flores poemas de brasa enganosa

17
7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 1/17   p/ leonardo mathias POR  UMA HISTÓRIA DA   ALEGRIA feito escada elevada além do chão tão alta até que alguém pensasse que todo o feito estava apenas em chegar ao pé dessa escada suspensa no ar como se fôssemos somente o sonho intranquilo daquela borboleta

Upload: ana-luiza-boldrini-walter

Post on 16-Feb-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 1/17

   p/ leonardo mathias

POR  UMA HISTÓRIA DA  ALEGRIA feito escada elevadaalém do chão tão altaaté que alguém pensasseque todo o feito estava

apenas em chegar ao pédessa escada suspensa no arcomo se fôssemos somenteo sonho intranquilodaquela borboleta

Page 2: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 2/17

NÃO BASTA O RIO  murmúrioadocicado das águasrumo certeiro transparênciado olho d’águadesaguar suave sua torrentenão adianta fonte puraou perpétuo devir dos rios

como se fosse fozseu único destino

não basta o rio –cruzar a vida como esquinasem banzeiro que revire a via estreitanemsorrir pra cantilena ilusória do mar –

carece macaréu em barro & areiaarrancando as árvores revendoo próprio rumo estrondo sósal revolutoo corpo inteiro em pororoca

Page 3: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 3/17

NÃO SE  APRENDE  A  AMAR  

o desamar simse desaprende

mesmoaconchegado no extravio do silêncio

sem palavrassem consolo ou sentido abraçadopela profunda presença do fracasso

quandomelhor seria um trago

ou qualquer outro versoque não seja este

Page 4: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 4/17

ENCONTRAR  NA CARCAÇA DUM PÁSSARO destroçada por dois gatos bem nutridos

(gratuidade do atocrueldade – palavra inventadahumana demais pra contaresse ato – sem pecado

sem perdão)

encontrar nesse corpo espalhado pela casaenquanto hesita entre uma pazinha

ou um papel higiênicoenquanto lembra de pegar um saco plástico

não muito grande/não aquele azulenquanto afasta os gatos que teimam em brincar

com a comida – aliásnem comida

enquanto afasta os gatos que teimam em brincar(ponto)

encontrar uma réstia de vidanão no pássaromorto/destroçado/espalhado pela casa

nem nos gatosque de bem nutridosseguem a vida sem procuras

uma réstia de vidaum soco na cara um beijo por detrás da orelhauma réstia ainda & sempre por seencontrar

Page 5: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 5/17

METAFÍSICA SOBRE UM  TEMA DE DRUMMOND 

eu vejo no feitio de uma prece –despetalando-se como um crisântemoabandonado à beira do passeio –sem encontrar nenhum pertencimento

na fúria intermitente da cidadeo breve desvelar da calmaria

contanto que no olhar da calmariano ritmo pausado dessa precena tímida brancura do crisântemoa alma encontre em parte seu passeiocuja carne contrai pertencimentotornando-se janela na cidade

& cada ponto faça-se cidadena improvisada paz da calmariaameaçada pelo fim da preceque abala a primavera do crisântemo& se arremessa ao olho do passeio –a fúria enfim se faz pertencimento

porém se a flor forçar pertencimentosem janelar-se inteira na cidadese aquela improvisada calmarianão tiver o sorriso de uma preceacaba-se a ternura do crisântemoque então se aquieta à sombra do passeio

carece a alma ter mais que um passeioroubando ao corpo o seu pertencimentoembriagado nas luzes da cidadepara que a embriaguez & a calmariase encontrem contrastando numa prececomo o passeio encontra co’o crisântemo

no fim se a prece é pétala – crisântemounido em dissonância num passeio –& o corpo é n’alma o seu pertencimentoa janela é maior do que a cidade

& o mar em fúria é plena calmariacomo a palavra proferida em prece

no breve desvelar da calmariana fúria intermitente da cidadeque vejo no feitio de uma prece

Page 6: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 6/17

 ARQUITETURA 

The imperfect is our paradise. Wallace Stevens

mas sobretudopreparar a brita

que brita não é calma & controladaconforme pedra ou carneé pesada

ainda que tratávelquando escrita

melhordo sem sentido é que ela incita

uma poéticaa partir do nada

& assim se assomaainda que calada

uma estrutura armada com bauxita

agora venha vida venha dor

nada se negueà sua arquitetura

que busca simetria em sua sina

mas não prevê que o riscode uma flor

 – coisa sem nomeque sequer perdura –

possa brotar nas frestasda ruína

Page 7: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 7/17

 SONG OF ITSELF 

polar bear track 5 diz o ipod enquanto estico o pé pra fora do ônibus & aponto para a bordado passeio público

senhoras junto ao lago espreguiçam seus braços nos modos do tai chiapalpo o bolso pelo fumo insalubre que insisto em carregar nas manhãscachorros & madamas cruzam meu caminho sem pestanejar

de fumo em riste ensaio apertar um cigarro a passos largossão truques estranhos que faço & me imagino caubói spaghetti montado em seu cavalo

apertando o palhoso numa só mão – seus olhos malignos & calmos seu fumo maligno & calmo a câmera em close ganha força

pela trilha sonora –& causo algum frisson em dois adolescentesque neste instante me tomam por herói maconheiro em praça pública

eu sou o maconheiro em praça pública mesmo fumando tabacosou cadela sadia que conduz sua dona de casa ao passeio como variante do tédio diáriosou dois ou mais adolescentes em busca de crimes menores & heroicos do asfaltosou mesmo o asfalto do passeio onde passo & que também me atravessa(fiz um pacto contigo walt whitmansou-te & deixo-te fora dos pedestaisentregue ao gosto dos pedestres)& poderia comparar toda esta cena a um quadro de maliévitch ou às cores de godardpara assim dar mais gosto erudito a esta composição canhestradelendum momentum  penso que bem poderia ser a morte que espreita o cidadão mais gordo que

