fio da histÓria os últimos dias da varíola · á 25 anos, mais precisa-mente em 8 de maio de ......

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REVISTA DE MANGUINHOS | OUTUBRO DE 2005 44 á 25 anos, mais precisa- mente em 8 de maio de 1980, a Organização Mun- dial de Saúde declarava erradicada uma das piores, mais cruéis e catastróficas moléstias já existentes. Tratava-se da varíola, do- ença infecto-contagiosa exclusiva do homem, causada por um vírus chama- do Orthopoxvirus variolae. Para que se tenha uma idéia de sua magnitude, só durante os 80 anos em que esteve ativa, no século passado, a varíola matou mais de 300 milhões de indiví- duos. Esse número é bem superior ao de outras moléstias, como a tubercu- lose, a hanseníase, a gripe espanho- la, a peste e até mesmo a Aids. Nem mesmo a soma do número de mortos de todas as guerras (inclusive as mun- diais), superaria o de vítimas da varío- la. Trata-se, portanto, certamente da doença infecciosa que mais causou mortes na história da Humanidade (e Em 1965, a OMS se reorganizou e lan- çou nova campanha em 1967. Havia dois tipos de varíola: a varí- ola major, tipo mais radical da doença com 30% de letalidade; e a varíola minor, também conhecida como alas- trim, tipo mais brando, com menos de 1% de letalidade. No Brasil, desde a década de 30 a varíola major não atin- gia mais a população. Para o epidemi- ologista Eduardo Costa, o desapareci- mento da major se devia à prática de imunização (ainda à maneira jenneri- ana) constante, a contenção e vacina- ção imediatas em locais de surto de casos graves e à menor importância que se dava ao alastrim. Apesar do desaparecimento da varíola major, a imunização no Brasil era bem deficiente até a campanha de erradicação da OMS. Segundo Costa, isso ocorria porque a vacina só manti- nha-se ativa em temperaturas baixas, fato que obrigava o uso de geladeiras, H FIO DA HISTÓRIA muito provavelmente mais que qual- quer outra causa, como guerras, aci- dentes etc). A varíola foi extinta graças a uma série de programas, medidas e ações combinadas empreendidas, após 1967, pela OMS em diversos países e regi- ões do planeta. No Brasil, coube à Fio- cruz o papel fundamental no enfrenta- mento da doença. Ao receber uma série de materiais novos, epidemiolo- gistas (como Eduardo Costa), virologis- tas (como Hermann Schatzmayr, am- bos ainda hoje na Fundação) e outros estudiosos foram capazes não só de eliminar a varíola do território nacio- nal, como a ajudar outros países, so- bretudo na África e na Ásia, a tam- bém se livrar de um dos maiores pesa- delos da história. Na verdade, a primeira campanha de erradicação da varíola pela OMS começou em 1959. A empreitada não foi bem-sucedida por falta de vacinas. Os últimos dias da varíola No laboratório produtor da vacina antivariólica, na década de 50, os técnicos colhiam material de bovinos para preparar o imunizante

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | O U T U B R O D E 2 0 0 544

á 25 anos, mais precisa-mente em 8 de maio de1980, a Organização Mun-dial de Saúde declaravaerradicada uma das piores,

mais cruéis e catastróficas moléstiasjá existentes. Tratava-se da varíola, do-ença infecto-contagiosa exclusiva dohomem, causada por um vírus chama-do Orthopoxvirus variolae. Para que setenha uma idéia de sua magnitude,só durante os 80 anos em que esteveativa, no século passado, a varíolamatou mais de 300 milhões de indiví-duos. Esse número é bem superior aode outras moléstias, como a tubercu-lose, a hanseníase, a gripe espanho-la, a peste e até mesmo a Aids. Nemmesmo a soma do número de mortosde todas as guerras (inclusive as mun-diais), superaria o de vítimas da varío-la. Trata-se, portanto, certamente dadoença infecciosa que mais causoumortes na história da Humanidade (e

Em 1965, a OMS se reorganizou e lan-çou nova campanha em 1967.

