flávio silva - observação no lugar de intuição

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Revista Eletrônica de Filosofia Philosophy Eletronic Journal ISSN 1809-8428 São Paulo: Centro de Estudos de Pragmatismo Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Disponível em http://www.pucsp.br/pragmatismo Vol. 11, nº. 2, julho-dezembro, 2014, p. 258-270 OBSERVAÇÃO NO LUGAR DE INTUIÇÃO: QUESTÕES REFERENTES À INTROSPECÇÃO E À SUBJETIVIDADE Flávio Augusto Queiroz e Silva Doutorando na Faculdade de Filosofia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) [email protected] Resumo: O artigo procura esclarecer as ideias de subjetividade e introspecção, à luz da filosofia do pragmaticista norte-americano Charles S. Peirce (1839 1914). Sabe-se que, nas ideias deste autor, não há espaço para a introspecção, ao menos como ela é entendida no seu sentido moderno: maneira instantânea e interna, não mediada, de obter uma cognição. No entanto, ainda é possível falar em subjetividade, self e mundo interno, considerando-se esta mesma filosofia. O texto procura demonstrar essa hipótese por meio de três conceitos: inquirição, atividade constante e vital empreendida por uma inteligência que busca sanar dúvidas até mesmo sobre o cotidiano; sinequismo, a doutrina que propõe uma continuidade onde o racionalismo moderno enxerga apenas rupturas; e a própria semiótica, cujo escopo permite entender a “essência frágil” ( glassy essence) do homem como signo. Palavras-chave: Introspecção. Subjetividade. Inquirição. Semiótica. Sinequismo. OBSERVATION INSTEAD OF INTUITION: QUESTIONS CONCERNING INTROSPECTION AND SUBJECTIVITY Abstract: This article aims to clarify the ideas of subjectivity and introspection, as seen by the philosophy of North-American pragmatist Charles S. Peirce (1839 1914). One knows that, in his ideas, there is no room for introspection, at least in its modern sense: an internal and instantaneous, non-mediated, way of obtaining cognition. However, it is still possible to talk about subjectivity, self and internal world, considering this same philosophy. This text aims to demonstrate this hypothesis through three concepts: inquiry, the vital activity ventured by any intelligence that aims to eliminate doubts even on daily life; synechism, the doctrine that proposes continuity where modern rationalism only sees ruptures; and semiotics itself, which sees man’s “glassy essence” as a sign. Keywords: Introspection. Subjectivity. Inquiry. Semiotics. Synechism. * * * Introdução Parece óbvio dizer que a faculdade da observação nos possibilita captar os detalhes do mundo ao redor e aprender com a experiência. No entanto, seria

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Flávio Silva - OBSERVAÇÃO NO LUGAR DE INTUIÇÃO

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  • Revista Eletrnica de Filosofia Philosophy Eletronic Journal ISSN 1809-8428 So Paulo: Centro de Estudos de Pragmatismo Programa de Estudos Ps-Graduados em Filosofia

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo Disponvel em http://www.pucsp.br/pragmatismo

    Vol. 11, n. 2, julho-dezembro, 2014, p. 258-270

    OBSERVAO NO LUGAR DE INTUIO: QUESTES REFERENTES INTROSPECO E SUBJETIVIDADE

    Flvio Augusto Queiroz e Silva Doutorando na Faculdade de Filosofia Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) [email protected]

    Resumo: O artigo procura esclarecer as ideias de subjetividade e introspeco, luz da filosofia do pragmaticista norte-americano Charles S. Peirce (1839 1914). Sabe-se que, nas ideias deste autor, no h espao para a introspeco, ao menos como ela entendida no seu sentido moderno: maneira instantnea e interna, no mediada, de obter uma cognio. No entanto, ainda possvel falar em subjetividade, self e mundo interno, considerando-se esta mesma filosofia. O texto procura demonstrar essa hiptese por meio de trs conceitos: inquirio, atividade constante e vital empreendida por uma inteligncia que busca sanar dvidas at mesmo sobre o cotidiano; sinequismo, a doutrina que prope uma continuidade onde o racionalismo moderno enxerga apenas rupturas; e a prpria semitica, cujo escopo permite entender a essncia frgil (glassy essence) do homem como signo.

    Palavras-chave: Introspeco. Subjetividade. Inquirio. Semitica. Sinequismo.

    OBSERVATION INSTEAD OF INTUITION: QUESTIONS CONCERNING INTROSPECTION AND SUBJECTIVITY

    Abstract: This article aims to clarify the ideas of subjectivity and introspection, as seen by the philosophy of North-American pragmatist Charles S. Peirce (1839 1914). One knows that, in his ideas, there is no room for introspection, at least in its modern sense: an internal and instantaneous, non-mediated, way of obtaining cognition. However, it is still possible to talk about subjectivity, self and internal world, considering this same philosophy. This text aims to demonstrate this hypothesis through three concepts: inquiry, the vital activity ventured by any intelligence that aims to eliminate doubts even on daily life; synechism, the doctrine that proposes continuity where modern rationalism only sees ruptures; and semiotics itself, which sees mans glassy essence as a sign.