sou & corro do outro lado deste parque num suor de bicas

a cocota sarada o estudante vadio o professor de latim nossas baratas metropolitanas nosbueiros as curvas suaves dos galhos do ipê sem flor

a próxima faixa deste ipod em minha mão que denuncia minha classe em modos neomarxistas(também fiz pactos contigo fernando pessoa diversosmas não pretendo cumpri-los todos & te estendo a mão como um amigo)as cores de godard ou pinturas de mailévitch ou goya previamente não citadoum neomarxista de barba aparada com tênis allstar & calças milimetricamente surradaso parque termina antes da música o poema nunca termina o passeio segue adiante

Page 8: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 8/17

BRASA ENGANOSA debaixo das cinzas

saudadequase chama corpo

ausenterosa encarnada estalando

na carne do éter

como se cadaoutrora de repentemerecesse sernovamente

exatamenteagora

Page 9: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 9/17

  AMETISTA 

1 – o poema

instalada no estresse mecânicoda rocha

purpurescente

em seu casulocompósito de quartzo

a ametista desabrochaseu veiofeito falhaque o olho logo acolhecomo se fosse ela a sua própriarocha

incrustada na drusaesdrúxulano cerne do fracasso do granitoem seu enorme geodo

joia parcaela se despetala

flor na forma do cristal

2 – o problema

ametistado sul – RSa mão que se embrenha no breu da rochaflor nunca colhe

procura nessa pedra o pãonosso de cada diado peperito inala poucoa pouco o pó

do peperito& dele faz anelação

tateia por sobre o tempo da terraescava o pão da sua cova& ali seenterra

3 – o negócio o esquema

Page 10: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 10/17

polida incrustadano anel agora (semi)preciosa

ela se faz de pão a preço

o olho que o anela transforma a pedraem gema que gera

mais-valiana boutique de pedras

4 – o metapoema

incrustada na página ela nãopassa de palavra

em que sequer se paga o pão – convém aqui ao poetinha de provínciacitar

a man(who could not earn his breadbecause he would not sell his head) –

sem preço de mercadoque aqui se consomeseu protesto é menor do que o gritoda última flor do prado

perdidasoterrada na geada

não cabe nas rodas literáriasnem pra pedra de cabral ela servenão carrega no corpo a poeira do asfalto

o concreto gelado no asfaltoretornada ao fracassoé muito líricalímpida estampada

no preto

nem torre de marfim

Page 11: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 11/17

   Agora já só desejo ser sensível às minhas dores. Mariana Alcoforado

O ESPINHO INEVITÁVEL encravado sob a pele

se ao fim não sai

acabainevitavelmentepele

& seja chaga sejador devida

inominadaé árido aprender

o seu abraço

mas mesmo assimo devorar do espinho é uma dádiva

Page 12: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 12/17

 ENVOLVIDA POR  SUA CASCA espaçando-sede sia mexerica cresce

o dente não ousa invadir seu espaço

entre pele & polpaestacado diante dessa estranha

folgada vestedesencontrada do seu corpo

ali a mão se encontrainvade feito rasgo

consome o cio da fruta& na permuta indizível

carrega uma semente

esta simousadaacaricia cada um dos dentes

Page 13: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 13/17

   p/ adriano scandolara  

NENHUM GRITO NA NOITE talvez uma taça de vinhoo brinde sozinho na mesaum bom senso o controleremoto

a bitolada

cerveja entremeada aos burburinhosdum bar dos baresnenhum grito na noiteaté um choro

um gemido sinceroda última trepada da noitenenhum gritoo uivo dos cães nessa noite sem luabaforadas sintéticasum beco alguns becos entreavenidas da noite

nenhum grito na noitesaraivadas de balas 3 homicídios5 ou 6 assaltosum moleque perdido no centro da noite

a cadência dum sambaa caçamba de lixo

nenhum grito na noite

putas michês travestis trabalhandosilêncio de sorriso sarcasmo vencido um grito?nenhum grito na noite

por entre bueirosos ratos seguem seus rastrostodos os vagões permanecemnos trilhosos porteiros discretamente

adormecem

aquários bancos cinemasas luzes acesasdiamantes cansados na bruma esta noite

nenhum gritoos metrôs funcionampaz milimética no trânsitoum policial ou outronuma viatura

Page 14: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 14/17

na noite sem barbárie a carcaça do tédioa boca aberta sem remédioum vazio crescendo feito cáriemedo nenhumgrito na noite

um desejo imperfeito um saber

cansadode que um gritoum grito apenasainda possa demoliro silêncio da noite

Page 15: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 15/17

último bolero 

Page 16: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 16/17

 AS  TROMBETAS ENSAIAM o bolero

do fim dos temposa morte ensina a um molusco

absortoas sentenças do infinitoem lastros feitosde alquimia

Page 17: Flores Poemas de Brasa Enganosa

7/23/2019 Flores Poemas de Brasa Enganosa

http://slidepdf.com/reader/full/flores-poemas-de-brasa-enganosa 17/17

se a arte, por seu objetivo  

tiver um vaso quebrado 

uma alma pequena despedaçada com pena de si própria  

o que restará depois de nós  será como o choro dos amantes num hotel vagabundoquando as paredes amanhecem 

Zbigniew Herbert, via Sylvio Fraga Neto & Danuta Haczynska da Nóbrega