filosofia e literatura

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Page 1: Filosofia e literatura
Page 2: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA

COLETÂNEA DE TEXTOS | DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

20 DE NOVEMBRO DE 2014

Page 3: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA Filosofia na obra de António Aleixo (Poeta popular algarvio, 1899-1949)

Eu não tenho vistas largas, nem grande sabedoria, mas dão-me as horas amargas lições de filosofia. Embora os meus olhos sejam os mais pequenos do mundo, o que importa é que eles vejam o que os Homens são no fundo. António Aleixo, “Este livro que vos deixo…” Na poesia de António Aleixo encontramos uma

filosofia espontânea, que nasce da sua

experiência vivencial e da sua inquietude perante

a mesma.

A primeira estrofe revela a sua atitude filosófica perante a vida, uma angústia e

inquietação perante os problemas e o sofrimento do Homem e ao mesmo tempo a

tomada de consciência da sua ignorância perante a complexidade da condição

humana, que se traduz na busca de um sentido para a vida, que ilumine a sua razão e

lhe sirva de lição.

Nas suas reflexões sobre a sociedade e sobre o Homem, o poeta fala-nos das suas

próprias experiências de vida, da sua angústia, do seu sofrimento e da sua

preocupação em compreender-se a si próprio, ao outro e à sociedade em que vive.

Na segunda estrofe, o poeta, assumindo uma vez mais a sua falta de sabedoria,

revela-nos ao mesmo tempo uma consciência lúcida da natureza humana,

distinguindo a aparência da essência, a ilusão da verdade, ao dizer-nos que o que

importa é conhecermos o que os homens são no fundo. Ou seja, a verdade do ser

humano está na sua essência, na sua natureza e não naquilo que aparenta ser.

Se queremos conhecer verdadeiramente alguém, se nos interessa saber o que é o

Homem, isto é, saber quem somos, então devemos procurar muito para lá das

aparências e ir ao encontro da essência, isto é, da sua alma, da sua razão, do seu

pensamento, das suas ações, pois é através destas dimensões da vida humana que a

verdadeira natureza do Homem se revela.

António Aleixo, deixa-nos assim, através da sua obra, o testemunho de uma

sabedoria de vida, construída a partir da experiência do sofrimento e da vontade de

conhecer a verdadeira natureza humana.

E o que é a filosofia senão uma busca constante de conhecimento e de verdade?

Cristina Martins

Page 4: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA

O problema central deste texto para o dia mundial da filosofia é a relação entre a

filosofia e a literatura, as quais buscam a verdade ou os sentidos possíveis. A primeira faz isso

através do pensamento e do discurso conceptual/crítico, a segunda através da

imaginação e do discurso metafórico/poético.

A literatura surgiu primeiro associada ao mito sob a forma de lendas e poemas de

amor, nascendo bastante depois a filosofia como um esforço de passagem da doxa à

epistéme. Filosofia e literatura parecem, assim, corresponder originariamente a domínios e a

objectivos diferentes: a poética parte da imaginação para alcançar o belo, enquanto a

filosofia parte do pensamento reflexivo para chegar à verdade.

Platão questiona a relação entre filosofia e poesia e entende a poesia a partir das

ideias perfeitas e as ilusões do mundo material mutável. Por isso o poeta não merecia um

lugar na “República” por ser um imitador de nível inferior. Ao mesmo tempo, porém, Platão

elabora a sua filosofia em grande parte em forma de diálogos.

Page 5: Filosofia e literatura

Aristóteles valoriza a poesia, embora esta surja ainda como um domínio inferior à

filosofia. Na sua Poética, afasta a poesia da história e aproxima-a da filosofia:

Na idade moderna, há uma reafirmação da superioridade da filosofia face à poesia e

à arte em geral. Descartes, concebe o ser humano como substância pensante e atribui-lhe

a capacidade de auto-reflexão, ligando a descoberta da verdade ao uso da razão e

deixando os sentidos para o domínio do aparente e do ilusório.

No romantismo dá-se uma inversão daquela tendência. Para os românticos, o meio

privilegiado da reflexão do eu é a arte, que, ao mesmo tempo que possibilita uma

aproximação à transcendência, tem como fim último a formação da humanidade.