    Keywords: Introspection. Subjectivity. Inquiry. Semiotics. Synechism.

    * * *

    Introduo

    Parece bvio dizer que a faculdade da observao nos possibilita captar os detalhes do mundo ao redor e aprender com a experincia. No entanto, seria

  • OBSERVAO NO LUGAR DE INTUIO: QUESTES REFERENTES INTROSPECO E SUBJETIVIDADE

    COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrnica de Filosofia, ISSN 1809-8428, So Paulo: CEP/PUC-SP, vol. 11, n. 2, julho-dezembro, 2014, p. 258-270

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    possvel dizer o mesmo com relao percepo do mundo interno? Como pode chegar o ser humano a refletir e aprender sobre si mesmo? Quando necessita pensar sobre seus prprios caminhos e propsitos, contaria o homem com algum mtodo especial de observao interna, uma introspeco talvez? A apreenso da subjetividade e do mundo interno se daria pela mesma observao da experincia ou poderia nascer de uma intuio, uma faculdade especial e acessvel apenas ao sujeito?

    Apresentadas ao senso comum, regularmente essas perguntas so respondidas com uma dicotomia: existe uma diferena ntida entre o exterior e o interior, e qualquer conhecimento sobre a subjetividade deve realmente vir de dentro. Outros, entretanto, responderiam que sequer necessrio perguntar-se isso, pois o conhecimento de ns mesmos instantneo e no necessita de um processo reflexivo. Porm, quantas pessoas no passaram um tempo com o olhar perdido na paisagem, submetendo sua prpria personalidade a uma espcie de anlise? Seria essa anlise uma introspeco, ou, ainda, uma intuio?

    1 Delineando respostas

    No texto Questes referentes a certas faculdades reivindicadas pelo homem (1868), que serve de referncia ao subttulo deste artigo, o cientista e filsofo Charles S. Peirce (1839 1914) analisa o significado da palavra intuio, entendida como uma cognio no determinada previamente (EP 1, p.11)1 e extrai os efeitos possveis dessa ideia para a filosofia, os quais expe em Algumas consequncias das quatro incapacidades (1868). Como resultado de ambos os estudos, Peirce apresenta, de forma conclusiva e inovadora para a poca, e, igualmente, rompendo com noes modernas que nos parecem j muito certas e cmodas, que no temos poder de introspeco [...] no temos poder de intuio [...] no temos poder de pensar sem signos, no temos conhecimento do que absolutamente incognoscvel (EP 1, p. 30).

    O conceito de introspeco se refere, aqui, percepo direta do mundo interno (EP 1, p. 22). Assim como a intuio, traduz-se em uma experincia imediata, instantnea e completamente privada, processada nos recantos absolutamente subjetivos da mente, inacessveis e indemonstrveis ao mundo exterior. Nesse caso, as duas palavras designam cognies sem relao com qualquer outra cognio anterior e, desta forma, do acesso a um conhecimento absolutamente seguro, pois partem do prprio indivduo.

    Peirce apresenta alguns argumentos para negar as faculdades da introspeco e da intuio, assim entendidas. Para ele no h provas de que temos a faculdade de distinguir uma intuio de qualquer outro modo subjetivo de conscincia, ainda que essa distino possa ser pensada. Parece que sentimos ter essa faculdade. Mas nada nos garante que ela no seja resultado de educao ou associaes prvias (HYNES, 2013, p. 3). Por esse motivo, Peirce preferir descrever todo processo cognitivo como inferencial, em vez de intuitivo. Todo advogado sabe como difcil para a testemunha diferenciar entre o que ela viu e o que ela inferiu (EP 1, p. 13). Ao tentar relatar um sonho, toda pessoa deve ter sentido uma infrutfera dificuldade ao tentar discernir interpretaes e 1 A notao EP X refere-se ao volume The Essential Peirce, em que X denota o volume. Tradues

    nossas.

  • Flvio Augusto Queiroz e Silva

    COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrnica de Filosofia, ISSN 1809-8428, So Paulo: CEP/PUC-SP, vol. 11, n. 2, julho-dezembro, 2014, p. 258-270

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    preenchimentos da mente das imagens fragmentrias do prprio sonho (EP 1, p. 14). Ainda a respeito dos sonhos, Peirce nos far ver que o reconhecimento da diferena entre sonho ou realidade no automtico e que requer, tambm, uma inferncia baseada em cognies anteriores: no raramente um sonho to vvido que a memria que temos dele confundida com a memria de uma ocorrncia real (EP 1, p. 14). A conscincia de sensaes tampouco acontece automaticamente: um homem pode distinguir diferentes texturas de um tecido pela sensao; mas no de imediato, porque ele precisa mover os dedos pelo pano, o que mostra que ele obrigado a comparar as sensaes de um instante com as de outro (EP 1, p. 15).

