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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA 1 FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA Marcos Aurélio Fernandes UnB – 2017_2 1 INTRODUÇÃO: DA CONTEMPORANEIDADE DA FILOSOFIA. Em vez de nos informar sobre a filosofia da contemporaneidade nos propomos, neste curso, como um exercício do aprender a pensar, a investigar e meditar a respeito da contemporaneidade da filosofia. O escopo, portanto, desse curso, não é alcançar informação sobre a “filosofia da contemporaneidade”; é, antes, ao contrário, buscar nos deixar introduzir, pelo exercício do aprender a pensar, na “contemporaneidade da filosofia” – e isso quer dizer: em uma nova dimensão de autoiluminação de nosso existir histórico 1 . Isso requer que pensemos, como pressuposto deste tema, a temporaneidade da filosofia e isso, por sua vez, quer dizer: sua historicidade. 1.1 TEMPORANEIDADE E HISTORICIDADE DA FILOSOFIA Aqui, logo de cara, torna-se necessária uma advertência: não se pode introduzir na filosofia, portanto, em sua temporaneidade e historicidade, logo, em sua contemporaneidade, a não ser no próprio movimento do filosofar. É em filosofando que, sempre de novo, nos introduzimos na historicidade da filosofia. “Só a filosofia é começo dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela própria; por fim, só ela pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela pretender introduzir, ou 1 Cf. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens . 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 9.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

1

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Marcos Aurélio Fernandes

UnB – 2017_2

1 INTRODUÇÃO: DA CONTEMPORANEIDADE DA FILOSOFIA.

Em vez de nos informar sobre a filosofia da contemporaneidade nos propomos,

neste curso, como um exercício do aprender a pensar, a investigar e meditar a respeito

da contemporaneidade da filosofia.

O escopo, portanto, desse curso, não é alcançar informação sobre a “filosofia da

contemporaneidade”; é, antes, ao contrário, buscar nos deixar introduzir, pelo exercício

do aprender a pensar, na “contemporaneidade da filosofia” – e isso quer dizer: em uma

nova dimensão de autoiluminação de nosso existir histórico1. Isso requer que pensemos,

como pressuposto deste tema, a temporaneidade da filosofia e isso, por sua vez, quer

dizer: sua historicidade.

1.1 TEMPORANEIDADE E HISTORICIDADE DA FILOSOFIA

Aqui, logo de cara, torna-se necessária uma advertência: não se pode introduzir

na filosofia, portanto, em sua temporaneidade e historicidade, logo, em sua

contemporaneidade, a não ser no próprio movimento do filosofar. É em filosofando que,

sempre de novo, nos introduzimos na historicidade da filosofia. “Só a filosofia é começo

dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela própria; por fim, só ela

pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela pretender introduzir, ou

1 Cf. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 9.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

2

explicá-la, ou justificá-la”2. Deste modo, não há uma passagem que permita que sejamos

introduzidos na filosofia e em sua contemporaneidade a partir da cotidianidade

mediana e de sua autoconsciência pública (aberta a todos), atual, hodierna. Ao

contrário, uma introdução na filosofia e em sua contemporaneidade requer, antes, uma

ruptura com esta autoconsciência atual, hodierna, e, a partir do pensamento, uma

transformação no nosso relacionamento com ela. Não é a autoconsciência da atualidade

que nos permite uma introdução na contemporaneidade da filosofia; ao contrário, é a

nossa introdução na contemporaneidade da filosofia que nos permite um

relacionamento livre com a autoconsciência atual, hodierna. Na verdade, não há

passagem que nos conduza, desde a publicidade do mundo atual para a

contemporaneidade da filosofia. Aliás, nenhuma passagem nos introduz na filosofia,

quer esta passagem parta da cotidianidade, quer ela parta da ciência, quer parta da

visão de mundo, quer parta da arte ou da religião, etc. Não há nenhuma passagem que

nos conduz para dentro da filosofia e da sua contemporaneidade. Só nos resta um salto.

O salto para dentro da dimensão da filosofia. Salto que se realiza, que se consuma e se

cumpre, com o próprio filosofar. Isto quer dizer: com a ação de aprender a pensar – e

isso significa, antes de tudo: aprender a questionar. Questionar, no entanto, não quer

dizer um mero duvidar a esmo, disperso e vazio; quer, antes, dizer: buscar, interrogar,

investigar com todo o cuidado.

Entretanto, questionar é questionar alguma coisa. Aqui surge, portanto, a

pergunta: qual é a coisa do questionamento filosófico, a coisa do pensar, que recebeu o

nome de filosofia? Esta pergunta deverá ser posta e elaborada no percurso de nosso

curso. De início, porém, seja-nos permitido dar uma indicação, a partir da menção e

evocação de um dito de Aristóteles – alguém que, supomos, entendia alguma coisa da

investigação filosófica. No contexto dos escritos dedicados à (prote

philosophía), ou seja, à filosofia primeira, no sentido da filosofia primordial, da filosofia

propriamente dita, encontramos esta indicação do questionado do questionar

filosófico:

2 Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 53-54.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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...

Numa tradução-intepretação esta indicação pode soar assim: “E assim é, pois, o

que já tanto outrora quanto agora quanto em qualquer hora, constitui o procurado para

o qual (a filosofia) se dirige, pondo-se a caminho, e para o qual ela sempre de novo não

encontra acesso, (o questionado desta questão): o que é o ente?”. Este questionamento

pelo “ente enquanto ente”, isto é, pelo ser do ente, do ente como tal e no todo, é que

abre ao filósofo a dimensão da filosofia e, por conseguinte, permite-nos a introdução na

sua contemporaneidade. Uma introdução que – é bom lembrar – não se dá por uma

mera passagem contínua da cotidianidade mediana e pública ou da ciência para a

filosofia, mas por uma ruptura e um salto. É no trabalho da colocação da pergunta pelo

sentido do ser do ente como tal e como um todo que todo o pensador toma o embalo

para o salto da introdução na filosofia e na sua contemporaneidade, isto é, na sua

vigência, na sua presença, na sua atuação e atualidade:

Em filosofia não há possibilidade de introdução. Um

abismo separa o espaço ordinário da existência, em que se

move tanto o modo de ser habitual, familiar e imediato da

vida cotidiana, como o modo de ser objetivo, técnico e exato

da vida científica, do espaço extraordinário, em que se agita

a investigação filosófica. E nenhuma ponte o poderá

transpor. Não, certamente, por estar o espaço da filosofia

demasiado distante e sim demasiado próximo de todos os

modos de ser da existência histórica.

Daí também toda a dificuldade da filosofia para o

homem moderno, que vive, habitualmente, no espaço da

ordem do dia. Dessa perspectiva o mais longo e o mais difícil

dos caminhos é sempre aquele que leva ao que é mais íntimo

e está mais próximo. É tão íntima a presença da filosofia no

país dos homens, que se torna impossível uma introdução e

muito difícil o acesso à sua paisagem. A filosofia já está

3 Kaì de kaì tò pálai te kaì nyn kai aeì zetoúmenon kaì aeì aporoumenon, tí tò ón? (Metafísica, Z, 1, 1028 b 2 ss).

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sempre operando em todo pensamento, que nela se procura

iniciar e introduzir. O único caminho possível é retorno

brusco da existência à sua origem. A paisagem da filosofia

não está em lugar algum, esperando que nela se introduza o

pensamento. A paisagem da filosofia se instaura e origina

pelo movimento da própria investigação filosófica, que,

pondo-se em questão, retorna às origens, donde ela mesma

provém4.

Para fazer a experiência, portanto, da contemporaneidade da filosofia é preciso

abrir o acesso à sua paisagem, o que acontece, segundo o aceno aqui dado, somente

através do próprio filosofar, ou seja, somente pela realização do salto de retorno à

origem da nossa existência histórica. É este salto que opera uma ruptura com a “ordem

do dia”, o ordinário da cotidianidade mediana e pública (aberta para todos), e nos lança

no abismo do extraordinário que compreende e perpassa este ordinário: o ser do ente

como tal e no todo.

Destarte, a filosofia se move no fundo-abismo da existência histórica. Não na

superfície da “ordem do dia”. A sua contemporaneidade, assim, é diversa da atualidade

ordinária do cotidiano. Sua vigência, sua presença, sua atuação e atualidade é de outra

ordem. É da ordem do extraordinário, que, certamente, não exclui o ordinário, mas que,

antes, constitui a sua origem. Desde o ordinário, a filosofia aparece como um afazer

escolar, quer dizer, escolástico, acadêmico, universitário; aparece como uma ciência

entre outras ciências; como uma especialidade. Mas trata-se de uma aparência

deslocada, dissimulada da filosofia. Esta aparência mais encobre do que descobre a sua

paisagem da filosofia. Na aparência do ordinário a filosofia aparece ou como ciência ou

como visão de mundo. Mas, na sua paisagem própria, a filosofia não é nem uma coisa

nem outra – o que não podemos demonstrar logo de cara, mas esperamos que isso fique

claro no percurso de nosso curso. A paisagem própria da filosofia, porém, se abre

quando, pelo pensar-questionar, que se dirige para o ser do ente, retornamos para a

origem da existência histórica, para o fundo-abismo desvelante das possibilidades de

ser. Filosofia não é doutrina, é atividade. É a ação de saltar de retorno a este fundo-

4 Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar (2ª edição). Petrópolis: Vozes, 1989, p. 107-108.

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abismo. É o movimento de redução, isto é, re-condução à origem, de penetração,

sondagem e ausculta do sentido do ser, que incessantemente emerge do abismo

desvelante da existência histórica – da “vida”, da “nossa vida”5.

Na aparência do ordinário, a filosofia se dissimula como uma “especialidade

científica”, com suas várias disciplinas, uma “área de produção de conhecimento”, um

“campo de pesquisa” entre outros, ao lado das demais ciências, presentes na

universidade. Ou então, ela se dissimula como um conjunto de visões de mundo, de

correntes e tendências, de doutrinas e “ismos”, mais ou menos influentes na cultura de

hoje. Mas, na sua dimensão-paisagem própria, a filosofia não é produção de

conhecimento objetivo, técnico, útil, que constrói e progride; é pensamento que

questiona e que, questionando, destrói e regride, certamente, não no sentido de uma

mera aniquilação, mas no sentido do retorno à origem da existência história, ao abismo

desvelante da possibilidade de ser de que esta emerge. Na sua paisagem própria, a

filosofia é memória desta origem e, ao mesmo tempo, espera do inesperado. Na

aparência do ordinário, a filosofia é visão de mundo, imposição de ideias e ideários, de

ideologias, de doutrinas e “ismos”. Mas, na sua paisagem própria, que é a paisagem do

pensamento do ser, a filosofia é finita, vazia e pobre, frágil e vulnerável – ela não presta

para nada, não serve para impor nada. Melhor, ela apenas propõe o nada – a saber, o

nada criativo do abismo desvelante da possibilidade de ser. Trata-se de uma finitude

alegre e grata – que fica à vontade no “sei que nada sei”. No entanto, é nessa e em

virtude dessa fraqueza que a filosofia consuma o seu vigor, torna-se presença atuante e

atual, embora velada, no país dos homens – fraqueza que se retrai e se encobre,

dissimulada pela aparência de poder e de força da ciência e da visão de mundo, na

exuberância das muitas “filosofias”. Não obstante a pluralidade das “filosofias”, a

filosofia – entendida não como doutrina, mas como atividade de pensar-questionar o

sentido de ser do ente como tal e no todo – é sempre a mesma, embora nunca é igual.

É sempre e cada vez a mesma exposição vulnerável, afetável, para o sentido insurgente,

emergente do sentido de ser do ente como tal e no todo. Esta exposição é o movimento

corajoso do questionamento. É a radicalização da autonomia humana. É engajamento

5 Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2009, p. 78-80.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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de libertação dos condicionamentos do ordinário para a liberdade criativa do

extraordinário, que é o mistério de ser6.

Isso tudo nos convida a estranhar a temporaneidade e a historicidade da filosofia

enquanto filosofar. A filosofia dissimulada em ciência e visão de mundo aparece no

tempo como um resultado, um produto cultural de uma civilização, numa dada situação

histórica. Contudo, a filosofia enquanto filosofar é temporânea e historial em outro

sentido, a saber, no sentido de ser tempo, de ser criação de história. A filosofia,

entendida no seu sentido originário, como a realização do pensar, em que acontece a

correspondência, pela linguagem, ao apelo do mistério de ser, é tempo, é história7.

Assim sendo, a necessidade da filosofia é de outra dimensão que as necessidades da

ordem do dia. As necessidades da vida cotidiana são as premências do útil. A

necessidade da filosofia é a necessidade do desnecessário, a premência do que contorna

toda a premência, a necessidade da liberdade, do não-útil, isto é, do livre, do fundo-

abismo desvelante da possibilidade de ser, da gratuidade fontana. Com efeito, é na terra

dessa gratuidade que o homem habita e é a partir dela que ele constitui mundo. Os

entrelaçamentos das necessidades do útil no seu todo, com suas premências, as quais

pertencem ao cuidado da vida cotidiana, repousam sobre o fundo-abismo da

necessidade da liberdade criativa (scholé, otium). Essa necessidade coincide com a

necessidade da filosofia. É essa necessidade da liberdade – da liberdade como o livre e

o libertador, que está resguardado no não-útil, na gratuidade fontana – que dá à filosofia

sua importância, sua nobreza. Da importância do não-útil, do desnecessário, nos lembra

uma imemorial história chinesa:

Hui-tzu disse a Chuang-tzu: “Você fala do

desnecessário”. Chuang-tzu falou: “primeiramente carece de

alguém reconhecer o desnecessário, antes de poder falar

com ele do necessário. A terra é larga e grande, e, no

6 Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2009, p. 91-94. 7 Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 39. Cf. também Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 25-26.

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entanto, o homem carece, para ficar de pé, só daquele tanto

de lugar necessário onde ele põe o pé. Porém, se, ao lado

dos pés, se lhe arrancasse toda a terra, abrindo-se-lhe um

abismo, aquele tanto de lugar ainda lhe seria útil? ” Hui-tzu

falou: “não lhe seria mais útil”. Falou, então, Chuang-tzu:

“daí resulta com clareza a necessidade do desnecessário”8.

Filosofia, entendida não como ciência ou teoria, como produto de

conhecimento, mas como empenho e realização de pensamento, de correspondência,

na linguagem, ao apelo do mistério de ser, é a necessidade livre fundamental,

primordial, do humano. E, na medida em que acontece como esta realização, ela é a

história ela mesma e o tempo ele mesmo9. Neste sentido, de todo os modos de ser da

existência humana, a filosofia é o mais fundamental. Enquanto modo de existir do

homem no seu relacionamento de ser com o mistério de ser, relacionamento que

acontece como o pensar, na linguagem, a filosofia não é propriamente uma

manifestação no tempo, dentro da história, mas é, mais propriamente, o acontecer do

tempo, da história. Sua historicidade, neste sentido, é primordial, e anterior à

historicidade da técnica e da ciência, e, até mesmo, da historicidade da arte e daquela

que é própria da religião. A filosofia, assim entendida, tem um modo próprio de se

encaminhar; tem a sua própria cadência e decadência; o seu próprio ritmo e a sua

própria dinâmica de maturação, que não podem ser compreendidos a partir da dinâmica

da técnica ou da ciência, nem mesmo a partir da dinâmica da arte e da religião. Ela não

tem uma forma de historicidade; ela é a forma da historicidade ela mesma

acontecendo10.

Tendo em mente o que acabamos de refletir, podemos, agora, tentar pensar algo

sobre a contemporaneidade da filosofia.

8 Esta versão do diálogo foi construída tendo como referência a sua menção em: HEIDEGGER, Martin. Feldweg-Gespräche (1944/45) – Gesamtausgabe Band 77. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 239. Também foram cotejados os textos: Chuang-tzu, traducción de Carmelo Elorduy (s.l.): Monte Avila Editores (s.d.), p. 199 (cap. 26, 7); e MERTON, Thomas. A via de Chuang-tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 225-226. 9 Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 33. 10 Cf. Idem, p. 37-44.

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1.2 A CONTEMPORANEIDADE DA FILOSOFIA A PARTIR DA SUA

INTEMPESTIVIDADE

Se filosofia é aprender não pensamentos, mas a pensar11, e se pensar é o

relacionamento de ser do homem com o mistério de ser do ente como tal e no todo, e

se neste relacionamento é que o tempo vem a ser propriamente tempo e a história vem

a ser propriamente história, então a contemporaneidade da filosofia há de ser pensada

segundo a temporaneidade primordial e a historicidade fundamental que lhe é própria.

No exercício de aprender a pensar é preciso medir-se com o desafio de ser

contemporâneo da contemporaneidade da filosofia. Mas, para ser contemporâneo da

contemporaneidade da filosofia é preciso ser extemporâneo, isto é, inoportuno,

intempestivo, em relação ao “nosso tempo”, ao que nos é “coetâneo”. É a indicação de

Nietzsche, recordada por Giorgio Agamben12. No início da segunda das suas

“Considerações intempestivas” (Unzeitgemässe Betrachtungen)13, Nietzsche escreve:

“Intempestiva esta consideração o é porque procura compreender como um mal, um

inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha, isto é, a sua

cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da história e

deveremos menos disso nos conta”. Agamben comenta:

Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua

“contemporaneidade” em relação ao presente, numa

desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente

ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele

que não coincide perfeitamente com este, nem está

adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido,

inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse

11 Cf. a indicação programática de Kant expressa: “nicht Gedanken, sondern denken, nicht Philosophie, sondern philosophieren lernen” (aprender não pensamentos, mas a pensar, não filosofia, mas a filosofar) (AA II, 306 e AA, IX, 25ss). 12 Cf. Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 58. 13 “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben” (Da utilidade e dano da história para a vida) - Este texto foi escrito em 1873 e publicado em 1874.

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deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que

os outros, de perceber e apreender o seu tempo14.

O filosofar é, pois, neste sentido, sempre inatual. Isso quer dizer: sua atuação e

atualidade se separa, se cinde, da atuação e atualidade do mundo da cotidianidade

mediana pública (aberta para todos), do “saeculum”, o tempo histórico coletivo tal

como se manifesta na abertura deste mundo cotidiano, mediano, acessível e patente a

todos15. Sem uma ruptura com e um distanciamento do próprio “saeculum” não há

como nos deixar introduzir na contemporaneidade da filosofia.

Sem tal ruptura e tal distanciamento, o homem não se põe à altura da exigência

desta contemporaneidade e, ao mesmo tempo, não se torna capaz de um

relacionamento livre – e isso quer dizer, responsável – com o seu próprio “saeculum”.

Trata-se, pois, aqui, de viver filosoficamente a cotidianidade e cotidianamente a

filosofia. Bem o compreendeu Nietzsche. Em “Origem da tragédia” ele escreve: “todo

homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás

da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente e que, por

consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda”. Viver filosoficamente

a cotidianidade significa: entrever no ordinário o extraordinário. Viver cotidianamente

a filosofia quer dizer: deixar que o relacionamento de ser e pensar com o mistério de ser

– o extraordinário - perpasse todos os demais relacionamentos ordinários. Esta atitude

parece ser própria do “homem filósofo” (anér philósophos), que é, certamente, algo

diverso de um “homem filosófico”16. De Heráclito, que era um homem filósofo,

Aristóteles conta uma história que diz bem o sentido desta atitude:

Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria

respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo.

Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali

permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque)

ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar, pronunciando

14 Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 58-59. 15 Cf. idem, p. 60-61. 16 Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 31.

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as seguintes palavras: Mesmo aqui, os deuses também estão

presentes17.

