de destaque da actividade pesqueira

ao asseverar que “o peixe era tanto que alguns acreditavam que no rio Tejo, para dois terços

de água, sobrava um terço de peixe (…)”6. A pesca fluvial deveria, na época, ser quase tão

importante como a marítima, sofrendo depois uma acentuada diminuição até à

contemporaneidade, como se atesta pelas palavras de Redol7 “(…) e por ali andei com eles,

pescando à noite com as artes mais pequenas, ou partilhando o trabalho dos lances nas

companhas do sável entre queixas dos mais velhos ainda lembrados dos tempos em que o Tejo

era um jardim de peixe.”

O mapa apresentado na página seguinte8 mostra os portos medievais, marítimos e fluviais,

assim como alguns trajectos do trânsito fluvial na Idade Média. A sua leitura revela que a

actividade pesqueira abrangia grande parte da área do território nacional.

Jaime Cortesão9 refere que são numerosos os documentos que certificam que, nos séculos XIII

a XV, existia um vínculo comercial marítimo entre Santarém e a Flandres, Sevilha, o Norte de

África e o Algarve. Em 1420, nas réplicas do rei D. João I sobre as dúvidas que levantou a

obrigação da dízima nova aos escrivães da portagem de Lisboa, verifica-se que era vulgar a

circulação do pescado e de diversas mercadorias, por rio, de Lisboa para Santarém10. Era fácil

para os barcos de Setúbal, Pederneira (bairro da vila da Nazaré que foi sede de um dos

concelhos dos coutos de Alcobaça) e de fora do reino navegarem pelo rio Tejo directamente

até à então Villa de Santarém11.

5 Osberto é um personagem histórico associado ao cerco de Lisboa, 1147, quando a cidade foi conquistada aos mouros pelo rei D. Afonso Henriques que recebeu a ajuda decisiva de um grande contingente de cruzados do norte da Europa que participavam da Segunda Cruzada. Depois da captura de Lisboa foi escrita uma carta, chamada “De expugnatione Lyxbonensi”, a qual narra com muitos detalhes a história do cerco.

6 Saramago, Alfredo, Para uma história da alimentação de Lisboa e seu termo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 56.

7 Redol, Alves, Avieiros, 5ª edição, Caminho, Lisboa, 2011, pág.34.

8 Mapa 7 da História Económica e Social, vol. 1, de Armando de Castro, combinado com o Mapa retirado de A evolução Económica de Portugal dos séculos XII a XV, vol. IV, p. 392, do mesmo autor.

9 Cortesão, Jaime, Os Factores Democráticos na Formação de Portugal …, p. 70. 10 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. I (1208-1483), doc. 327 de 8 de Fevereiro de 1420, pp. 214-216. 11 Descobrimentos Portugueses, supl. ao vol. I, doc. 814 de 5 de Abril de 1436, p. 496.

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A pesca da lampreia, de theatrum Sanitatis; Library Casanatense, Rome

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MEIOS E MODOS DE PESCA

Albrecht Dürer c. 1490-1493

O rio Tejo desde tempos imemoriáveis que é famoso pelos seus sáveis12 que eram pescados,

para além do método tradicional, também com armadilhas que eram primitivamente feitas

com ramos de árvores entrelaçados ou vergas. Posteriormente passou-se para um aparelho

que medeia o simples uso de ramos de árvore e o de utensílios mais proveitosos e impõe um

fabrico mais difícil do que o simples corte de ramas, as “vargas”. Deu-se essa mesma

designação a alguns tipos de redes chamadas de “abbargas”13que seriam constituídas por

canas ou caniços entremeados que retinham os peixes. A prova de que as vargas foram

utilizadas no rio Tejo, para a pesca dos sáveis, está num documento escrito por D. João I: “Item

12 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. I (1208-1483), doc. 405, 5 de Abril de 1436, pp. 269-270. 13 Castro, Armando, A evolução económica de Portugal dos séculos XII a XV, vol. IV …, p. 361.

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que sse pescam muitos saavés no Rio do Tejo, assy com as avargas do Infante dom anrrique

meu filho”14.

O pescador, de Sententiae (Bibl. Mazarine MS 766, fol. 72v), c. 1300

No que diz respeito a nassas e covos, “grandes cestos de vime entrançado ou de fio de

cânhamo de boca larga e que iam estreitando fixados em determinados pontos (…)”15,

aparecem abundantes alusões nos documentos analisados para a execução deste texto.