Apesar das muitas distinções propostas entre filosofia e literatura, a partir do século XX,

quer a história da filosofia, quer a história da literatura afastam uma delimitação clara entre

estes domínios. Por um lado, na história da filosofia, encontramos inúmeras formas de

apresentação textual que não apresentam necessariamente um método crítico e

sistemático, mas que se aproximaram do discurso literário e potenciaram os seus efeitos. Por

outro lado, na história da literatura, é possível encontrar vários momentos em que esta se

apresentou como lugar de reflexão filosófica. Em Portugal, poetas como Antero de Quental,

Fernando Pessoa e romancistas como Vergílio Ferreira entre outros, inscreveram a sua

produção literária entre a literatura e a filosofia. Virgílio Ferreira numa das suas obras mais

conhecidas «Aparição» (1959), questiona o sentido da existência e coloca interrogações

sobre «o espantoso milagre de estar vivo e o incrível absurdo da morte». O dr. Alberto Soares,

o protagonista desta obra, era um professor liceal inadaptado ao meio da cidade de Évora,

isolada de tudo e de todos, pretende encontrar respostas para a origem e finalidade da

vida como se comprova nestas palavras «eu tinha um problema: justificar a vida em face da

inevitabilidade da morte». Se a harmonização da realidade do «eu» com a negação pela

morte não for encontrada a existência será absurda. Outra questão inquietante para o

romancista filósofo é saber como se pode conciliar a liberdade humana com o Absoluto

que tudo impõe ao «agir».

Estes são apenas exemplos da expressão de um longo diálogo entre a filosofia e a

literatura, que se inicia na filosofia antiga e assume as mais variadas formas no decorrer da

história da filosofia e da literatura.

Lázaro Fernandes

Page 6: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA

Se me perguntarem qual é o livro

que mais gostei de ler, aquele que

recomendarei aos familiares e amigos,

direi que é precisamente aquele que

não consigo acabar de ler e que por

essa razão terei dificuldade em

recomendá-lo. Se, por uma estranha

razão, o fizer, terei de realçar o efeito

que em mim me causou. Fechei o livro a

meio e decidi não voltar a lê-lo. Chama-

se o livro: “A bibliotecária de Auschwitz”

(Antonio G. Iturbe, Planeta).

A história de vida de Dita Kraus,

que aos oito anos se tornou na bibliotecária de Auschwitz, cujo corpo franzino permitia

transportar escondidos, alguns livros, enfiados nos bolsos interiores do seu vestido, é

terrivelmente bela e terrivelmente dramática. O texto tem um pendor poético que não

coabita com a desumanidade daquele espaço e daquele tempo. Ao lermos aquele

livro, tropeçamos simultaneamente na esperança e na sua ausência.

Estranhamente, Auschwitz tinha uma escola: o barracão 31. Os livros existiam às

escondidas – guardados ora no vestido de Dita, ora no chão, debaixo de umas

tábuas. Os livros, ou os restos deles, eram as alegrias e as esperanças de todas aquelas

crianças: «abrir um livro é como entrar para um comboio que nos leva de férias.» Dita

Kraus sobreviveu a Auschwitz. Terão sido os livros a sua salvação?

São os livros que lemos a nossa salvação? Gustave Flaubert, numa carta a Mlle.

De Chantepie (1857), afirma «Ler para viver». Alberto Manguel, em Uma História da

Leitura, (2011) afirma «Todos nós lemos a nós próprios e ao mundo à nossa volta para

vislumbrarmos o que somos e onde estamos. Lemos para compreender ou para

começar a compreender. (…) -, a leitura está na base do contrato social;» (p.21).

Concluo: não há contrato social sem compreensão, sem pensamento. Acrescento:

não há contrato social sem arte. Precisamos todos do contrato social para viver. Todos

precisamos de arte para viver.

A literatura, entre todas as formas de arte, é, em particular, a mais aparentada

com a filosofia. O parentesco entre ambas não é pacífico. Contudo, têm uma

membrana comum: a linguagem verbal. A linguagem literária e a linguagem filosófica

caminham por veredas diferentes, com requisitos e espetativas distintas. Vergílio

Ferreira, escritor português, inaugura o conceito de romance de ideias, como forma

de realizar o encontro amoroso ente a literatura e a filosofia. A arte literária digna do

seu nome fala-nos da vida, do homem, na sua dimensão mais profunda. Vergílio

Page 7: Filosofia e literatura

Ferreira utiliza a expressão ideias com sangue como forma de significar que o romance

literário é aquele que tematiza a duplicidade da natureza humana: «Obscuramente, a

tudo o que a arte assume como validamente humano numa genérica dimensão, a

tudo isso dir-se-ia presidir a ideia consabida de que o homem é um misto de «anjo e

besta». » O homem padece desta dupla natureza, por isso, espera tão profundamente

da arte – da literatura – que o salve.

Os livros salvam o homem? As ideias filosóficas salvam o homem? As histórias da

literatura salvam o homem? Salvam o homem do quê? Salvam o homem de quem?

Dele próprio.

Dita Kraus salvou-se do holocausto, mas não foram os livros que a salvaram. Foi o

acaso. Importa perguntar como viveu Dita Kraus a sua infância, no meio do horror.

