floresta sombria primeiro capítulo

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13 A CAMINHO DA GRANDE SURPRESA O s troncos de árvore estavam empilhados em formato de pirâmide na traseira do caminhão, presos por três faixas cinza de um material que Samuel Blink não reco- nheceu. Uma das faixas estava meio solta, o que fazia os troncos vibrarem como se estivessem inquietos, ou tentando fugir e voltar para a floresta. O caminhão ultrapassou o carro numa velocidade alucinante. — Já viu uma coisa dessas? — disse Peter, o pai de Samuel. — Que maluco! O pai de Samuel achava que todos os outros motoristas eram malucos, e os caminhoneiros eram os piores. — Ótimo — disse ele, quando o gigantesco veículo começou a desacelerar. — Agora não chegaremos lá nunca mais. O caminhão transportando os troncos estava na frente do carro, ocupando as duas pistas, de modo que as linhas brancas no asfalto disparavam de baixo dele feito lasers. M313-01(GALERA) CS5.indd 13 12/09/2011 09:58:51

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Floresta Sombria primeiro capítulo

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Page 1: Floresta Sombria primeiro capítulo

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A CAMINHO DA GRANDE SURPRESA

Os troncos de árvore estavam empilhados em formato de pirâmide na traseira do caminhão, presos por três

faixas cinza de um material que Samuel Blink não reco-nheceu. Uma das faixas estava meio solta, o que fazia os troncos vibrarem como se estivessem inquietos, ou tentando fugir e voltar para a floresta.

O caminhão ultrapassou o carro numa velocidade alucinante.

— Já viu uma coisa dessas? — disse Peter, o pai de Samuel. — Que maluco!

O pai de Samuel achava que todos os outros motoristas eram malucos, e os caminhoneiros eram os piores.

— Ótimo — disse ele, quando o gigantesco veículo começou a desacelerar. — Agora não chegaremos lá nunca mais.

O caminhão transportando os troncos estava na frente do carro, ocupando as duas pistas, de modo que as linhas brancas no asfalto disparavam de baixo dele feito lasers.

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— Não estamos com pressa — disse a mãe de Samuel, que se chamava Liv. Ela ficava relaxadíssima quando o pai dele estava fumegando de raiva.

Samuel não sabia para onde eles estavam indo, mas sabia que não queria passar nem mais um minuto tendo que ouvir a cantoria da irmã. Bem, “cantoria” não era exatamente a palavra. “Estrangulamento de gatos” seria uma descrição mais precisa do som.

— Mãe, manda a Martha parar de fazer esse barulho infernal.

A mãe dele deu um suspiro.— Não é um barulho infernal. É um lindo canto.Aquilo era mentira. Uma entre as milhões de mentiras

contadas pelos pais, às quais Samuel se acostumara ao longo de seus doze anos vivendo neste planeta. Mas ele sabia que hoje não receberia apoio algum. Afinal era ani-versário de Martha, um fato indicado pelos dois bótons no casaco da menina, que informavam “Tenho 10 anos” e “10 anos hoje”.

A cantoria ficou mais alta. A cabeça de Samuel vibrava como os troncos das árvores quando ele a recostou na janela do carro, olhando o borrão de grama que passava depressa na beira da estrada.

— Pai — ele disse, apelando para o segundo elemento na escala hierárquica —, manda a Martha parar.

Seu pai o ignorou. Estava ocupado demais reclamando do caminhão na frente dele.

— Que palhaçada! Pra que ultrapassar, se depois você vai diminuir a velocidade?!

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Martha se contorceu no cinto de segurança e cantou bem alto na orelha de Samuel:

— Eu sou toda sua, quero você pra mim...

Eca! Samuel achou que ia vomitar. Odiava a cantoria da irmã mesmo quando estava de ótimo humor, mas prin-cipalmente quando estava cansado. Ele só tinha dormido duas horas na noite anterior, pois teve o mesmo pesadelo de sempre; com monstros de pele cinzenta, dotados de rabos e olhos que jamais piscavam. Ele acordou suando frio e não conseguiu dormir de novo.

— Deviam obrigar os assassinos a ouvir você cantando. Como castigo — ele disse a Martha.