D. João I, em 1394, solicita que não se deitassem covões com pedras para sibas (chocos

ou sépias) nem outros peixes nas rias de Vagos, Aveiro, em Ovar e noutras regiões em redor,

porque ali circulavam muitos navios de marear e estas armadilhas enleavam-se neles e

provocavam grande dano16. A este propósito, Castro17 menciona que a “predominância de

14 Descobrimentos Portugueses, supl. ao vol. I, docs. 205 e 206 de 8 e 15 de Fevereiro de 1420, pp. 323-325.

15 Castro, Armando, A evolução económica de Portugal dos séculos XII a XV, vol. IV …, p. 97.

16 Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc. 187 de 30 de Abril de 1394, pp. 202-203.

17 Castro, Armando, A evolução económica de Portugal dos séculos XII a XV, vol. IV …, p. 100.

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cada um destes processos dependia do condicionalismo geográfico de índole física e da

influência das relações económicas estabelecidas”.

Num documento de 8 de Fevereiro de 142018 refere-se que os sáveis capturados no rio Tejo e

no rio de Alpiarça eram salgados em Lisboa e depois comercializados em Ceuta, o que pesava

na balança comercial do território. Em Lisboa19 cresciam as vozes dos que se insurgiam contra

este comércio intensivo com Ceuta pois segundo elas retirava da boca dos mais pobres os

sáveis e outros pescados, com a alegação de que os rios eram livres a todos os que neles

quisessem pescar.

A Pesca, de Tacuinum Sanitatis, (BNF Nouvelle acquisition latine 1673, fol. 78), século XV

Após a leitura de alguns documentos somos levados a ponderar que se pescava de forma

abusiva, sobretudo em dias considerados magros20, facilitando a diminuição e provável

18 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. I (1208-1483), doc. 327 de 8 de Fevereiro de 1420, pp. 214-216.

19 Monumenta Henricina …, vol. VII, doc. 196 de 15 de Janeiro de 1442, pp. 284-285.

20 Dia em que se prescreve a abstinência de consumir carne por motivos religiosos.

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extinção de algumas espécies, o que pode justificar o elevado número de proibições de

utilização de instrumentos considerados perigosos, bem como regulamentos de pesca. No

século XIV, no reinado de D. Afonso V, as queixas da população eram tantas que este teve que

lhes pôr fim, sendo o primeiro rei, em Portugal a regulamentar a pesca21.

Já em 146222, D. Afonso V impõe que os caniços dos canais da pesca dos sáveis no Tejo e no

Zêzere fossem construídos de rama ou verga como as mantas da terra, com um palmo de

largura e espaçados de dois dedos. Nesses caniços não se podia colocar esteiras ou outro

objecto de forma a não matar as “savatelhas” (sabogas ou pequenos sáveis), que nadavam

para o mar onde se criavam, e ter-se-iam de deitar vivas ao rio se ficassem presas nos caniços.

Em Carta régia, D. Afonso, sustentou que acontecia que os sáveis que fugiam das “avargas e

savaares e nassas” avançavam rio Tejo acima, onde desovavam, e que por Agosto e Setembro

as “savatelhas” que se geravam seguiam pelos rios até ao mar onde se iam criar. Refere ainda

que os que tinham canais faziam caniços de verga fechados e muito juntos e lançavam-lhes

esteiras e redes miúdas dobradas, fazendo com que o pequeno peixe ao entrar nelas morresse

provocando um desequilíbrio para o crescimento da espécie. Estes pequenos peixes eram

vendidos como se fossem sardinhas, levando à diminuição de sáveis, ano após ano.

D. Afonso V, em 1474, persistiu nesta questão e proibiu outras formas de apanhar os sáveis,

impedindo os pescadores do rio Tejo de empregarem “bogueiros”23 e “lavadas” (classe de

redes) e que utilizassem “copéis”24 nas redes, onde a semente do sável poderia morrer, pois

estes eram feitos de redes de malha extremamente miúda impedindo a fuga de peixes muito

pequenos e acabando por desequilibrar o ecossistema piscícola25.

21 Coelho, Maria Helena da Cruz, “A pesca fluvial na economia e sociedade medieval portuguesa”…, p. 94.

22 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. II (1439-1481), doc. 417 de 12 de Junho de 1462, pp. 125-127.

23 Sacos para apanhar bogas e outros peixes mais pequenos.

24 Sacos de rede miúda que se punham nas redes de arrastar.

25 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. II (1439-1481), doc. 580 de 12 de Julho de 1474, p. 195.

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A Pesca, tacuinum sanitatis casanatensis (século XIV)

COUTADAS DE PESCA

Muitas cartas de coutadas, quintas, rios e ribeiras, revelam que o usufruto do produto

originado beneficiava quem o recebia, senhores de menor ou maior condição, clérigos

(mosteiros ou ordens) e a permissão podia estender-se a cidadãos, homens e mulheres, a

quem o rei fazia mercê26 sendo esta, também, uma forma de assegurar o peixe nas suas

mesas. Em determinadas zonas a pesca estava interdita a quem não possuísse uma zona

coutada. Estas, além de proporcionarem alguma diversão, também forneciam abundante

pescado.

