filosofia - liberdade

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LIBERDADE: RAZÃO E AUTONOMIA O problema da escolha sem autonomia em nossa sociedade. Sabemos que a liberdade, como apontou Sartre, expressa-se na escolha que fazemos durante todo o tempo. Porém, talvez as escolhas que estamos fazendo estejam corrompidas, talvez estejamos agindo sob influência de interesses que não são verdadeiramente nossos. Vejamos a música abaixo para situarmos melhor o problema que expomos: Admirável Chip Novo (Pitty) Pane no sistema, alguém me desconfigurou Aonde estão meus olhos de robô? Eu não sabia, eu não tinha percebido Eu sempre achei que era vivo Parafuso e fluido em lugar de articulação Até achava que aqui batia um coração Nada é orgânico, é tudo programado E eu achando que tinha me libertado, Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer: Reinstalar o sistema Pense, fale, compre, beba Leia, vote, não se esqueça Use, seja, ouça, diga Tenha, more, gaste e viva Pense, fale, compre, beba Leia, vote, não se esqueça Use, seja, ouça, diga... Não senhor, Sim senhor, Não senhor, Sim senhor Mas lá vêm eles novamente e eu sei o que vão fazer: Reinstalar o sistema 1

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Page 1: Filosofia - Liberdade

LIBERDADE: RAZÃO E AUTONOMIA

O problema da escolha sem autonomia em nossa sociedade.

Sabemos que a liberdade, como apontou Sartre, expressa-se na escolha que fazemos durante todo o tempo. Porém, talvez as escolhas que estamos fazendo estejam corrompidas, talvez estejamos agindo sob influência de interesses que não são verdadeiramente nossos. Vejamos a música abaixo para situarmos melhor o problema que expomos:

Admirável Chip Novo (Pitty)

Pane no sistema, alguém me desconfigurou

Aonde estão meus olhos de robô?

Eu não sabia, eu não tinha percebido

Eu sempre achei que era vivo

Parafuso e fluido em lugar de articulação

Até achava que aqui batia um coração

Nada é orgânico, é tudo programado

E eu achando que tinha me libertado,

Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer:

Reinstalar o sistema

Pense, fale, compre, beba

Leia, vote, não se esqueça

Use, seja, ouça, diga

Tenha, more, gaste e viva

Pense, fale, compre, beba

Leia, vote, não se esqueça

Use, seja, ouça, diga...

Não senhor, Sim senhor, Não senhor, Sim senhor

Mas lá vêm eles novamente e eu sei o que vão fazer:

Reinstalar o sistema

O refrão da música compõe-se de imperativos que nos são ininterruptamente transmitidos pela televisão, pelo rádio, pela internet, pelos jornais, pelas revistas, pelos outdoors, por religiões e até pelos nossos amigos. Embora possamos passar a vida sem perceber, escolhemos entre roupas da marca A ou B, refrigerante A ou B; carro A ou B, eletrodoméstico A ou B, deus A ou B. É verdade que há uma escolha, é verdade que podemos escolher por A e não por B; porém, é verdade também que muitas vezes agimos influenciados sobre os imperativos que nos foram transmitidos.

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A música expressa que as escolhas que fazemos podem estar corrompidas pelo consumismo contemporâneo, expressa que fazemos escolhas influenciadas por falsas necessidades, por interesses exteriores a nós mesmos. Isto é, a comparação feita pela música, entre nós e os robôs, retrata justamente o modo como somos “programados” a realizar escolhas que beneficiam interesses que não são necessariamente os nossos, a escolher coisas que não precisamos, a fazer coisas que podem até estar contrárias a nossos interesses. E ainda podemos aceitar estas coisas de bom grado: “Não senhor, Sim senhor, Não senhor, Sim senhor”. Caso não gostemos e fazemos algo contrário aos imperativos que nos foram transmitidos, a música mostra a saída que é usada para tudo continuar do modo como está: “Lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer: reinstalar o sistema”.

Portanto, o problema da liberdade em nossa sociedade é ainda um problema não resolvido, trataremos neste período justamente das escolhas que fazemos e que podem ainda não serem suficientes para sermos livres. Segundo a música, em cada um de nós é como se houvesse um chip, como se não fôssemos livres.

VAMOS FILOSOFAR...