O olhar dos curiosos turistas não encontrou nada de “interessante” no que

viram: o pensador se aquecendo junto do forno num dia frio. Heráclito leu no olhar

destes visitantes estranhos a decepção da curiosidade. E, no entanto, os encoraja a se

deixar tocar e surpreender pela presença do pensamento – e isso quer dizer: do mistério

de ser – no cotidiano. (einai gar kai entautha theous) –

“mesmo aqui, os deuses também estão presentes”. Mesmo aqui, junto ao forno, no

lugar mais cotidiano; mesmo agora, no momento mais comum; mesmo nesta situação

mais familiar e ordinária... os deuses também estão presentes. O divino vige, para os

gregos, como a vigência e presença do extraordinário no ordinário. Divina é, para os

gregos, a múltipla cintilação do mistério de ser. Divina é a visão do extraordinário se

expondo na dimensão do ordinário. Divino é o espetáculo do retraimento do simples

mistério de ser se dando multiplamente no acontecer do ente – o espetáculo da

(alétheia) que se dá por todo o lugar e a todo o momento. Este espetáculo

ordinário do extraordinário não passa despercebido ao olhar do pensador – do homem

filósofo; embora passe despercebido ao olhar dos curiosos. O extraordinário – os deuses

– vigora no ordinário; o espetáculo da aparição do ser acontece por todo o lugar e a todo

o momento na inaparência do cotidiano. O extraordinário não é nada de “interessante”,

de extravagante, de excitante, de estimulante. Dá-se como o abrigo do ordinário, como

o que alberga o cotidiano. Na pobreza do cotidiano o extraordinário do mistério de ser

doa seus dons. A dádiva do fogo, a dádiva do pão, são como que sinais do extraordinário

– são os (theoí), ou seja, os(theáontes): as visões e contemplações do

mistério que nos fita; são os (daímones), ou seja, os (daíontes), os

que se acendem e cintilam, ardem e brilham como doações do mistério de ser. O fogo -

(pyr) – é luz e calor; é o extraordinário se dando na intimidade do ordinário, no

coração da casa, na cozinha, no fogão, no forno. Mas é preciso ter “visão fontana” para

ver (recorro aqui a uma expressão do poeta Manuel de Barros)18: visão de homem

17 Aristóteles, De partibus animalibus A5 645 a 17ss. Apud Heidegger, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental; lógica: a doutrina heraclítico do lógos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 22. 18 Em seu comentário à metafísica (I,3) Tomás de Aquino anota: “o filósofo se parece com o poeta porque ambos se ocupam do que é admirável, do que suscita pasmo e estupor”.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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filósofo - (theoria). Trata-se de uma visão que se realiza como um

relacionamento claro, e-vidente, com as aparições do ente. Mais ainda: trata-se de uma

visão que considera respeitosamente a revelação do ser – a (alétheia) –,

protegendo o seu mistério19.

19 Cf. Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e conferências. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2001, p. 45-46. Heidegger, neste texto, propõe duas compreensões de “theoria”, em sentido grego. 1) Numa primeira compreensão, que se afina mais com a compreensão filosófica platônica (metafísica), o verbo grego (theoreín) é elucidado a partir da composição de (théa) e (horáo). (théa) é, em latim, aspectus, e em alemão “Anblick”, isto é, a “vista”, a “visão”, tanto no sentido do que se deixa ver quanto no sentido do ato mesmo de ver, o olhar (anblicken – aspicere, intueri). (théa) tem assim, também, o sentido de aparência, semblante, fisionomia, perfil. (théa) é também o espetáculo teatral, ou, ainda, o lugar para ver o espetáculo no (théatron: teatro). (théa), portanto, quer dizer aquilo em que algo se mostra, a vista ou visão que algo oferece de si. Platão chama este aspecto, em que o vigente mostra o que ele é de (eidos). Na compreensão grega, saber, (eidénai) é ter visto o aspecto em que o ente mostra o seu ser, no sentido de aquilo que ele é. Já o verbo (horáo) quer dizer olhar alguma coisa (aspicere), mirá-la, fitá-la, encará-la, perceber a sua presença, sua autodoação (intueri – intuir). (horáo) quer dizer, pois, estar ao conspecto (conspectus) de algum ente, em face dele, tê-lo como uma “res praesens” (coisa presente), auto-vista, auto-apreendida (cf. a expressão grega - autopsia – ver com os próprios olhos, observar diretamente alguma coisa). (horáo) é, portanto, conspicere, olhar, ver, no sentido de avistar, divisar, enxergar; e, noutro sentido, considerar, pensar, compreender alguma coisa. (theoreín) quer dizer, pois, (théan horan), aspectum conspicere: divisar a vista, enxergar o aspecto, em que o vigente ou presente aparece e brilha, e, através de tal aspecto, demorar no ver, observar, considerar, contemplar.2) Numa segunda compreensão, (theoreín) escuta-se a composição de (theá) e (ora). (theá) é a deusa. É como deusa, o extraordinário do espetáculo da revelação do mistério de ser, que a (alétheia) aparece para Parmênides, no seu poema. Já (ora), que também remete a (horáo), olhar, ver, enxergar, em latim deixa-se traduzir por cura, que quer dizer cuidado, diligência, solicitude, atenção. Trata-se de um olhar cuidadoso e de um cuidado atento, que se dá na forma de um respeito, de uma consideração, por aquilo a que se dirige e com o que se relaciona; um cuidado, portanto, que honra aquilo a que se volta. (theoria) é, neste sentido, a consideração respeitosa da revelação, do desocultamento (Un-verborgenheit), do vigente em sua vigência, é a visão protetora da verdade. Enquanto a raiz (id-) indica um ver momentâneo, instantâneo, a raiz (hora-), porém, indica um ver que se demora, que se dedica longamente a cuidar daquilo para se dirige e para o que se relaciona, diz um ter os olhos fitos sobre alguma coisa, demorada e cuidadosamente. É uma percepção que se realiza no modo de um cuidado respeitoso para com aquilo que se dá a ver, para o que se apresenta em sua presença, em sua vigência. Aquele que olha, neste caso, vela sobre aquilo que se confia ao seu olhar. Ele se torna um guardião, um protetor do vigente em sua vigência (do ente em seu ser). Algo desta raiz (hora-), que, inicialmente, deveria ter um digama (Ϝaparece na língua latina como em vereor (vereris, vereri, veritus sum) que quer dizer respeitar, no sentido de ter um receio, um medo religioso, frente ao mistério. Também aparece no latim no verbo servo (servas, servare, servavi, servatum) que quer dizer preservar, guardar, assegurar a salvação ou a conservação de alguma coisa e, daí, também, o sentido de não tirar os olhos de, observar, vigiar; e, por conseguinte, o sentido de não sair de perto de, não largar, permanecer, ficar junto de, habitar. Talvez devêssemos entender a palavra latina veritas (verdade) a partir daí. No antigo alto-alemão temos a palavra wâra como correspondente de veritas. No antigo alto-alemão temos também o adjetivo wâr para verdadeiro. No alemão moderno temos, assim, o adjetivo wahr (verdadeiro), o qual, segundo o dicionário Grimm, remonta a uma formação intensiva reduplicadora de warôn, que quer dizer, em latim, custodire (custodiar), tegere (cobrir, vestir, revestir; garantir, proteger, ocultar, esconder, abrigar) [a partir daqui temos, em latim, as palavras tegula (telha), tegumentum (cobertura, vestido, proteção)], protegere (cobrir pela frente, abrigar, garantir, proteger), conservare (conservar, defender, salvar, respeitar, guardar, observar fielmente), cavere (tomar cuidado, precaver-se, acautelar-se; e, daí, velar por, cuidar de, olhar pelos interesses de, tomar providências para), tueri (ver, olhar, observar; guardar, proteger, defender,

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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A ruptura e o distanciamento do homem filósofo em relação ao mundo de seu

tempo o torna solitário. Mas a solidão do homem filósofo não é isolamento. Ela é um

modo de estar mais próximo da proximidade de todas as coisas: “Pois a solidão traz

consigo a força primigênia que não nos isola mas lança toda a existência na proximidade

profunda de todas as coisas”20.

A ruptura e o distanciamento, a solidão, portanto, do homem filósofo, que lhe

abre a paisagem do extraordinário, não tem a ver com misantropia e

descomprometimento com as coisas da vida ordinária do país, da terra dos homens:

Em 1888, quando mais distância, mais silêncio e

solidão se cavavam na vida de Frederico Nietzsche, ele

escreveu uma carta, datada de 14 de abril, a seu amigo,

músico e musicólogo, Carl Fuchs. A carta é escrita de Turin e

nela Nietzsche fala justamente do lugar, da cidade que o

atrai e o encanta. Uma cidade, diz ele, “para o meu coração,

afinda comigo... silenciosa, quase solene”. Fala da

proximidade dos Alpes, das montanhas, dos gelos. Diz ainda:

“Para cá arrastei toda a minha cangalha de preocupações e

de filosofia”. Por fim, lembra de sua casa, de sua moradia de

verão em Sils-Maria, na região da Alta Engadina, e comenta:

“minha paisagem, tão distante, tão apartada da vida, tão

metafísica...” E conclui: “Como tudo se distancia! Como tudo

se afasta! Como a vida se faz silenciosa, calada! Ao redor de

mim, nenhum homem que me conheça. Minha irmã na

velar). De modo semelhante, temos no alemão moderno o verbo wahren que quer dizer cuidar de, defender (por exemplo, os direitos de), salvar, guardar (a dignidade de algo ou alguém). É partir daqui, pois, que se há de entender a palavra alemã Wahrheit (verdade). Na segunda compreensão, mais originária do que a primeira, e talvez esquecida e encoberta pelo entendimento metafísico predominante, (theoria) é a (ora) – a cura (cuidado), a diligência, a solicitude, a consideração protetora, vigilante, da (theá), ou seja, da deusa, a saber, do extraordinário da revelação do mistério de ser no ente, da verdade no verdadeiro. Em consonância com isso, em grego temos a palavra (theorós) para designar aquele que se relaciona com o mistério, seja pela consulta de um oráculo, pela assistência de uma festa dedicada a um deus, seja pelo assistir de um espetáculo teatral. (Theários) era, assim, um dos epítetos de Apolo, deus dos oráculos. Antes de Platão, deste modo, (theoria) significava o envio de embaixador para assistir uma festa dedicada a uma divindade. É partir de Platão que aparece o sentido de consideração, contemplação; e só no grego helenístico é que a palavra toma o sentido de especulação. 20 Heidegger, Martin. Em: “Por que ficamos na província? ” (1934). In: Revista Vozes, ano 7, n. 4, Maio de 1977, p. 45.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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América do Sul. Cartas, cada vez mais raras. E ainda não sou

velho! Somente filósofo! Somente à margem, à parte!

Somente comprometidamente à parte! ” 21

Nietzsche, como Descartes, comprometem-se com o seu tempo e com o futuro,

“à parte”. Estranho paradoxo. Descartes, nos tempos da revolução do pensamento do

século XVII, retirou-se para a Holanda, onde, dizia ele, “pude viver tão solitário e retirado

como nos desertos mais remotos”22. Ortega y Gasset recorda-nos do trocadilho que

faziam com o nome de René Descartes. Em vez de se dizer “Monsieur Descartes”,

chamavam-no de “Monsieur D’Écart” (Senhor à parte)23. Justamente este apartamento,

este distanciamento, do mundo de seu tempo, que torna o filósofo capaz de realizar o

seu comprometimento com a história. A este apartamento e distanciamento Nietzsche

chama de “metafísico”. O filósofo, para ser comprometido com o seu tempo, precisa

aprender a morar no espanto diante do simples. Este espanto gera a quietude. Na

quietude, o distante se torna próximo24.

Ser filósofo é morar, é habitar o lugar de todas as

coisas, é co-fazer a gênese da gênese e, para isso, é preciso

ser trans-, isto é, meta-físico. É assim que a autêntica

filosofia, em sendo distanciamento, afastamento, configura-

se como radical comprometimento com o real, com este

mundo atual, com o aqui e agora, do qual ela

concomitantemente se distancia e se afasta – estranho este

aproximar-se à medida que se afasta e afastar-se à medida

que se aproxima! E isto porque, ao fazer-se isso, se é

histórico, isto é, se é comprometimento e participação na

dinâmica do devir, de vir a ser real do real, o que define a

única realidade ou a autêntica realização da realidade25.

21 Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009, p. 26. 22 Discurso do método, parte 3. 23 Gasset, O. Sobre la razón histórica. Madri: Alianza Editorial, 1983, p. 31. 24 Cf. Hanna Arendt. Martin Heidegger faz oitenta anos. 25 Fogel, Gilvan. Idem, p. 25.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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O compromisso do filósofo é, pois, com a realização da realidade, a qual é

temporânea, no sentido de, a cada momento, incluir passado, presente e futuro. Para

ser contemporâneo, com efeito, o pensador precisa ser comprometido com o arcaico.

Na filosofia, o que vale não é a originalidade (inovação), mas a originariedade, isto é, a

profundidade do relacionamento com o arcaico. No dizer de Agamben:

De fato, a contemporaneidade se escreve no

presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e

somente quem percebe no mais moderno e recente os

índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser

contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké (sic), isto

é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num

passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico

e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir

nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida

psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo, a

proximidade – que define a contemporaneidade tem o seu

fundamento nessa proximidade com a origem, que em

nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente26.

O arcaico (o originário) é imemorial. O originário não pertence meramente a um

momento que passou (das Vergangene), ao passado no modo do pretérito perfeito

(Vergangenheit), mas é o que, tendo sido, se recolheu no seu vigor, e, assim recolhido,

latente (Gewesenheit), vige no presente. E essa sua vigência como ausente e latente que

se vela no presente e patente é sua contemporaneidade. Por isso, o pensamento, para

ser contemporâneo, tem que ser arqueológico, isto é, preciso pôr-se no interesse de um

relacionamento compreensivo com o arcaico. Ele precisa se compreender, se entender,

com a origem, com sua vigência no presente.

Entretanto, para ser contemporâneo, o pensamento precisa também responder

e corresponder ao apelo do futuro, do porvir (por-vir). O pensamento precisa, assim, ser

preparatório, precursor. O pensamento preparatório tem como tarefa clarear o espaço

clarear o espaço em que o homem, no tocante à sua vigência essencial, poderia entrar

26 Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 69.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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de novo num relacionamento originário para com o advento do mistério de ser na

realização da realidade. Heidegger comparava a dinâmica destes “pensar preparatório”,

propedêutico (vorbereitendes Denken), com o trabalho de uma semeadura:

Ser preparatório é a essência de tal pensar. Este

pensar essencial e, por isso, por todo o lado e segundo cada

perspectiva, apenas preparatório, move-se no

imperceptível. Aqui, cada pensar-com, por mais inábil e

tacteante que se apresente, é uma ajuda essencial. O pensar-

com torna-se na discreta sementeira, que não se confirma

nem pelo prestígio nem pela utilidade, de semeadores que

talvez nunca vejam espiga e fruto, e que não conhecem

colheita. Eles servem para a sementeira e, ainda antes, para

a preparação desta. Antes da sementeira vem o arar. Trata-

se de tornar arável o campo que, através do imprescindível

predomínio da terra da metafisica, tinha de permanecer no

desconhecido. Trata-se primeiro de pressentir este campo,

depois de encontrá-lo, e depois de cultivá-lo. Trata-se de

abrir uma primeira passagem para este campo. Há ainda

muitos caminhos do campo (Feldwege) ainda

desconhecidos. Contudo, a cada pensante está atribuído, em

cada caso, apenas um caminho, que é o seu, em cujos rastos

tem sempre de voltar a ir e vir, para finalmente o reter como

seu, mas sem que nunca lhe pertença, e para dizer o que

nesse caminho é experimentável27.

Esse pensamento preparatório está, pois, voltado para o porvir, para o futuro.

Ele se mantém na finitude. Não deixa de ser, porém, espera do inesperado, ainda que

na situação desoladora do momento histórico de hoje.

27 Heidegger, M. Caminhos de floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 244-245.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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1.3 A FILOSOFIA E O HOJE

O que significa hoje? O que constitui o caráter de ser hodierno do hoje?

O hoje diz respeito à facticidade de nossa vida e à sua temporalidade-

historicidade. Facticidade designa o caráter de ser de nosso próprio ser-aí, de nossa

presença, ou seja, de nosso estar-aí-no-ser (Dasein), mais precisamente, do nosso estar-

aí-no-ser que é a cada vez (jeweilig)28. O ser-a-cada-vez (Jeweiligkeit) se mostra, por seu

turno, como um demorar (verweilen), isto é, como o estar de uma estada, o parar de

uma parada, o quietar, como um perdurar e permanecer aí, junto de alguma coisa (Da-

bei, Da-sein)29. Este ser ou estar nunca é objetivo, isto é, nunca se deixa apreender a

modo de objeto. É a nossa situação. O fenômeno da situação é anterior à distinção de

sujeito e objeto. A situação é mais real que toda a objetividade. Ela é também mais

fundamental que toda a subjetividade. Ela é um fenômeno unitário, que não se deixa

captar a partir da dualidade sujeito-objeto. A facticidade é, pois, a cada vez, nossa

situação e sua respectiva ocasião, com suas oportunidades e inoportunidades. Este “a

cada vez” (jeweilig), diz um perdurar e durar, diz a permanência e o quietar numa

paragem (Weile). Facticidade diz: “O como do ser abre e delimita o ‘aí’ possível em cada

ocasião”30. Para o homem ser é viver; mais precisamente, viver no espaço de jogo da

compreensão de ser. O verbo ser na expressão ser-aí tem, pois, um sentido transitivo,

“ser a vida fática”, no sentido de abrir e delimitar o espaço-tempo da vida, em que, a

cada vez, nos encontramos a nós mesmos (neste ou naquele pathos, ou seja, nesta ou

naquela tonância, vibração ou afinação, ou disposição), nos compreendemos e nos

28 Cf. Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 13. 29 Era este fenômeno do permanecer (verweilen) que veio à palavra grega (ousía). O ser do ente fora compreendido, assim, como o vir à presença, no sentido de vir a estar numa estabilidade, como o que subjaz aí. Daí pode-se entender a tradução de (ousía) para substantia, isto é, a estância do que prejaz ou subjaz. No latim, stantia é o lugar, o recinto, onde alguém se detém e se recolhe (daí, no italiano, Stanza, para quarto). O stare (sto, stas, stare, steti, statum) tem o sentido de estar ereto, mas também o sentido de estar imóvel, de ficar firme, e, por conseguinte, de estacionar, parar, morar, persistir. Na língua portuguesa, estância é o lugar onde se está ou se permanece por algum tempo; daí, significa parada, paragem, estação. No Rio Grande do Sul chama-se de estância a fazenda. Estância é o paradeiro, a morada. Verweilen remete a Weile, que é a permanência, no sentido do quietar da quietude. Weile, seria, em latim, quies, quiescere, quietus. O parar, porém, entendido como o quietar e a sua quietude, não é entendido como uma carência do movimento, mas, antes o contrário, como sua plenitude. Por isso, Aristóteles, por exemplo, entendeu a (ousía) no sentido da (enérgeia): a realidade dando-se como plena realização do real, mais precisamente, deste real que é cada vez – o (tóde ti). 30 Heidegger, idem, ibidem.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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interpretamos31. Hoje quer dizer: a facticidade que nos concerne, que nos toca, a cada

vez. O hoje é uma determinação do nosso ser-aí-a-cada-vez – é o a cada vez estar,

permanecer (Je-verweilen), na atualidade (Gegenwart), naquela que é a cada vez a

nossa, atualidade que é sempre historial, que se realiza sempre como um modo de ser-

no-mundo (In der Welt sein)32.