Como no livro é dito, para haver infância, é preciso ser-se criança. Como se pode ser

criança, num lugar sem esperança? Leiam o livro e percebam como a alegria de

esconder um tesouro por entre a sua magreza lhe dava uma força destemida. Dita

sabia que transportava e guardava um tesouro das mãos das «bestas» e com essa

coragem prometia a todas as crianças do barracão 31 que um dia poderiam vir a ser

«anjos».

Leiam o livro. Leiam muitos livros. De literatura. De filosofia. Leiam romances de

ideias - o encontro amoroso entre literatura e filosofia proposto por Vergílio Ferreira é

um conceito que, num certo sentido, restaura os textos filosóficos mais antigos, os

escritos pré-socráticos, os diálogos e as alegorias platónicas. A história da humanidade

demonstra-nos que precisamos de histórias e de ideias para nos salvarmos de nós

mesmos.

Numa das últimas páginas que li, está esta frase, que guardo na minha memória:

«O papá tinha razão. Aquele livro levou-me mais longe do que qualquer par de

sapatos.» (p.102).

Rosario Cristóvão

Page 8: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA

LIVRO: Poemas Completos de Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa i

Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado.

Alberto Caeiro

À primeira vista, fazer uma leitura filosófica da obra de Alberto Caeiro parece

uma missão impossível. De facto, como se comenta filosoficamente a obra de um

poeta que se classifica a si mesmo como “um temperamento sem filosofia”? Como

tornar claras as ideias de alguém cuja “alma era de certezas poéticas, não buscando

esclarecer-se”? Ou que afirma que a sua obra “não se pode comentar, porque se não

pode pensar o que é directo, como o céu e a terra”?

Não obstante a aversão do poeta às conjecturas filosóficas, existe um

pensamento ecológico em Alberto Caeiro. Uma das teses que perpassa toda a sua

poesia é a da existência de uma nítida dicotomia entre o “mundo natural” e o

“mundo humano”. Para ele, a natureza é um lugar caracterizado pela paz e

comunhão com as coisas (Toda a paz da Natureza sem gente / Vem sentar-se a meu

lado.). Quanto ao homem contemporâneo, não só já não pertence a esse mundo

Page 9: Filosofia e literatura

natural, como é, inclusive, um factor de perturbação da harmonia da natureza. Entre

a “simplicidade” da natureza e a “confusão” do mundo dos homens, o poeta não

hesita:

Ah, como os mais simples dos homens São doentes e confusos e estúpidos Ao pé da clara simplicidade E saúde em existir Das árvores e das plantas!

Pelas mesmas razões, Caeiro prefere a aldeia e o campo, rejeitando a

“claustrofobia” que a cidade lhe provoca:

Nas cidades a vida é mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o ceu, Tornam-nos pequenos porque nos tiram tudo e também não podemos olhar E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Se encarado a partir das teorias ecológicas contemporâneas, Caeiro revela-se

um ecologista radical, já que defende a total preservação da natureza (Deixemos o

universo exterior e os outros homens onde a natureza os pôs).

Também encontramos na sua obra o igualitarismo biosférico, uma concepção

absolutamente não hierarquizada da natureza segundo a qual cada ser é valorizado

na sua riqueza insubstituível (Se sou mais que uma pedra e uma planta? Não sei. / Sou

differente. Não sei o que é mais ou menos.). Para ele, cada ser existente na natureza

vale por si mesmo, ou seja, tem um valor intrínseco e não meramente instrumental (A

espantosa realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa

é o que é, / E é difficil explicar a alguem quanto isso me alegra, / E quanto isso me

basta. / Basta existir para se ser completo.).

Podemos designar esta tese de anti-antropocêntrica, porque defende que a

Natureza não existe para o Homem, uma vez que o Homem não vale mais que os

seres da natureza. (Quando vier a primavera, / Se eu já estiver morto, / As flores florirão

da mesma maneira / E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.

/ A realidade não precisa de mim.).

Page 10: Filosofia e literatura

Alberto Caeiro faz a apologia do regresso à natureza. Trata-se de um regresso

ao admirável mundo primitivo, em que o Homem tem de descobrir a aprendizagem

do “desaprender” (Procuro despir-me do que apprendi, / Procuro esquecer-me do

modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os

sentidos, / Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu,

não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a Natureza produziu.).

A “natureza” de que nos fala o poeta já quase não existe. Quanto ao seu

“projeto”: será que resiste? Fica no ar a pergunta...

Para finalizar, deixo-vos com um dos poemas de Alberto Caeiro que mais

aprecio:

Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se elle quizesse que eu accreditasse nelle, Sem duvida que viria fallar commigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me, Aqui estou! Mas se Deus é as flores e as arvores E os montes e sol e o luar, Então acredito nelle, Então acredito nelle a toda a hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Carlos Café

i Todas as citações da obra de Alberto Caeiro aparecem em itálico num tamanho de letra ligeiramente inferior ao do texto. Por razões de espaço, prescindimos de identificar os poemas citados. As citações respeitam a grafia original. A edição utilizada é: PESSOA, Fernando – Poemas Completos de Alberto Caeiro: Prefácio de Ricardo Reis, Posfácio de Álvaro de Campos. Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha; posfácio de Luís de Sousa Rebelo. 1ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1994. 351 p. (Ler Pessoa).