    No que concerne apreenso do mundo externo, isso parece perfeitamente razovel. Mas o que dizer com respeito conscincia de si mesmo? Peirce supor que ela , igualmente, resultado de inferncias, no de intuio. A percepo do self , assim, algo construdo e observado a partir de fatos externos, submetido experincia e falvel:

    Uma criana ouve dizer que o forno est quente. Mas no est, ela diz; e de fato seu corpo no o toca, e s o que toca o forno pode estar quente ou frio. Mas ela o toca, e confirma esse testemunho de forma chocante. Portanto, ela se torna consciente de sua ignorncia, e necessrio supor um self ao qual essa ignorncia seja inerente.

    Tal testemunho d o primeiro emergir da autoconscincia. [...] Em suma, o erro aparece e pode ser explicado apenas pela suposio de um self falvel. A ignorncia e o erro so tudo o que distingue nossos selves privados do ego absoluto da pura percepo (EP 1, p. 20).

    No podemos deixar de notar que, mesmo com as ideias reproduzidas nos pargrafos anteriores, ainda existe uma referncia a um self, a um mundo interno. Em nenhum momento, na filosofia de Peirce, tais modalidades da existncia so negadas, mas, ao que parece, so recolocadas sob uma posio de ntima proximidade com o mundo externo e a experincia.

    Como se v nas palavras de Susan Haack, uma especialista no pragmatismo de Peirce e na filosofia norte-americana, todo e qualquer ser humano tem de prosseguir, descobrindo como as coisas so na sua experincia sensria e introspectiva e na teorizao explanatria que ele ou ela concebe para acomod-la (HAACK, 1998, p. 126). Similarmente, Ivo Ibri dir, em outra ocasio: Semitica a cincia que considera que os homens no s conversam entre si, mas tambm reflexivamente com as aes e os fatos do mundo com os quais interagem, o que, por acaso, tambm uma atividade dotada de uma linguagem constituda pelo intercmbio de signos e significados presentes na Natureza (IBRI, 2013a, p. 190).

    Falar em uma experincia introspectiva e em um dilogo reflexivo, depois das consideraes expostas anteriormente, o que me chama ateno. Como se v, ainda existe espao para a modalidade interna e subjetiva da experincia humana, mas no no sentido cartesiano de que essa introspeco garanta a distino e a clareza necessrias para fundar o conhecimento do mundo externo. A filosofia de Peirce parece caminhar no sentido contrrio ao supor uma interdependncia entre interior e exterior. H, na filosofia peirceana, alguns caminhos pelos quais podemos responder a essa questo e entender a relao entretecida entre mundos interior e exterior. Vislumbro trs veredas possveis: o caminho da inquirio, o caminho do sinequismo e o caminho de uma antropologia semitica.

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    2 Inquirio

    O que o conceito de inquirio nos permitir compreender da relao entre sujeito e mundo, elucidando o significado de uma introspeco dentro do pragmatismo de Peirce, reside no forte acento que a experincia investigativa toma para esse autor. Se o pragmatismo a teoria de que a concepo, isto , o sentido racional de uma palavra ou outra expresso, jaz exclusivamente em seu efeito concebvel sobre a conduta da vida (CP 5.412)2, no seria estranho supor tambm que obviamente algo que no tenha resultado a partir de um experimento no pode ter nenhum efeito direto sobre a conduta (idem).

    Experimento ou experimentao so termos chaves para uma filosofia que se pretenda pragmatista, ou, em outras palavras, para uma filosofia que queira substituir o misterioso incognoscvel por algo que ns podemos, algum dia, compreender. Para um autor como Peirce, que se treinou numa carreira cientfica, o acento no experimento se deve ao fato de poder conceber a vida como laboratrio (CP 5.412), a vida e o cotidiano como os lugares privilegiados de onde sairo aprendizados, lies, dvidas e perguntas.

    Dessas noes vir a centralidade da experincia da inquirio para Peirce. No bloqueie o caminho da inquirio (CP 1.135), diria o filsofo, descrevendo a primeira regra da razo. Ele entende que na prpria vida e no em um momento de abstrao especial e particular surgiro as dvidas necessrias para fazer o homem avanar em suas observaes. Peirce descreve a dvida como um desconforto genuno, algo que, para ele, pode ser entendido at como a irritao de um nervo e a ao reflexa produzida em seguida (EP 1, p. 114). Realmente no h melhor termo que irritao para designar o desconforto produzido quando nossas expectativas sobre o funcionamento do mundo so rompidas. A irritao da dvida causa um esforo para alcanar um estado de crena. Chamarei esse esforo de inquirio (EP 1, p. 114).

    Parece-me que os estudiosos de Peirce esquecem, ou ao menos no do a devida ateno, vitalidade que o exerccio investigativo adquire na filosofia desse autor. Susan Haack uma das que tomam a reflexo sobre a inquirio para pensar as situaes da filosofia e da atividade cientfica, sem negligenciar tampouco o cotidiano vital de cada ser humano.