Atualidade (Gegenwart) é a presença do tempo presente. Nessa presença,

porém, vige latente o passado, o arcaico. Nessa presença, ao mesmo tempo, vige o

esperar (warten) do porvir, do futuro (Zukunft). Na atualidade estamos abertos para e

projetados na direção do vindouro. Ela requer de nós a atenção para, a espera do

inesperado. Nessa espera do inesperado nós somos atualidade33. A espera do

pensamento não é nenhuma expectativa, nenhum cálculo futurológico, ou coisa

parecida. A espera do pensamento é a espera do puro vir e advir. É uma esperança de

ser. É espera do inesperado. No dizer arcaico de Heráclito:

“se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem

vias de acesso”. Trata-se da atitude de prontidão para o apelo do ser que se manifesta

como a palavra do tempo, para o “kairós”35. Esperar é, aqui, pois, assumir, na atualidade,

a responsabilidade pelo porvir, no sentido de corresponder ao apelo de ser na palavra

do tempo – ao “kairós” e o que ele reivindica.

A interpretação hodierna do hoje, porém, costuma se entregar ao que de início

e na maioria das vezes se dá no cotidiano do nosso ser-uns-com-os-outros público

mediano, massificado. Orienta-se pelo falatório, pelo que se diz por aí. Esta

interpretação é ditada pelo “a gente” (man) que é todo mundo e que, no fundo, é

ninguém36. Hoje, os meios de comunicação de massa e as redes sociais na internet

difundem e ao mesmo tempo determinam em grande parte esta auto-interpretação de

nosso ser-no-mundo. Outros níveis de interpretação do hoje podem ser alcançados com

31 Cf. Heidegger, idem, ibidem. 32 Cf. Heidegger, idem, p. 37-38. 33 Cf. Heidegger, Martin. Feldweg-Gespräche (1944-1945) (GA Band 77). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 227. 34 “Ean mê élpêtai, anélpiston ouk exeurêsei, anexereúnêton eòn kaì áporon”. Fragmento 18. 35 Cf. Heidegger, Martin. Idem, p. 228. 36 Cf. Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 37-41.

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a sondagem da consciência história hodierna no campo da “cultura” em geral; outro,

ainda, nas realizações da filosofia. Nosso estudo pode abrir pequenas sendas nesta

direção. Em vez, porém, de descrevermos as “mais interessantes tendências” da cultura

e da filosofia hodierna, que satisfaça nossa curiosidade, nos propomos uma meditação

mais modesta e, ao mesmo tempo, mais concentrada.

Tentemos começar isso com duas perguntas: como o pensamento se mede com

o hoje? E: O que há com o pensamento hoje?

Filosofia não é ciência, nem doutrina. É ação e atividade. De que? Resposta: de

pensar. E o devotamento do pensar consiste em questionar. Questionando o sentido de

ser de tudo quanto é, o pensamento entra e participa na gênese da realidade. Pensar é

“um tomar parte na própria vida do real”37. Para isso, para vencer a inércia da irreflexão,

para superar a falta da necessidade de questionamento, o pensamento precisa pôr-se

contra o mundo hodierno. “Este mundo é, por um lado, o aguilhão que nos açula e, por

outro, o ópio que nos entorpece”38. Seguindo as tendências e os ritmos do mundo nós

não vivemos, vamos sendo vividos, e isso de modo desatento, como se estivéssemos

adormecidos. Porém, o pensamento, isto é, a participação vital no real, vai contra esta

tendência “natural”, isto é, habitual.

Assim sendo, à pergunta “O que há como

pensamento hoje? ”, cabe de cara responder: o que sempre

houve, a saber, trata-se de, aqui e agora, tal como sempre e

por toda a parte, reivindicar para si e cumprir uma dura e

insone tarefa, que é o esforço do pensamento se conquistar

a si próprio, isto é, conquistar a lucidez, a clarividência, que

é a entrada na própria vida, na própria dinâmica de realidade

se realizando. Trata-se do esforço enorme e desconcertante

de: despertar-se! 39

Aquele que consegue realizar de algum modo e em alguma medida torna-se

contemporâneo de si mesmo. Mas, a realização dessa tarefa, e, vale dizer, o tornar-se

37 Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009, p. 59. 38 Idem, ibidem. 39 Idem, ibidem.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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contemporâneo, não é nada fácil. De fato, ser contemporâneo de si é muito mais do que

ser coetâneo do próprio mundo em que se vive, ou melhor, em que se é vivido.

O autêntico contemporâneo de si é aquele que é

capaz de sair de si, de afastar-se do mundo que lhe é

demasiado próximo na medida justa para poder ver-se,

situar-se – em vendo o mundo que ele é. É preciso poder

fazer isso, conquistar este movimento e esta postura, para

ter o direito de se autodenominar contemporâneo. É difícil,

é muito difícil, é mesmo raro alguém ser contemporâneo –

contemporâneo de si40.

O hoje em que vivemos somos nós. Ele vive em nós e nós vivemos imersos nele.

Por isso, a conquista da lucidez do pensamento é sempre uma agonia, isto é, um

combate (agón) consigo mesmo. Vencer-se a si mesmo é o desafio da maior luta que

cabe a um homem. Para pensar, e para ser contemporâneo, o pensador precisa vencer-

se a si mesmo. Precisa pensar contra si mesmo, contra a consciência hodierna, sim,

precisa pensar mesmo contra a filosofia. Só assim o pensador põe-se à altura do hoje do

pensamento, do “kairós” do ser e do tempo, e se torna contemporâneo de si mesmo.

Pois bem, nosso tempo ou nossa época precisa ser

sempre nosso grande adversário, nosso grande inimigo. É ele

(ou ela) que nos constrange, que nos coage, que nos oprime,

sim, mas que também nos redime. Para isso é preciso

conquistar nosso tempo, nossa época, ou seja, o que é nosso,

o que nos é dado. Conquistar, porém, é ir ao encontro. E uma

boa maneira de ir-se ao encontro de algo é também,

inicialmente, ir contra este algo. Ao ir contra uma época, um

tempo – seus valores, suas significações, sua cultura – este

tempo começa a nos revelar suas vísceras, seu “de onde” e

seu “para onde”. Ou seja, assim, desse modo, este tempo

começa a perder para nós sua positividade. E é isso, só isso,

que se quer ao se querer conquistar um tempo, uma época:

transcender, superar seu caráter de “coisa”, de dado, de

40 Idem, p. 60.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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positividade e então ascender à sua dinâmica, à sua gênese,

à sua vida e devir, que é sua força de proveniência e, então,

a evidência de seu direito presente e de seu direito de

cunhagem do futuro. É isto, a saber, tal conquista, a

participação num devir histórico, isto é, vital41.

Como o profeta do Antigo Testamento, é o filósofo

uma espécie de crítico e sátiro do momento, do seu

momento. Por isso, no livro de Amós, cap. 7, versículo 14, é

narrado como Jahvé arrancou Amós de seu cotidiano, de seu

dia-a-dia, que era o idílico pastoreio de cabras ou de ovelhas

e o cuidar de suas figueiras, e lhe disse: “Amós, vá e seja

profeta contra o meu povo Israel”. É como se dissesse: vá e,

para redimir meu povo, desestabilize o que nele perigosa e

perversamente está estabilizado, sedimentado como o calo

do hábito e do vício, assim intoxicando-o e pervertendo-o,

isto é, desviando-o do caminho que precisa ser seu próprio

destino e sua necessidade. Vá e desperte meu povo dele

mesmo, sacuda-o, instigue-o, açule-o, faça-o sair de um sono

letárgico42.

Hoje vivemos uma época de crise, por conseguinte, uma época de decisão, entre

riscos e oportunidades. A história parece ter mergulhado profundamente naquilo que o

poeta Hölderlin denominou de “noite do mundo” (Heidegger, 1946/1994a, p. 269).

Nesta noite, poetas e pensadores se tornam sentinelas. A sentinela é alguém que vigia,

ou seja, que se mantém desperto e vigilante, à espera do dia. Esta noite já fora

pressentida no fim do século XIX por Nietzsche. Este, no contexto da crise epocal, que

se instalava sub-repticiamente enquanto a civilização europeia celebrava as glórias do

progresso, viu a grandeza do humano em ser uma passagem e um ocaso. “O que é

grande no homem é isto, que ele é uma ponte e não um fim; o que pode ser amado no

41 Idem, p. 11-12. 42 Idem, p. 28.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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homem é isto, que ele é uma passagem e um ocaso”43. A tarefa que incumbe o homem,

em meio a esta crise epocal, é de se ultrapassar a si mesmo, de ir além do homem que

existiu até agora. Por isso, para Nietzsche, o homem de hoje, em sua essência de futuro,

é o homem da passagem (Übergang). Mas esse homem da passagem, de uma passagem

que conduz para além do homem que existiu até agora, é também o homem do ocaso

(Untergang): o homem que declina. Entretanto, essa vicissitude do declínio é,

justamente, o que nos incumbe de cumprir uma passagem, de ir além do homem que

existiu até agora.

A crise é risco, mas é também oportunidade. Novo kairós, novo tempo oportuno.

Tempo, segundo Nietzsche, de o “espírito leão”, que diz “não” e que quer ser senhor e

deus de tudo, característico do homem moderno, se transformar em “espírito criança”.

A criança é a inocência, é o esquecer, um novo início,

um brincar, uma roda que rola a partir de si, um primeiro

movimento originário, uma santa afirmação. Sim, para o jogo

da criação, meus irmãos, é necessário um sagrado ‘dizer-

sim’: a sua vontade quer pois o espírito, o seu mundo

conquista para si aquele que perdeu o mundo44 .

Hoje, experimentamos os passes e os impasses dessa passagem, que tem se

tornado uma passagem por um hiato da história. Os passes, nós celebramos nas

conquistas estupendas que o mundo da objetividade e da funcionalidade nos

presenteia. Mas, aí mesmo, nós experimentamos os impasses. Os impasses aparecem

nas contradições desse nosso mundo dito pós-moderno. O triunfo da racionalidade

científica e tecnológica, a sociedade da informação e do conhecimento, não significa

conquista do saber e da sabedoria. A passagem que está em questão nessa crise, precisa,

pois, ser uma ultrapassagem dos passes e impasses do mundo hodierno. Trata-se de

uma ultrapassagem que passa “no nada”, no vazio e hiato de dois mundos. Nessa

ultrapassagem, trata-se de esboçar, de imaginar, um novo homem, um novo modo de

43 Nietzsche, F. (1883-1885/1994). Also Sprach Zarathustra: ein Buch für Alle und Keinen. Stuttgart: Reclam, p. 12. 44 Idem, p. 26.

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ser humano, que já não seja mais o homem da objetividade e da funcionalidade e nem

o seu correlato, o homem da subjetividade moderna.

Desde o tempo das duas guerras mundiais do século passado, a exigência dessa

ultrapassagem foi se fazendo sentir cada vez mais como uma insistência do apelo de ser

que nos vem do porvir, como palavra do tempo, do “kairós”. Demos apenas dois

exemplos de pensadores em que esta palavra se faz sentir: Simone Weil e Martin

Heidegger. A situação do homem desse século chegava a Simone Weil sob o nome de

“desenraizamento” e a Martin Heidegger sob o nome de “apatridade”. O

desenraizamento foi percebido e meditado pela Weil que lhe dedicou um escrito de

1943, quando a segunda guerra mundial se alongava. Ela escreve:

O enraizamento é talvez a necessidade mais

importante e desconhecida da alma humana. É uma das mais

difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua

participação real, ativa e natural na existência de uma

coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado

e certos pressentimentos do futuro. Participação natural,

isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento,

da profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter

múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de

sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos

meios de que faz parte naturalmente45.

Naquele momento, ela aponta alguns condicionamentos do desenraizamento

que acometia não só os indivíduos, mas também os povos do globo terrestre e os

diferentes meios sociais. Uma condição do desenraizamento era a conquista militar,

tanto pior quanto mais há deportações, supressão brutal das tradições locais, etc. Mas,

além desta condição, há uma outra, mais sutil, e, por isso, menos aparente: “o poder do

dinheiro e a dominação econômica” que “podem impor uma influência estrangeira a

ponto de provocar a doença do desenraizamento”. Em terceiro lugar, “as relações

sociais no interior de um mesmo país podem ser fatores muito perigosos de

45 Weil, Simone. O Enraizamento (1943). In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 411.

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desenraizamento. Especialmente o “poder do dinheiro” e da “dominação econômica” é

nefasto: “O dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os

motivos pelo desejo de ganhar. Vence sem dificuldade os outros motivos porque pede

um esforço de atenção muito menor. Nada mais claro e simples que uma cifra”46. Este

desenraizamento, refletia ela naquele momento, incidiria especialmente sobre o

operário: “existe uma condição social inteira e continuamente presa ao dinheiro, é a do

assalariado (...). Nesta condição social é que a doença do desenraizamento é mais aguda

(...). O desemprego, é claro, funciona como um desenraizamento de segundo grau”47.

Assim, os operários, ainda que não se tornassem migrantes, mas permanecessem em

suas terras, acabavam se tornando moralmente desenraizados, exilados e readmitidos,

“por tolerância, como carne de trabalho”48.

No vazio do ser cresce o desenraizamento do homem. O que Simone Weil viu

como desenraizamento, Heidegger viu como apatridade. Há certo tempo, a apatridade

torna-se o destino a que se destinam todos os caminhos de todos os povos da terra. Esta

apatridade se esconde, porém, atrás do fenômeno da “civilização planetária”. Num

discurso de 1969, Heidegger anotava: “Civilização planetária significa hoje: predomínio

das ciências hipotético-dedutivas, significa predomínio e primado da economia, da

política, da técnica. Tudo o mais não é nem mesmo supra-estrutura. É apenas para-

estrutura toda quebradiça”49. Assim, a civilização planetária é dominada pela busca total

e incondicional do saber enquanto poder, do produzir e do consumir, do apoderamento,

do controle do controle de todo o real, na busca do autoasseguramento. Nesta

mobilização, acontece, porém, a devastação e desertificação da terra. O mundo do

homem está sempre em tensão com a terra. O mundo é abertura, desvelamento e

expansão. A terra é oclusão, velamento, retraimento – e tudo isso como proteção.

Mundo e terra só são o que são, porém, numa tensão criadora dos opostos. O homem

com o seu mundo só vinga e viceja de modo feliz se cuidar da terra e se confiar à sua

proteção. No entanto, nos últimos tempos, o projeto do homem tende cada vez mais a

46 Weil, Simone. O Enraizamento (1943). In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 412. 47 Idem, p. 413. 48 Idem, ibidem. 49 Heidegger, M. O discurso dos oitenta anos (1969). ). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, vol. 71, 1977, p. 52.

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“construir o mundo sem Terra da técnica total”50. O poeta Hölderlin advertiu este

destino de apatridade do homem contemporâneo com as seguintes palavras que soam

como um vaticínio:

Mas só que ninguém diga: que nos separe o Destino!

Nós o somos! Nós! Nós mesmos que temos prazer em nos

precipitar na noite do desconhecido, no estranho frio de um

outro mundo qualquer. E, se fosse possível, abandonaríamos

a região do sol e nos precipitaríamos para fora da Estrela

Errante. É que para o peito doido do homem nenhuma pátria

é possível!51

A apatridade do homem de hoje foi evocada por Heidegger no discurso de

oitenta anos (1969). Ali Heidegger falou da finitude de nosso saber em face ao futuro e

apontou a tarefa do pensamento:

Dizia a pouco: a apatridade é um destino mundial na

forma da civilização planetária. É como se a civilização

planetária, que o homem moderno não criou mas em que foi

“destinado”, trouxesse consigo o obscurecimento da

existência humana. De fato é o que parece. Mas seria um

erro pensar somente até aí e não ver nada mais, a saber a

possibilidade de uma virada. Mas nós não sabemos nada do

futuro. Talvez tudo finde numa grande desolação. Talvez

aconteça que algum dia o homem se enfastie dos produtos

de suas pretensas produções e de repente comece a

questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação

atinja tal nível que as necessidades se nivelem a ponto de o

homem já nem sentir a decadência interior e o vazio de sua

existência. Talvez possa também acontecer outra coisa. Em

50 Leão, E. C. A técnica e o mundo no pensamento da terra. In: Aprendendo a pensar II. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 101. 51 Apud Leão, E. C. Op. Cit., p. 102.

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qualquer caso, como quer que seja ou aconteça: nós não nos

devemos queixar, temos é de nos questionar!52

Hoje a humanidade, em seu momento histórico, parece experimentar o crescer

do deserto nos corações dos homens. Nietzsche, o pensador do niilismo, disse: “O

deserto cresce: ai daquele que guarda e resguarda desertos”. Deserto é tempo-espaço

da paciência: do vigor do suportar, da entrada no limite da mortalidade, de acolhida da

vida enquanto dor. A superação do deserto se dá somente através da, e como a

paciência do atravessamento, da travessia. Na paciência é que o homem torna própria

a sua vida. Deserto é hora de decisão: ou aniquilação ou reencontro da fonte da vida, da

vida fontal. O perigo da aniquilação é maior do que o da destruição. A destruição acaba

com o que é; a aniquilação acaba com o que pode-ser; seca as fontes da criatividade da

vida. Deserto é hora de decisão: ou isto – ou aquilo. Ou aniquilação ou encontro com a

vida fontana. Em todo o caso, o que está em jogo, hoje, não é a mera sobrevivência do

homem. O que está em jogo, hoje, é a “sobrevivência da humanidade nos homens”53. O

desafio do pensamento, em seu compromisso com o humano, e em sua

responsabilidade com o porvir, consiste em jogar este jogo. “A crise da

contemporaneidade é tão grave e profunda, que estamos a sentir-lhe os efeitos

destrutivos, mesmo quando nos alegramos com a luminosidade ofuscante de seus

sucessos”54. Os homens vão perdendo a serenidade das coisas e o sentido do mistério

de ser. É nessa dupla perda que cresce a violência generalizada, a guerra total e crônica,

em que vive o homem atual. “Tal estado de coisas permanecerá enquanto se ignorar a

humanidade, que se constrói e viabiliza, no próprio desespero, a experiência humana”55.

Mas, pensar é esperar o inesperado. E, nessa espera, o pensamento é agraciado com a

“esperança de ser, que toda era anuncia, antes de amanhecer”56.

Em 1919, logo em seguida à primeira guerra mundial e um ano antes de sua

morte, Max Weber ministrou uma conferência em Munique, que tratou da “Ciência

52 Heidegger, M. O discurso dos oitenta anos (1969). ). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, vol. 71, 1977, p. 53. 53 Leão, Emmanuel Carneiro. Apresentação. Em: Quintão, Denise. Seguindo o Todo por toda a Terra: uma fenomenologia do arcaico nos gregos. Teresópolis: Daimon, 2007, p. 17. 54 Leão, E. C. Idem, ibidem. 55 Idem, p. 18. 56 Idem, ibidem.