1 – Quais são os imperativos que a música demonstra que nos são impostos ininterruptamente?

2 – Ao escolhermos um produto de uma marca, e não de outra, após sermos convencidos por uma propaganda, somos livres? Explique.

3 – Explique como a música, ao comparar-nos com robôs, mostra que não somos livres.

4 – Você já foi influenciado por propagandas a adquirir algo que não tinha muita necessidade? Exemplifique e explique como sua liberdade foi afetada.

Ousar pensar: a saída de Voltaire para o problema da escolha sem autonomia em nossa sociedade.

Voltaire, filósofo francês que viveu entre 1694 e 1778, tentou encontrar uma solução para o problema que estamos discutindo, embora, seja evidente, em um contexto diferente. No Dicionário filosófico, ele escreveu um verbete intitulado “Liberdade de Pensamento”, expondo um conflito entre um general inglês (Boldmind) e um funcionário da Inquisição na Espanha (Medroso). Deste conflito,

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Voltaire indicou o caminho para escolhermos sem seguir interesses que não são verdadeiramente nossos. Vamos acompanhar o diálogo para encontrar esse caminho:

LIBERDADE DE PENSAMENTO

“Boldmind: Sois, portanto, sargento dos dominicanos? Exerceis um bem vil ofício.

Medroso: É verdade; mas gostei mais de ser criado deles do que ser vítima e preferi a desgraça de queimar o meu próximo à de ser eu próprio cozido.

Boldmind: Que horrível alternativa! Éreis cem vezes mais felizes sob o jugo dos mouros que vos deixaram estagnar livremente no meio das vossas superstições e que, embora vencedores, não se arrogavam o direito inaudito de pôr as almas a ferros.

Medroso: Que quereis? Não nos é permitido escrever, nem falar, nem mesmo pensar. Se falamos, torna-se fácil interpretar as nossas palavras e mais ainda os nossos escritos. Enfim, como não podem condenar-nos a um auto-de-fé pelos nossos pensamentos secretos, ameaçam-nos de sermos eternamente queimados por ordem do próprio Deus se não pensarmos como os dominicanos. Persuadiram o governo que se possuíssemos o senso comum todo o Estado ficaria em combustão e a nação tornar-se-ia a mais desgraçada da Terra.

Boldmind: Achais que somos assim desgraçados, nós, ingleses, que cobrimos os mares com os nossos barcos e viemos ganhar para vós batalhas nos confins da Europa? Vede os holandeses que vos desapossaram de quase todas as vossas descobertas na Índia e hoje se enfileiram entre os vossos protetores: pensais que sejam malditos de Deus por haverem concedido inteira liberdade à imprensa e por fazerem o comércio dos pensamentos humanos? Foi menos poderoso o império romano por Cícero haver escrito com liberdade?

Medroso: Quem é Cícero? Nunca ouvi falar desse homem; não se trata aqui de Cícero, trata-se de nosso santo pai, o papa, e de Santo Antônio de Pádua, e sempre ouvi dizer que a religião romana está perdida se os homens começam a pensar.

Boldmind: Não cabe a vós acreditá-lo, pois estais seguro que a vossa religião é divina e que as portas do inferno não podem prevalecer contra ela. Se assim é, nada poderá destruí-la.

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Medroso: Não, mas pode ser reduzida a pouca coisa. E foi por terem pensado que a Suécia, a Dinamarca, toda a vossa ilha e metade da Alemanha gemem na pavorosa desgraça de não mais serem súditos do papa. Diz-se mesmo que se os homens continuassem a guiar-se pelas suas falsas luzes acabarão em breve por ater à simples adoração de Deus e à virtude. Se alguma vez as portas do inferno prevalecerem até esse ponto, em que se tornará o Santo Ofício?

Boldmind: Se os primeiros cristãos não tivessem a liberdade de pensar, não é verdade que não existiria cristianismo?

Medroso: Que quereis dizer? Não vos entendo?

Boldmind: Acredito. Quero dizer que se Tibério e os primeiros imperadores dispusessem de dominicanos que houvessem impedido os primeiros cristãos de usar penas e tinta; se durante tanto tempo não tivesse sido permitido pensar livremente no império romano, tornar-se-ia impossível aos cristãos estabelecer os seus dogmas. Portanto, se o cristianismo só se formou pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que injustiça desejaria aniquilar hoje essa liberdade sobre a qual está fundado?

