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637 CAPÍTULO 44 FIMOSE TÁSSIA LOBOUNTCHENKO EDSON SALVADOR Introdução A fimose é definida como a incapacidade de se retrair o prepúcio e expor a glande. Está presen- te em uma fase inicial do desenvolvimento normal da genitália, a fimose fisiológica. Após a 9ª semana de gestação se inicia a diferenciação genital e durante este processo a glan- de permanece recoberta e aderida ao prepúcio. Esta fusão entre a camada interna do prepúcio e a glande permanece mesmo após o nascimento, impedindo a retração do prepúcio. Gradativamente, ocorre uma descamação epitelial e o acúmulo de esmegma entre o prepúcio e a glande, promovendo a separação das duas estruturas. Em alguns casos, este material é visuali- zado através do fino prepúcio ou se exterioriza e pode erroneamente ser interpretado como pus e infecção peniana (Oster, 1968). A fimose fisiológica pode permanecer por alguns anos sem representar qualquer risco para a criança. A maioria dos casos se resolve até os 3-5 anos, e aderências parciais podem estar presentes por mais tempo. Cerca de 50% dos meninos apresentam retração do prepúcio além do sulco glandar com 1 ano de idade. Este número sobe para 89% aos 3 anos. Desta forma, aos 6-7 anos, apenas 8% ainda apresentarão fimose fisiológica e este número cai gradativamente até os 14-15 anos, quando chega a 1% (Gairdner, 1949). A fimose fisiológica precisa ser distinguida da fimose patológica ou verdadeira, quando o pre- púcio é espessado e fibrótico, por inflamação ou trauma, ou quando não se resolve após a puberda- de. A tração forçada do prepúcio deve ser evitada nos casos de fimose fisiológica, pois o trauma pode causar fimose secundária. Nestes casos, a chance de resolução espontânea é mínima e a intervenção médica deve ser considerada.

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Page 1: FIMOSE - Urologia UERJ · FIMOSE 638 Diagnóstico O diagnóstico é feito pelo exame físico ao se observar a incapacidade de se retrair o prepúcio e expor a glande. A retração

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CAPÍTULO 44

FIMOSE

TÁSSIA LOBOUNTCHENKOEDSON SALVADOR

Introdução

A � mose é de� nida como a incapacidade de se retrair o prepúcio e expor a glande. Está presen-te em uma fase inicial do desenvolvimento normal da genitália, a � mose � siológica.

Após a 9ª semana de gestação se inicia a diferenciação genital e durante este processo a glan-de permanece recoberta e aderida ao prepúcio. Esta fusão entre a camada interna do prepúcio e a glande permanece mesmo após o nascimento, impedindo a retração do prepúcio.

Gradativamente, ocorre uma descamação epitelial e o acúmulo de esmegma entre o prepúcio e a glande, promovendo a separação das duas estruturas. Em alguns casos, este material é visuali-zado através do � no prepúcio ou se exterioriza e pode erroneamente ser interpretado como pus e infecção peniana (Oster, 1968).

A � mose � siológica pode permanecer por alguns anos sem representar qualquer risco para a criança. A maioria dos casos se resolve até os 3-5 anos, e aderências parciais podem estar presentes por mais tempo. Cerca de 50% dos meninos apresentam retração do prepúcio além do sulco glandar com 1 ano de idade. Este número sobe para 89% aos 3 anos. Desta forma, aos 6-7 anos, apenas 8% ainda apresentarão � mose � siológica e este número cai gradativamente até os 14-15 anos, quando chega a 1% (Gairdner, 1949).

A � mose � siológica precisa ser distinguida da � mose patológica ou verdadeira, quando o pre-púcio é espessado e � brótico, por in� amação ou trauma, ou quando não se resolve após a puberda-de. A tração forçada do prepúcio deve ser evitada nos casos de � mose � siológica, pois o trauma pode causar � mose secundária. Nestes casos, a chance de resolução espontânea é mínima e a intervenção médica deve ser considerada.