Havia dois tipos de varíola: a varí-ola major, tipo mais radical da doençacom 30% de letalidade; e a varíolaminor, também conhecida como alas-trim, tipo mais brando, com menos de1% de letalidade. No Brasil, desde adécada de 30 a varíola major não atin-gia mais a população. Para o epidemi-ologista Eduardo Costa, o desapareci-mento da major se devia à prática deimunização (ainda à maneira jenneri-ana) constante, a contenção e vacina-ção imediatas em locais de surto decasos graves e à menor importânciaque se dava ao alastrim.

Apesar do desaparecimento davaríola major, a imunização no Brasilera bem deficiente até a campanha deerradicação da OMS. Segundo Costa,isso ocorria porque a vacina só manti-nha-se ativa em temperaturas baixas,fato que obrigava o uso de geladeiras,

H

FIO DA HISTÓRIA

muito provavelmente mais que qual-quer outra causa, como guerras, aci-dentes etc).

A varíola foi extinta graças a umasérie de programas, medidas e açõescombinadas empreendidas, após 1967,pela OMS em diversos países e regi-ões do planeta. No Brasil, coube à Fio-cruz o papel fundamental no enfrenta-mento da doença. Ao receber umasérie de materiais novos, epidemiolo-gistas (como Eduardo Costa), virologis-tas (como Hermann Schatzmayr, am-bos ainda hoje na Fundação) e outrosestudiosos foram capazes não só deeliminar a varíola do território nacio-nal, como a ajudar outros países, so-bretudo na África e na Ásia, a tam-bém se livrar de um dos maiores pesa-delos da história.

Na verdade, a primeira campanhade erradicação da varíola pela OMScomeçou em 1959. A empreitada nãofoi bem-sucedida por falta de vacinas.

Os últimos dias da varíola

No laboratório produtor da vacina antivariólica, na década de 50, os técnicos colhiam material de bovinos para preparar o imunizante

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“Os últimos 19 casos aconteceramaqui no Rio de Janeiro, na Vila Cru-zeiro, bairro da Penha, em abril de1971”, recorda-se Schatzmayr. Seu la-boratório de diagnóstico continuou afuncionar até 1977 e analisou aindaalgumas amostras suspeitas entre osanos de 1974 e 1975, mas a doençajá não mais existia. Também, segun-do Costa, o episódio da varíola serviupara inspirar outras campanhas de imu-nização, como a que eliminou a poli-omielite do Brasil.

Vários pesquisadores da Fiocruzforam então convocados para ajudar aOMS em outras frentes pelo mundo,na Índia, Somália e Etiópia. A produ-ção de vacinas contra a varíola supe-rou as 250 milhões de doses e a Fio-cruz passou a exportá-la para outrospaíses. “E em geral, nossos imunizan-tes eram considerados superiores aosestrangeiros”, afirma Schatzmayr.

Em 26 de outubro de 1977 regis-trou-se na Somália o último caso devaríola transmitida naturalmente. Issoporque em 11 de agosto de 1978 maisum caso seria registrado, curiosamen-te em Londres – na Europa a varíola jáse encontrava erradicada há décadas.Uma fotógrafa que trabalhava no mes-mo corredor onde se manipulava o ví-rus da varíola veio a contrair a doençaatravés de tubos de ventilação e mor-reu. Este fato levou a OMS a solicitar atodos os laboratórios do mundo que des-truíssem as amostras de varíola queainda tinham. Em 1983, nenhum la-boratório do mundo tinha vírus de varí-ola, com exceção de um em Atlanta,nos EUA, e outro em Koltsovo, naRússia. Em maio de 1980, após nume-rosas certificações, a OMS declarava avaríola oficialmente extinta.

Atualmente a Fiocruz, por solicita-ção do Ministério da Saúde, estuda acriação de um Centro de Referênciade Poxvirus, família à qual pertence ovírus da varíola, no Laboratório deUltra-estrutura Viral do Departamentode Virologia do IOC. “A intenção é di-agnosticar casos suspeitos de infecçãopelo grupo e manter programas depesquisa sobre o grupo, lembrando queo vírus vacinal (vaccinia, causador davaríola bovina), parente do da varíola,está circulando no Sudeste do país,causando infecções animais e huma-nas”, afirma Schatzmayr.

o que era difícil nos anos 50 e 60. “Ima-gine ter que transportar a vacina paraos cantões deste país, nas regiões Nor-te, Nordeste e Centro-Oeste”, lembraCosta. Além disso, a aplicação da va-cina ainda era um pouco complicada:“com uma agulha, contendo a vacinana ponta, arranhávamos levemente oombro do indivíduo a ser imunizado.Esse processo denominava-se multi-pressão”, completa.