Quando vos propõem algum negócio interessante, não o examinais demoradamente, antes de o concluirdes? Haverá no mundo maior interesse que o da nossa felicidade ou eterna desgraça? Existem sobre a Terra cem religiões e todas vos condenam à danação por acreditares nos vossos dogmas, que essas religiões consideram absurdos e ímpios; examinai, portanto, esses dogmas.

Medroso: Como posso examiná-lo? Não sou dominicano.

Boldmind: Sois homem e isso basta.

Medroso: Ai de mim! Sois bem mais homem que eu.

Boldmind: A vós apenas cabe aprender a pensar; haveis nascido com espírito; sois uma ave na gaiola da Inquisição; o Santo Ofício aparou-vos as asas mas elas podem voltar a crescer. Quem não sabe geometria, pode aprendê-la; qualquer homem pode instruir-se: é vergonhoso que se deposite a alma nas mãos daqueles aos quais não se confiaria o dinheiro. Ousai pensar por vós mesmo.

Medroso: Há quem diga que, se toda a gente pensasse por si, a confusão seria prodigiosa.

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Boldmind: Pelo contrário. Quando assistimos a um espetáculo, cada qual dá livremente a sua opinião e a paz não é perturbada; se, porém, algum insolente, protetor de algum mau poeta, quiser forçar todas as pessoas de gosto a considerarem bom o que lhes parece mau, os dois partidos podem acabar alvejando-se com maçãs, como já aconteceu em Londres. São estes tiranos dos espíritos que causaram parte das desgraças do mundo. Na Inglaterra, só somos felizes desde que cada qual goze livremente o direito de exprimir a sua opinião .

O problema que temos a resolver é: como fazer escolhas que reflitam o que realmente queremos, o que realmente necessitamos, sem sermos influenciados e manipulados por outrem? Voltaire, pela personagem Boldmind, indicou que estas escolhas precisam passar pelo critério do pensamento: trata-se de ousar pensar por nós mesmos, sem aderir a nenhum projeto sem antes examiná-lo com cuidado, sem entregar nossa alma seja a quem for.

VAMOS FILOSOFAR...

1 – Qual é o problema relativo à liberdade a ser resolvido em nossa sociedade?

2 – Que tipo de trabalho a personagem Medroso realiza, segundo Voltaire no texto Liberdade de pensamento? Como esse trabalho é classificado pela personagem Boldmind?

3 – Existe liberdade de pensamento na Espanha sob a Inquisição? O que a personagem Medroso alega para defender o comportamento da Inquisição? Boldmind concorda com Medroso ?

4 – Para que a personagem Medroso se tornasse livre, Boldmind aconselhou: “A vós apenas cabe aprender a pensar; haveis nascido com espírito; sois uma ave na gaiola da Inquisição; o Santo Ofício aparou-vos as asas mas elas podem voltar a crescer. Quem não sabe geometria, pode aprendê-la; qualquer homem pode instruir-se: é vergonhoso que se deposite a alma nas mãos daqueles aos quais não se confiaria o dinheiro. Ousai pensar por vós mesmo” . Explique qual deve ser o comportamento de Medroso para que ele seja livre.

5 – Como Voltaire resolveu a questão de fazermos escolhas sem sermos livres em nossa sociedade? Você concorda com a solução dele? Explique.

6 – Leia a letra da música abaixo e relacione-a com o texto de Voltaire para explicar se somos livres ao fazermos o que a televisão nos propõe.

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TELEVISÃO – (Titãs)

A televisão me deixou burro, muito burro demais

Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais

O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida

E agora toda noite quando deito é boa noite, querida.

Ô cride, fala pra mãe

Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura

Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!

Ô cride, fala pra mãe !

A mãe diz pra eu fazer alguma coisa mas eu não faço nada

A luz do sol me incomoda, então deixo a cortina fechada

É que a televisão me deixou burro, muito burro demais

E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais.

Ô cride, fala pra mãe

Que tudo que a antena captar meu coração captura

Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!

Ô cride, fala pra mãe!

Esclarecimento: a saída de Kant para o problema da escolha sem autonomia em nossa sociedade.