Page 11: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA

Filosofia e Literatura, dois saberes que pela sua natureza, têm muito em

comum: duas formas de percecionar o mundo, a vida, dois olhares sobre o real vivido

e pensado. O filósofo e o escritor não passam pela vida com a indiferença ou

dogmatismo caraterístico do senso comum. Interpretam a realidade com um olhar

crítico e curioso, são observadores, racionalizam e sentem, expressam emoções e

sentimentos, de acordo com as suas vivências, e os valores presentes em cada cultura.

No seu poema Cântico Negro, José Régio alerta para o perigo da humanidade

viver de acordo com as regras preestabelecidas da sociedade, seguindo o apelo da

maioria para viver de forma formatada. É mais fácil seguir os padrões vigentes. Viver

sem criticar, sem se questionar.

A sociedade chama-nos: “ Vem por aqui! – dizem-me alguns com os olhos

doces”. Muitos respondem afirmativamente. É mais fácil seguir o já feito. Desta forma,

o indivíduo insere-se mais facilmente na sociedade, mas vive uma vida insípida,

privado da liberdade do seu pensamento e ação.

Quem tem coragem de romper com os padrões vigentes corre riscos de ser

marginalizado, criticado, mas atinge um estádio superior, porque vive de acordo com

os seus próprios ideais e crenças. O autor afirma: “ A minha glória é esta:/ Criar

desumanidades!/ Não acompanhar ninguém,/ Que eu vivo com o mesmo sem

vontade/ Com que rasguei o ventre à minha mãe./ Não, não vou por aí!/ Só vou por

onde me levam meus próprios passos…”

É esta a postura do filósofo, que, de acordo com os seus ideais, apresenta uma

visão pessoal do mundo e das coisas, revê, reflete sobre as suas ideias questionando-

as. O filósofo possui um espírito insatisfeito, ávido de mudança, e acolhe com

satisfação a inquietude e o desconforto que o pensar gera. Ele prefere esse

desconforto à apatia e conformismo dos espíritos passivos da maioria. Tal como

Page 12: Filosofia e literatura

afirma José Régio: “ Prefiro escorregar nos becos lamacentos,/ Redemoinhar aos

ventos,/ Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,/ A ir por aí.”

Apesar de atrair alguns espíritos ávidos de mudança, a filosofia poderá ser uma

ameaça para os espíritos conservadores e tradicionalistas, incomodar aqueles que são

prisioneiros das suas crenças, aqueles a quem a mudança causa desconforto e medo.

“ Como, pois, sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas e coragem/ Para eu

derrubar os meus obstáculos?.../ Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,/ E vós

amais o que é fácil!/ Eu amo o Longe e a Miragem./ Amo os abismos, as torrentes, os

desertos…”

O filósofo ama de facto o longe e a miragem, porque quem pensa, vê mais

além, liberta-se de preconceitos, tantas vezes inculcados no nosso espírito por uma

cultura de culpa em que fomos criados.

Quem pensa, encara a vida como uma multiplicidade de caminhos e pondera

antes de escolher o seu, mesmo que essa escolha seja acompanhada de angústia,

sentimento que Sartre afirma estar presente em muitas das nossas decisões. Este

filósofo existencialista defende que o homem está condenado a ser livre, pois pode

aceitar ou rejeitar mesmo o que lhe é imposto. Esta liberdade deixa-nos sós e sem

desculpas, e torna-nos responsáveis pelos nossos atos.

Caminhos que o poeta refere quando afirma: “ Ide! Tendes estradas, Tendes

jardins, tendes canteiros, tendes pátrias, tendes tetos, e tendes regras e tratados, e

filósofos e sábios… Eu tenho a minha Loucura! (…) Todos tiveram pai, todos tiveram

mãe; /Mas eu, que não principio nem acabo,/ Nasci do amor entre deus e o diabo.”

São apelidados muitas vezes de loucos aqueles que ousam ser diferentes, que

têm formas de estar que não encaixam nos padrões vigentes. Aqueles que têm a

coragem de desafiar o sistema sociocultural da época. As forças do bem e do mal

confrontam-se na nossa busca, no nosso processo de encontro connosco. Esta

dicotomia bem/mal, associada a uma moral cristã, conduz-nos, por vezes, à culpa e

ao medo de não sermos aceites ou sermos julgados. Vivemos como se tivéssemos uma

espada suspensa na nossa cabeça que nos impede de sermos livres.