A revolução contra a varíola co-meçou graças a duas invenções. Pri-meiramente, a descoberta, por partede cientistas da antiga União Soviéti-ca, de um processo de liofilização davacina, ou seja, da secagem e drena-gem do imunizante, o que possibilita-va o seu transporte sem a necessida-de dos refrigeradores. “Bastava diluira vacina liofilizada, e aplicá-la nahora”, recorda Costa. A segunda in-venção foi o advento da agulha bifur-cada, em forma de um pequeno gar-fo (com duas pontas, em vez de uma,como as agulhas anteriores). “Por pres-são hidrostática, uma pequenina gotaficava na agulha, facilitando sua apli-cação”, diz Costa.

Em 1967, seguindo a determina-ção da OMS, a Fiocruz começou a pre-parar-se para a erradicação da varíola.Em um primeiro momento, organizou-se em três frentes de trabalho: a pri-meira, responsável pelo diagnóstico emlaboratório dos casos suspeitos; a se-gunda, formada por epidemiologistas,que investigavam surtos, ocorrências ea distribuição da doença; a terceira,encarregada da fabricação da vacina.“O grupo que formamos foi treinadopela Opas em 1968, em São Paulo, edurou até a erradicação no Brasil, emmeados de 1977”, lembra o virologis-ta Schatzmayr.

Ao final dos anos 60, o grupo seriaajudado ainda mais por novos materi-ais enviados pela OMS. Dentre estes,o mais importante aliado foram as pis-tolas de pressão. “As pistolas foramrevolucionárias, podíamos realizar va-cinações em massa. O que levávamosdias para realizar com as agulhas, ago-ra, com as pistolas, resolvíamos emhoras”, completa Schatzmayr, cujo la-boratório tornou-se referência.

A campanha foi tão bem-sucedi-da no Brasil que no início dos anos 70a varíola já estava erradicada no país.

O que era a varíolaA varíola era uma doença in-

fecciosa grave e exclusiva do ho-mem. A transmissão ocorria depessoa para pessoa por meio dasvias respiratórias. Uma vez den-tro do organismo, o vírus da varí-ola permanecia incubado de setea 17 dias. A seguir, ele se esta-belecia na garganta e nas fossasnasais e causava febre alta, mal-estar, dor de cabeça, dor nas cos-tas e abatimento. Este estado per-manecia de dois a cinco dias.

Finalmente, a enfermidadeassumia sua forma mais violen-ta: a febre baixava e começavama aparecer erupções avermelha-das, que se manifestavam nagarganta, boca, rosto e depois seespalhavam pelo corpo. Isso ocor-re, porque o O. variolae parasitaas células do tecido epitelial parase reproduzir. Com o tempo, aserupções evoluíam e se transfor-mavam em pústulas (pequenasbolhas cheias de pus), que pro-vocavam coceira intensa e dor –era nesse estágio que o risco decegueira era maior, pois, ao to-car o olho, o enfermo podia cau-sar uma inflamação grave.

Não existia tratamento efeti-vo contra a varíola. O máximoque se podia fazer era tentaramenizar ao máximo a coceira ea dor causadas pela doença eesperar que o organismo reagis-se e vencesse o vírus. A sobrevi-vência do doente dependia daforma de varíola que ele adqui-ria: a major (com 30% de letali-dade) ou a minor (com menos de1% de letalidade), mais comum(também existiam manifestaçõesmais raras da doença, como a he-morrágica e a maligna). Com otempo, as pústulas secavam etransformavam-se em crostas,que se desprendiam ao final detrês ou quatro semanas. Caso oenfermo tivesse adquirido a for-ma major, essas crostas costuma-vam deixar cicatrizes permanen-tes na pele.