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Diagnóstico

O diagnóstico é feito pelo exame físico ao se observar a incapacidade de se retrair o prepúcio e expor a glande. A retração do prepúcio pode ser parcial e se observa um anel constritivo que impede a exposição glandar. A aderência entre a porção interna do prepúcio e a glande pode estar associada.

Figura 1 – Fimose

Classi� cação

A classi� cação de prepúcios proposta por Kayaba avalia o grau de retração prepucial sobre a glande e tem sido utilizada para descrever o aspecto da � mose. Tem gradação de I a V, sendo o grau I o prepúcio que impede totalmente a exposição da glande e o grau V a exposição completa, ou seja, a ausência de � mose (Kayaba, 1996).

Tratamento conservador

Não há consenso sobre o momento ideal ou a necessidade de se tratar a � mose � siológica.

Acreditamos que após os 3-4 anos, o tratamento tópico deva ser instituído nos casos de � mose � siológica assintomática. Nesta idade cerca de 10% dos meninos ainda apresenta algum grau de � mose � siológica. Nos casos que apresentam balanopostite, indicamos o tratamento, independente da idade.

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Utilizamos o creme de furoato de mometasona, aplicado duas vezes ao dia, por um período de 6-8 semanas. Em alguns casos observamos hiperemia local e dor prepucial que não impedem a continuidade do tratamento, e a taxa de sucesso chega a 70-80%. O uso destas substâncias não tem efeito sobre aderências bálano-prepuciais (ter Meulen, 2001).

Não há evidências de supressão do eixo hipotálamo-hipó� se-adrenal com o uso de corticoste-roides tópicos para o tratamento de � mose pelo período proposto. (Pileggi, 2010)

O tratamento tópico representa uma redução de custo no tratamento da � mose de 27,3% (Nobre, 2010). Desta forma, sempre indicamos o tratamento tópico antes de indicar a cirurgia.

Tratamento cirúrgico

A postectomia é formalmente indicada nos casos de � mose secundária e nos casos de � mose � siológica, mas que apresentem balanopostite de repetição ou risco aumentado de infecção do trato urinário inferior (ITU). Os pacientes com � mose � siológica com mais de 4 anos e que não responde-rem ao tratamento tópico também são candidatos e os riscos e benefícios precisam ser discutidos com a família.

Nos casos de � mose secundária ocorre in� amação local, resposta cicatricial, � brose e espessa-mento prepucial impedindo a exposição da glande, levando a uma di� culdade de manter higiene adequada. A abertura do prepúcio pode ser puntiforme e levar a formação de saculação durante a micção. No entanto, o simples balonamento do prepúcio sem � mose secundária não é indicação absoluta de tratamento.

Na balanopostite de repetição podem ocorrer � ssuras prepuciais com desconforto local inten-so e evolução para � mose secundária. A Balanite Xerótica Obliterante (BXO) pode ser identi� cada, dentre estes casos, por máculas brancas locais.

Existe o risco aumentado de ITU em algumas anomalias congênitas de vias urinárias e sua ocorrência piora o prognóstico para a preservação do trato urinário superior. A mais comum é o re-� uxo vesicoureteral. Nestes casos, a postectomia também pode ser indicada como forma de reduzir o risco de ITU.

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A postectomia neonatal

A postectomia neonatal é realizada por motivos religiosos, por desejo dos pais ou como tenta-tiva de reduzir o risco de câncer de pênis e o contágio de doenças sexualmente transmissíveis, além de balanite e ITU. Não existe consenso em relação à sua indicação.

Os principais estudos que demonstram benefício com a circuncisão neonatal em relação ao desenvolvimento de câncer de pênis e à redução de doenças sexualmente transmissíveis foram rea-lizados em países em desenvolvimento que apresentam altas taxas de prevalência de HIV e endemia de câncer de pênis. Nestes países, indica-se a postectomia como importante medida preventiva para essas doenças. No entanto, estima-se que este benefício possa ser obtido tratando-se adequada-mente os casos de � mose e orientando uma higiene genital adequada.