    Retomando o pensamento do lgico norte-americano, Haack ressaltar, em algumas ocasies, que a inquirio, mais que um processo formal de procedimentos cientficos, uma dinmica viva de descoberta e problematizao, inerente natureza humana. Todos os seres humanos sem exceo, deveramos destacar so estimulados e confrontados pelo mundo a querer descobrir como esta ou aquela coisa realmente , como esta ou aquela coisa realmente funciona:

    Na medida em que se sobressaem os interesses desta ou daquela classe de indivduos, nosso senso de humanidade comum e a apreciao das diferenas se desgastam, at corrermos o risco de esquecer que a inquirio falvel o processo rduo e catico de tatear, e s vezes agarrar algo de como o mundo uma coisa

    2 A notao CP X.Y refere-se aos Collected Papers of Charles S. Peirce, em que X denota o nmero

    do volume e Y o nmero do pargrafo. Tradues nossas.

  • Flvio Augusto Queiroz e Silva

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    humana, no uma coisa de homens brancos. Isso muito triste

    (HAACK apud ANDACHT, 1999, p.18). [grifo nosso].

    A autora entende que a vontade de compreender, essncia da inquirio, aparece em diferentes graus em cada pessoa. Alguns indivduos sabem acomodar-se frente a certas questes; outros faro de tudo para liquidar as dvidas. Eu no diria que todos os homens desejam conhecer no sentido pretendido por Aristteles; mas uma disposio para investigar, para inquirir, para desvelar as coisas, parte de nossa constituio (HAACK, 2009, p. 276). Assim, para ela, a preocupao com a ancoragem experimental e com a integrao explicativa endmica nossa espcie (WAAL, 2007, p. 231), ou seja, a inquirio uma atividade distintamente humana. isso que temos de mais cientfico, pois, para Peirce, cincia no se caracteriza tanto como conhecimento sistematizado, mas mais como o impulso de penetrar na razo das coisas (CP 1.44), algo que vivo em todo homem.

    A interpretao de Haack sugere que o mundo, lugar da experimentao, aquele que nos desafiar constantemente colocando prova as concluses de experincias passadas. Por isso, o verdadeiro processo investigativo, mesmo na vida, manifesta o que Peirce uma vez descreveu, conforme Haack: uma persistncia e uma perseverana (HAACK, 1998, p. 190) para realmente descobrir.

    Por um lado, entendemos o desenrolar da inquirio na vida de um indivduo como consequncia lgica de uma ao tpica da realidade: a de pugnar por revelar-se como . Tais como so, os fatos irrompem no mundo como quem no pede licena. o que Peirce diz na seguinte citao:

    Pode-se dizer que o fato luta por abrir caminho para sua existncia; pois ele existe pelas oposies que envolve. [...] Onde no h uma qualidade no pode existir um fato; mas o que d atualidade ao fato a oposio. O fato toma lugar. Ele tem seu aqui e agora; e neste preciso ponto ele deve irromper seu caminho. Pois se apenas podemos conhecer os fatos por sua resistncia contra ns e contra nossa vontade, s podemos conceber um fato ganhando realidade por aes que se foram contra outras realidades (CP 1.432).

    Por outro, entendemos que a inquirio desenvolve-se na vontade de compreender a mirade de fatos que vo abrindo seus caminhos na existncia. No se trata de momentos separados, mas em relao: no podemos esquecer a lio de Peirce pela qual a inquirio o esforo para sair de um estado de dvida. A irrupo de determinados fatos causa estranhamentos ao indivduo que, a partir desse momento, vai se colocar na dinmica de perguntar-se por que determinado aspecto do mundo como .

    Ainda, ao perguntar-se sobre a realidade que o rodeia, o sujeito inicia um movimento reflexivo que consistir em repensar seu prprio caminhar e seu estar no mundo. Questionar o mundo , ao mesmo tempo, entrar em dvida sobre a relao que entretemos com as coisas. Se tudo se mantivesse eternamente paralisado, livre de causar-nos incmodo, no teramos motivo para repensar nossa prpria postura. Esses argumentos, deflagrados por uma filosofia da investigao, so cabais para quem procura entender o significado de subjetividade para uma filosofia pragmatista.

    Conforme Susan Haack, por exemplo, pode-se constatar que a experincia do sujeito tem um papel destacado na justificao emprica (WAAL, 2007, p. 224), e por isso to importante considerar o processo de inquirio como cotidiano e vital,

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    pois o conhecimento aparecer como produto dele (idem). No possvel conhecer o mundo sem envolver-se profundamente na empreitada, isto , as dvidas e respostas no so obtidas por uma observao imparcial, mas atravessam plenamente o sujeito que investiga e se aglutinam s suas percepes e impresses prvias:

    descobrir desafiar nossa vida dcil e organizada quase automtica em prol de algo que ainda no sabemos bem o que . O processo de compreenso, que engloba todas as dimenses do nosso ser e nossa inerente relao com o mundo, se baseia na coragem de assumir uma incompreenso para ultrapassar as determinaes (CANESIN, 2013, p. 126).