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como vocação”. Weber saúda o novo espírito da modernidade, mas alude ao risco que

ele trazia. Com o crescente predomínio da razão científico-tecnológica, o mundo se

expunha ao perigo de cair no desencanto e os filhos da nova modernidade arriscavam

se tornar especialistas sem espírito e hedonistas sem coração. É significativo que Weber

termine a sua conferência com uma “bela canção da sentinela edomita, da época do

exílio, recolhida nas profecias de Isaías”. Esta canção diz:

Uma voz me chega de Seir, em Edom: “Sentinela,

quanto durará ainda a noite?” Responde a sentinela: “Há-de

chegar a manhã, mas ainda é noite. Se queres perguntar,

volta de novo.”57

Entramos numa noite histórica, que não é, entretanto, comumente, percebida

como noite. Nietzsche e Hölderlin a nomearam em seu pensar e em seu poetar. Mas,

talvez, nós, deslumbrados com as luzes de néon da sociedade atual, com os espetáculos

e os fetiches do virtual, ainda não percebemos a noite como noite, e assim, nem mesmo

podemos nos alegrar com as suas estrelas, caso apareçam, e cintilem, nos céus de nossas

existências.

Ainda não está decidido se este declínio se dará como um mero decaimento ou

se se dará como a passagem para outro princípio.

O declínio, o ocaso, pode se dar como decaimento. O decaimento pode ser a

destruição das condições de vida humana na terra. Mas pode não ser isso. Pode ser a

aniquilação das fontes da liberdade criativa no viver do homem, que, embora se

prolongue, vai se desertificando na sua vitalidade, no seu espírito. No decaimento, o

espírito livre e criativo do humano é sufocado pela inserção e instalação em formas

exteriores e em exigências de cumprimento sempre mais esquemáticas. Então, neste

contexto, formação é apenas assimilação de informação e submissão a estas formas

exteriores. Os conteúdos da vida são, então, subtraídos ao vigor e frescor matutino,

nativo, do processo do acontecer da constituição humana e vertidos em formas

padronizadas, fixas, cristalizadas. É a ocasião propícia para dogmatismos,

fundamentalismos, extremismos... Em vez de educação, formação, no sentido de

57 Cf. Weber, M. A ciência como vocação. Em: www.lusosofia.net, p. 33.

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constituição humana, entra a instrução no sentido da informação e do treinamento para

processar informação. A informação deixa de ser uma formação desde a interioridade e

passa a ser a não formação, o perder-se na exterioridade. Deixa de ser a comunicação

que provoca essencialização do ser humano e passa a ser adestramento e treinamento.

Hoje, quando vivemos na era da informação, é preciso, em vez de pensar a formação a

partir da informação, pensar a informação a partir da formação. E pensar a formação

não como enquadramento em padrões, em modelos preestabelecidos de ser e pensar

(calcular), de fazer e agir, de viver e conviver, mas como a essencialização e

existencialização da identidade humana, desde a liberdade criativa do espírito.

“Espírito” é uma maneira defasada de dizer, aqui, o relacionamento de ser com o

mistério de ser que constitui o humano no homem. Desde o espírito, a formação deixa

de ser a aquisição de padrões de comportamento e o treinamento, isto é, deixa de ser

o condicionamento do comportamento humano, no sentido da produção de uma

compulsão, da habilitação para repetição de seus automatismos.

O declínio, o ocaso, porém, pode se dar também como uma passagem para outro

princípio. Neste caso, o declinar tem um sentido trágico. Trágico, não no sentido usual

da palavra, de desgraça e infortúnio trazido por uma fatalidade. Trágico, no sentido

poético de um combate entre os opostos, luz e escuridão, liberdade e destino, em que

aquele que combate só vence à medida que declina. Declinar é, aqui, ir para o fundo,

afundar, no sentido de retornar ao encoberto, ao velado. Neste caso, justamente o

encontro com a escuridão é o que ilumina. Como Édipo que passou a ter um olho a mais

e se tornou um vidente, como Tirésias, depois que ficou cego. Um vidente é um homem

que vê não só o patente, mas também o latente. Não só o presente, mas o ausente; um

homem que vê a cada presente a vigência do passado e do futuro.

O ocaso convida a reconhecer o subir da noite como noite e a esperar, na

paciência de uma vigília, os alvores de outro amanhecer. Algo do espírito genuíno do

ocaso já se anunciou, nos alvores do dia da história ocidental, numa poesia de Safo de

Lesbos, dedicada a Héspero – que é Vênus em sua aparição vespertina: “Vésper, /

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trazendo de volta os que se foram / à luz do claro dia nascente, / ovelha e cabra nos

trazes de volta; / trazes de volta, à mãe, o seu filho”58.

Dependendo de como se dá o declínio, se como decaimento ou se como

passagem, muda o sentido de crise e de caos. No decaimento, se dá o sentido

inautêntico de crise. Então, crise é apenas desequilíbrio e violência, embaraço e ameaça,

deficiência, penúria. Na passagem, crise é cisão e decisão, em que está em jogo o

discernimento do pensar e a capacidade humana de não só escolher entre alternativas,

mas também de escolher libertar-se para a liberdade do mistério de ser e não ser, em

seu desencobrimento e encobrimento, no meio das confusões do aparecer. No

decaimento, o caos não é outra coisa do que a confusão, a desordem. Na passagem, o

caos é o que propicia a geração de um mundo. O caos nada é. É um “nonada” (primeira

palavra do “Grande Sertão – Veredas”)59. Coisinha nenhuma. Mas deste nada tudo

advém ao ser. Não se trata de um nada negativo e privativo. Mas sim de um nada

criativo. É o nada inaugural, do qual se nutre toda a criação. Dele provém tudo o que é

e não é, toda a realização e desrealização, toda ordem e desordem, todo o mundo e

todo o imundo. Dele provém o vigor e o frescor matinal de toda a criação. Para ele tudo

retorna, ao ser recolhido pela estrela vespertina, e acolhido de volta no seio da noite do

mistério. Vige como o princípio de todo o cindir e separar, de todo o distinguir e

diferenciar. É o hiato no ser. É o abismo hiante da realidade de todo o real. É o “Ápeiron”

de Anaximandro: o in-finito que leva à consumação e à perfeição todo o finito. Pois não

há nada de finito que não traga em seu bojo o vigor do infinito. É possibilidade

possibilitadora de toda a realização. Com efeito, a realização de todo o real é algo assim

como uma criação contínua “ex nihilo”, a partir do nada, do caos. Por isso, Zaratustra, o

profeta da passagem e do ocaso do homem, disse: “é preciso a coragem de ser um caos

para se gerar uma estrela dançarina”. Memória do caos de onde irrompeu o dia histórico

do ocidente é a poesia arcaica de Homero e Hesíodo. O pensamento de Anaximandro,

Heráclito e Parmênides ainda respirava a atmosfera matinal, o vigor e o frescor, que o

caos ofereceu ao pensamento, na aurora desse dia histórico. Hoje, cerca de dois

milênios e meio, com o declínio desse dia, e com o subir da noitinha, é o tempo de a

58 Safo de Lesbos. Poemas e fragmentos. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2003, p. 131. 59 Grande Sertão, p. 7.

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coruja da filosofia voltar a se encontrar com a força geradora, nativa, do caos. E, a partir

daí, pensar a partir do porvir, na vigília e na espera de um outro dia histórico, que talvez

irrompa silencioso por entre as confusões, a penúria, e os estremecimentos de nosso

tempo.

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2 A CONSUMAÇÃO DA METAFÍSICA

Tentaremos, aqui, propor um fio condutor para pensar a atualidade da filosofia

hodierna pensando-a a partir do tema da consumação da metafísica. Nosso propósito é

tratar da consumação da metafísica na filosofia, na ciência e na técnica, e, por fim, na

arte.

2.1 A CONSUMAÇÃO DA METAFÍSICA NO PENSAMENTO FILOSÓFICO

A contemporaneidade da filosofia nos presenteia, hoje, com o fim da metafísica.

Costumamos entender fim no sentido de decaimento, decrepitude. Mas, aqui, o fim tem

o sentido, antes de tudo, de consumação. A consumação, no entanto, abre um hiato,

que prepara um outro princípio? Pode ser. Assim pensa um pensamento que pensa a

partir do futuro. Enquanto a ciência-e-a-técnica (tecnociência / tecnologia) só pode

experimentar o futuro como um prolongamento do presente num infindo progresso, o

pensamento experimenta o futuro como futuro (porvir), fazendo-se, essencialmente,

porvindouro:

O Pensamento fala do futuro, age com o futuro, vive

pelo futuro, trabalha para o futuro. É que o pensamento

pensa sempre a partir do futuro. Envio de futuro, o

Pensamento produz o novo. O novo não é a novidade. O

novo é a plenitude do velho. À plenitude pertence tanto

realização como interrupção. O novo não é apenas a

continuidade. É também ruptura, ou melhor, é continuidade

enquanto ruptura na linha do velho. No Pensamento chega

a si mesma a diferença de novo e velho, de passado e futuro.

Por isso o Pensamento só conhece o mundo passado de

novo, isto é, à luz do futuro. Por isso o Pensamento está

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sempre enviando a ruptura do mundo velho na via de um

envio futuro. Por isso nenhum mundo gosta de pensar60.

Para o pensamento que hoje se faz porvindouro, isto é, que pensa a partir do

futuro, o fim da filosofia no sentido da metafísica não é um mero decaimento. É uma

passagem que traz consigo o convite para outro princípio: “em seu Fim, a Filosofia não

finda na decadência de uma decrepitude, mas se instala na jovialidade de uma nova

plenitude”61. Este outro princípio, na verdade, só se inaugura a partir do diálogo com o

princípio originário esquecido pelo próprio pensamento grego, a saber, a

(alétheia = revelação do mistério de ser). Neste esquecimento é que se deu a

história da filosofia enquanto metafísica, isto é, a história do ocidente:

A filosofia grega chega, assim, a predominar no

Ocidente não a partir de seu princípio originário mas a partir

do fim de seu princípio, que em Hegel atingiu a sua grandiosa

e definitiva plenitude. A História autêntica não termina, não

vai a fundo, cessando e extinguindo-se simplesmente como

o animal. História só vai a fundo, acontecendo

historicamente.

O fim da metafísica, no sentido de sua consumação, se dá, antes de tudo, em

Hegel. Em Marx e em Nietzsche também. Vejamos como esta história se consuma,

primeiramente, em Hegel.

60 Leão, Emmanuel Carneiro. A morte do pensador. In: Aprendendo a Pensar. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 145-146. 61 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 9.

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2.1.1 O ENCAMINHAMENTO E O ANDAMENTO DO PENSAMENTO MODERNO E SUA

CONSUMAÇÃO EM HEGEL.

Em Hegel, o fim da metafísica tem o sentido histórico-dialético de síntese. Como

se caracteriza esta síntese?

O pensamento ocidental, que, desde os diálogos de

Sócrates, veio transformando o em a

especulação cosmogônica em educação antropológica, a

entrega livre ao mundo da numa autoconsciência

crítica da razão e do sujeito, atingiu na Filosofia do Espírito

de Hegel o pleno desenvolvimento de suas possibilidades de

representação. E por que? Porque, na filosofia de Hegel, não

só a História é pensada filosoficamente. Também a filosofia

é pensada, como História. Em Hegel, Filosofia da História e

História da Filosofia pertencem a um só processo, pois

ambas se fundam e exercem num e mesmo princípio. Pela

primeira vez, se tentou pensar o Pensamento Ocidental

segundo o despregamento dialético de um sentido Histórico

e assim integrar reciprocamente Verdade da História na

Verdade da Filosofia62.

Hegel é o pensador do ocidente que experimentou, pensando-a, a história do

pensar63. Por um lado, ele experimentou a história do ocidente como sendo filosófica

em seu traço essencial64. Por outro lado, ele experimentou a história da filosofia “como

o processo em si unitário e, por isto, necessário do avanço do espírito em direção a si

mesmo. A história da filosofia não é uma pura sucessão das mais diversas opiniões e

doutrinas, que se alternam sem conexão alguma”65. Esta perspectiva doxográfica da

história da filosofia é superada em Hegel. A história da filosofia é o avanço do espírito

62 Idem, p. 10. 63 Heidegger, Martin. Der Spruch des Anaximander. In: Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 323. Trad.: Caminhos de Floresta, p. 374. 64 Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, p. 428. Trad.: Marcas do Caminho, p. 437. 65 Idem, ibidem.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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que se encaminha para alcançar a si mesmo. A história da filosofia aparece como a

essência da história do ocidente. Isso quer dizer: o mundo grego, oriente do ocidente

(segundo as palavras de Hölderlin), e o próprio mundo europeu e ocidental são, no

encaminhamento mais íntimo de sua histórica, filosóficos66. Esta integração recíproca

de história do ocidente e de história da filosofia é uma conquista da filosofia em Hegel.

Assim, a história é experimentada e pensada filosoficamente, e a filosofia é

experimentada e pensada historicamente, quer dizer, na sua historicidade própria.

Verdade da história e verdade da filosofia formam uma unidade. Heidegger assim

apresenta esta posição peculiar e fundamental de Hegel na história da filosofia:

Em uma introdução às suas preleções de Berlim,

Hegel afirma o seguinte sobre a história da filosofia: “A

história, que temos diante de nós, é a história do auto-

encontrar-se do pensamento” (Preleções sobre a história da

filosofia. Hoffmeister ed., 1940, vol. I, p. 81, nota). “Pois

somente a história da filosofia desenvolve a filosofia mesma”

(p. 235s). De acordo com isso, a filosofia enquanto o

autodesenvolvimento do espírito em saber absoluto e a

história da filosofia são idênticos para Hegel. Nenhum

filósofo antes de Hegel assumira tal posição fundamental da

filosofia, uma posição que possibilita e exige do filosofar que

se mova simultaneamente em sua história e que esse

movimento seja a própria filosofia. Segundo a expressão de

Hegel na introdução à sua primeira preleção aqui em

Heidelberg, porém, a filosofia tem por “meta”: “a verdade”

(p. 14).

A filosofia é, enquanto sua história, tal como Hegel

diz em uma nota à margem do manuscrito desta preleção, o

“reino da pura verdade – não os atos da realidade exterior,

mas o íntimo permanecer-junto-de-si-mesmo do espírito”

(p. 6, nota). “A verdade” – isto quer dizer aqui: o verdadeiro

66 Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia? In: Conferências e Escritos Filosóficos (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 29.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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na sua pura realização, que simultaneamente expõe a

verdade do verdadeiro, a sua essência67.

“Verdade”, aqui, não é tomada no sentido tradicional de adequação

(concordância, conveniência) entre o que se pensa e o que se diz (o “intelecto”) com o

real (a “coisa”). A verdade é entendida, aqui, no horizonte de uma metafísica do espírito.

A verdade, em sentido pleno e próprio, é o desvelamento do princípio absoluto da

realidade sem mais. Este princípio se apreende como Espírito. A Verdade seria, assim, a

auto-presença sem véus – que supera infinitamente a todo o sujeito finito temporal –

do pensamento que se pensa a si mesmo (Aristóteles), do Espírito Absoluto (Hegel), sua

posse eterna e imutável. O acesso a esta Verdade só é possível ao sujeito finito à medida

que ele transcende sua finitude e co-realiza o ato do Espírito infinito. Entretanto, Hegel

pensa o Espírito absoluto em devir na história. Com efeito, a história da Verdade é a

própria História do Espírito em seu devir, quer dizer, em manifestação. Esta

manifestação, no entanto, se dá como o Todo:

Na introdução das Preleções, pergunta Hegel: como

a filosofia, que busca a Verdade una, necessária, imutável, se

pôde desdobrar numa multiplicidade de filosofias? – A

resposta de Hegel é dialética: a Verdade não é a parte. As

partes são passagens, de que necessita a Verdade para

conquistar a si mesma no todo. A verdade é o todo. Por ser

e para ser o todo, a Verdade possui a tendência de se

desenvolver nas peripécias de uma dialética, formando um

curso de crescimento, o fluxo da História. Esta concepção

supõe não apenas que todo pensamento possui uma

História, que lhe é essencial, mas também uma determinada

interpretação do processo histórico: a saber, a História não

se dá ao acaso nem aos pulos mas numa dialética de

necessidade. Dentro desta suposição, a História do

pensamento é entendida como um destino necessário do

67 Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, p. 428-429. Trad.: Marcas do Caminho, p. 437-438.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Espírito, e o homem, que pensa, como uma existência

Histórica68.

A Verdade é, pois, para Hegel, o Todo – a manifestação do Espírito no Todo e

como Todo. Hoje nós temos dificuldade de entender isso. O que quer dizer, “Espírito”?

Hoje, perdemos a evidência do espírito. Esta perda da evidência do espírito tem a ver

com os profundos abalos que atingem as formas de vida do homem ocidental na

atualidade. Para nós a palavra “espírito” soa vazia, sem intuição, abstrata. Entretanto, a

palavra “espírito” significa sopro e força de vida. Não se trata, pois, de algo abstrato.

Trata-se, isso sim, de algo real, realíssimo. E concreto. Se o concreto é o que con-cresceu

como um todo, o espírito, que é o princípio da concreção, é o mais concreto que há. Na

tradição metafísica, o espírito vige como o humano no homem. O homem não só é um

ente particular entre outros. É o ente que, no seu ser, está originariamente em relação

com o ente no todo, isto é, com o todo uno do ser. No espírito, pois, jaz o comum, que

é a base para a comunidade entre os homens. “É sobre esta base que os homens dirigem

entre si a palavra, quando eles falam uns com os outros. Através dele eles têm parte no

todo do mundo e se tornam remetidos a um primeiro e vinculante princípio”69. O

espírito, pois, não é uma propriedade do homem. O homem é que é uma propriedade

do espírito. Ao falar de “espírito” estamos nos referindo, com efeito, “ao dramático

acontecer do auto achamento da humanidade através de e para além de rompimentos

revolucionários (Umbrüche), enquanto o acontecer da bem concreta conversa e

confrontação, em que o homem se deixa pôr sempre de novo e de modo novo em que

estão com o seu mundo”70.

Para os gregos, o Espírito se manifesta como Lógos. Nos primórdios, em

Heráclito, é o Um que tudo unifica. Para os gregos dos tempos clássicos, em que surgiu

a filosofia enquanto metafísica, seguir o lógos era a maneira de pensar o universal e de

agir segundo o universal. A virtude consistia nisso (virtude dianoética e virtude ética). O

espírito é, pois, no homem, a abertura de ser ao ser do ente no todo. É transcendência:

68 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 10. 69 Rombach, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 9. 70 Idem, p. 7.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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por ela, o homem sobrepuja o ente na direção do ser. É enquanto espírito que o homem

é capaz de reflexão, isto é, de retorno sobre si mesmo e para dentro de si mesmo (reditio

in se ipsum – na expressão de Tomás de Aquino). A reflexão do homem sobre si mesmo,

a autoconsciência e a configuração da subjetividade, é a base da filosofia moderna.

Hegel procura superar a dicotomia moderna de corpo e espírito, mundo e consciência,

objeto e sujeito. Procura integrar estes opostos num todo uno. Na sua filosofia, o

pensamento moderno é instado a passar do terreno do entendimento (Verstand) e da

finitude para o terreno da razão (Vernunft) e da infinitude. Trata-se da passagem da

consciência para a autoconsciência e a razão. A noção de consciência deve ser superada

naquela de autoconsciência. É que consciência supõe sempre o ser sujeito em sua

relação com o objeto e concebe este como fora de si, outro de si, independente de si. A

autoconsciência, porém, é justamente a supressão desta alteridade e exterioridade. “A

verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento daquela; de tal modo

que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o objeto

como meu (este é minha representação), por isso, neste [objeto] eu sei a mim

mesmo”71. Essa passagem da consciência para a autoconsciência e a razão é, para Hegel,

um passo importante, antes, decisivo, no avanço do espírito em direção a si mesmo.