As possíveis complicações associadas à postectomia neonatal serão discutidas no � nal deste capítulo e devem ser consideradas em conjunto com a família, antes de se indicar o procedimento por motivos sociais ou epidemiológicos (Weiss, 2010).

Contra-indicações

A postectomia é contra-indicada nos casos de coagulopatia, infecção aguda local e anomalias congênitas do pênis, como hipospadia e pênis embutido, em que o prepúcio pode ser utilizado para a reconstrução cirúrgica (Thompson, 1975).

Técnicas cirúrgicas

Dois procedimentos são mais utilizados para a realização da postectomia: o uso de anel plástico (Plastibell®) e a dissecção cirúrgica. A plástica de prepúcio é utilizada em países onde culturalmente a preservação do prepúcio é desejada. Porém, esta técnica apresenta maior taxa de recorrência da � mose (Miernik, 2011);

Aparentemente não existe diferença signi� cativa entre as taxas de complicações com o uso do anel plástico e a dissecção cirúrgica. A utilização do anel reduz o tempo cirúrgico mas exige maior analgesia no pós-operatório tardio (Bastos Netto, 2010). Entretanto, preferimos o uso da dissecção cirúrgica pois acreditamos que apresente melhor resultado estético.

O procedimento é realizado sob anestesia geral associada a um bloqueio peniano dorsal ou circular na base do pênis. Alguns autores descrevem a possibilidade de realizar o procedimento ape-

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nas com anestesia local, o que reduziria custos e riscos, mas traria maior desconforto ao paciente (Jayanthi. 1999).

Figura 2 - Anel plástico utilizado para circuncisão Figura 3 - Colocação no anel plástico entre o prepúcio e a glande do pênis

Figura 4 - Fixação do anel com o � o próprio Figura 5 - Apecto após a exérese do prepúcio acima do anel e hemostasia

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Figura 6 - Apecto � nal do procedimento, com anel � xo ao prepúcio

Figura 7 - Realização de incisão circular distando aproximadamente 1 cm do sulco da glande

Figura 8 - Realização da segunda incisão circular, promovendo a remoção do anel estenótico

Figura 9 - Exérese do prepúcio

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Figura 10 - Síntese do prepúcio a mucosa com � o absorvível

Complicações

As complicações da circuncisão neonatal ocorrem em 0,2 - 3% dos casos. As complicações mais simples são sangramento, infecção e aderências e as mais graves incluem as lesões de uretra e pênis e o pênis encarcerado. A complicação tardia mais comum é a estenose de meato (Weiss, 2010).

Para� mose

A para� mose é de� nida como a incapacidade de recobrir a glande após retração do prepúcio. Normalmente ocorre após a retração forçada do prepúcio formando um anel apertado proximal à glande e evoluindo com edema do prepúcio interno e glandar, o que di� culta ainda mais a tentativa de recobrir a glande.

Um bloqueio anestésico peniano pode ser necessário e a técnica para redução do prepúcio inclui manter uma compressão com os polegares sobre a glande por alguns minutos, de forma a reduzir o edema, enquanto se traciona o prepúcio entre o segundo e terceiro quirodáctilos. Uma in-cisão dorsal relaxando o anel para� mótico pode ser necessária se não houver sucesso com a redução manual.

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Pênis encarcerado

A circuncisão neonatal pode evoluir com um processo de retração cicatricial circular e a forma-ção de um anel � brótico que novamente impede a exposição da glande. Isto ocorre nos casos em que o prepúcio interno remanescente é longo e a área de sutura � ca distal à haste peniana.

Como a quantidade de pele é menor, pela cirurgia prévia, este tipo de � mose secundária apre-senta um pênis aparentemente pequeno, em que os corpos cavernosos � cam parcialmente escon-didos sob a pele e a gordura pré-pubiana. É chamado de pênis encarcerado e o tratamento cirúrgico precisa considerar a plástica de pele local para reconstrução adequada do pênis. Uma simples cir-cuncisão reduziria ainda mais a quantidade de pele e provocaria o que é conhecido como pênis em-butido, quando os corpos cavernosos � cam completamente enterrados entre a região pré-pubiana.

