flores poemas de brasa enganosa
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7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa
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p/ leonardo mathias
POR UMA HISTÓRIA DA ALEGRIA feito escada elevadaalém do chão tão altaaté que alguém pensasseque todo o feito estava
apenas em chegar ao pédessa escada suspensa no arcomo se fôssemos somenteo sonho intranquilodaquela borboleta
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NÃO BASTA O RIO murmúrioadocicado das águasrumo certeiro transparênciado olho d’águadesaguar suave sua torrentenão adianta fonte puraou perpétuo devir dos rios
como se fosse fozseu único destino
não basta o rio –cruzar a vida como esquinasem banzeiro que revire a via estreitanemsorrir pra cantilena ilusória do mar –
carece macaréu em barro & areiaarrancando as árvores revendoo próprio rumo estrondo sósal revolutoo corpo inteiro em pororoca
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NÃO SE APRENDE A AMAR
o desamar simse desaprende
mesmoaconchegado no extravio do silêncio
sem palavrassem consolo ou sentido abraçadopela profunda presença do fracasso
quandomelhor seria um trago
ou qualquer outro versoque não seja este
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ENCONTRAR NA CARCAÇA DUM PÁSSARO destroçada por dois gatos bem nutridos
(gratuidade do atocrueldade – palavra inventadahumana demais pra contaresse ato – sem pecado
sem perdão)
encontrar nesse corpo espalhado pela casaenquanto hesita entre uma pazinha
ou um papel higiênicoenquanto lembra de pegar um saco plástico
não muito grande/não aquele azulenquanto afasta os gatos que teimam em brincar
com a comida – aliásnem comida
enquanto afasta os gatos que teimam em brincar(ponto)
encontrar uma réstia de vidanão no pássaromorto/destroçado/espalhado pela casa
nem nos gatosque de bem nutridosseguem a vida sem procuras
uma réstia de vidaum soco na cara um beijo por detrás da orelhauma réstia ainda & sempre por seencontrar
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METAFÍSICA SOBRE UM TEMA DE DRUMMOND
eu vejo no feitio de uma prece –despetalando-se como um crisântemoabandonado à beira do passeio –sem encontrar nenhum pertencimento
na fúria intermitente da cidadeo breve desvelar da calmaria
contanto que no olhar da calmariano ritmo pausado dessa precena tímida brancura do crisântemoa alma encontre em parte seu passeiocuja carne contrai pertencimentotornando-se janela na cidade
& cada ponto faça-se cidadena improvisada paz da calmariaameaçada pelo fim da preceque abala a primavera do crisântemo& se arremessa ao olho do passeio –a fúria enfim se faz pertencimento
porém se a flor forçar pertencimentosem janelar-se inteira na cidadese aquela improvisada calmarianão tiver o sorriso de uma preceacaba-se a ternura do crisântemoque então se aquieta à sombra do passeio
carece a alma ter mais que um passeioroubando ao corpo o seu pertencimentoembriagado nas luzes da cidadepara que a embriaguez & a calmariase encontrem contrastando numa prececomo o passeio encontra co’o crisântemo
no fim se a prece é pétala – crisântemounido em dissonância num passeio –& o corpo é n’alma o seu pertencimentoa janela é maior do que a cidade
& o mar em fúria é plena calmariacomo a palavra proferida em prece
no breve desvelar da calmariana fúria intermitente da cidadeque vejo no feitio de uma prece
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ARQUITETURA
The imperfect is our paradise. Wallace Stevens
mas sobretudopreparar a brita
que brita não é calma & controladaconforme pedra ou carneé pesada
ainda que tratávelquando escrita
melhordo sem sentido é que ela incita
uma poéticaa partir do nada
& assim se assomaainda que calada
uma estrutura armada com bauxita
agora venha vida venha dor
nada se negueà sua arquitetura
que busca simetria em sua sina
mas não prevê que o riscode uma flor
– coisa sem nomeque sequer perdura –
possa brotar nas frestasda ruína
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SONG OF ITSELF
polar bear track 5 diz o ipod enquanto estico o pé pra fora do ônibus & aponto para a bordado passeio público
senhoras junto ao lago espreguiçam seus braços nos modos do tai chiapalpo o bolso pelo fumo insalubre que insisto em carregar nas manhãscachorros & madamas cruzam meu caminho sem pestanejar
de fumo em riste ensaio apertar um cigarro a passos largossão truques estranhos que faço & me imagino caubói spaghetti montado em seu cavalo
apertando o palhoso numa só mão – seus olhos malignos & calmos seu fumo maligno & calmo a câmera em close ganha força
pela trilha sonora –& causo algum frisson em dois adolescentesque neste instante me tomam por herói maconheiro em praça pública
eu sou o maconheiro em praça pública mesmo fumando tabacosou cadela sadia que conduz sua dona de casa ao passeio como variante do tédio diáriosou dois ou mais adolescentes em busca de crimes menores & heroicos do asfaltosou mesmo o asfalto do passeio onde passo & que também me atravessa(fiz um pacto contigo walt whitmansou-te & deixo-te fora dos pedestaisentregue ao gosto dos pedestres)& poderia comparar toda esta cena a um quadro de maliévitch ou às cores de godardpara assim dar mais gosto erudito a esta composição canhestradelendum momentum penso que bem poderia ser a morte que espreita o cidadão mais gordo que