No século XIV, Alpiarça (Alpearça) já existia enquanto povoação. O seu povoamento terá

começado logo a seguir à Reconquista.

26 Coelho, Maria Helena da Cruz, “A pesca fluvial na economia e sociedade medieval portuguesa” …, p. 85.

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Uma das referências que se conhecem sobre Alpiarça27 diz respeito ao seu Rio Alpiarça

ou Vala Real, que no reinado de D. João I era coutada real. Nesta época era muito comum os

monarcas gozarem de terrenos próprios para pescar e caçar e todos os outros para o fazerem

teriam que obter autorização. Quer D. João I quer o cónego de Viseu, Luís Eanes28,tinham

coutadas em Alpiarça para o seu “desenfadamento”29 e obtenção de algum pescado.

Em relação ao rio Alpiarça sabe-se que, em 1436, o povo do concelho de Santarém fez uma

petição ao rei D. Duarte, para que naquele rio se pudesse pescar com covões, pois pescar com

cana não era rentável. O rei cedeu ao pedido e autorizou a utilização dos covões em

determinadas zonas do rio30.

Pelos artigos apresentados nas Cortes de Évora de1436, entende-se que na coutada real de

Alpiarça era possível pescar com cana apesar de ser proibido pescar com outros aparelhos.

D. Duarte entendia que não convinha que o “laurador leixar de laurar e pescar a cana e

quando mujto tomaua dous bordallos e que seia nossa mercee que husem como sempre

husarom no dicto Rio os lauradores”31. O conteúdo do documento evidencia que pescando

com cana se recolheria menos pescado do que utilizando outras técnicas de captura e, por

outro lado, satisfazia-se o povo que assim teria livre acesso ao rio.

Passados três anos o concelho de Santarém, nas Cortes de 1439, volta a manifestar-se contra

a coutada real do rio Alpiarça, alegando que os rios são livres e que todos deveriam ter direito

de pescar. O povo manifestava-se assim contra alguns poderosos que o proibiam de pescar no

tempo do sável.

Só o regente D. Pedro irá declarar livre a pesca no rio Tejo (1442). No entanto, o rio

Alpiarça continua a ser coutada real em algumas zonas. O rio Alpiarça aparece sempre

27 Prates, Nuno, Rei, Seara, Alpiarça e a sua História, Trabalho apresentado na cadeira de História Moderna de Portugal, Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra, 1997.

28 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. II (1439-1481), doc. 338 de 18 de Janeiro de 1454, pp. 100-101.

29 Coelho, Maria Helena da Cruz, A pesca fluvial na economia e sociedade medieval portuguesa …, p. 101.

30 Cortes Portuguesas. Reinado de D. Duarte (1436 e 1438), Organização e Revisão Geral de João José Alves Dias, Centro de Estudos Históricos, Universidade Nova de Lisboa, 2004, cap. 13 de 5 de Abril de 1436, pp. 102-103. 31 História Florestal, Aquícola e Cinegética, vol. I (1208-1483), doc. 405 de 5 de Abril de 1436, pp. 269-270.

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associado à abundância de peixe32, talvez daí a razão pela qual era considerado coutada real. O

padre Cardoso referencia a fertilidade das terras junto às margens do rio Alpiarça, assim como

a abundância de peixe, nomeadamente fataças e barbos. O rio Alpiarça manteve-se

como coutada real desde o reinado de D. João I até ao século XVIII.

As coutadas revelavam-se assim como uma mais-valia para os seus proprietários, pois

constituíam uma fonte de rendimento e garantiam a entrada fresca de pescado,

especialmente nas alturas em que o seu consumo era imposto religiosamente.

Receituário medieval de peixe de rio

Não sendo o peixe o alimento preferido na Idade Média, existiam, contudo, espécies mais

apreciadas que outras. A pescada, o salmão, o congro, o linguado, a lampreia, o sável e o solho

eram dos mais apreciados para levar às mesas dos mais notáveis e abastados, quedando para

o povo o pescado mais vulgar, como a sardinha. Pela leitura dos documentos, utilizados para a

elaboração deste trabalho, verificou-se que o peixe se servia nas mesas medievais, pelo menos

nos dias em que se proibia religiosamente o uso de carne, o que se tornou um sinal de

extirpação, purificador das desobediências terrenas. Na mesa dos mais pobres, para além da

observância do mandamento cristão, as espécies piscícolas, porque mais acessíveis,

desempenhariam um vital papel na alimentação.