Essa passagem começa, justamente, com Descartes:

Hegel declara: “Com ele (a saber, com Descartes)

cruzamos propriamente o umbral de uma filosofia

independente... Aqui, podemos dizer que estamos em casa

e podemos, como o navegante após um longo périplo por

mar proceloso, exclamar ‘terra à vista’... (WW. XV, 328). Com

esta imagem, Hegel quer dar a entender: o ego cogito sum,

o “eu penso, eu sou” é o solo firme em que a filosofia pode

habitar em verdade plenamente. Na filosofia de Descartes, o

ego torna-se o subiectum normativo, isto é, aquilo que desde

o princípio já sub-(pré-)-jaz. Este sujeito, contudo, só é

assumido de maneira adequada, a saber, no sentido

kantiano, transcendental e plenamente, o que quer dizer no

sentido do idealismo especulativo, quando toda a estrutura

71 G. W. F. Hegel, Enzykopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (par. 344), 251.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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e movimento da subjetividade do sujeito se desdobrou e foi

elevada ao auto-saber-se absoluto. Quando o sujeito se sabe

como tal saber que condiciona toda a objetividade, ele é

como tal saber: o absoluto mesmo. O verdadeiro ser é o

pensamento que se pensa a si mesmo absolutamente. Ser e

pensar são para Hegel o mesmo, e, na verdade, no sentido

de que tudo é recebido de volta no pensamento e

determinado a ser o que Hegel simplesmente designa o

“pensamento pensado”72.

Nos primórdios do pensamento ocidental o pensar estava sob a égide do ser e

da sua manifestatividade – a (alétheia). Desde Platão, entretanto, o pensar

passou a subjugar o ser, que só pôde viger como (idéa) através do (lógos)

enquanto discurso. Na época antiga, o lugar do pensar era a vida humana - (bíos).

Na época medieval, a experiência da fé cristã, a recepção da revelação bíblica e o seu

saber, isto é, a teologia. Na época moderna, o pensar põe-se de pé a partir de si mesmo.

A filosofia se torna mathesis universalis (ciência universal) ou scientia generalis (ciência

geral): o pensar do todo do ente que permanece em si mesmo e que se desdobra

segundo seus próprios princípios73. O modo do encaminhamento desse pensamento se

chama “método” (méthodos = a caminho). O modo do perguntar e investigar

se torna mais importante do que aquilo que é perguntado e investigado. O interrogado

e investigado deste pensamento é prioritariamente o mundo (cf. Descartes e a obra

intencionada “Le monde”).

Este deixa de ser (kósmos) ou ordo (ordem) para ser sistema. Sistema

quer dizer: um todo, em que cada momento apenas é enquanto é para outro momento,

numa relação funcional. Por si, cada momento não tem nenhuma significância. A

significância de cada momento só se dá na sua relação com outro momento. Sua

significância, por sua vez, é dada pela sua atuação, na execução de uma função, naquilo

72 Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, p. 429-430. Trad.: Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 439.Trad.: Marcas do Caminho, p. 438-439. 73 Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 73.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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que ele elabora, apronta, realiza, em relação a outro momento (configere). Isto é, a

significância de um momento só é dada naquilo que ele leva a cabo, traz ao acabamento

(efficere). O que está em jogo é, a cada vez, um perfazer (perficere) funcional, em relação

a outro momento. O ser de cada momento é um “esse in alio” (ser-em-outro), não um

“esse in se” (ser-em-si)74. A substância cede lugar ao sistema, isto é, para a relação

funcional75.

O ente no todo agora é sistema. O ente aparece, porém, na forma do que é

cognoscível. O saber deste ente no todo enquanto cognoscível – a metafísica moderna

na forma de mathesis universalis ou scientia generalis – chama-se, agora, física76. O

fundamento do todo enquanto cognoscível encontra-se no cognoscente, a saber, no

74 A experiência e a compreensão do todo da realidade na época antiga podia ser resumida na categoria de “substância”. Substância significa ser de modo independente, “ser em si” e “existir por si”. De início, é ente aquilo que se determina em si mesmo: a substância. À substância do ente pertencem as suas determinações essenciais, invariáveis. Em seguida vem aquilo que é concomitante à substância, como suas propriedades e manifestações variáveis, acidentais. Já na modernidade, o todo da realidade é experimentado como sistema. Tudo o que existe é um momento dependente, pois, está posto e subsiste somente enquanto está posto em relações funcionais com todos os outros momentos do todo e com o todo como tal. Cada momento do todo só é enquanto está posto em relação funcional com outro momento. Nenhum momento do todo tem um significado independente. Todo momento recebe o seu significado a partir de uma dependência funcional. Em vez do “esse in se” (ser em si) ou “per se” (por si), entra, agora, o “esse in alio” (ser em outro). Cada momento tem o seu ser em outro; só é o que ele consegue atuar, efetivar. Só é apreendido a partir de sua atuação funcional. 75A ontologia funcional começa a emergir com Nicolau de Cusa (c. 1430). Depois, irrompe propriamente com Copérnico (c. 1490). Kepler e Galilei seguiram por esta esteira no modo de compreender a natureza. As constelações dos corpos celestes passam a ser compreendidos sistematicamente. Newton entende o todo da natureza como sistema. Descartes, Leibniz e Spinoza, apesar de falarem de substância, já não têm em vista o todo do ente como um todo substancial, como um ordo (ordem), ao modo medieval. Suas ontologias já são relacionais-funcionais, isto é, sistemáticas. 76 Este passo decisivo é dado por René Descartes (1596-1650). Os principais precursores são: Nicolau de Cusa (1401-1464), Leonardo da Vinci (1452-1519), Nicolau Copérnico (1473-1543), Giordano Bruno (1548-1600), Galileo Galilei (1564-1642), Johannes Kleper (1571-1630). O arranque deste movimento do pensamento a filosofia de Nicolau de Cusa (1401-1464), que, por volta de 1430, apreendeu o pensamento de uma organização sistemática do mundo. Entretanto, pensou esta organização sistemática a modo de um organismo vivente. O pensamento do Cusano atuou, por sua vez, na astronomia do começo da modernidade, de uma maneira “desvitalizada”. Copérnico (1473-1543) realiza, assim, por volta de 1490, uma revolução que introduziu a imagem do mundo da modernidade. Ele reconheceu o caráter sistemático das estrelas móveis e da terra. Concebeu que os planetas se movem realizando uma circulação exata e regular, quer em torno do sol (revolução), quer em torno de si mesmos (rotação). Johannes Kepler (1571-1630), por sua vez, tornou mais refinada a representação sistemática do mundo de Copérnico. Kepler concebeu a órbita elíptica dos astros. Um passo ulterior foi dado por Galileu Galilei (1564-1642). Galilei trouxe o pensamento do sistema do céu para a terra, da astronomia para a física. Por meio do telescópio, ele descobriu que os corpos celestes não eram entidades espirituais com matéria incorruptível (a quinta essência), mas eram corpos como a terra. Com Galileu céu e terra se tornam homogêneos. Os astros se tornam terrestres e a terra se torna um astro. A mecânica do céu é transferida para os movimentos dos corpos terrestres, assim como as leis físicas da terra, na astrofísica, é transferida para os astros. Assim, no céu e na terra, tudo passa a ser reduzido a leis unitárias, de caráter funcionalístico, sistemático. Forma-se, assim, um sistema do mundo.

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“cogito – sum”. É a partir deste fundamentum inconcussum veritatis (fundamento

inabalável da verdade – tomada como certeza a partir da autoevidência), que se constrói

o saber o todo do ente (Deus; alma = res cogitans; e mundo = res extensa = sistema). A

verdade do ente no todo (enquanto cognoscível) se assenta, pois, no fundamento

(subiectum) do “cogito – sum”. No conhecimento do mundo o matemático joga, então,

um papel fundamental77. O matemático é a ótica em que o mundo é apreendido.

Através da ótica do matemático a (estranha) experiência do mundo e o mundo da

experiência são sempre de novo reconduzidos à (auto) evidência do “cogito – sum”. A

partir da determinação do matemático, o qualitativo (qualis) cede lugar ao quantitativo

(quantum)78. A partir dessa mesma determinação, o pensar deve poder ser expresso

more geometrico (ao modo dos geômetras = de modo axiomático-dedutivo)79. Com isso,

o todo do ente enquanto mundo (cognoscível, sabível, aprendível e apreensível, isto é,

matemático) se torna experimentável apenas em suas relações matemáticas. O livro do

mundo, como pensava Galileu Galilei, seria, agora, decifrado por caracteres

matemáticos80.

77 “O matemático” nos remete de volta ao pensamento grego. Em grego, “mathematikós” significa “dedicado à aprendizagem”, “estudioso no aprender”. “Tó máthema” significa “o que se há de aprender”; no plural, “tà mathémata”, “as coisas que hão de ser aprendidas”. “Máthesis” é a própria aprendizagem. “Mantháno” é, por sua vez, “aprender”, mas também, “habituar-se”, “vir a conhecer ou a saber”, “captar com a visão”, “ver”, “apreender”, “reconhecer”, “dar-se conta de”, “compreender”. 78 Daí o papel que têm os números, as grandezas, as relações, as proporções. 79 O conhecimento do mundo, sempre experimental e, ao mesmo tempo, hipotético, se dá, como dizia Galileu Galilei, por um “mente concipere” (um conceber com a mente). Conceber com a mente significa lançar um projeto de intelecção que se estende por sobre as coisas, abrindo os espaços de jogo, onde as coisas se mostram, onde os fatos de deixam inteligir desde princípios (conhecimento dedutivo) ou em vista de princípios (conhecimento indutivo). Assim, por exemplo, na moderna ciência matemática da natureza, o projeto abre de antemão o espaço de manifestação dos entes naturais desde algumas determinações fundamentais tidas em alta conta (axiomas), como: espaço homogêneo, tempo homogêneo, corpos homogêneos, movimentos homogeneamente mensuráveis como deslocamentos de pontos de massa, etc. Isso quer dizer: o projeto matematizante da natureza é axiomático; o lance conceptual prévio constitui o esboço fundamental do quadro em que cada coisa e cada estado-de-coisa ou conjuntura há de se manifestar. 80 Atribui-se a Descartes uma sugestiva parábola a respeito da decifração do mundo. Ele tenta ilustrar o modo de ser do conhecimento denominado interpretação mais ou menos assim: Uma pessoa recebe de um desconhecido uma carta cifrada, cujo código de decifração ela desconhece. Depois de várias tentativas, consegue descobrir uma regra, cuja aplicação lhe permite montar um código que lhe possibilita ler a carta, de tal modo que ela traz à luz uma mensagem com sentido plenamente compreensível e até incontestável na sua coerência. Descartes, porém, especula: Poderia acontecer que, por ser um homem de grande habilidade, o autor da carta a tenha redigido de tal modo que, sob outro código de decifração, a mesma carta contivesse outra mensagem, inteiramente diferente da anterior. Com isso, em nada é alterada a primeira leitura da carta. Que alguém seja capaz de descobrir outro código de decifração é admirável. Mas a pessoa que fez a primeira leitura pode, tranquilamente, deixar aberta essa questão da existência de outro código de decifração. A ela basta que, no seu modo de ler, a carta lhe dê sentido

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Com Isaac Newton (1642-1727) é que esta concepção matemática e sistemática

do mundo se completa, sem deixar lacunas. Nela, todo fenômeno particular passa a

poder ser articulado matemática e sistematicamente. Newton, na sua obra “Philosophie

naturalis principia mathematica”, de (1686/87) dá concretude, amplitude e articulação

à tendência de matematização. O matemático, aqui, se refere não tanto, nem somente

e primordialmente, ao cálculo, ao numérico e quantitativo, mas ao modo como se

concebe de antemão as coisas, ao projeto fundante do conhecimento. Este modo do

projeto matemático já aparece nos “Discorsi” de Galilei (1638). Galilei concebe

mentalmente, de antemão, as determinações concernentes a todos os corpos. São elas:

Todos os corpos são idênticos. Não há movimentos

peculiares. Todos os lugares são idênticos; todos os

momentos do tempo são idênticos. Cada força determina-se

a partir da modificação no movimento que ela causou, sendo

esta modificação no movimento entendida como mudança

de lugar. Todas as determinações acerca dos corpos

inscrevem-se num plano segundo o qual cada

acontecimento natural não é senão a determinação do

movimento espácio-temporal de pontos de massa. Este

plano da natureza delimita, ao mesmo tempo, o domínio

desta como universalmente uniforme81.

São características do projeto matemático:

1. O projeto é lançado como um conceber mental acerca da coisalidade, ou melhor,

acerca da corporeidade e das determinações universais da corporeidade.

coerente de início até o fim. Mas a segunda leitura não lhe poderia dar um sentido melhor, mais próximo ao da intenção do autor? Sim, se o autor tivesse fixado como válido e melhor um dos códigos de decifração. Mas suponhamos que esse autor da carta é o próprio Criador, de quem se origina o universo e tudo o que ele contém, seja atual ou possível. Suponhamos que esse Criador cifrou a carta segundo um número interminável, infinito, de diferentes códigos. Segundo Descartes, essa parábola mostraria o relacionamento e a postura própria do pesquisador nas ciências naturais exatas para com o universo. Um cientista da natureza absoluto, congenial ao Criador, poderia, assim, desenvolver inúmeras astronomias, mecânicas, ópticas, medicinas, etc, sem que uma tivesse em linha de princípio a primazia sobre a outra. Cf. Harada, Hermógenes. Em Comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 30. Rombach, Heinrich. Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg / München: Alber, 1988, p. 139. 81 Heidegger, M. O que é uma coisa? A doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Lisboa, 1992, p. 95.

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2. O projeto é axiomático, ou seja, ele põe proposições-de-fundo, proposições

fundamentadoras das coisas: “na medida em que cada conhecimento e

reconhecimento se exprime em proposições, o reconhecimento tomado e posto

no projeto matemático é de tal ordem que, antecipadamente, põe as coisas no

seu fundamento”82.

3. O projeto matemático, enquanto axiomático, é um “prévio agarrar” a essência

da coisa, os corpos; assim, é pré-indicado em esboço como se estrutura cada

coisa e cada relação de uma coisa com outra.

4. O domínio da natureza se redefine: a natureza já não é mais o que, como

faculdade interna do corpo, determina a forma do seu movimento e do seu lugar.

A natureza é agora o domínio, esboçado no projeto axiomático, da conexão dos

movimentos espaciais uniformes, no qual, somente, os corpos nele inseridos

podem ser corpos.

5. O projeto determina o modo como os corpos se mostram, bem como a forma

como o que se mostra a partir do projeto pode ser tomado, a saber, a experiência

enquanto experimento. A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma

mensuração. Experimento só é possível onde se lida com a precisão de uma

mensuração, partindo-se de um projeto matematizante da natureza. Justamente

este projeto é a condição para a necessidade e a possibilidade do experimento.

O simples lidar com fatos da observação e com a mensuração ainda não constitui

o experimento no sentido moderno, mas, precisamente, o projeto de

matematização da natureza. “Na medida em que agora o reconhecimento está

pré-determinado pelo esboço do projeto, o questionar pode ser determinado de

tal modo que põe antecipadamente as condições a partir das quais a natureza

deve responder de tal ou tal modo. Com base no matemático, a experientia

tornou-se experimentação, em sentido moderno” 83.

82 Idem, p. 96. 83 Idem, p. 97.

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6. O fato de a matemática (em sentido estrito) se tornar agora um meio de

determinação essencial não é o fundamento da nova configuração da ciência,

mas uma consequência do projeto matemático.

Entretanto, o relacionamento com o ente no todo enquanto mundo e enquanto

cognoscível, em seu caráter de projeto matematizante, está fundado no “cogito –

sum”84. Na época moderna, a unidade de ser-pensar acontece historicamente como a

auto-evidenciação do “cogito-sum”. No “cogito” a “mens” (mente, espírito) em seu

“esse” (ser) se dá a si mesma para si mesma, vem de si mesma para si mesma. Todo o

aprender e apreender do que quer que seja se funda neste apreender em que a mente

é dada a si mesma desde si mesma em si mesma. Todo o conhecer se funda e se centra

no “conhece-te a ti mesmo! ”, dele provém e para ele retorna. Todo o conhecer se

desdobra e se explica desde o conhecimento de si. O encaminhamento do pensamento

agora deve poder se tornar, então, reflexivo. Reflexão é o modo e a forma de

encaminhamento desse pensamento85. Neste movimento, porém, o pensamento, vai

cada vez mais para o fundo de si mesmo. Nele, o pensamento, em busca da claritas

(clareza) e da distinctio (distinção), busca se auto-esclarecer cada vez mais e mais. Este

autoesclarecimento é autofundação. No seu andamento, o pensamento vai se

aprofundando e se radicalizando cada vez mais. Trata-se, no entanto, do andamento

reflexivo da consciência. É a esse andamento do pensamento que se chama de

“revolução copernicana” da filosofia moderna. De Descartes a Hegel, neste andamento,

o pensamento vai se auto-esclarecendo e se auto-fundando. A autofundação, no

entanto, é uma sondagem da consciência mesma, do “cogito – sum”. A tendência desse

84 No horizonte da experiência e da compreensão moderna do ser, a mente é a realidade verdadeira e primordial, mas, na mente, se sobressai tanto o pensar (repraesentatio) quanto o querer ou apetecer (appetitio), sendo que, por fim, o querer se afirma como cada vez mais decisivo, à medida que a realidade se torna funcionalidade. É a partir do horizonte da funcionalidade como operacionalidade, eficiência e eficácia, que se impõe também a correspondência entre as funções da subjetividade e as funções da objetividade. 85 Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 87-90.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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andamento é de alcançar o “saber absoluto” (Hegel)86. Absoluto quer dizer: solto em si

mesmo. O saber é absoluto quando o sujeito se sabe como condição de possibilidade de

toda a objetividade.

A ontologia do mundo como sistema se funda, pois, na ontologia do espírito

como subjetividade. Ambos, ontologia sistemática do mundo e ontologia subjetiva do

espírito devem ser mostrados em correlação, como compondo uma constelação

unitária. Assim, o dualismo cartesiano é superado em Spinoza. Natureza e espírito se

mostram, então, como dois modos de aparição de uma e mesma realidade fundamental

incondicionada: “substância” (Deus sive natura). São “atributos” dessa “substância”. São

modos de apresentação dela. Aquilo que em Descartes dependia de Deus, a saber, a

concordância das duas ontologias agora, em Spinoza, aparece como dois modos de

apresentação da mesma realidade fundamental. Leibniz, por sua vez, elucida a diferença

entre os modos, o que não tinha acontecido satisfatoriamente em Spinoza. O que há,

fundamentalmente, é Deus, a mônada originária, infinita. As coisas criadas são cópias

finitas desta. As mônadas criadas têm o mesmo teor ou conteúdo da mônada originária,

só que são finitas. O sistema universal monadológico se contém as mônadas em seus

diferentes graus de clareza e distinção.

A questão da finitude, deixado não aprofundado por Leibniz, é central para Kant.

O todo do ente aparece como sistema justamente para um conhecedor finito (Intellectus

ektypus)87. O conhecer, em sua finitude, precisa receber algo de outro, de fora. Ele tem

que se deixar “dar” seu conteúdo. Isso que é recebido como conteúdo é acolhido numa

86 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 91-94. 87 Kant fez a descoberta de que o conhecimento propriamente científico está baseado sobre juízos que não são nem analíticos (quando o predicado está já contido no sujeito), nem sintéticos a posteriori( quando o predicado acrescenta algo que não estava já contido no sujeito e quando os mesmos, simultaneamente, provêm da experiência), mas sim juízos sintéticos a priori ( que expressam conteúdos que são o resultado de uma síntese ou reunião e que, no entanto, têm o caráter de universalidade e necessidade, não podendo ser provenientes da experiência, já que os dados da experiência são sempre particulares e contingentes). Todos as proposições fundamentais da matemática, da geometria e da física são sintéticos a priori (axiomas, teoremas, leis). Também o são as proposições metafísicas. Perguntando pela condição da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, Kant foi conduzido à descoberta da função fundamental que, no conhecimento, exerce o sujeito, isto é, a razão (tomada aqui em sentido lato, isto é, como faculdade gnoseológica em geral e não como a faculdade que se refere às idéias tal como as entendia Kant). O fundamento dos juízos sintéticos a priori é o sujeito que sente e que pensa, ou melhor, não este ou aquele sujeito empírico, mas a subjetividade estrutural humana com as suas leis que regulam seja a sensibilidade seja o intelecto. Trata-se da subjetividade transcendental, não da empírica.