Kant (1724 - 1804) foi mais um filósofo que pensou nas condições de possibilidades da liberdade e, tal como Voltaire, preocupou-se em impedir que fôssemos manipulados por interesses exteriores aos nossos. Para isso, Kant aposta em um movimento do qual todos precisariam participar: trata-se de um esclarecimento que retiraria a humanidade da posição de menoridade.

Segundo Kant, encontramo-nos na posição de menoridade por não usarmos nosso entendimento da maneira que deveríamos; por covardia e preguiça, apenas orientamo-nos por razões alheias a nossa e, assim, damos origem a tutores que dizem o que devemos fazer sobre as mais variadas questões do dia-a-dia. Nosso erro, portanto, é preferir a orientação de outrem e não usarmos

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nosso entendimento com autonomia. Um bom exemplo desse erro é a música abaixo:

Pacato Cidadão – (Skank)

Ô pacato cidadão, te chamei a atenção

Não foi à toa, não

C\'est fini la utopia, mas a guerra todo dia

Dia a dia não

E tracei a vida inteira planos tão incríveis

Tramo à luz do sol

Apoiado em poesia e em tecnologia

Agora à luz do sol

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização

Pra que tanta TV, tanto tempo pra perder

Qualquer coisa que se queira saber querer

Tudo bem, dissipação de vez em quando é bão

Misturar o brasileiro com alemão

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização

Ô pacato cidadão, te chamei a atenção

Não foi à toa, não

C\'est fini la utopia, mas a guerra todo dia

Dia a dia não

E tracei a vida inteira planos tão incríveis

Tramo à luz do sol

(Repetir parte em negrito)

Pra que tanta sujeira nas ruas e nos rios

Qualquer coisa que se suje tem que limpar

Se você não gosta dele, diga logo a verdade

Sem perder a cabeça, perder a amizade

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização

(repetir parte em negrito)

Consertar o rádio e o casamento é

Corre a felicidade no asfalto cinzento

Se abolir a escravidão do caboclo brasileiro

Numa mão educação, na outra dinheiro

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização

Pacato cidadão

Ô pacato da civilização.

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Agimos como um “pacato cidadão” e somos nós mesmos os culpados da posição de menoridade em que nos encontramos. Se hoje estamos dominados por tutores, isso só aconteceu por não caminharmos com a autonomia da nossa razão. É assim que funciona o movimento proposto por Kant: deixar a pacatez de lado e pensarmos por nós mesmos sobre todas as questões que nos são pertinentes. Dessa forma, mesmo depois de alguns erros, aprenderíamos a caminhar sozinhos.

Ao invés da identificação cega com um líder político ou religioso, ao invés de seguir irrefletidamente algum órgão de imprensa, precisaríamos, no movimento proposto por Kant,

Immanuel Kant (1704-1804) pensarmos para adquirir um entendimento próprio e a partir daí, expor publicamente nossas ideias: precisaríamos espalhar nossas ideias ao nosso entorno, movimentando o uso autônomo da razão naqueles que estão vivendo conosco. Essa conduta é bem diferente da conduta do “pacato cidadão” da música, e não só é diferente, mas oposta.

Sairíamos da menoridade e findaríamos com os tutores se nós mesmos conduzirmo-nos nossas ações. Nossa liberdade constrói-se pelo uso autônomo da razão e pela sua publicidade (que aqui não deve ser entendida no sentido mercadológico, trata-se do uso público da razão). O movimento de Esclarecimento, proposto por Kant, e a ousadia de pensamento, proposta por Voltaire, encontram-se, então, na semelhança de seus objetivos e nos seus métodos: ambos anseiam a liberdade, ambos apostam na razão pra atingir este fim.

VAMOS FILOSOFAR...

1 – Kant e Voltaire têm um projeto parecido sobre a liberdade. Qual é esse projeto?

2 – Kant propõem um movimento para acabar com a posição de menoridade em que se encontra a humanidade. Explique:

a) o que é menoridade?

b) qual é o movimento proposto por Kant e como ele funcionaria?

3 – Relacione a ideia de “menoridade”, de Kant, com a expressão “pacato cidadão” da música do Skank e explique se, na sua cidade, as pessoas são livres.

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4 – Segundo Kant, quais seriam as consequências para os tutores ao expormos nossas ideias publicamente?

5 – Kant e Voltaire têm um método em comum para alcançar a liberdade? Qual é ele e como funciona?

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