— Cala a boca, chato-el. Você só está com inveja.E então ela começou de novo, cantando trechos de

músicas românticas imbecis de menina. Ele sabia que a irmã cantaria o dia inteiro. Afinal, ela cantava o tempo todo. Era como se a vida inteira de Martha fosse uma grande canção. Como se ela estivesse presa num desses musicais baratos que sempre assistia na tevê.

Samuel voltou a olhar pela janela e rezou para que Martha calasse a boca.

Fecha essa matraca.Mesmo quando dizia alguma coisa normal, ela dizia

cantando, subindo e descendo de tom para pronunciar cada palavra numa nota diferente.

Ou seja, em vez de simplesmente perguntar “Aonde a gente está indo?”, ela cantou:

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Mãe

e

pai,

aonde a

gente

está

in-do?

Ao que a mãe dela respondeu:— Você não quer que a gente estrague a grande sur-

presa, quer?— Quero — cantou Martha.— Bom, daqui a pouco você vai descobrir.— Não se a gente ficar preso atrás desse estrupício —

disse o pai dela, referindo-se ao caminhão.Samuel ficou imaginando qual seria a grande surpresa.

Torceu para que fosse uma visita a um parque temático, como tinha sido no último aniversário dele. Uma mon-tanha-russa com vários loops obrigaria Martha a parar de cantar, mesmo que só por um tempinho. Ele tinha ido com o pai num brinquedo chamado A Catapulta, um brinquedo tão rápido que era impossível mexer o rosto. Samuel tinha adorado cada segundo daquele passeio alucinante, e o pai dele tinha fingido adorar também, até precisar correr para o banheiro e botar o almoço pra fora (mentira paterna número 910.682).

Mas Samuel suspeitava que a grande surpresa seria muito menos legal do que um parque temático. Ele pensou em todas as chatices que Martha gostava de fazer.

Andar a cavalo...Mudar o corte de cabelo...

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Gastar a mesada em música ruim...Ouvir música ruim...Cantar música ruim...Por isso — com base nos interesses de Martha — Sa-

muel tinha reduzido as opções a um dia trotando num cavalo, olhando a irmã cortar o cabelo num salão chique ou (no pior dos casos) ir ver um musical. Talvez até um musical sobre uma cabeleireira que vira hipista e canta para o cavalo.

Samuel sorriu ao pensar na versão original de inferno que havia imaginado.

Béééé!

O devaneio com pessoas cavalgando e cantando ter-minou quando o pai dele sentou a mão na buzina para o caminhão à sua frente.

— Parece piada — disse o pai dele, ligando a seta.— Peter, o que você está fazendo? — perguntou Liv.— Vou pegar a próxima saída. Vamos ficar nessa es-

trada o dia inteiro se não sairmos de trás desse caminhão. E você viu como eles amarraram esses troncos? Tem tudo pra acabar em um acidente.

— Mas a gente não conhece as estradas.— Temos um mapa. Está no porta-luva.Ah, não...Samuel e Martha sabiam o que o mapa significava.

Significava que a mãe e o pai deles passariam uma hora brigando, discutindo sobre onde deveriam ter virado à esquerda.

— Certo — disse Liv. — Precisamos pegar a B642.

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Crianças, fiquem de olho na B642.— B meia quatro dois — cantou Martha.— B

meia

quatro

dois.

O carro deu três voltas numa rotatória, até que Sa-muel avistou a B642, escondida atrás de arbustos numa plaquinha rodoviária verde.

— Lá está — disse ele.O carro saiu da rotatória, e em menos de cinco minutos

o mapa conseguira gerar o problema da entrada à esquer-da de sempre. Samuel continuou olhando pela janela e a aniversariante continuou cantando, enquanto a discussão entre os pais brotava e começava a crescer.

— Esquerda.— O quê?— Tarde demais. Era para ter virado à esquerda lá

atrás.— Você podia ter me falado. É você quem está com

o mapa.— Eu falei.— Bom, você podia ter falado antes de a gente perder

a saída. Droga.— Foi culpa desse estúpido mapa velho. É muito difícil

de ler.Samuel pensou no que a mãe acabara de dizer e ficou

imaginando como um mapa poderia ser estúpido. E então pensou na árvore que havia sido transformada em papel para fazer o mapa. Quem sabe o mapa era difícil de ler

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porque estava meio que se vingando.Fosse qual fosse o motivo, eles perderam a saída à

esquerda e agora estavam presos na B642.— Se continuarmos em frente, conseguiremos voltar

para a estrada principal — disse Liv, enquanto analisava o mapa.