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“rede” de formas pertencentes à subjetividade do sujeito. Esta “rede” é configurada por

formas transcendentais da sensibilidade e do entendimento (Verstand)88. Ela jaz a priori

no espírito humano89. Mas, o que significa “transcendental”, aqui?

No prefácio para a Segunda Edição da Crítica da

Razão Pura de 1789, Kant define transcendental com as

seguintes palavras: “Chamo transcendental todo

conhecimento que não se ocupa tanto com objetos

(Gegenstand) mas com nosso modo de conhecer objetos

(Gegenstand), quaisquer que sejam (überhaupt), enquanto

nos é dado a priori”. (Ich nenne transzendental jede

Erkenntnis die nicht so sehr mit den Gegenstäden, sondern

mit unserer Erkenntnisart der Gegenstände überhaupt

beschäftligt). Esta definição de transcendental se

transformou em método e orientou o modo do

conhecimento filosófico até Schelling. É o método chamado

de transcendental. Com ele Kant inaugura o pensamento

88 Transcendental é aquilo que o sujeito previamente lança e põe no projeto do conhecimento dos objetos, no ato mesmo de conhecê-los. Quando se trata da sensação, isto é, do conhecimento sensível, transcendentais são as formas prévias segundo as quais são ordenados todos os dados da experiência, ou seja, as formas puras da intuição: o espaço e o tempo. Quando se trata do pensamento, ou seja, do conhecimento inteligível, transcendentais são as categorias, conceitos puros do intelecto, verdadeiras leges mentes, que regulam o uso da faculdade intelectiva. Fundamento do objeto é, portanto, o sujeito. O objeto só pode se contrapor ao sujeito porque, no fundo, o supõe. O objeto não se constitui como tal a não ser mediante a representação do sujeito. Mas o sujeito permanece sempre idêntico a si mesmo em toda a mudança e variação das representações. O “eu penso” (Ich denke) acompanha, imutável, ou seja, sempre idêntico a si mesmo, todas as representações. O “eu penso” é o ponto focal onde reúne-se a multiplicidade de tudo aquilo que é percebido e concebido. Tal ponto focal que se constitui na instância estrutural do sujeito, a qual apresenta as características de ser unitária e originária, transcendental e sempre idêntica a si mesma é chamada de consciência. O “eu penso” é ele mesmo representação, mas representação originária, pois não pode ser objeto de uma intuição, no sentido de uma percepção empírica. O “eu penso” é, pois, uma representação que não provém de uma receptividade ou passividade, mas sim de uma espontaneidade. O “eu penso” é dado de modo imediato como apercepção originária ou pura. Tal apercepção é o que caracteriza a consciência como autoconsciência. A unidade subjetiva da multiplicidade objetiva que se dá na autoconsciência é chamada por Kant de unidade transcendental da autoconsciência. O nosso pensamento é, no fundo, uma atividade unificadora, sintetizadora. A forma do intelecto é a apercepção originária. À capacidade de produzir e de configurar, sintetizando, representações que são intermediárias entre o sensível e o inteligível Kant chamou de imaginação transcendental. Esta produz “esquemas” transcendentais que possibilitam aplicar as categorias aos objetos. Kant percebeu que todas as categorias são determinações do tempo. Recuou, no entanto, no esclarecimento deste nexo entre o esquematismo das categorias e o tempo. 89 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 107- 110.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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crítico que na idade moderna moldou o pensamento do

chamado Idealismo Alemão. A prática do pensamento crítico

se estendeu através de Reinhold, Fichte e Schelling

principalmente até depois de Hegel tanto na Direita quanto

na Esquerda Hegeliana. As características desta revolução,

chamada por Kant de “revolução copernicana”, são as

funções a priori do sujeito que antecedem à experiência e

estruturam todo conhecimento válido, i. é, real ou, em

termos kantianos, produzem juízos extensivos

(Erweitenrungseurteile) e não somente explicativos

(Erläuterungsurteile) do conhecimento objetivo. Até Kant o

conhecimento metafísico só conhecia ou o método indutivo

e empírico, um procedimento que sobe da intuição sensível,

onde nos são concedidos os dados (Gegenstände) para o

conhecimento intelectivo onde os dados são pensados e

entendidos, ou o método dedutivo que desce do

pensamento para a experiência. Kant foi o primeiro

pensador da metafísica que se ocupou com as condições de

possibilidade do conhecimento objetivo. O desafio era:

como o sujeito deve ser estruturado e constituído para

poder conhecer objetos com os dados? É a organização do

sujeito que assegura a produção de conhecimentos válidos,

seja referentes aos objetos seja referente ao sujeito. A

estruturação que aparelha a consciência para vir a ser sujeito

de conhecimento e constitui o objeto para ser objeto

conhecido, é horizontal, quer dizer dá-se num plano linear

de funções e atividades do real na plataforma de produção

do ser humano. É o homem reduzido a sujeito de

representação e ação (Emanuel Carneiro Leão).

A abertura da esfera transcendental aprofunda o modo de ser do matemático

(no sentido da fundamentação de toda evidência na autoevidência). É um passo

importante do pensamento em seu andamento reflexivo. Subjetividade e objetividade

se pertencem como momentos correlativos de uma mesma funcionalidade, que é o

processo da representação. O representar, porém, se funda no refletir, na reflexão.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Refletir é, fundamentalmente, estar a caminho de si mesmo. Só que este caminho tem

um sentido de um regresso. Reflexão é um retorno sobre si mesmo, um virar, um voltar

para si mesmo, um dobrar-se sobre si mesmo (Cfr. N II, p. 397). Só há objeto lá onde

houver sujeito, ou melhor, um “ego cogito”, um “eu penso”, uma “apercepção

transcendental”, ou seja, uma “consciência de si”. Reflexão é, pois, um redobrar-se

sobre si. Na intuição, a consciência põe, no sentido de fazer presente, algo como algo, e

isso ela o faz em referência a si mesma, para si mesma. O tornar presente, pondo diante

de si algo como algo, se dá à medida que a consciência retorna para si, remete-se de

volta para si mesma, fornecendo-se, ante de tudo, a si mesma para si mesma. Somente

a partir da reflexão é que pode haver a formação do conceito, em que algo é posto como

algo e posto como “idêntico”, ou seja, como uma “mesmidade” fixa e constante (Cfr. N

II, p. 422 – 425).

Uma reviravolta decisiva da filosofia kantiana deu-se na interpretação da mesma

da parte do idealismo alemão. A consciência continua exercendo um papel fundamental.

“A subjetividade, o eu da apercepção transcendental, da razão teorética e prática, bem

como da faculdade de juízo, dá o impulso para a metafísica do eu (Ichmetaphysik) de

Fichte e Schelling”90. Note-se que não se trata do eu que pode ser representado como

objeto, isto é, do si mesmo que me é acessível na consciência empírica através do

sentido interno. Trata-se, ao invés, do eu que é sujeito das representações, do si mesmo

transcendental que acompanha e possibilita todas as representações, o qual é acessível

à reflexão através da apercepção transcendental. Trata-se, portanto daquela forma pura

de consciência que Kant chamou de autoconsciência. Para ele a autoconsciência não cria

do nada as representações, uma vez que estas pressupõem como material os dados da

experiência, os quais a afetam através da sensibilidade. A autoconsciência apenas

ordena e sintetiza as formas da representação. Além disso, a autoconsciência é finita,

como finito é o conhecimento humano, uma vez que é delimitado pelo horizonte dos

“fenômenos”.

Entretanto, saber-se finito já não é, de certo modo, transcender a própria

finitude? A tendência da razão (Vernunft) não é justamente a de realizar esta

90 M. Heidegger, Zur Bestimmung der Philosophie, p. 134.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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transcendência? Não é assim que, de há muito, a razão, no pensamento ocidental, é

considerada como uma participação no Espírito infinito? O idealismo alemão parece

caminhar nesta direção. Para Fichte, a autoconsciência é infinita e, mais do que

produtora do conhecimento, é criadora do sentido do real ele mesmo. Com Fichte a

autoconsciência torna-se um eu absoluto91.

Como o pensamento, em seu andamento reflexivo, caminha em sua odisseia de

autoesclarecimento e autofundação? Vejamos. Kant tinha derivado a articulação das

categorias a partir da tábua dos juízos, confiando-se à lógica. Mas a relação entre os

conceitos fundamentais e o eu penso não estava clara. Fichte elucida o sistema dos

conceitos fundamentais a partir da autoconstituição do sujeito. O Eu – este é o seu

pensamento fundamental – só é a partir de uma autoposição (o Eu põe-se a si mesmo).

Só é enquanto é ativo nesta autoposição. O todo do ente aqui permanece sendo o

cognoscível. Conhecer quer dizer, no entanto, referir o que acontece a “si mesmo”, ao

eu. Para que algo outro seja reconhecido como diferente, como não eu, é preciso que,

com a posição da diferença, já tenha se dado a autoposição do eu (identidade)92. Este

eu, que é princípio da realidade, não é um fato, mas sim um ato. É, na verdade, um ato

originário, a atividade de pôr-se a si mesmo (tese). O eu absoluto é posto de modo

absolutamente incondicionado. É infinito e ilimitado porque põe tudo aquilo que é. E

tudo aquilo que ele põe o põe como eu. O eu absoluto, que é identidade absoluta põe

também o que ele mesmo não é, isto é, põe a diferença de si mesmo: o não-eu (antítese).

Deste modo, o que chamamos de “mundo”, de “objeto”, de “real” não é outra coisa que

uma posição do eu absoluto que, restringindo-se e contraindo-se na sua infinitude, deixa

ser e aparecer o outro de si mesmo como o seu próprio limite e negação; ou melhor, o

eu absoluto, ao pôr o não-eu como delimitado e delimitador imediatamente restringe a

si mesmo, tornando-se, portanto, um eu de-terminado (síntese). Nesta dialética,

segundo Fichte, está a origem do juízo sintético a priori e, por conseguinte a origem das

categorias transcendentais que possibilitam a ciência.

91 Cfr. J. G. Fichte, Dottrina della Scienza, 75-102. 92 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 111-112.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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O andamento reflexivo do pensamento ganha uma nova estação de

autoelucidação e de autofundação em Schelling. A filosofia, aqui, se propõe como

sistema do idealismo transcendental. Ela parte da autoconsciência como a instância

originária da gênese da totalidade de tudo aquilo que é. Schelling diz expressamente: “a

autoconsciência da qual nós partimos, é ato uno e absoluto; e com aquele ato uno é

posto não somente o eu mesmo com todas as suas determinações, mas também toda

outra coisa que é posta em geral para o eu”93. Também para Schelling o eu é ato

originário, uno e absoluto, que põe não somente a si mesmo como também o não-eu. O

que chamamos de ideal e real só pode ser entendido a partir da copertença destes ao

eu absoluto, ou seja, ao ato primordial da autoconsciência pelo qual são postos

dialeticamente: “O ato da autoconsciência é ideal e real ao mesmo tempo e

absolutamente. Graças a este aquilo que foi posto realmente, se torna idealmente

também real e aquilo que se põe idealmente é posto também realmente”94.

Para Schelling, o todo do ente se constitui, no fundo, como vários níveis de

consciência e autoconsciência, logo, também como vários níveis de egoidade. Tudo o

que vive é um eu. Enquanto e à medida que tem vida, tem egoidade. Ora, ser é viver.

Logo, todo o ente elabora uma forma própria de egoidade. Já o ser nas constelações do

sistema estelar mostra certa vitalidade. Foi por isso que os antigos, ao olhar para os

céus, não viam simples corpos inanimados. Viam, antes, corpos animados por “espíritos”

(dinâmicas vitais). Viam nos astros “deuses”. No reino mineral e das pedras a vida dorme

e sonha. Na vida das plantas há um primeiro despertar e a egoidade é inconsciente. Na

vida dos animais, a vida torna-se consciente. Na vida dos homens, autoconsciente. Se

tudo o que é vive; se tudo o que vive tem egoidade; se a egoidade do eu consiste na

autoposição e se sua atividade se realiza num jogo de identidade e diferença; então, o

universo é um único e multidimensional acontecer de posições e autoposições, um

autonascimento da realidade efetiva (Wirklichkeit), que, no seu todo, pode ser

considerada como a única e unificadora vida da deidade95.

93 F. W. J. Shelling, Sistema dell’idealismo trascendentale (cap. III, avvertenza), 145. 94 F. W. J. Shelling, Sistema dell’idealismo trascendentale (cap. III, avvertenza), 145. 95 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 112-113.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Hegel leva à consumação o andamento do pensamento reflexivo, auto-

esclarecedor e auto-fundante da modernidade. Nele, o matemático e o transcendental

são elevados a um nível superior, a saber, o nível do idealismo especulativo. É quando

toda a estrutura e movimento da subjetividade do sujeito se desdobra ao auto-saber-se

absoluto. Isso quer dizer: é quando o sujeito se sabe como tal saber que condiciona toda

a objetividade. O sujeito é, agora, no modo de tal saber, o absoluto mesmo. Como se

dá, porém, no idealismo especulativo, o encaminhamento do pensamento da metafísica

da subjetividade para o saber absoluto?

Antes de tudo, neste encaminhamento, a noção de consciência deve ser

superada naquela de autoconsciência. É que consciência supõe sempre o ser sujeito em

sua relação com o objeto e concebe este como fora de si, outro de si, independente de

si. A autoconsciência, porém, é justamente a supressão desta alteridade e exterioridade.

“A verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento daquela; de tal

modo que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o

objeto como meu (este é minha representação), por isso, neste [objeto] eu sei a mim

mesmo”96. Da viagem da consciência, em que esta passa a se saber a si mesma como

autoconsciência, nos fala a obra “Fenomenologia do Espírito”, de 1807. Nesta obra,

Hegel tem em vista a filosofia como “ciência da experiência da consciência”, ou melhor,

como “sistema da ciência”. Ciência (Wissenschaft) é, aqui, entendida na linha da

“mathesis universalis” ou “scientia generalis” de Descartes, ou seja, como o saber, ou

melhor, a sabença universal, a sabença do Todo97.

Este saber do Todo aparece em Hegel como “Wissenschaft” 98 (ciência, no

sentido de sabença). Hegel entende que a filosofia é “o real saber daquilo que em

verdade é”. Aquilo que, para Hegel, “em verdade é” é o “espírito” e a essência do

espírito consiste na autoconsciência. Em Hegel alcança a consumação o andamento do

pensamento da metafísica da subjetividade do pensamento moderno: o primado do

96 G. W. F. Hegel, Enzykopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (par. 344), 251. 97 A noção de ciência universal, porém, remonta a Aristóteles. Na Metafísica ele diz: “Há uma ciência que considera o ente enquanto ente e aquelas propriedades que lhe competem enquanto tal. Esta ciência não se identifica com nenhuma das ciências particulares: de fato, nenhuma das outras ciências considera o ente enquanto ente de modo universal, mas, depois de ter delimitado uma parte do ente, cada uma estuda o que é concomitante a esta parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas” (Metafísica Gama 1003 a 20 – 26). 98 Wissenschaft vem wissen: saber.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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“cogito ergo sum” como sendo o que há de mais sabível em toda a sabença e na sabença

de tudo, o primado da “mens sive animus”, o primado da “ratio” ou “Vernunft”, o

primado do “Geist” (Espírito). Em lições sobre a história da filosofia, Hegel, depois de

falar de Bacon e de Jakob Böhme, ao falar de Descartes diz:

Só agora nós chegamos propriamente à filosofia do

mundo moderno e a começamos com Descartes. Com ele

penetramos propriamente em uma filosofia autônoma que

sabe que provém autonomamente da razão e que a

consciência de si mesmo é o elemento essencial do

verdadeiro. Aqui podemos dizer que estamos em casa e,

como o navegante depois de um longo vagar pelo impetuoso

mar, podemos gritar: “terra!”... Neste novo período é o

princípio do pensar o pensar que parte de si mesmo.

A autoconsciência (consciência de si mesmo) é, pois, o elemento do pensamento

decisivo para Hegel. “Autoconsciência” (Selbstbewusstsein) é categoria chave na

metafísica da subjetividade que nele vem à realização. Mas, o que diz esta categoria

como chave do pensamento em Hegel, e, portanto, no fim da modernidade, isto é, na

consumação da modernidade enquanto plenitude da consumação da metafísica?

Diz o processo de conquista, de controle e domínio

de sua realização que o ser humano tem de si mesmo, em si

mesmo e por si mesmo, tanto a respeito de sua identidade

consigo mesmo, como a respeito de sua diferença de tudo

que é e está sendo e não sendo. É o movimento superlativo,

a máxima intensidade de realização humana da humanidade

no homem. Não se trata apenas de uma transparência para

si mesmo do si mesmo. É o empenho por tudo que distingue

o homem, como homem, seja na ação e no conhecimento,

seja no sentimento e na mobilização de qualquer figura ou

configuração, de toda forma ou modo de realização. A

natureza do Selbst-be-wusst-sein é de concentração,

condensação e reunião, que não apenas nada perde ou deixa

escapar, como, sobretudo, faz tudo render e produzir no

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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máximo grau de potencialidade. Está em jogo o poder de

tomar posse, de captar e apreender a totalidade de tudo na

dinâmica de uma unidade de acolhimento e preservação. É

um movimento de compactação e compensação que

percorre composição por meio e através da oposição de

posições sempre mais exaustivas e intensivas. As estações,

as funções e configurações deste percurso de busca de si

mesmo da consciência são as formas e figuras de sua

conquista e performance. Por isso, nunca se deve confundir

o Selbst-be-wusst-sein, uma dinâmica de ser, com as formas,

os modos, as figuras de si mesmo, em que se locupleta a si

mesma de si mesma99.

Na consciência vige, isto é, vigora e reina, ser (sein). Este ser se caracteriza como

auto-presença e auto-sabença. A verdade da consciência se dá como autoconsciência. A

autoconsciência, porém, é movimento, encaminhamento. É todo um dinamismo de

realização da identidade humana. No idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel)

aparece claro que a identidade não é mera igualdade (A = A). A identidade inclui, em sua

realização, autoposição e heteroposição. A realização concreta da identidade não deixa

de fora, antes, inclui, a mediação dialética da diferença. Identidade inclui a relação

consigo mesmo e a relação com o outro. No diálogo “Sofista” (254 d), Platão, falando de

(stásis), repouso, e(kínesis), movimento, põe na boca do estrangeiro,

a seguinte indicação:

(oukoun auton

hékaston toin men dyoin hetón estin, autò d’heautõ tautón): “entretanto, cada um deles

é um outro, ele mesmo, contudo, para si mesmo o mesmo”. Platão não diz

simplesmente: cada um deles é ele mesmo o mesmo, mas diz, antes: cada um deles é

ele mesmo para si mesmo o mesmo. Isto é, cada um é dado a si mesmo como o mesmo.