Da leitura de Saramago33 constata-se que a única receita de peixe presente no Livro de cozinha

da Infanta D. Maria (1538-1577), composto de 67 receitas distribuídas em quatro cadernos e

mais seis receitas avulsas, é a seguinte: “Tomarão a lampreia lavada com água quente, e tirar-

lhe-ão a tripa sobre uma tigela nova, porque caia o sangue nela, e enrolá-la-ão dentro naquela

tigela e deitar-lhe-ão coentro e salsa e cebola muito miúda, e deitar-lhe-ão ali um pouco de

azeite e pô-la-ão coberta com um telhador; e como for muito bem afogada, deitar-lhe-ão

muito poucochinha água e vinagre, e deitar-lhe-ão cravo e pimenta e açafrão e um pouco de

gengibre”34. O processo de arranjar e temperar a lampreia está bem detalhado, mas depois

não se especifica o modo de confecção.

32 Padre Luiz Cardoso, Dicionário Geográfico, 1747.

33 Saramago, Alfredo, Para uma história da alimentação de Lisboa e seu termo…, pp. 50-51.

34 Receita nº 17 do Livro de cozinha da Infanta D. Maria …, pp. 32-35.

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Pode-se inferir que o facto deste livro de receitas ser dedicado à confecção de pratos para

mesas ricas, explique a presença da lampreia como única receita de peixe, pois esta espécie

era, na realidade, das mais apreciadas. No tempero da lampreia utilizavam-se variadas ervas

aromáticas e especiarias, principalmente a partir do século XVI. Abundavam na confecção de

pratos, e recorria-se a uma grande variedade de condimentos num só prato. Neste, registam-

se quatro, podendo ainda ser utilizadas mais, à semelhança do que acontecia com a

preparação de pratos de carne. Nas mesas abastadas as especiarias seriam substituídas por

ervas aromáticas, gorduras e frutos, como por exemplo: laranjas azedas, limões, salsa,

coentros, cebolas, azeite, manteiga, sal e vinagre.

Carta35 probatória do pagamento de dívidas deixadas pelo bispo de Coimbra, D.

Estevão, que Afonso Esteves, despenseiro36 de D. Pedro I e criado de Estêvão da

Guarda, saldou em nome deste último e por ordem do monarca, com a data de 3 de

Novembro de 1357, onde se refere o pescado do rio Tejo:

35 Torre do Tombo, S. Vicente de Fora, maço VI, doc. 19.

36 Também conhecido como uchão. Responsável pela ucharia (despensa real).

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Sabham quantos estes stromentum vyrem e leer ouvyrem que en presença de mim Afonso

Dominguiz publico tabellion de Sanctaren e das testemuynhas que adeante som scritas Afonso

Steveez, criado de Stevam da Guarda, eychon de nosso senhor el Reyen logo e em nome do

dicto Stevan da Guarda, per mandado de nosso senhor en Rey assy como conteúdo enhûasa

carta e de Pero Giraldiz alcayde e de Pedre Anes de Pavha e de Vaasco Perez alvaziis de

Sanctarem presente Reymonde Anes e Meen Perez testamenteyros de Don Stevam bispo que

foi em Coimbra.

(…) Item pagou a Clara Zagala três libras e meio que jurou que lhy devya o dicto bispo per

razom de congros37 secos que dela conpraron quando o dicto bispo chegou passado a

Sanctaren. (…) Item pagou a Maria Salgada quinze soldos per três sovaes que disse per

juramento que lhi filharon pêra o dicto bispo a cinco soldo o saval.

(…) Das quaes cousas sobredictas o dicto Afonso Steveez pedio a mim Affonsso Dominguiz

tabellion de suso dicto que lhy desse huum stromentum de como pagava estes dinheiros per

outoridade da carta de d’el Rey que ende mostrava per que os mandava pagar e per mandado

dos dictos alcayde e alvaziis assy como Pero Galego porteyro do concelho da docta vila de

Sanctaren disse da parte deles.

Fecto foy esto en Sanctaren nas casas que forom do dicto bispo, três dias de Novembro, Era de

mil e trezentos e cinquenta e sete anos.

Os que presetes forom: Meen Perez, Reymonde Annes e Pero Galego porteyro e outros. Eu

Afonso Dominguiz publico tabellion de Sanctaren a estas cousas presente fuy e a rogo do dicto

Afonso Stevveez este stromentum scrivy e en el este meu sinal pugy.»

Lurdes Véstia

Imagens retiradas de http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Fishing_net , acedida a 9

de Janeiro de 2012.

37 O congro é um safio já na sua fase de maior dimensão. Em Portugal é considerada uma espécie ameaçada.