sou & corro do outro lado deste parque num suor de bicas
a cocota sarada o estudante vadio o professor de latim nossas baratas metropolitanas nosbueiros as curvas suaves dos galhos do ipê sem flor
a próxima faixa deste ipod em minha mão que denuncia minha classe em modos neomarxistas(também fiz pactos contigo fernando pessoa diversosmas não pretendo cumpri-los todos & te estendo a mão como um amigo)as cores de godard ou pinturas de mailévitch ou goya previamente não citadoum neomarxista de barba aparada com tênis allstar & calças milimetricamente surradaso parque termina antes da música o poema nunca termina o passeio segue adiante
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BRASA ENGANOSA debaixo das cinzas
saudadequase chama corpo
ausenterosa encarnada estalando
na carne do éter
como se cadaoutrora de repentemerecesse sernovamente
exatamenteagora
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AMETISTA
1 – o poema
instalada no estresse mecânicoda rocha
purpurescente
em seu casulocompósito de quartzo
a ametista desabrochaseu veiofeito falhaque o olho logo acolhecomo se fosse ela a sua própriarocha
incrustada na drusaesdrúxulano cerne do fracasso do granitoem seu enorme geodo
joia parcaela se despetala
flor na forma do cristal
2 – o problema
ametistado sul – RSa mão que se embrenha no breu da rochaflor nunca colhe
procura nessa pedra o pãonosso de cada diado peperito inala poucoa pouco o pó
do peperito& dele faz anelação
tateia por sobre o tempo da terraescava o pão da sua cova& ali seenterra
3 – o negócio o esquema
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polida incrustadano anel agora (semi)preciosa
ela se faz de pão a preço
o olho que o anela transforma a pedraem gema que gera
mais-valiana boutique de pedras
4 – o metapoema
incrustada na página ela nãopassa de palavra
em que sequer se paga o pão – convém aqui ao poetinha de provínciacitar
a man(who could not earn his breadbecause he would not sell his head) –
sem preço de mercadoque aqui se consomeseu protesto é menor do que o gritoda última flor do prado
perdidasoterrada na geada
não cabe nas rodas literáriasnem pra pedra de cabral ela servenão carrega no corpo a poeira do asfalto
o concreto gelado no asfaltoretornada ao fracassoé muito líricalímpida estampada
no preto
nem torre de marfim
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Agora já só desejo ser sensível às minhas dores. Mariana Alcoforado
O ESPINHO INEVITÁVEL encravado sob a pele
se ao fim não sai
acabainevitavelmentepele
& seja chaga sejador devida
inominadaé árido aprender
o seu abraço
mas mesmo assimo devorar do espinho é uma dádiva
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ENVOLVIDA POR SUA CASCA espaçando-sede sia mexerica cresce
o dente não ousa invadir seu espaço
entre pele & polpaestacado diante dessa estranha
folgada vestedesencontrada do seu corpo
ali a mão se encontrainvade feito rasgo
consome o cio da fruta& na permuta indizível
carrega uma semente
esta simousadaacaricia cada um dos dentes
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p/ adriano scandolara
NENHUM GRITO NA NOITE talvez uma taça de vinhoo brinde sozinho na mesaum bom senso o controleremoto
a bitolada
cerveja entremeada aos burburinhosdum bar dos baresnenhum grito na noiteaté um choro
um gemido sinceroda última trepada da noitenenhum gritoo uivo dos cães nessa noite sem luabaforadas sintéticasum beco alguns becos entreavenidas da noite
nenhum grito na noitesaraivadas de balas 3 homicídios5 ou 6 assaltosum moleque perdido no centro da noite
a cadência dum sambaa caçamba de lixo
nenhum grito na noite
putas michês travestis trabalhandosilêncio de sorriso sarcasmo vencido um grito?nenhum grito na noite
por entre bueirosos ratos seguem seus rastrostodos os vagões permanecemnos trilhosos porteiros discretamente
adormecem
aquários bancos cinemasas luzes acesasdiamantes cansados na bruma esta noite
nenhum gritoos metrôs funcionampaz milimética no trânsitoum policial ou outronuma viatura
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na noite sem barbárie a carcaça do tédioa boca aberta sem remédioum vazio crescendo feito cáriemedo nenhumgrito na noite
um desejo imperfeito um saber
cansadode que um gritoum grito apenasainda possa demoliro silêncio da noite
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último bolero
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AS TROMBETAS ENSAIAM o bolero
do fim dos temposa morte ensina a um molusco
absortoas sentenças do infinitoem lastros feitosde alquimia
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se a arte, por seu objetivo
tiver um vaso quebrado
uma alma pequena despedaçada com pena de si própria
o que restará depois de nós será como o choro dos amantes num hotel vagabundoquando as paredes amanhecem
Zbigniew Herbert, via Sylvio Fraga Neto & Danuta Haczynska da Nóbrega