Na identidade vige, pois, não meramente um ser si mesmo, mas vigora e reina um

relacionamento de si consigo mesmo. O “com” pertence, pois, à identidade. Este “com”

significa uma mediação. Embora isso já apareça em Platão, é somente no idealismo

99 Leão, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia do Espírito de Hegel. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 141-142.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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especulativo (preparado por Leibniz e Kant e posto em obra por Fichte, Schelling e

Hegel) que essa mediação vem à tona com toda a clareza. A vigência da identidade é,

pois, sintética, isto é, se dá como uma com-posição. A com-posição está tanto na

autoposição como na heteroposição. A unidade da identidade não é uniforme,

monótona. Ademais, a identidade não exclui a diferença. Em sua realização está em

jogo, sempre de novo, o relacionamento com a diferença100. Ela se dá como uma

abertura e um acolhimento da totalidade.

O movimento da realização da autoconsciência, pois, se dá não só como

conquista da identidade, mas também como conquista da integração com a diferença.

Este movimento é, na verdade, dialético. “É um movimento de compactação e

compensação que percorre composição por meio e através da oposição de posições

sempre mais exaustivas e intensivas”101. No idealismo especulativo, a dialética é o

movimento de produção da subjetividade.

Com o ego cogito, a subjetividade é a consciência

que representa algo, que retro-refere o representado a si

mesmo e, assim, o recolhe junto de si. Recolher significa, em

grego, [légein]. Recolher o múltiplo para o eu,

reunindo-o nesse eu, significa, expresso na voz média,

[légesthai]. O eu pensante recolhe o

representado, porquanto por ele passa, perpassando-o em

sua representabilidade. “Através de algo” quer dizer em

grego: [diá]. [dialégesthai], dialética,

significa aqui que o sujeito faz surgir sua subjetividade em

um tal processo e enquanto o é: que ele a produz102.

Em que consiste esta produção da subjetividade na dinâmica da realização do

sujeito? Como ela se dá?

100 Cf. Heidegger, Martin. O princípio da identidade. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 173-174. 101 Leão, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia do Espírito de Hegel. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 142. 102 Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 439.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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A dialética é o processo de produção da

subjetividade do sujeito absoluto e, enquanto tal, a sua

“ação necessária”. De acordo com a estrutura da

subjetividade, o processo de produção tem três níveis.

Primeiro, o sujeito enquanto consciência, se refere

imediatamente aos seus objetos. O que é imediato e,

contudo, é representado de maneira indeterminada,

também é designado por Hegel como “o ser”, o geral, o

abstrato. Pois nisso ainda se abstrai da relação do objeto

com o sujeito. Somente por meio desta retro-referência que

é a reflexão, o objeto é representado enquanto objeto para

o sujeito e esse para si mesmo, e isto quer dizer, enquanto

referindo ao objeto. Todavia, enquanto só distinguimos

objeto e sujeito, ser e reflexão, opondo-os um ao outro, e

enquanto nos fixarmos nessa distinção, o movimento do

objeto em direção ao sujeito ainda não terá manifestado a

totalidade da subjetividade para ela. O objeto, o ser, está,

não há dúvida, mediado pela reflexão com o sujeito, mas a

própria mediação ainda não está representada enquanto o

mais íntimo movimento para ele. Somente quanto a tese do

objeto e a antítese do sujeito são descobertas em sua

necessária síntese, o movimento da subjetividade da

relação-objeto-sujeito está plenamente em marcha. A

marcha é um partir da tese, avançar em direção à antítese e

passar para o interior da síntese, voltando a si mesma a partir

dessa síntese como totalidade do retorno da posição posta.

Esta marcha recolhe a totalidade da subjetividade em sua

unidade desdobrada. Desta maneira, ela con-cresce, con-

crescit, torna-se concreta103.

O ser da autoconsciência é devir. E o devir da autoconsciência consiste no

conhecer a si mesmo (Selbsterkennen). O sujeito é impelido pelo apetite ou desejo

103 Idem, p. 440.

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(Begierde) de autoconhecimento. Autoconsciência é o tornar-se sabedor de si mesmo

naquilo que essencialmente se é (seiner selbst im Wesen bewusst-werden). O devir da

autoconsciência é o seu manifestar-se a si mesmo na essência ou vigência

(Selbsterscheinen im Wesen). Através desta automanifestação o sujeito é conduzido ao

reconhecimento de seu ser-si-mesmo (Selbstsein), de sua ipseidade (Selbstheit). O

reconhecimento do ser-si-mesmo inclui o eu e o seu objeto e a relação entre o eu e o

seu objeto. O máximo da autoconsciência, porém, é o reconhecimento do

reconhecimento da ipseidade (Anerkennung der Anerkenntnis der Selbstheit). O

reconhecimento (Anerkenntnis), por sua vez, é um ser-em-si-mesmo e, ao mesmo

tempo, um ser-por-si-mesmo (An-und-für-sich-Sein).

O autoconhecer deve ser “puro” (rein), isto é, completo e incondicionado, isto

quer dizer, realizado a partir do incondicionado (Unbedingt), da pura subjetidade (reine

Subjektität). Heidegger distingue entre os termos “subjetidade” (Subiectität) e

“subjetividade” (Subjektivität).

A denominação “subjetidade” intenciona sublinhar

que o ser é determinado, sim, partindo de um subiectum,

mas não necessariamente por meio de um eu. Ademais, ao

mesmo tempo o título contém uma remissão ao

hypokeímenon e, portanto, ao início da metafísica, mas

também o prenúncio do proceder da metafísica moderna, a

qual, com efeito, reclama a “egoidade” (Ichheit) e sobretudo

a ipseidade (Selbstheit) do espírito como traço essencial da

verdadeira realidade.

Se por subjetividade se intenciona isto, a saber, que

a essência da realidade em verdade – ou seja pela

autocerteza da autoconsciência – é mens sive animus104,

104 Mente ou ânimo/espírito. Cfr. Descartes.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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ratio105, Vernunft106,, “Geist”107, então a “subjetividade”

aparece como um modo da subjetidade.

No pensamento grego a subjetidade aparece, inicialmente, como a vigência da

(physis): o surgimento e o eclodir com sua prejacência e o todo do ente que vem

à luz, céu e terra, e tudo quanto há vigora, incluindo os homens e os deuses; depois,

como a vigência da presença permanente, constante, a (ousía), que Platão

experimentou e pensou como (idea), o aspecto comum, e Aristóteles, como

(enérgeia), o ser em obra consumado na sua singularidade. No pensamento

medieval, por sua vez, a (ousía) se transforma em substantia, o ens in se (ente em

si). Substância por excelência, porém, é o ens a se (ente a partir de si), isto é, Deus, o

ipsum esse subsistens (ser mesmo subsistente). Ele é o oceano infinito da substância.

Nele, o actus essendi (ato de ser) é puro: ele é actus purus (ato puro). A ele pertence a

máxima actualitas (atualidade, realidade). Enquanto tal, ele rege todas as coisas. Ele

funda o todo do ente como creatio (criação). Este aparece, ali, como ens creatum (ente

criado). Esta fundação tem o sentido de causação ôntica do real. Já no pensamento

moderno, porém, o ente é tomado no sentido do cognoscível. A substantia que agora

assume o caráter de subiectum (fundamento, sustentáculo) em sentido próprio é a res

cogitans, a consciência, ou melhor, o cogito – sum. O fundar do sujeito tem o sentido,

agora, primeiramente, de possibilitação transcendental da objetualidade dos objetos

(Kant); depois, de mediação dialética do movimento do espírito absoluto (Hegel)108.

A pura subjetidade aparece, agora, como a subjetividade no sentido do espírito

absoluto. A autoconsciência é a consciência que vem a se saber como condição de

possibilidade de toda objetividade enquanto tal. O sujeito é fundamento: fundamento

como condição de possibilidade da posição do objeto enquanto o que é representado,

isto é, enquanto o que é posto diante de si mesmo109. Entretanto, o que é condição de

105 Razão. Cfr. Descartes, Leibniz, Espinosa, o “racionalismo”, como também o “empirismo”: Locke, Hume, Berkeley. 106 Em alemão, Vernunft é razão. Conceito fundamental em Kant. “Vernunft” vem de “vernehmen”: perceber. Em „vernehmen“, porém, temos a intensificação do verbo „nehmen“, que é receber, tomar. 107 Em alemão, “Geist” é espírito. Conceito fundamental em Hegel. 108 Cf. Heidegger, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 96. 109 Representar é “Vor-stellen”: pôr diante de si mesmo, como presente para si mesmo.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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possibilidade de toda objetividade, o sujeito, é, ele mesmo incondicionado, isto é, se dá

como incondicionada certeza (un-bedingte Gewissheit).

A autoevidência da auto-presença que se dá na autoconsciência se investe e

reveste do caráter de certeza: autoasseguramento. Em Hegel, como em Descartes, a

verdade enquanto adequação se determina como certeza 110. A verdade é a adequação

entre o representado e o representar, ou melhor, o ser representador. Esta adequação

é, mais fundamentalmente, certeza. Por sua vez, a certeza, ou seja, o estar e ser certo,

não é um acréscimo, mas sim o fundamento essencial do representar (Vorstellen). No

ser e estar certo reside o assenso de um juízo (Urteil)111. No assentir (Zustimmen)

acontece um reconhecer (Anerkennen). E, neste assentir como reconhecer se dá o

autoasseguramento de um sujeito. Verdadeiro é o real – a realidade por excelência. O

verdadeiro é substância112: a consciência imediata do objeto. Substância é a

imediatidade do saber (da consciência de) e a imediatidade do sabido (o ser). Acima

disso, porém, o verdadeiro é o sujeito, não somente como consciência imediata do

objeto, mas como consciência imediata de si mesmo: o sujeito como autoconsciência –

um saber, uma sabença de si mesmo. O verdadeiro é, pois, o certo, e o certo é o

incondicionado, isto é, o sujeito como sabedor de si mesmo, quer dizer, a

autoconsciência. Assim, o sujeito não só se sabe como condição de possibilidade de

toda objetividade, mas também se sabe, isto é, se autorreconhece, como

incondicionado em sua autocerteza. Estas duas prerrogativas do sujeito o torna

absoluto.

No entanto, como vimos, o movimento da autoconsciência é dialético. Ele

acontece no jogo de identidade e diferença. Autoconsciência é, neste sentido, “o puro

autoconhecer no absoluto ser-outro” (Das reine Selbsterkennen im absoluten

Anderssein). O que isto quer dizer? Vejamos.

110 As anotações que aqui são expostas sobre Hegel provêm de uma leitura de Heidegger: “Die Metaphysik des deutschen Idealismus” GA 49 (1941): p. 174-186. 111 Assensus: assenso, assentimento – adesão mental a uma proposição, isto é, aceitação da verdade desta proposição. 112 Sub-stantia no sentido de sub-sto: estou por debaixo, como fundamento de, neste caso, como representador do representado.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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O “puro autoconhecer” se dá no “absoluto ser-outro” (im absoluten Anderssein).

O “si mesmo” em seu “manifestar-se” é, enquanto si-mesmo, o outro de si mesmo.

Assim, o incondicionado aparece como condicionado. É nos condicionamentos

históricos que a consciência se perde, se aliena, ou seja, se torna outra de si mesma.

Mas é também a partir dos condicionamentos históricos que a consciência se recupera,

se encontra, se apropria daquilo que é seu. Nos condicionamentos históricos, a

consciência se perdeu em sua alienação (Entfremdung). Mas é a partir dos

condicionamentos históricos que a consciência busca se reencontrar a si mesma, se

reconhecer a si mesma naquilo que ela essencialmente é. O caminho histórico, a viagem

da experiência (Erfahrung) da consciência, vai dando à consciência um crescente e cada

vez mais essencial saber de si mesma, propiciando, assim, um reencontro consigo

mesma, sendo, assim, um caminhar em que a consciência se liberta da finitude de seus

condicionamentos para a infinitude, para o Absoluto. A odisseia da consciência leva-a ao

saber de si mesma como autoconsciência, ou seja, a tornar-se espírito. Mas, ao tornar-

se espírito, a autoconsciência se sabe a si mesma como sendo no Absoluto. Assim, o

caminho da autoconsciência em suas diversas estações prepara o salto no Absoluto. A

consciência se torna infinita e simples (una) no saber do Absoluto. Este saber se articula

como arte, religião e, enfim, filosofia. Na filosofia, o saber do Absoluto se consuma.

Em sua odisseia, antes de tudo, a consciência se encontra a si mesma alienada,

dispersa, dividida e dilacerada. Mas, como diz um fragmento de Hegel, “uma meia

remendada é melhor do que uma meia rasgada, mas não é assim no tocante à

autoconsciência”. Isto quer dizer: a autoconsciência dilacerada é melhor do que a

remendada.

Hegel percebe o “monstruoso poder do negativo” (die ungeheure Macht des

Negativen). A negatividade arranca a consciência do seu “existir” imediato, que, na

verdade, é uma falsa consciência, uma afirmação abstrata de si mesma. O negativo,

como negação da primeira afirmação é o que põe em movimento, em devir, a viagem

da consciência. O “não” tem o caráter de pôr em movimento, de encaminhar, tem o

caráter de provocar a passagem, a transição, na viagem da consciência. O “sim” é o puro

permanecer e estacionar. O não faz partir, deixar, e, ao mesmo tempo, encaminha,

destina, envia para novas configurações, em que a consciência vai se reencontrando no

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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saber de si mesma e, por fim, de si mesmo como no Absoluto. O não é a energia do

movimento, do devir. O não liberta dos condicionamentos e dispõe para o

incondicionado, para o infinito, o Absoluto. O não cria caminho, faz transcender, eleva

a consciência no saber do Absoluto.

Na inquietude do devir, instigada pela negatividade, a consciência vai sendo

urgida a se “desconfigurar” e a se “reconfigurar”. A autoconsciência vai, assim,

conquistando-se a si mesma, por meio do processo dialético. Historicamente, uma

antítese (negação, oposição), põe em xeque uma tese (afirmação, posição),

desinstalando e desconfigurando a consciência já instalada e constituída. Mas é

negando-nos que nós nos determinamos. Entretanto, a negação não pode ser uma mera

exclusão. Assim, ambas, tese e antítese, afirmação e negação, posição e oposição,

devem ser subsumidas e elevadas, superadas e conciliadas, numa nova síntese, ou seja,

numa nova composição. Mas, qual o sentido último desta “inquietude do devir”? O devir

é o devir da consciência como autoconsciência, da autoconsciência como espírito, do

espírito como saber absoluto do Absoluto. Ele tende, pois, para alcançar o “sistema da

ciência” (System der Wissenschaft).

O encaminhamento dialético da autoconsciência é especulativo. Mas, o que quer

dizer “especulativo”?

Somente quanto a tese do objeto e a antítese do

sujeito são descobertas em sua necessária síntese, o

movimento da subjetividade da relação-objeto-sujeito está

plenamente em marcha. A marcha é um partir da tese,

avançar em direção à antítese e passar para o interior da

síntese, voltando a si mesma a partir dessa síntese como

totalidade do retorno da posição posta. Esta marcha recolhe

a totalidade da subjetividade em sua unidade desdobrada.

Desta maneira, ela con-cresce, con-crescit, torna-se

concreta. É de tal modo que a dialética é especulativa. Pois

speculari quer dizer procurar ver, receber dentro do campo

visual, compreender, con-ceber. Hegel diz na introdução da

Ciência da Lógica (ed. Lasson, vol. I, p. 38): a especulação

consiste “em compreender o oposto em sua unidade”. A

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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caracterização hegeliana da especulação toma contornos

mais precisos se atentarmos para o fato de que na

especulação não é importante apenas a compreensão da

unidade, a fase da síntese, mas que antes importa sempre o

compreender “do que se opõe” enquanto tal. Disto faz parte

o compreender do aparecer da oposição e imbricação do que

é oposto – como tal impera a antítese, que é exposta na

“lógica da essência” (quer dizer, a lógica da reflexão). Do

aparecer reflexivo, quer dizer, do espelhamento, o speculari

(speculum: o espelho) recebe sua determinação suficiente.

Pensada assim, a especulação é a totalidade positiva daquilo

que a “dialética” quer aqui significar: não um modo de

pensar transcendental, criticamente restritivo ou mesmo

polêmico, mas o espelhamento e a unificação daquilo que se

opõe como o processo da produção do próprio espírito113.

O encaminhamento dialético do pensamento é concreto (implica a concreção

real do todo) e especulativo (implica o espelhamento e a unificação daquilo que se opõe

como o processo da produção do próprio espírito). A filosofia, a mathesis universalis ou

scentia generalis, se torna, aqui, “sistema da ciência”. A “ciência”, pura e simples, sem

qualificativo, é a sabença que surge da experiência (viagem histórica) da autoconsciência

na dinâmica da produção da subjetividade que alcança o absoluto. As hoje chamadas

ciências (axiomáticas ou empíricas) são chamadas por Hegel de ciência matemática e

ciência positiva. A filosofia não é uma ciência. Isto é: ela não é uma ciência entre outras,

no sentido da ciência positiva: uma ciência sem autoconsciência (perdida, como diria

Husserl, na positividade). É a ciência. É a ciência que surge do supremo movimento

dialético da autoconsciência. Ela é uma reflexão racional e sistemática do todo do ente

(real) na perspectiva do ser (realidade). Ela almeja o todo do ente, que se dá como

mundo, homem e Deus (cf. Leibniz, Wolff, Kant). A realidade do real como um todo deve

se espelhar nela em sua dinâmica dialética de posições, oposições e composições. O

todo do ente se estrutura em três polos: “o mundo como totalidade das experiências

externas, a alma como totalidade das experiências internas e Deus, como totalidade de

113 Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 440.

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todas as totalidades tanto externas, como internas”114. Cada um desses polos se

constitui como uma universalidade concreta. Trata-se, com efeito, cada vez, de uma

abrangência real e não de uma generalidade abstrata. O mundo é uma universalidade

concreta: a abrangência da imensidão do ser em que o homem precisa instalar-se para

ser homem. O mundo abrange natureza e cultura. Sem o enraizamento em um meio

natural e numa cultura o homem não realiza a sua humanidade, isto é, não se torna

humano. A alma é a profundidade do ser, a força e o dinamismo do viver, que vigoram

no homem. É o reino do espírito humano no sentido da consciência e da liberdade. Deus,

aqui, é a abrangência absoluta e infinita, a totalidade que recolhe as outras duas

totalidades. É uma abrangência que tudo compreende. É o continente de todo o

conteúdo. É o superlativo do ser. O homem só é homem se relacionando com o mais-

que-humano, com aquilo que ele reconhece e sente como se dando no mundo e no

espírito sem ser do mundo e do espírito, como aquilo que está com ele, mas não provém

dele.

Na realização de todo o real a realidade está se dando em devir articulando

dialeticamente estes três polos, o objetivo, o subjetivo e o absoluto. Por exemplo: numa

obra de arte há algo objetivo, mundano (natural e cultural); mas a obra de arte não se

esgota nesse objetivo. Nela vige também algo de subjetivo, a saber, a liberdade criadora

do artista, bem como o acolhimento interpretativo dos que a recebem, que se sentem

provocados pelo seu atingimento, pelo poder de mobilização da realidade humana que

a obra põe em obra. Nela reina, porém, algo que transcende tudo isso. Há um mistério

que escapa a toda objetividade natural e cultural, que se subtrai a toda a interpretação

e a toda a vivência, seja do artista, seja dos que a consideram em suas vidas. Há algo que

transcende as intenções dos criadores e dos receptores. É a esta transcendência que se

referem os gregos quando experimentam o saber artístico sob o toque de uma

inspiração divina, ou seja, quando veem a obra de arte surgir sob a égide das musas,

filhas de Zeus e de Mnemosyne. É a esta transcendência que se referem os modernos

quando pensam a criatividade artística sob a égide do gênio. Isso quer dizer fazer a

experiência de que a inspiração rege e supera toda a transpiração do empenho artístico.