    Em certo sentido, Canesin e Haack concordam que o processo da inquirio, na medida em que teleolgico, difcil, doloroso, frustrante (HAACK, 1998, p. 131) pois faz parte da palavra investigao no saber como as coisas vo suceder (HAACK, 1998, p. 195). Investigar exige uma postura dedicada e pronta para o desafio de derrubar antigas crenas e reformar hbitos, o que no certamente fcil; por isso requer uma atitude aberta de esprito do sujeito inquiridor. (CANESIN, 2013, p. 131).

    At o momento, apreendemos dessas ideias que o mundo, ao abrigar a existncia de determinados fatos, torna-se o lugar legtimo do desconforto e da frustrao. Tido por muitas filosofias como cenrio idlico de beleza, amor e poesia somente, o mundo exibe tambm, na filosofia de Peirce, uma manifestao spera e desagradvel, um cenrio que existe independente de nossa vontade e no respeita nossos planos e desejos. O movimento para conhecer esse mundo inquirio to desafiador e profundo que o prprio sujeito inquiridor torna-se, junto com o mundo, objeto de suas indagaes. H elementos, ainda na filosofia de Peirce, que corroboram e aprofundam essa reflexo. o que faremos a seguir explorando a doutrina do sinequismo.

    3 Sinequismo e continuidade entre mundos

    A doutrina do sinequismo postula que tudo o que existe contnuo (CP 1.172), com o que chegaramos a dizer sem incorreo que no existe uma real separao entre sujeito e mundo, apenas uma distino na pregnncia do elemento egostico presente em cada fenmeno. possvel que a haja uma influncia do idealismo de Friedrich Schelling (1775 1854), que reconheceu o poder da ideia de um princpio gentico comum ao homem e ao mundo, e proclamou uma unidade para sua filosofia, antecedente a qualquer polarizao entre sujeito e objeto. Esse princpio ser consumado em sua doutrina do Idealismo Objetivo [...] baseado na natureza comum entre realidade e idealidade (IBRI, 2013b, p. 1).

    O sinequismo nos permite entender que o dilogo reflexivo entre homens e natureza acontece numa via de mo dupla, pois, para a semitica, linguagem no algo exclusivamente humano, j que o mundo tambm se expressa por meio de signos capazes de alterar a conduta daqueles que os interpretam (IBRI, 2013a). Ao contrrio de um nominalismo, que nos levaria para o antropocentrismo, o horizonte lgico do pragmatismo, influenciado pelo sinequismo e pelo idealismo objetivo, revela que a Natureza no algo estranho ao homem, tampouco desprovida de linguagem ou inteligncia (idem).

  • Flvio Augusto Queiroz e Silva

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    Assim, os postulados do sinequismo nos ajudam a compreender que o movimento existente entre mundos interno e externo de uma franca continuidade, o que sustentaria aquela relao entre subjetividade e inferncia. Os argumentos de Peirce tm a ver com o mesmo princpio gentico comum entre homem e mundo, notado pela filosofia de Schelling. Para ele, h uma conaturalidade entre a mente e o cosmos, o que significa que o homem tem uma afinidade com a natureza, est em sintonia com ela, e possui uma adaptao natural para imaginar teorias e ideias que traduzem essa sintonia (SANTAELLA, 2004, p. 106). Tal princpio gentico comum confirmaria que mente e natureza desenvolvem-se juntas, esta ltima implantando, na primeira, sementes de ideias que iro amadurecer em comum concordncia (idem).

    Aqui se pode notar outra divergncia de Peirce com relao a Descartes, decorrente daquela primeira que observamos na primeira parte deste texto. Da teoria inferencial peirceana decorre que a intuio, para ele, no tem um carter autocentrado e autocontido na mente humana, mas um carter de continuidade com o mundo externo, um exerccio no qual reconhecemos os ecos da natureza falando em ns (SANTOS, 2005, p. 96). Paralelamente, introspeco ou o que chamaramos aqui de entendimento da prpria subjetividade no seria um exerccio de olhar interno, mas de ateno para o modo como interagimos com o mundo externo, e como ele reverbera em ns.

    Os postulados do sinequismo continuam valiosamente heursticos com resultados bastante reveladores ao colocar o ser e a existncia como uma questo de nveis e gradaes. Graas a isso, possvel entender que fatores em princpio entendidos como exclusivamente humanos a capacidade de mudana e adaptao, o trabalho intelectual, o pensamento so, na verdade, propriedades da Natureza mesma. Isso significa que fenmenos fsicos e mentais no so essencialmente distintos, a no ser na distino (daqueles nveis e gradaes) com relao capacidade de crescimento ou no, por exemplo. Por isso, diria Peirce: o pensamento no est necessariamente conectado a um crebro. Ele aparece no trabalho das abelhas, dos cristais e atravs do mundo puramente fsico; e no se pode negar que ele est de fato ali, da mesma forma que as cores, as formas dos objetos esto de fato ali (CP 4.551).