Mas, há que ser corajoso! Há que seguir a nossa cabeça e o nosso coração e

sermos nós próprios, para que possamos deixar marcas pessoais num mundo onde

temos apenas uma breve passagem. “ (…) Não sei por onde vou,/ Não sei para onde

vou / Sei que não vou por aí!”

Em liberdade, num diálogo permanente entre o nosso pensamento e as nossas

emoções, tracemos caminhos. Os Nossos Caminhos!

Amélia Flor

Page 13: Filosofia e literatura

Se bem é doce, Se o regresso é doce Bai é maguado; A partida é dolorosa

Mas, se cabado, Mas se não partir Ca ta birado! Não regressarei

Se no morrê Se morrermos Na despedida, na despedida

Nhor Des na vinda O senhor deus no regresso Ta dano bida. Dá-nos vida

Refrão da morna “ Hora di Bai “

FILOSOFIA E LITERATURA

DILEMA COM MORABEZA …

“HORA DI BAI” de Manuel Ferreira, é a escolha que convosco partilho na homenagem às

entrelaçáveis relações entre a filosofia e a literatura, leitmotiv da celebração do Dia Mundial da

Filosofia, neste 2014 dedicado às “ Transformações Sociais e Diálogo Intercultural”.

Porquê “ HORA DI BAI” ? E porquê “ Dilema com Morabeza”?

Livro escrito em 1962 “convida-nos” a viajar com os efeitos da grande seca de 1943 no país

ilhéu, Cabo Verde de seu nome, no romance prefigurado na ilha de S.Nicolau onde tudo começa

… e a de S. Vicente com o seu Porto Grande … projectada “terra de promissão “ ou de mais além

Page 14: Filosofia e literatura

… melhor, para um protagonista pleno de morabeza …mas divido num dilema sem um fim

descortinável…

Com título tomado de empréstimo de um poema de Eugénio Tavares - o “ Hora di Bai “ – “

Hora da despedida - tornado numa das mornas-mensagem deste “Dilema com Morabeza “, o livro

conduz-nos ao coração desse dilema do ilhéu cabo-verdiano, confrontado com a poderosa

“força” da sua vivida realidade – “ Partir querendo Ficar, Permanecer querendo Partir”.

Face à seca, à fome, à miséria, à falta de esperança do amanhã no quotidiano de S.

Nicolau e lutando pela sua sobrevivência, parece o ilhéu “condenado” a partir … a procurar “lá

fora , na “tera longe” , na emigração, no mar , na America … o sustento para si e para os seus …

mas sem nunca conseguir “ calar a voz da terra-morabe ” …

É também essa “voz” que o lança no outro braço do seu dilema : a terra, a tradição, as

raízes – morabes .. são laços a preservar na resistência, na luta por um futuro melhor no aqui e

agora cada vez menos risonho da ilha … mas S.Vicente…S.Tomé … America … o apelo do outro

lado do mar … é forte, tentador, apelativo, apetecível… poderosamente mágico…

Este dilema , que atravessa o “ HORA DI BAI ” assumindo aí várias formas e protagonistas,

“embalado” pela morna homónima https://www.youtube.com/watch?v=egOQSQeWih0 “Hora di

Bai” e na companhia do seu alter-ego:https://www.youtube.com/watch?v=YYvaoRc0W4g –

“Sôdade de nha tera S.Nicolau”, ajudam-nos na viagem ao encontro do homem caboverdeano de

ontem, dividido entre a insularidade, a solidão, as dificuldades da existência … mas no seu torrão

natal … e a busca “na tera longe” p´ra lá do mar … de uma vida melhor, de um futuro promissor …

Porém… a vivência dilemática do protagonista coletivo do “ HORA DI BAI” , revisitámo-la no

quotidiano de todos e de cada um de nós, sob as múltiplas máscaras que a procura por uma vida

melhor em consonância com a afirmação da nossa identidade nos faz “habitar” colocados que

somos, perante as difíceis e nem sempre decifráveis escolhas para encontrar a “ nossa terra de

promissão” … qual S.Vicente para aquele que vive na “ HORA DI BAI “ ….

Os desafios de um novo amanhã, estribados na defesa de que somos o único dono do

nosso destino, na tomada de consciência aclarada de que os infortúnios, as tragédias (como diria

Aristóteles “ são o homem a acontecer”), os obstáculos são e serão sempre e apenas, espaços e

tempos de luta e de resistência na construção sólida da nossa identidade pessoal e colectiva ,

entrevemo-los nas páginas do “HORA DI BAI “ … com as gentes divididas na escolha pela

sobrevivência ou resistência … no partir ou permanecer … num dilema açucarado pela morabeza

do povo ilhéu …

Se à companhia das mornas, estivermos dispostos a juntar-lhes “ Os Flagelados do Vento

Leste “ de Manuel Lopes e o “Chiquinho- Romance caboverdeano” de Baltasar Lopes, estaremos a

oferecer-nos uma oportunidade de re-vivermos no nosso Norte e na companhia de convidados do

Sul , o que de melhor o encontro literatura e filosofia nos pode oferecer : a reflexão partilhada do

que fomos e somos , embalados nas “ondas” “di Mar di Canal “ ( o mar que separa S.Nicolau de S.