O pênis encarcerado pode ser evitado reduzindo o prepúcio interno remanescente no momen-to da incisão circular subcoronal ou no posicionamento do anel plástico.

Estenose de meato

A estenose de meato é um diagnóstico raro em meninos normais e sua frequência aumenta entre meninos circuncisados, o que sugere ser um efeito da postectomia. A meatite por exposição local à umidade e urina das fraldas, traumatismo crônico leve, doenças in� amatórias da pele e a reação in� amatória local pela própria cirurgia podem justi� car sua ocorrência.

A estenose ocorre habitualmente na região ventral do meato e a tração lateral das bordas pode revelar o aspecto de fusão da região ventral e a incapacidade de se everter adequadamente a mucosa. A con� rmação do diagnóstico pode ser obtida ao se observar a micção da criança. Um jato urinário � no, de alta pressão e desviado dorsalmente, pela fusão ventral, pode ser constatado.

A criança pode se queixar de disúria e desconforto glandar. Raramente a estenose de meato pode causar infecção urinária. A dilatação simples da estenose apresenta recorrência frequente e o tratamento de� nitivo deve ser, portanto, a meatotomia. Para realizar a meatotomia, uma pinça hemostática deve ser utilizada para comprimir a ponte ventral entre os bordos laterais do meato por alguns minutos. Após retirar a pinça, realiza-se a secção ventral na linha média ampliando o meato. Em alguns casos, pontos de � o absorvível podem ser necessários nos bordos laterais após a secção. No pós-operatório, a abertura frequente do meato para aplicação de um lubri� cante evita a readerência dos bordos.

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Considerações � nais

A postectomia é a cirurgia mais frequentemente realizada pelo urologista pediátrico e por ser aparentemente simples costuma ser encarada por médicos e familiares como um procedimento de menor importância. No entanto, pode apresentar complicações graves e trazer uma morbidade signi� cativa para a criança se alguns preceitos básicos não forem observados.

A � mose � siológica deve ser tratada de forma conservadora.

O tratamento tópico deve ser estimulado sempre que possível.

A família deve ser bem orientada quanto aos riscos e benefícios da cirurgia.

A cirurgia não deve ser realizada se outras anomalias penianas estiverem presentes.

REFERÊNCIAS

Bastos Netto J. M., et al. Prospective randomized trial comparing dissection with Plastibell® circumcision. J Pediatr Urol. 2010. 6(6):572-7.Gairdner D. The fate of the foreskin, a study of circumcision. Br Med J, 1949. 2(4642): p. 1433-7.Jayanthi V. R., et al. Postneonatal circumcision with local anesthesia: a cost-e� ective alternative. J Urol. 1999 Apr;161(4):1301-3.Kayaba H., et al. Analysis of shape and retractability of the prepuce in 603 Japanese boys. J Urol. 1996 Nov;156(5):1813-5.ter Meulen P. H., et al. A conservative treatment of phimosis in boys. Eur Urol, 2001. 40(2): p. 196-9; discussion200.Miernik A., et al. Complete removal of the foreskin--why? Urol Int, 2011. 86(4): p. 383-7.Nobre, et al. To circ or not to circ: clinical and pharmacoeconomic outcomes of a prospective trial of topical steroid versus primary circumcision. Int Braz J Urol. 2010. 36(1):75-85.Oster J. Further fate of the foreskin. Incidence of preputial adhesions, phimosis, and smegma among Danishschoolboys. Arch Dis Child, 1968. 43(228): p. 200-3.Pileggi F. O., et al. Is suppression of hypothalamic-pituitary-adrenal axis signi� cant during clinical treatment of phi-mosis? J Urol, 2010. 183(6): p. 2327-31.Thompson H. C., et al. Report of the ad hoc task force on circumcision. Pediatrics, 1975. 56(4): p. 610-1.Weiss H. A., et al. Complications of circumcision in male neonates, infants and children: a systematic review.BMC Urol, 2010. 10: p. 2.

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