    Tal entendimento tornar possvel entender os hbitos, to importantes na fundamentao de seu pragmaticismo, como uma propriedade geral de crescimento do ser humano ou do prprio mundo, inclusive de suas propriedades fsicas. Desta forma, o significado e a importncia do pragmatismo peirceano crescem porque um mtodo que fala da inteligncia, mas da inteligncia entendida como capacidade de observao, crescimento e aprendizagem: Onde quer que haja tendncia para aprender, processos autocorretivos, mudanas de hbito, onde quer que haja ao guiada por um propsito, a haver inteligncia (SANTAELLA apud FARIAS, 1999, p. 12). Os processos da Natureza so, assim, inteligentes: Hbito no de forma alguma um fato exclusivamente mental. Empiricamente, percebemos que algumas plantas formam hbitos. O fluxo de gua que prepara o leito de um rio est formando um hbito (CP 5.492).

    Reafirma-se aqui o princpio gentico comum ao homem e Natureza, que residiria no grmen do crescimento, na atividade mental aprendizagem, o princpio mais fundamental no funcionamento do Universo. Por isso, Peirce chega a dizer que a nica teoria inteligvel do universo aquela do idealismo objetivo, de que a matria mente adormecida, hbitos inveterados tornando-se leis fsicas (CP 6.25).

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    Esta nica teoria inteligvel permitiria compreender o franco dilogo entre subjetividade e exterioridade, o cabal espanto com o mundo e a capacidade de entend-lo, decifr-lo.

    Devemos ressaltar que a proposta do sinequismo pr fim aos dualismos que tanto caracterizam uma episteme moderna no anula a experincia da dualidade, do choque contra o mundo, do espanto, da dvida, do desconforto tampouco deixa de reconhecer a independncia do mundo com relao s vontades humanas. O sinequismo de Peirce compe um quadro coerente com o todo de sua filosofia realista, sobretudo com aquele conceito que explica a atividade vital de entender o mundo ao redor: inquirio. Mas, pelos postulados sinequistas, a ideia de inquirio se amplia e compreendemos que ela sustentada pelo princpio da continuidade, isto , investigamos porque o mundo, em sua alteridade, nos incomoda, e nesse momento h a possibilidade de l-lo por meio de um intercmbio entre duas inteligncias a dele e a nossa , ambas expressas e traduzidas em signos. Dizer que a possibilidade deste dilogo se abre no caminho dos signos, no havendo diferena substancial entre os signos humanos e os signos da Natureza, nos leva para o terceiro caminho deste texto: a semitica.

    4 Conexo entre o interno e o externo em uma antropologia semitica

    A questo que podemos nos colocar agora : por que analisar a semitica ao querer entender o fenmeno da subjetividade segundo Peirce? Poderamos comear com uma pergunta mais fundamental: o que a semitica na filosofia do pragmaticista Peirce? ao que responderamos: o estudo da ao do signo (DEELY, 1990, p. 41), tambm entendida como semiose. A semitica, esta peculiar lgica da observao, cuida de estudar os modos pelos quais a mente aprende com a experincia (CP 2.227). Longe de um cientificismo e avessa a dogmatismos ou autoritarismos, a filosofia de Peirce coloca o contato com a experincia no centro e na origem de qualquer conceito e ideia. Por isso, a ao genuna do signo semiose a do prprio crescimento na direo de maior inteligibilidade e entendimento, sempre partindo da experincia.

    Esse esclarecimento importante para entender por que, afinal, Peirce nega o exerccio da introspeco, entendida como atividade no mediada de cognio. Conforme a semitica, a subjetividade ou qualquer outro objeto devem passar pelo escrutnio de uma experincia com a qual o homem possa experimentar e, apenas por meio disso, conhecer. Tal exerccio no poderia dar-se nos recantos privados da mente, mas, ao contrrio, abertamente e por intermdio de signos sinais, indcios ou sintomas sujeitos ao crivo da observao.

    A partir disso, possvel elaborar uma antropologia semitica, pela qual o ser humano seja considerado signo e estendendo essas consideraes para o entendimento da subjetividade como um exerccio de reflexo, experincia e descoberta. Nesse eixo, Peirce enfrentaria assim a bsica pergunta da antropologia:

    A explicao hipottica da natureza humana sustenta-se por si s e no apresenta contradies explicao indutiva, que o que desejamos quando perguntamos o que o homem? A que classificao real pertence o ser que pensa, sente e deseja? Sabemos que externamente considerado o homem pertence ao reino

    animal, ao ramo dos vertebrados, classe dos mamferos; mas o que procuramos seu lugar quando considerado internamente,

  • Flvio Augusto Queiroz e Silva

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    desconsiderando seus msculos, glndulas e nervos e considerando apenas seus sentimentos, esforos e concepes (CP 7.582). [grifo nosso].

    Interessante notar que Peirce busca uma resposta para o que seja o mundo interno do homem, e, semioticamente, essa resposta vai revelar aquele intercmbio contnuo entre interno e externo, que j postulamos aqui. Nesse sentido, ele logo responde: J vimos que todo estado de conscincia uma inferncia; de modo que a vida uma sequncia de inferncias ou um trem de pensamento. Em qualquer momento o homem um pensamento (CP 7.583).