Vicente) tendo como pano de fundo o sempre renovado “Dilema com Morabeza” … com a

crença de que “ Se cabado / Ca ta birado! “… nas redes das nossas vidas …

Hojy Ya Henda

Page 15: Filosofia e literatura

FILOSOFIA E LITERATURA

LOLITA

Pode a literatura substituir a filosofia? E a filosofia, pode substituir a literatura? A resposta é, em

ambos os casos, negativa. Felizmente, seja para quem aprecia literatura, seja para quem se

interessa realmente pelas questões filosóficas. Mas do facto de literatura e filosofia não serem a

mesma coisa, não se segue que cada uma delas não possa dar importantes contributos para a

outra. A literatura pode fecundar a filosofia tanto como a filosofia pode tornar a literatura fecunda,

cada uma no seu próprio domínio.

Embora os filósofos criem por vezes cenários ficcionais — como o fizeram Platão com a

alegoria da caverna e o anel de Giges, Descartes com o génio maligno, Rawls com a posição

original, Nozick com a máquina de experiências, Searle com o quarto chinês ou Putnam com a

Terra Gémea, entre outros exemplos -, eles estão sobretudo interessados em desenvolver respostas

para certo tipo de questões. Essas respostas consistem em teorias desejavelmente suportadas por

bons argumentos. A tarefa do filósofo é, pois, essencialmente teórica. O poeta e o romancista, por

sua vez, não visam, na maior parte dos casos, resolver problemas nem desenvolver teorias. Mas,

quando se trata de boa filosofia e de grande literatura, tanto o filósofo como o poeta e o

Page 16: Filosofia e literatura

romancista desafiam o leitor e o deixam a pensar, obrigando-o a rever algumas das suas ideias e

convicções.

A grande literatura é, pois, a que consegue testar as nossas intuições mais básicas: as nossas

crenças morais, estéticas, políticas, religiosas, etc. Não é tanto aquela que afaga os nossos

preconceitos e vai de encontro ao que já damos como certo. É antes aquela que nos incomoda,

que nos quer tirar a razão, que nos surpreende sobre nós próprios e as nossas reacções, fazendo-nos

vacilar e pensar novamente. E a grande literatura é grande não só por isso mas também porque o

consegue fazer com elegância e subtileza — o segredo da sua eficácia —, sem nos dizer o que

devemos pensar ou o que devemos sentir. É por isso que os romances em que o narrador se põe a

pensar pelo leitor me parecem insuportáveis. Ora, um desses romances não é certamente Lolita, do

escritor russo Vladimir Nabokov.

Lolita, originalmente escrito em inglês mas publicado pela primeira vez em Paris no ano de

1955, é um romance irresistivelmente perturbador. Não foi, de resto, por acaso que a sua

publicação foi proibida em muitos países europeus — e não só — e que nunca deixou de gerar

polémica. Não só porque nos conta a história de uma personagem moralmente sórdida, mas

porque Nabokov o faz com tal requinte, que chega a levar o leitor a simpatizar com tal

personagem, fazendo estremecer as convicções morais mesmo do leitor mais distanciado.

O livro conta a história de um professor de literatura, Humbert Humbert, que vai da Europa

para os Estados Unidos para ensinar literatura numa universidade americana. Acaba por arrendar

um quarto numa casa onde vive uma rapariga com 12 anos, Dolores Haze, com a sua mãe, que é

viúva. Ao mesmo tempo que a mãe de Dolores se sente atraída pelo professor, este fica

imediatamente apaixonado por Lolita — o diminutivo de Dolores. Humbert Humbert acha a mãe de

Lolita completamente desinteressante senão mesmo detestável, mas acaba por se casar com ela

como estratégia para continuar perto de Lolita. Pensa depois insistentemente em matar a sua

insuportável mulher, mas não tem coragem. Contudo, a sorte oferece-lhe esse tão desejado

presente, deixando-o como único responsável pelo sustento e pela educação da menor Lolita — a

sua ninfita, como lhe chama. Isso leva-o a envolver-se numa relação incestuosa e pedófila com

Lolita.

