finck regina 50

6
PRODÍGIOS MUSICAIS: A QUESTÃO DO TALENTO NOS PROCESSOS DE REPRODUÇÃO MUSICAL DE DEFICIENTES VISUAIS FINCK 1 , Regina Resumo: Este estudo faz parte da revisão bibliográfica realizada para a proposta de tese em que se procura investigar como se dá o processo de aprendizagem musical de alunos com necessidades educacionais especiais. Neste texto, especificamente, aborda- se os processos de aprendizagem musical de dois jovens cegos chamados pelo senso comum de ‘gênios musicais’. Para tanto, descreve-se de modo sintético os processos de iniciação musical a que foram submetidos. O desempenho musical desses dois jovens motivou a autora a refletir sobre aspectos da deficiência visual, concepções de talento musical e as suas implicações na educação musical. Palavras Chave: Educação musical, deficiente visual, talento Descrição dos processos de aprendizagem musical de alunos cegos: Jovem 1 - Nascido prematuro e pesando 1.5Kg, apresentou seqüelas graves - cegueira e deficiência cerebral - em virtude do período passado na incubadora. Iniciou sua aprendizagem musical com um professor aos cinco anos de idade. Na reportagem não foram abordados outros elementos da aprendizagem musical, mas subtende-se que os processos a que foi submetido se restringem à reprodução instrumental no piano. Este rapaz, atualmente com vinte e quatro anos de idade reproduz qualquer estrutura e/ou peça musical. Ao mesmo tempo em que é musicalmente extremamente desenvolvido, apresenta consciência mental de uma criança de três anos de idade, com dificuldades em compreender questões básicas relacionadas ao número de dedos das mãos, por exemplo. Contudo, na linguagem musical apresenta alto nível de memória auditiva o que lhe permite reproduzir qualquer melodia. Jovem 2 - Aos quatro meses foi detectada a cegueira e deficiência mental que foram ocasionadas por um tumor cerebral. O tumor foi extirpado, mas em virtude das seqüelas, não aprendeu a falar nem a andar. Além disso, apresentava quadro de autismo com hipersensibilidade nas mãos. Aos dois anos de idade ganhou um teclado e, a partir daí, 1 Professora do Departamento de Música do Centro de Artes da Universidade de Santa Catarina - UDESC e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação-FACED/UFRGS.

Upload: chandra-mendes

Post on 14-Sep-2015

5 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Este estudo faz parte da revisão bibliográfica realizada para a proposta de tese em que se procura investigar como se dá o processo de aprendizagem musical de alunos com necessidades educacionais especiais. Neste texto, especificamente, aborda- se os processos de aprendizagem musical de dois jovens cegos chamados pelo senso comum de ‘gênios musicais’. Para tanto, descreve-se de modo sintético os processos de iniciação musical a que foram submetidos. O desempenho musical desses dois jovens motivou a autora a refletir sobre aspectos da deficiência visual, concepções de talento musical e as suas implicações na educação musical.

TRANSCRIPT

  • PRODGIOS MUSICAIS: A QUESTO DO TALENTO NOS PROCESSOS DE REPRODUO MUSICAL DE DEFICIENTES VISUAIS

    FINCK1, Regina

    Resumo: Este estudo faz parte da reviso bibliogrfica realizada para a proposta de tese em que se procura investigar como se d o processo de aprendizagem musical de alunos com necessidades educacionais especiais. Neste texto, especificamente, aborda-se os processos de aprendizagem musical de dois jovens cegos chamados pelo senso comum de gnios musicais. Para tanto, descreve-se de modo sinttico os processos de iniciao musical a que foram submetidos. O desempenho musical desses dois jovens motivou a autora a refletir sobre aspectos da deficincia visual, concepes de talento musical e as suas implicaes na educao musical.

    Palavras Chave: Educao musical, deficiente visual, talento

    Descrio dos processos de aprendizagem musical de alunos cegos: Jovem 1 - Nascido prematuro e pesando 1.5Kg, apresentou seqelas graves - cegueira e deficincia cerebral - em virtude do perodo passado na incubadora. Iniciou sua aprendizagem musical com um professor aos cinco anos de idade. Na reportagem no foram abordados outros elementos da aprendizagem musical, mas subtende-se que os processos a que foi submetido se restringem reproduo instrumental no piano. Este rapaz, atualmente com vinte e quatro anos de idade reproduz qualquer estrutura e/ou pea musical. Ao mesmo tempo em que musicalmente extremamente desenvolvido, apresenta conscincia mental de uma criana de trs anos de idade, com dificuldades em compreender questes bsicas relacionadas ao nmero de dedos das mos, por exemplo. Contudo, na linguagem musical apresenta alto nvel de memria auditiva o que lhe permite reproduzir qualquer melodia.