    A consequncia mais notvel de postular uma comparao entre homem e pensamento, para nosso estudo, antecipar sua fundamental capacidade de crescimento e mudana aspectos fundamentais na ideia de semiose. Retomando as consequncias das quatro incapacidades enunciadas por Peirce, pode-se concluir que a mente humana um signo desenvolvendo-se sob as leis da inferncia (CP 5.313), e, assim, ao entrar em contato com outros signos o homem-signo adquire informao e chega a significar mais do que antes (idem).

    Dessa forma, crescer e mudar no so aes reivindicadas por foras internas do prprio indivduo, mas, antes, a consequncia de uma educao recproca entre mundos externo e interno:

    [...] o homem faz a palavra, e a palavra no significa mais do que ele a tenha feito significar [...]. Mas o homem s pode pensar por meio das palavras ou outros smbolos externos [...] Ento, homens e palavras educam-se reciprocamente; cada crescimento na informao de um homem envolve e envolvido pelo aumento na informao de uma palavra (CP 5.313).

    Aqui, a interdependncia entre interior e exterior, entre mundo e subjetividade, reafirmada fundamentalmente para assegurar a importncia da inquirio e do sinequismo no processo de entender que o self, ou a subjetividade mesma, algo que se revela e se manifesta em aes no mundo externo para entender um homem necessrio olhar ao seu redor. Por isso, a subjetividade precisa ser sempre revelada, analisada e descoberta, no por um misterioso poder de introspeco, mas pela observao dos signos que refletem e refratam3 o comportamento e a mente do indivduo. O prprio Peirce reconhece a dificuldade de assumir a veracidade dessas ideias em uma cultura to marcada pelo individualismo (CP 5.315). Por isso soa to revolucionria sua mensagem sobre a identificao entre mente e expresso, escrita em 1868:

    A palavra ou o signo que o homem usa o prprio homem. Pois o

    fato de que cada pensamento um signo, assim como de que a vida um trem de pensamento, prova que o homem um signo; de modo que, se cada pensamento um signo externo, o homem um signo

    externo. Ou seja, o homem e o signo externo so idnticos, no mesmo sentido de que as palavras homo e homem so idnticas.

    3 Estou usando a expresso de um estudioso russo da semitica, Bakhtin, para quem os signos

    refletem e refratam a realidade; os significados se dariam assim por uma composio social e histrica que daria voz e sentido s representaes. Ver: BAKHTIN, Mikhail. Le marxisme et la philosophie du langage: essai daplication de la mthode sociologique en linguistique. Paris: Les ditions de minuit, 1977.

  • OBSERVAO NO LUGAR DE INTUIO: QUESTES REFERENTES INTROSPECO E SUBJETIVIDADE

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    Portanto minha linguagem a soma total de mim mesmo; pois o homem o pensamento (CP 5.314).

    Com isso, conclui-se para os propsitos deste artigo que a faculdade cognitiva considerada bsica para alguns filsofos a introspeco deve ser substituda, no espectro da filosofia peirceana, pela observao dos signos, mesmo quando se trate do autoconhecimento. Se o homem signo, isto , se a personalidade e o self se manifestam signicamente na linguagem e no comportamento, logo todo conhecimento de ns mesmos tem carter inferencial, ou seja, s podemos conhecer o eu enquanto, como signo, manifestar-se para fora (BARRENA; NUBIOLA, 2007, p. 43).

    Tal antropologia semitica entra, assim, em acordo com os outros caminhos abertos pela filosofia de Peirce e consultados aqui. Inferncias no acontecem isoladamente dentro da mente; ainda que o pensamento tenha seu aspecto privado, ele no deixa de ser dialgico (idem). Assim, inferncias derivam da experincia e so, elas mesmas, experincias s quais o sujeito deve estar aberto. A recomendao da proposta metodolgica e investigativa de Peirce estar aberto experincia coaduna com o princpio sinequista de continuidade entre mundos interno e externo, e colhe seus frutos na resposta pragmatista fundamental pergunta da antropologia:

    Segue da nossa prpria existncia [...] que tudo o que est presente a ns uma manifestao fenomnica de ns mesmos. Isso no evita que seja um fenmeno de algo independente de ns, da mesma forma que um arco-ris ao mesmo tempo a manifestao do sol e da chuva. Quando pensamos, ento, ns mesmos, como somos naquele momento, aparecemos como um signo (CP 5.283).

    Concluso

    O objetivo deste artigo era compreender a experincia da introspeco e da subjetividade luz de uma filosofia que, seguindo as diretrizes de um pragmatismo, em princpio nega as faculdades da introspeco e da intuio conforme usualmente compreendidas. No entanto, como se procurou mostrar ao longo do texto, aspectos de um mundo interno, da subjetividade e do autoconhecimento no so negados, mas colocados sob o espectro do conhecimento inferencial, da observao e da experimentao.

    Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que o exame reflexivo do mundo inclui uma autoanlise ou, pelo menos, uma anlise da relao que mantemos com tudo o que est ao nosso redor. Desta forma, a busca por respostas para sanar as dvidas entretecidas no contato com os fatos brutos no uma procura impessoal; ao contrrio, o sujeito envolve-se plenamente nessa busca porque, sendo a dvida anloga a uma irritao, seria impossvel no inquirir com todas as dimenses de nosso ser. Procurar a inteligibilidade de um fato operar uma mediao que tambm envolve o sujeito que pensa: no caminho em que tornamos nossa vida mais inteligvel, tornamo-nos igualmente cada vez mais inteligveis (CANESIN, 2011, p. 112).

    S podemos aceitar o desafio de enquadrar a inquirio desta forma levando em considerao o sinequismo e uma antropologia semitica, sugeridos igualmente pela filosofia de Peirce. Do sinequismo, herdamos uma forma de pensar que

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    ultrapassa os limites do racionalismo moderno, este que insiste em interpor uma rgida separao entre alma e corpo, razo e emoo, interno e externo.

    O sinequismo postula uma afinidade entre mente e natureza que torna possvel toda a empreitada do conhecimento: formular uma hiptese , assim, um exerccio natural, e formular uma hiptese correta, ainda que nem sempre se o consiga, uma questo de conaturalidade entre os dois polos. Isto se deve, em partes, ao fato de que o mundo possui uma linguagem e uma razo que conversam com os signos da mente humana. Ainda que muitos dos fatos observados por um indivduo lhe causem dvidas e estranhamentos, essa mesma afinidade torna possvel a inteligibilidade e a mediao, uma espcie de intercmbio pelo qual no s o homem molda a natureza, como ela tambm possui hbitos que ditam o comportamento humano.

    Por fim, chegamos a concluir que o homem signo resultado da continuidade entre mente e mundo que faz da inquirio uma atividade constante e vital e, por isso, faz do ser humano uma manifestao do pensamento e uma construo inferencial. Disto se deduz que a personalidade e a subjetividade humanas so o mesmo que sua manifestao, da mesma forma que o significado de um conceito reside nos seus efeitos prticos concebveis a mxima pragmtica nos ensina que a autorreflexo no decorre de misteriosa introspeco, mas de uma observao cuidadosa do que nosso prprio comportamento manifesta.

    possvel que a filosofia peirceana esteja perto de operar outra revoluo: eliminar qualquer concepo de uma essncia oculta no homem, entendendo que, se que existe uma essncia, ela frgil como cristal (CP 6.238): nossa essncia cristalina (glassy essence) no nada essencial. Se existe um self, ele o que fazemos (incluindo o que pensamos). Portanto, o que fazemos no distinto do que somos (MENARY, 2011, p. 1)4.

    Ainda, postular a conduta sgnica do ser humano revela outras caractersticas de sua subjetividade: sua abertura e uma notvel capacidade de crescimento. O homem-signo caracteriza-se por sua capacidade de mediao e comunicao. Isto situa a personalidade humana longe de um subjetivismo, segundo o qual as outras pessoas s poderiam ter acesso aos signos que escolhemos para expressar nossos pensamentos e sentimentos, ao passo que estes permaneceriam sempre ocultos (BARRENA, 2007, p.60). Para Peirce, ao contrrio, os pensamentos no esto enjaulados na mente, nem so incognoscveis em si mesmos. Podemos acess-los com transparncia justamente porque, no momento em que pensamos, aparecemos como signos. Alm da comunicao e da abertura, o signo realiza-se no crescimento, uma vez que seu significado atualiza-se na medida em que se aderea a outros signos. Por isso o homem possibilidade inesgotvel de crescimento, sempre pode ir mais alm, sempre pode aperfeioar-se e sempre pode introduzir nova inteligibilidade no mundo (BARRENA, 2007, p. 68).

    Reconhecendo que a subjetividade um signo que dialoga com o ambiente externo que intercambia signos, que espelha e introduz informao no contexto ,

    4 Cabe uma meno traduo do termo glassy essence, para alguns traduzido como essncia

    cristalina (BARRENA; NUBIOLA, 2007). O sentido deste cristalino o da fragilidade implicada na natureza sgnica falvel e provisria do homem. No entanto, creio no ser totalmente absurdo associ-lo a uma transparncia, visto que a essncia da personalidade humana manifestar-se em signos. Talvez, ento, a essncia humana seja, a uma vez, transparente e frgil como qualquer cristal.

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    estaramos longe de postular uma introspeco. Se existe uma experincia introspectiva pela qual o homem questiona a si mesmo ou sua relao com o mundo, ela se d por um exame reflexivo dos signos que, triadicamente, conectam todas as dimenses do seu ser ao exterior circundante, j constituindo um exerccio investigativo. Aprendemos com Peirce que qualquer autoexame ainda uma experincia e que, no lugar da intuio, devemos recorrer nossa nica verdadeira mestra: a observao.

    * * *

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