Ora, tudo isto é moralmente repugnante. Contudo, só um escritor genial consegue tornar uma

história destas irresistível, a ponto de deixar o leitor ávido, surpreendido e mesmo irritado com a sua

Page 17: Filosofia e literatura

própria complacência em relação a uma personagem tão execrável. E este é o aspecto

filosoficamente mais interessante do romance, na medida em que funciona como um teste às

nossas intuições morais mais básicas, tal como os filósofos imaginam situações hipotéticas para

testar as nossas convicções e as suas teorias. As teorias filosóficas não podem ser testadas com

experiências reais. Felizmente, a boa literatura oferece-lhe experiências ficcionais. Mas estas

experiências só funcionam realmente como testes se tiverem impacto real no leitor. Isso é tarefa

para os grandes génios da literatura, como Sófocles, Shakespeare, Walt Whitman, Eça de Queirós,

Fernando Pessoa, George Orwell ou... Vladimir Nabokov.

Outra questão filosófica interessante que Lolita levanta é a do valor da arte, em particular a

relação entre arte e moralidade: será que a grande arte pode ser imoral? Tolstói considerava a arte

como algo valioso por contribuir para o aperfeiçoamento moral de quem a aprecia. Assim, uma

falha moral numa obra implica sempre, segundo ele, uma falha artística, comprometendo

irremediavelmente o seu valor. Esta posição é conhecida como moralismo. A perspectiva de Tolstói

é de tal modo exigente que ele próprio conclui que quase nenhum dos seus romances — Guerra e

Paz e Ana Karenina, por exemplo — tem valor artístico precisamente por os considerar moralmente

fúteis. De acordo com Tolstói, talvez Lolita fosse uma obra literária falhada. Em sentido oposto, o

esteticismo é a perspectiva filosófica segundo a qual nenhum defeito moral é um defeito artístico,

na medida em que a arte é, segundo os esteticistas, independente da moral — uma forma radical

de esteticismo, o decadentismo, consiste em defender que a estética se sobrepõe mesmo à moral.

Resta saber se Lolita é mesmo uma obra imoral. Se encararmos Lolita como uma espécie de

experiência ficcional destinada a testar a firmeza das nossas convicções morais, então talvez seja

uma obra com um grande interesse moral e filosófico. Há quem, como eu, pense que é este o caso

e que é precisamente isso que faz de Lolita um dos mais importantes romances do século XX. Como

diz o filosofo Colin McGinn: “O romance é, de facto, uma obra de grande génio literário,

arrepiantemente sedutor [...]. A nível puramente pessoal, estudar o romance é uma experiência

humilhante para alguém que tenha tentado escrever ficção: o talento de Nabokov é tão

avassalador que nos faz nunca mais pegar desajeitadamente na caneta para escrever.”

Ler Lolita é um desafio intelectual, um teste moral e... um inesquecível prazer estético.

Aires Almeida

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FILOSOFIA E LITERATURA

NO PAÍS DOS PÉS DE VENTO Apoiado na sua enxada, João Machado pasmava olhando para uma papoila

que desabrochava naquele canto do seu jardim como uma madrugada ruiva. A brisa,

tomando-a na mão, tocava com ela uma canção, chocalhando a cápsula cheia de

sementes. João, com um sorriso cheio de dentes, colheu a florrisonha e entalou-a

sobre a orelha para que, à noite, a sua voz vermelha lhe embalasse os sonhos.

Na manhã azul de Março, as gotas de orvalho, na ponta das folhas,estendiam

as asas para voarem até ao Sol. Apoiado na sua enxada, caminhava João Machado

afundando os pés na lama dos regos da horta quando, pasmado, viu seu chapéu fugir

como um pássaro assustado. Pressentira o vendaval cinzento que subia pelas encostas

da serra — um vento tremendo que atirava poeira para os olhos das mulheres e que

arrancava do chão os rapazes novos e magrinhos como o João.

Também João foi arrastado pelo ar. Enquanto voava aos solavancos, puxaram-

lhe as roupas as mãos do vento: a camisa branca, a faixa da cintura, as calças rotas e

os tamancos. Tesouras voadoras dançando com um pente cortaram-lhe o cabelo

rente.

O mesmo vento que lhe arrancou as roupas atirou-o para dentro de um

casaco de lã que lhe picava o corpo; um casaco apertado, cinzento como o pó

levantado pelo vento.

Na cabeça empoeirada, descaindo sobre a orelha onde João tinha entalado

a haste da papoila, enfiou-se-lhe um chapéu, também cinzento, como uma cepa

velha.

Com os olhos lacrimejando, viu João um cento de outros rapazes voando em

seu redor no turbilhão cinzento.

Antes de poder reagir ou mostrar desagrado, sentiu cair na sua mão algo

pesado. Apertou os dedos, pensando que era a sua enxada; mas, afinal, o que

encontrou foi uma espingarda. E disse para consigo: “Para que quero este pau de

cuspir lume?! Com ele não posso plantar qualquer legume…”

Nesse momento, sentiu os pés tocarem no chão. E mais depressa que um

fósforo se desfaz em chama, afundou as canelas numa poça de lama.