    Jovem 2 - Aos quatro meses foi detectada a cegueira e deficincia mental que foram ocasionadas por um tumor cerebral. O tumor foi extirpado, mas em virtude das seqelas, no aprendeu a falar nem a andar. Alm disso, apresentava quadro de autismo com hipersensibilidade nas mos. Aos dois anos de idade ganhou um teclado e, a partir da,

    1 Professora do Departamento de Msica do Centro de Artes da Universidade de Santa Catarina - UDESC e Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Educao-FACED/UFRGS.

  • mantinha, de forma intensa, uma relao com a msica. A iniciao musical se deu a partir dos cinco anos com a presena de um professor de msica. Destaca-se aqui a interao do garoto com os demais alunos de uma escola especial. Na data em que foi exibida a reportagem estava com doze anos, apresentando um desenvolvimento normal da fala e da locomoo. Contudo, percebeu-se a dificuldade na compreenso de conceitos bsicos, como a forma de objetos, por exemplo. Alm disso, no desenvolveu noes sobre espao. O garoto perde a noo de onde se encontra dentro da prpria residncia. Porm, musicalmente, seu desenvolvimento surpreende, pois consegue reproduzir com extrema habilidade qualquer melodia ao piano. Percebe-se que tanto para o Jovem 1 quanto para o Jovem 2 a comunicao com o mundo exterior se deu a partir dos dois anos de idade, atravs do teclado. J a aprendizagem musical deu-se com auxlio de um professor, aos cinco anos de idade. Para estes jovens a linguagem a msica. Os pais relataram que a msica ajudou os garotos em seu desenvolvimento fsico bem como no desenvolvimento da motricidade. Para eles andar, correr e brincar s ocorreu por estmulo musical. Para os pais, sem a msica, no haveria comunicao. A msica os conectou ao mundo e deu-lhes a noo de indivduo.

    Talento j nasce pronto? Figueiredo e Schmidt (2005) apontam, entre vrias concepes sobre o

    aparecimento do talento musical, aquela encontrada no senso comum, relacionada viso inatista. Para os autores esta concepo acarretaria implicaes no contexto da educao musical, j que a msica tem ficado a margem do processo educacional, uma vez que compreendida como inacessvel para a maioria dos indivduos (FIGUEIREDO & SCHMIDT, 2005, p. 386). Na concepo inatista o dom musical ou talento musical seria uma condio prvia para qualquer aprendizado musical (p.390). Os autores tambm destacam o legado ocidental do iderio romntico detectado na fala de muitos artistas e professores de artes, em geral, uma vez que esta arte no estaria disponvel para todos. Assim, as expresses: gnio, prodgio, especial, so atribudas aos raros seres dotados desta sorte (p. 387).

    A concepo inatista de talento musical tambm pode ser encontrada em Winner (1982). Para o autor, a atitude musical seria uma capacidade neurolgica separada e inata que requer comparativamente pouca estimulao externa para emergir:

  • a aptido musical poderia ser comparada a aptido fsica para caminhar, ou a aptido para dominar a sintaxe da linguagem [...] a diferena que a capacidade para caminhar ou falar so qualidades dos seres humanos comuns: somente os seres humanos excepcionais possuem a capacidade para fazer msica (WINNER, 1982 apud HARGREAVES, 1998, p.178).