— Ah, que maravilha! — disse Peter. — De volta pro começo.

— Mudar de estrada foi ideia sua.— Bom, teria dado tudo certo se você conseguisse ler

um maldito mapa!— Ah, não — disse Liv.— O que foi? — disse Peter balançando a cabeça.— Essa estrada não se liga com a principal.... passa

por baixo dela.E para provar o que estava dizendo, na curva seguinte

surgiu à vista uma grande ponte de concreto, passando por cima da B642.

Samuel viu, à esquerda e ao longe, o caminhão subindo pela estrada em direção à ponte. O que ele não viu — pois afinal não tinha visão telescópica — era que a faixa cinza frouxa que ajudava a prender os troncos tinha se soltado por completo. As outras duas faixas agora também esta-vam bem mais frouxas do que deveriam, fazendo com que os troncos pulassem para cima e para baixo, com mais violência a cada vez.

Quando a segunda faixa se soltou, era quase inevitável que o mesmo acontecesse com a terceira. E isso realmente aconteceu, levando a outra consequência inevitável: que

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os troncos começassem a cair.Enquanto o carro seguia na direção da ponte, Samuel

tentou ficar de olho no caminhão. Tinha calculado que, se eles continuassem na mesma velocidade, o carro passaria por baixo da ponte no exato momento em que o caminhão passaria por cima.

Por isso, quando viu o primeiro tronco de árvore pular para fora do caminhão, percebeu o quanto aquilo podia ser perigoso.

— Pai! Para o carro!— Samuel, qual é o problema?— Para o carro! Os troncos! Caindo do caminhão!

Para o carro!— Samuel, do que você está falando? — O pai não

parecia nem um pouco disposto a parar o carro.O primeiro tronco quebrou a barreira de proteção da

estrada cem metros antes da ponte, e começou a rolar encosta abaixo em direção ao campo que ficava ao lado da B642.

— Para o carro! Para o carro!— Samuel? — Sua mãe sempre acrescentava um ponto

de interrogação ao nome dele quando estava brava.— Para! Para! Para logo!Mas o carro continuava correndo, os troncos continu-

avam caindo, e Martha continuava cantando.— Parabéns para mim...— Para!— Samuel?— Não posso parar o carro agora.

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— Parabéns para mim...

— Você não está vendo?— O quê?— Olha! Esses troncos rolando morro abaixo.— Parabéns para a Martha...

— Troncos? Que troncos?— Sinceramente, Samuel. Acho que sua imaginação

está...— Parabéns para...

Foi esse o instante. Foi nesse instante que o pai de Sa-muel finalmente decidiu frear. Também foi o instante em que o último dos dez troncos que formavam a pirâmide rolou para fora do caminhão e quebrou a barreira.

Só que dessa vez o tronco não rolou encosta abaixo até o campo. Caiu por cima da ponte, bem em cima do único carro que estava viajando naquele trecho da B642.

Crash!

O tronco caiu na parte da frente do teto. Um pinheiro escocês peso-pesado, que viajara quase quinhentos quilô-metros rumo ao sul, a caminho de uma fábrica de papel em Lincolnshire.

Menos de um segundo depois de o tronco atingir a lataria fina, Samuel e Martha haviam perdido os pais — embora eles próprios, junto com a metade traseira do carro, continuassem fisicamente ilesos.

Samuel segurou a mão da irmã, enquanto os dois con-tinuavam sentados no banco de trás. Estavam chocados demais para se mexer. Ou para falar. Ou para emitir qualquer tipo de som. No intervalo de um único segundo,

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seus olhos tinham visto mais pesadelos do que ao longo de suas vidas inteiras.

Nenhum dos dois sabia aonde os pais tinham planejado levá-los no aniversário de Martha. Só o que eles sabiam era que, o que quer que acontecesse agora, nada voltaria a ser igual.

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