Enquanto cada vez mais na lama se afundava, contemplou aquela triste terra

que o Rio dos Lírios banhava. Os jardins junto às suas águas sujas estavam plantados

com brancas tábuas, coroadas de flores murchas… que pareciam não ter fim! O céu

escuro, a lama fria, roubavam àquela terra toda a alegria. E que lama aquela:

malcheirosa… João tinha numa só bota mais lama do que em toda a sua horta.

Ali, sob o céu cinzento, o medo era permanente. De vem em quando caía do

céu um novo pé de vento que revolvia o chão com o estrondo de um trovão e

mandava montes de terra pelo ar. “Que incompetente!”, pensava João, “Não é assim

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que se cava um jardim!. Deve ser por isso que me querem a mim, João Machado,

jardineiro e hortelão experimentado”.

Por um momento ficou a olhar para os pés de vento a revolver a terra com

tanta violência que nem uma ervinha deixavam crescer. Verificou admirado que os

regos daquela horta tinham uma fundura tamanha que neles se podia plantar uma

montanha; e estavam todos tão inundados que neles as sementes se afogavam e

desfaziam aos bocados. E os homens, em vez de uma pá ou enxada, tinham recebido

espingardas, que não lhes serviam para nada.

Em cada minuto passado nas tristes margens do Rio do rio Lys, crescia a

saudade de João Machado pelo céu azul do seu país. Dos dentes-de-leão dourados

que cresciam onde queriam. Das rosas namoradeiras que para o Sol sorriam… Levou a

mão atrás da orelha e apalpou a haste já seca da papoila, que fora, num tempo já

velho, coroada por um par de lábios vermelhos abertos para o céu de Março.

João decidiu, animado, que havia de ser quem faria nascer a primeira flor

daquele jardim devastado. Talvez uma frésia dourada ou uma rosa perfumada…Por

isso, todos os dias plantava uma sementinha que retirava da cápsula seca de papoila.

Todos os dias contava quantas sementes tinha já plantado no parapeito do buraco

onde dormia. Contou um dia: trezentas e sessenta e cinco. Todas as manhãs,

esperançado, verificava se alguma germinara. Mas nem uma só se via.

Depois de ter plantado a sementinha e espantado a tristeza, ia ter com o

senhor sargento, um homem importante no país dos pés de vento. Este dava-lhe uma

régua graduada com a qual João media os centímetros e os palmos que, da noite

para o dia, a horta crescia ou minguava. Mais coisa menos coisa, a medição dava

sempre o mesmo resultado, sem que João percebesse o sentido de tudo aquilo. Tanto

trabalho por uma terra onde nada conseguia crescer… não era para se perceber!

Por fim, houve um dia em que não choveu e uma brisa trouxe uma grande

semente voadora de cardo misturada com o perfume doce das serras aquecidas pelo

sol. Parecia uma estrela feita de bigodes de gato, à procura de um pedacinho de solo

que quisesse abraçá-la. João Machado apanhou-a com extremo cuidado. Muito

concentrado, usou um dos seus cabelos para lhe atar o sonho de ter um jardim e

mandou-a de volta pelo ar, para que voasse até uma terra onde pudesse germinar.

“Lembra-te de mim!”, pediu-lhe, “ e leva saudades minhas ao meu jardim.

Eram tantas as saudades que sentia do seu jardim abandonado que,

desesperado, começou a usar bocados de tralhas partidas e tortas para fazer um

jardim de coisas mortas: flores de pétalas feitas de rolhas, plantadas em botas velhas;

árvores de espingardas partidas com trapos a fazer de folhas. Um capacete furado,

de verde escuro pintado, quando a luz do sol nele batia parecia uma melancia. De

umas ligaduras velhas fez rosa brancas e vermelhas cujos espinhos eriçados eram de

arame farpado.

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João dedicou-se a esta lida, trabalhando noite e dia, mas cheio de melancolia

por ser um jardim sem vida.

O seu momento de felicidade chegou, por fim, no dia em que descrevia em

versos a saudade que sentia do seu jardim e da serra. Debruçado sobre a folha de

papel, sentiu de repente cair perto dele um tremendo pé de vento que levantou terra

solta. Pensou: “Será que é desta que regresso ao meu jardim abandonado? Se um pé

de vento me trouxe, outro poderá levar-me de volta”. De facto, nesse momento

deixou de sentir o peso dos membros e viu surgirem na folha de papel, vindas do

nada, as pétalas de uma papoila encarnada. Uma, duas, três, quatro, caindo sobre a

folha com um baque. A caneta desceu sobre elas, lentamente, como se tivesse

vontade própria, espalhando uma mancha da tinta azul bem no centro e deslizando a

partir daí para desenhar um caule que unia a corola à terra abençoada.

E João Machado, apoiado na sua caneta, pasmado, deixou que o pé de

vento o levasse para um jardim de sonhos murchos enfeitado.

Paulo Sousa