    Diferentemente da concepo inatista, em que o papel da gentica valorizado, as perspectivas trazidas pela psicologia contempornea enfocam uma nova maneira de se lidar com a aprendizagem musical, ou seja, do ponto de vista psicolgico e pedaggico, a conduta do cego e do surdo pode ser completamente equiparada a de uma pessoa normal. Em se tratando de educao de alunos com necessidades educacionais especiais (NEE) Vygotsky (1997), em seu texto sobre defectologia, j apontava que a tradio popular da compensao gerada pela perda de rgos perceptivos tinha que ser revista. Para ele, a compensao biolgica das deficincias corporais do cego e do surdo, no poderia ser considerada, uma vez que apontava para a nfase no dficit sensorial e no no dficit cognitivo. Contudo, diferentemente do que prope Vygotsky, na situao dos dois jovens apresentada anteriormente, constata-se a presena do dficit sensorial e, tambm, do dficit cognitivo, uma vez que os garotos possuem um quadro de deficincia visual e cerebral. O que ento poderia explicar esta habilidade desenvolvida por alguns indivduos que encontram na msica uma forma de se conectar com o mundo? Uma habilidade tamanha que os impulsiona significativamente para alm dos alunos comuns no tocante reproduo musical?

    Vygotsky poderia, ento, mais uma vez, ajudar na compreenso do papel que a interao social tem para a criana com deficincia cerebral. Em 1924, o autor j comprovava que o mito do instinto social reduzido tinha implicaes no desenvolvimento cognitivo da criana. Em outras palavras, as condies de vida e de educao inexistentes ou muito ruins, reforavam as conseqncias sociais: a vida infinitamente completa e diferenciada, e nela a criana sempre pode encontrar um lugar ativo e nunca neutro (VYGOTSKY, 1997, p. 92). Negando a neutralidade Vygotsky ressalta que as bases psicolgicas reais podem ser constitudas socialmente atravs da mediao educacional. Para ele, qualquer arte possuiria um aspecto tcnico, de produo de conhecimento. Este conhecimento pode ser aprendido e transmitido para outras pessoas. Nesta perspectiva, estaria levando em considerao o papel ativo exercido pelo meio ambiente.

  • Da mesma forma, Gadner (1997) relativiza a questo do talento inato, argumentando que o talento musical est presente em qualquer ser humano. Em sua teoria das inteligncias mltiplas demonstra que a msica apenas uma das formas de inteligncia e que talentos podem ser desenvolvidos.

    Schuter-Dyson e Gabriel (1981), (apud HARGREAVES, 1998) destacam vrios exemplos de idiots savants2 que so deficientes mentais na maioria dos aspectos. No obstante, estes deficientes mentais podem demonstrar um talento musical e/ou talento para a matemtica superior aos demais. Observa-se que estes relatos evidenciam o aspecto positivo do deficiente cerebral autista. Este carter pode ser observado atravs da utilizao das expresses como: o brilho artstico e memria deslumbrante e, raramente, destaca-se o aspecto negativo que acompanha esta deficincia.

    Da mesma forma, no exemplo mencionado anteriormente, observa-se que apesar da deficincia cerebral dos dois jovens, o desenvolvimento musical destacado como algo genial. Neste caso, no se observou uma habilidade cognitiva relativa a outros aspectos do desenvolvimento integral dos garotos. Alm do mais, apenas a capacidade de reproduo musical foi desenvolvida, sendo que as outras habilidades cognitivas relativas aprendizagem no foram mencionadas como, por exemplo, a composio e/ou improvisao e a execuo musical. Sob o ponto de vista musical, estas habilidades musicais conjuntas, poderiam, ento, caracterizar a figura do gnio. A partir desta constatao, busca-se refletir, ento, sobre as questes do talento musical, expostas no caso dos dois jovens. Em ambos, expresses como: possuem o dom musical ou, ainda tem um talento musical excepcional foram utilizadas para se referir as suas habilidades de reproduo musical. Contudo, este talento seria demonstrado apenas pela habilidade de reproduo musical?

    Penna (1995) afirma que a capacidade de aprender as linguagens artsticas depende da posse de esquemas de percepo, pensamento e apreciao que so gerados pela familiarizao com o objeto.

    a capacidade de compreender a arte no se deve a um dom inato ou a algo assim: deve-se sim, a certas formas de perceber, de pensar e mesmo de sentir que dependem da vivncia, da experincia de contato com as obras de arte. (PENNA, 1995, p. 19)

    2 Idiots savants - termo descrito pela primeira vez por Beijamin Rush em 1789.

  • Winnicot (1993), atravs de sua teoria enfatiza que tanto o mundo interno do indivduo como o ambiente que o circunda devero ser levados em considerao no entendimento dos fatores que envolvem a sua relao com a aprendizagem. As teorias de Melanie Klein e Anna Freud, valorizando tanto a nfase conferida ao mundo interno pela primeira, como a importncia do ambiente, destacada pela segunda, reforam, em conjunto, o papel do aspecto inato e do ambiente. Assim, fazendo uma transposio da teoria de Winnicot para a obteno deste conhecimento musical excepcional, que permitiria aos garotos a reproduo de qualquer melodia escutada uma nica vez, enfatiza-se igualmente a importncia do ambiente e do mundo interno do indivduo.

    Barcel (2003), diferentemente, descreve o processo de aprendizagem musical, pautado em uma epistemologia gentica. Para ele, o aparecimento de filhos e filhas que se tornaro gnios musicais no se deve questo hereditria, nem tampouco ao meio. O desenvolvimento musical estaria submisso aos processos de dependncia sensitiva e das condies iniciais dos sistemas complexos no aleatrios, descritos pela cincia. Barcel afirma, ainda, que se no fosse assim, o comportamento musical somente seria possvel a eleitos como os grandes mestres da msica.

    No caso dos dois jovens, destaca-se a integrao no ambiente escolar do indivduo com NEE. Os dois deixam de cursar uma escola especial e passam a conviver com outras crianas. E, neste contexto, a msica teve um importante papel, j que a ela foi atribuda a funo de conectar o indivduo ao mundo ajudando-o a compreender o que ele (texto citado na reportagem). De certo modo, isto s foi possvel porque os garotos j tinham desenvolvido esquemas de percepo. Assim, a compreenso e a significao da msica, como forma de expresso, levaram em conta esta vivncia, esta familiarizao demonstrada exaustivamente, atravs da explorao sonora at que os esquemas musicais de reproduo fossem desenvolvidos.

    De acordo com Vygotsky os fatores psicolgicos e sociais devem ser considerados no desenvolvimento da educao dos alunos deficientes. Em uma proposta inclusiva a educao musical contempornea no se pode ignorar os fatores psicolgicos e sociais na sua estruturao didtico-pedaggica, nem tampouco, ressaltar uma prtica que reproduza conceitos ultrapassados no atendimento de alunos com NEE. Conceitos estes que carecem de fundamentao e reflexo.

    Finalizando, a experincia musical vivenciada a partir dos primeiros anos fundamental para o desenvolvimento musical de qualquer indivduo, independentemente

  • dele possuir algum grau de deficincia sensorial ou no. Assim, sob o ponto de vista dos processos cognitivos utilizados para a obteno de certos desempenhos musicais, leva-nos a concluir que estes processos que favorecem unicamente a reproduo sonora, no podem ser caracterizados como resultado de um talento ou dom musical. Cabe ao educador musical estar atento para a possibilidade de desenvolvimento dos alunos com NEE, abrindo espaos nas suas aulas para uma interao com os demais colegas. Certamente, esta vivncia no tornar ningum superdotado ou gnio musical, mas abrir um caminho de interao que poder ser o nico que esta criana percorrer em toda a sua vida escolar.

    Referncias Bibliogrficas

    BARCEL, B. J. La gnesi de la inteligncia musical en Iinfant. Barcelona: DINSIC, 2003.

    FIGUEIREDO, S.L.F.de, & SCHMIDT, L. M. Discutindo o talento musical. In: Dottori, M. Ilari, B. e Coelho de Souza, R. (eds) Anais do Simpsio de Cognio e Artes Musicais. Curitiba: Dearts- UFPR, 2005, pp. 385-392.

    GARDNER, H. As Artes e o Desenvolvimento Humano. Artmed: Porto Alegre, 1997.

    HARGREAVES, D. Msica y Desarrollo Psicolgico. Barcelona: Editora Gra, 1998.

    PENNA, M. O papel da arte na educao bsica. In: Peregrino, Y.R. (coord). Da Camiseta ao Museu. Joo Pessoa: UFPB, 1995.

    REDE RECORD, Programa Domingo Espetacular, Quadro Six Minutes, Agosto, 2004.

    WINNICOTT, Donald W. Textos Selecionados: da Pediatria Psicanlise. Rio de Janeiro, F. Alves, 1993.

    VYGOTSKY, L.S. Obras Escogidas V. Fundamentos de defectologia. Madrid: Visor, 1997.