114 Leão, Emmanuel Carneiro. O silogismo especulativo em Hegel. In: Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 112.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Não só o mérito está em jogo na inventividade artística, mas também a gratuidade da

inspiração, isto é, a graça, que vige como gratuidade e graciosidade e jovialidade115.

O encaminhamento dialético, concreto e especulativo, do pensamento é lógico,

isto é, pertencente ao lógos. Mas, o que quer dizer, aqui, “lógos”? Lógos é, aqui, a

reunião de todo o ente no ser, o recolhimento de mundo, homem e Deus. É a realidade

em sua força de recolhimento na expansão. É a unidade de realidade, realização e real.

A realidade vige em devir. Antes de tudo, a realidade se exterioriza como natureza. Ela

se dá na estruturação limitada do sensível. Essa exteriorização da realidade é negativa.

O lógos se estranha a si mesmo como natureza. A natureza é a negação do lógos, sua

alienação. A ultrapassagem da natureza na direção do espírito é, neste sentido, uma

libertação do lógos. O espírito é o oposto da natureza. A negação da negação se dá pelo

espírito. A realidade se mostra, então, como uma afirmação concreta, a afirmação da

liberdade. “Este espírito, que se realiza no homem, subjetivamente, e na história da

cultura e da sociedade, objetivamente, alcança e atinge na arte, na religião e, por fim,

na filosofia, uma realização completa, soberana e absoluta, isto é, a locupletação total

da essência enriquecida e concreta da realidade. Assim se cumpre e se completa o

sistema dialético numa circularidade perfeita: partindo do Lógos, a realidade retorna ao

Lógos pela mediação da natureza e do espírito”116.

O encaminhamento do pensamento moderno, no sentido de seu

autoesclarecimento e de sua autofundação alcança em Hegel, isto é, na auto-atuação

da autoconsciência seu fim, isto é, sua consumação, sua plenitude. Este

encaminhamento pode ser chamado de “o método”. O pensamento moderno começa

com o Discours de la méthode de Descartes (1637). Aquilo que começou como o

matemático e que se transformou no transcendental termina como “dialética

especulativa” em Hegel. Ele chamava a dialética especulativa simplesmente como “o

método”.

Com esta expressão ele não se refere nem a um

instrumento da representação, nem apenas a um modo

particular de a filosofia proceder. “O método” é o

115 Cf. Idem, p. 112-117. 116 Cf. Idem, p. 121.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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movimento mais íntimo da subjetividade, “a alma do ser”, o

processo de produção, por meio do qual a tessitura da

realidade do absoluto é efetivada (...). O método, ou seja, a

dialética especulativa, é para Hegel o rasgo essencial de toda

a realidade. Por isso, o método determina enquanto tal

movimento tudo o que acontece, isto é, a história117.

Para Hegel, a filosofia é uma “época condensada em pensamentos”. Ela é a

manifestação mais íntima do “espírito da época” (Zeitgeist). É o modo como os homens

compreendem e tomam consciência da realidade. Em Hegel, o “espírito moderno”

chega à sua realização e à sua manifestação plena. “O método” diz um traço essencial

deste espírito. Que o digam a ciência e a técnica. Mas, sobre isso veremos depois.

Entretanto, se perguntarmos: o que é que está em questão no encaminhamento do

pensamento enquanto método? A resposta será: a subjetidade enquanto subjetividade

e sua destinação, sua história.

Agora torna-se claro em que medida a história da

filosofia é o mais íntimo movimento da marcha do espírito,

quer dizer, da subjetividade absoluta em direção a si mesma.

Ponto de partida, avanço, passagem, retorno dessa marcha:

tudo é determinado especulativo-dialeticamente.

O fim, porém, não precisa ser o término, a cessação. O fim também não precisa

ser uma decrepitude. Pode ser uma plenitude. O fim pode continuar findando em

variadas formas.

Talvez, Hegel (o pensamento especulativo-dialético) seja o fim não só

pensamento moderno. Talvez seja também o fim da filosofia (isto é, do pensamento

ocidental enquanto metafísica).

Hegel diz: “Na filosofia enquanto tal, na presente, na

derradeira, está contido tudo o que o labor de milênios

produziu; ela é o resultado de tudo o que antecedeu” (ed.

Hoffmeister, 1940, p. 118). No sistema do idealismo

117 Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 440-441.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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especulativo, a filosofia consumou-se, atingiu, em outras

palavras, seu ponto mais alto e está, a partir dele, encerrada.

A proposição hegeliana acerca da consumação da filosofia

escandaliza. Julgam-na pretenciosa e caracterizam-na como

equívoco que já foi há muito refutado pela história. Pois,

após a época de Hegel, continuou e continua existindo

filosofia. Mas a proposição sobre a consumação não quer

dizer que a filosofia chegou ao fim, no sentido de um deixar

de existir e de uma interrupção. Muito ao contrário, a

consumação exerce justamente a possibilidade de múltiplas

formas novas, até as mais simples: a brutal inversão e a

maciça contraposição. Marx e Kierkegaard são os maiores

entre os hegelianos. São-no contra sua vontade. A

consumação da filosofia não é nem seu fim, nem consiste

apenas no sistema isolado do idealismo especulativo. A

consumação somente é como marcha total da história da

filosofia, marcha na qual o começo permanece tão essencial

quanto a consumação: Hegel e os gregos118.

Nossa tarefa agora é continuar a investigar como esta consumação continuou se

realizando na possibilidade de múltiplas formas. É o nosso próximo passo.

118 Idem, p. 441.

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2.1.2 RESSONÂNCIA DA FILOSOFIA DO HEGEL E NOVAS FORMAS DA CONSUMAÇÃO DA

METAFÍSICA.

O fim da filosofia, no sentido da consumação da metafísica, não é sua cessação.

Essa consumação, que se deu antes de tudo em Hegel, continua sendo realizada de

múltiplas formas nos pensadores que têm em Hegel a sua ascendência e naqueles que,

partindo dele, a ele se opõem. Vejamos isso melhor. Mas, primeiramente, retomemos

o tema do “fim da filosofia” em Hegel e vejamos os desafios e as provocações de

pensamento que isso veio a significar para os pensadores cujo pensamento se dá na

proximidade para com o seu pensar.

2.1.2.1 O fim da filosofia e a abertura da via da existência, da facticidade, da finitude.

Mas, voltemos a nos perguntar, como é que o pensamento de Hegel pode ser

considerado o fim da filosofia? Digamos: no sentido de conclusão, completude,

consumação. Nessa consumação, nesse Fim, revela-se o Princípio do pensamento

metafísico, que se iniciou com Platão.

Se é na História, que o Espírito cumpre

dialeticamente seu destino de Absoluto, a filosofia de Hegel

é realmente o Fim da Filosofia: pois o Espírito, que se

dessubstancializa em sujeito da História, supera qualquer

oposição de natureza, do mundo, da realidade e, em

superando, se constitui em sua própria mediação. Na

mediação de si mesmo, o Espírito se concebe como

Absoluto, pois já não possuindo nada, que se lhe possa

contrapor, se fecha no circuito de um círculo completo. O

círculo é a totalidade da História, em que a Verdade, sendo

o todo, alcança total realização. O todo verdadeiro não se

conquista numa espiral de crescimento sem fim mas numa

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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transparência perfeita do princípio no fim. Assim o problema

da História da Filosofia, a contradição aparente entre o saber

Absoluto do Espírito e o processo Histórico de absolutização,

Hegel o resolve, transpondo o Absoluto do Espírito para a

História do Espírito119.

Para Hegel, a filosofia é uma “época condensada em pensamentos”. Nela, como

num prisma e num espelho, se decompõe e se espelha o espírito de uma época

(Zeitgeist). O cerne do espírito de uma época, de uma consciência epocal, está no modo

como se dá o pensamento da realidade. O “espírito moderno”, mais precisamente, o

seu pensamento da realidade, se consuma na sua filosofia. Nela, a filosofia se torna

sistema: um todo coerente e ordenado. Ora, “o sistema para Hegel tem de se fechar

para poder ser sistema. Um sistema sempre em aberto não corresponde ao elã absoluto

da realidade”120. Hegel reconhece que todo pensamento é tópico: é uma realização que

pertence ao seu tempo e, enquanto tal, é limitada por ele. É uma realização que decorre

da presença do Espírito no espírito do presente. E, no entanto, entendia que o espírito

do presente que era o seu compreendia todas as instâncias anteriores da história da

filosofia, isto é, do ocidente. Na figura da sua filosofia a fenomenologia do Espírito se

consumava, pois ela compreendia em si mesma todas instâncias anteriores121. Nela se

realizaria a locupletação da filosofia. Nela, o espírito do presente se dá como a presença

do Espírito que integra as estações anteriores de sua experiência, isto é, de sua viagem.

Entretanto, junto com esta completude se dá como que uma restrição. Os

pensadores hegelianos partem desta restrição do Espírito. Esta restrição do Espírito se

deixa indicar como facticidade e finitude:

Circulando no círculo ab-soluto da autoconsciência,

o Espírito se descobre condenado, desde sempre e para

sempre, a seu próprio vir-a-ser. E nesta descoberta faz a

experiência radical de uma facticidade, invencível à dialética

de toda mediação de si mesmo pela razão e pelo sujeito. O

119 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 10. 120 Leão, Emmanuel Carneiro. O silogismo especulativo em Hegel. In: Aprendendo a Pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: 2008, p. 111. 121 Idem, p. 120.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Espírito sente infinitamente sua finitude e, nela, a

impossibilidade de apoderar-se e controlar o próprio vir-a-

ser. É o caminho da existência122.

A descendência imediata de Hegel logo se cindiu (1831). Formaram-se duas

vertentes: a direita e a esquerda hegeliana. De início, esta cisão se deu por discrepâncias

de filosofia da religião e, depois, de filosofia do direito e do Estado: a direita se ateve

firmemente à religião e sublinhou a racionalidade no sistema estatal e jurídico existente;

a esquerda reclamava a supressão da religião e a transformação revolucionária da

realidade social e estatal. A direita hegeliana não era reacionária. Era liberal. Entendia

que a transformação histórica precisava se encaixar no quadro existente123. A esquerda

hegeliana, por sua vez, era revolucionária124. É da esquerda hegeliana que vem uma

nova forma de filosofia: esta que salienta a facticidade, a finitude, a existência.

Na direção deste caminho, se encaminharam alguns

dos discípulos mais novos de Hegel: Heinrich Heine, Arnold

Ruge, Ludwig Feuerbach, Max Stirner, Bruno Bauer, Moses

Hess, Sören Kierkegaard e Karl Marx. Com Hegel partiram da

questão sobre as relações entre Filosofia e História e com

Hegel chegaram a conceber a História do mundo em função

de uma Filosofia da História: a filosofia de Hegel é o Fim da

Filosofia ou, com as palavras de Arnold Ruge, die letzte aller

Philosophien überhaupt, “a última de todas as filosofias em

geral”. Em Hegel a filosofia esgotara todas as possibilidades

de sua estrutura, deixando de ser (philo-sophía),

“amor da sabedoria”, para tornar-se (sophía), “toda”

a sabedoria. Nisso concordaram inteiramente com Hegel125.

Destes pensadores assinalados, vamos nos deter no estudo de dois: Kierkegaard e Marx.

122 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 10. 123 Representantes da direita hegeliana: G. Gabler, H. F. Hinrichs, K. F. Göschel, F. W. Carové, C. Rössler, C. E. Michelet. Dela surgiram os mais destacados historiadores da filosofia do século XIX: J. E. Erdmann, K. Fischer, K. Rosenkranz. 124 Representantes da esquerda hegeliana: A. Ruge, M. Stirner, B. Bauer, L. Feuerbach, M. Hess, e, de certo modo, K. Marx. 125 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 10.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

67

2.1.2.2 DE HEGEL A KIERKEGAARD PASSANDO POR SCHELLING: O ENCAMINHAMENTO

DO PENSAR E SER NA VIA DA EXISTÊNCIA.

Segundo a meditação historial do pensamento de Heidegger, com Hegel e

Schelling, com Kierkegaard, Marx e Nietzsche chega à consumação a época do ser

chamada de Metafísica, começada propriamente com Platão e Aristóteles.

2.1.2.2.1 A onto-teo-logia da metafísica em Hegel: a teologia ontológica do Absoluto e

a desdivinização.

A época do ser chamada metafísica, na qual a existência do Ocidente toma

consciência de si mesma, realiza o esquecimento do ser na forma de um pensamento

onto-teo-lógico. Na metafísica, o ser é abandonado em favor do ente, de modo que sua

diferença irredutível permanece ignorada, e o seu desencobrimento permanece

encoberto. Nomeia-se o ser, mas apenas como a entidade do ente, experimentada

fundamentalmente como presença ou vigência (Anwesenheit). O ser, enquanto

presença do ente, por sua vez é determinado como vigência permanente, consistente e

constante, como “ousia”, a qual, então é interpretada por Platão como “idea” e por

Aristóteles como “enérgeia”. Da “ousia” se distingue, por sua vez, o “ti estin” (o “o que

é”) e o “hoti estin” (o “que é”), aquilo que a tradição filosófica chamará de “essência” e

“existência”.

Desde Platão e Aristóteles a metafísica tem sido a época em que o a significação

da entidade do ente é estruturada na diferença entre fundamento e fundado. Isto quer

dizer que a vigência do pensamento ocidental esquece a diferença ontológica e pensa o

ser de modo ôntico como a entidade do ente no horizonte lógico da interdependência

de fundado e fundamento. Esta estrutura lógica, por sua vez, reclama a vinda do divino,

do “theós”, para dentro de sua vigência, à medida que requer que o ente seja realmente

fundado num fundamento último, que exclua a possibilidade e a necessidade de uma

ulterior fundamentação, ou seja, num fundamento supremo que é o absoluto, Deus. A

metafísica enquanto época da verdade do ser que se articula em uma constituição onto-

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teo-lógica reivindica para si o direito de conduzir o homem à verdade correta, imutável,

necessária e certa.

Em Hegel o caráter lógico da metafísica chega ao seu paroxismo. O êxito deste

paroxismo acaba sendo uma ontologia sem ser e uma teologia sem Deus. Uma ontologia

sem ser, pois o ser é reduzido ao pensado do pensar, é dissolvido no pensamento

através de uma metafísica de identidade absoluta. Uma teologia sem Deus, pois, assim

como a ontologia, também a teologia é absorvida na lógica. Vejamos isso melhor.

No século IV, o dia da história ocidental raiou com o despontar do sol do “lógos”.

Com o irromper do sol deste novo dia deu-se também uma ruptura com o pensamento

originário, que ainda estava em profunda comunhão, numa tensão criativa, não

excludente, com o “mythos”, a narrativa do extraordinário, e com o “epos”, palavra

cantada e canto poético. O ocidente vive do que nesta ruptura prorrompeu. O ocidente

se ergue e se sustenta desde a estrutura da metafísica. E como é esta estrutura?

Resposta: trata-se de uma estrutura “onto-teo-lógica”. Lógica é a metafísica, à medida

que pensa o ente no todo numa dinâmica de fundamentação, de fundamento e

fundado. Nessa dinâmica, o ser, enquanto universal, passa a ser pensado como o

fundamento do ente no todo. Por isso, a lógica da metafísica é onto-lógica. O ser é

tomado, então, como o fundamento comum do ente. O supremo grau de entificação,

porém, Deus, emerge, aqui, como fundamento absoluto, incondicionado, princípio de

ser e de conhecer. “A totalidade do ‘todo’ provém do Ente Supremo que unifica todos

os outros, sendo-lhes o fundamento de origem e sustentação”126. Por isso, a lógica da

metafísica é teo-lógica.

De Platão a Hegel e Nietzsche o ser é absorvido por esta dinâmica de

fundamentação. Se, a princípio, o pensar pertence ao ser, logo acontecerá o inverso: o

ser pertencerá ao pensar. Nos primórdios, em Heráclito, lógos é nome para o ser. Trata-

se da unidade unificante de tudo o que é. Todo o ente, de fato, é no ser. Isso quer dizer:

ser recolhe todo o ente. O lógos reúne o ente no todo e o faz desencobrindo-o,

revelando-o. Ser é revelação: Alétheia. Os caminhos do pensar eram, então,

determinados pela vigência de ser e não ser no devir e no aparecer. Pensar era acolher

126 ECL – Aprendendo a Pensar I, p. 128-129.

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e suportar o retraimento do ser, isto é, a ocultação do que tudo desoculta e revela e

acenar para ela. Pensar era, enfim, ser na co-pertença e na correspondência ao

retraimento do ser. Assim, para Parmênides, o que há de originário é o ser e co-pertença

do pensar ao ser. Pensar é ser homem. E ser homem é ser na referência para com o

retraimento, o mistério do ser. No pensar, o ser se abre e se manifesta ao homem, como

a vigência do mistério, que vigora tanto na presença como na ausência, tanto na

claridade quanto na escuridão, tanto no desvelado quanto no velado, tanto no patente

como no latente. Mas, de repente, a ausência se ausenta do pensar. Com o irromper do

sol do lógos fundamentador, a luz parece afugentar toda a escuridão. Desaparece o

lusco-fusco do mistério, isto é, o ser deixa de ser acolhido como o mistério, em seu

retraimento, e passa a ser acolhido apenas como o fundamento que entifica. Encobre-

se o encobrimento do ser. E o pensar visa apenas o desvelamento do ente. Pensar é

agora, dizer, no sentido de produzir, de expor o desvelado. A vigência do ser, que se dá

como presença constante, ousía, passa a ser determinada, agora, a partir do pensar,

como idea em Platão e como enérgeia em Aristóteles.

A idea é o aspecto em que se deixa e se faz ver o que é algo que se torna presente.

O ser como physis, isto é, surgimento originário e originador, aparece, isto é, abre

espaço e ocupa espaço, erigindo-se numa consistência recolhida. O que é constituído

neste aparecer e percebido pelo pensar é a idea, isto é, a vista, o viso, o aspecto, que dá

os contornos, o perfil do ente no seu que é e como é. Para Parmênides, não o ser se dá

a partir do perceber, que é pensar (noein), mas sim este que se dá a partir daquele. Em

Platão, o ser começa a ser tomado a partir do perceber, que é pensar. Não o pensar

pertence ao ser, mas o ser pertence ao pensar. A idea vige, então, como o viso de um

“ti estin” (o que é), como a quididade do ente, isto é, a determinação do seu “o que é”.

Desta determinação quididativa, porém, que se chamou de essência, se distingue outra

determinação, na articulação do ser, tomado desde o pensar, que é o “hoti estin”, o fato

de ser (o “que é” do ente), que se chamou de existência. A determinação da idea, porém,

ou seja, da essência ou quididade do ente, se dá mediante o légein do logos, ou seja,

mediante o falar e dizer do discurso. Légein que é dialégesthai, cuja arte é a dialética,

um dialogar e discutir que ascende da doxa (a aparência) à epistéme (o conhecimento

da essência), através de posições, oposições e composições. Com a mudança do ser em

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idea, a verdade deixa de ser a revelação do ente pelo ser e passa a ser a correção do

pensar. Já em Aristóteles, o légein do lógos, isto é, o falar e dizer do discurso, é tomado

como um kathegorein, um enunciar. As determinações do ser são compreendidas,

então, desde o enunciar e o enunciado, ou seja, desde as categorias. Isto quer dizer: a

decisão sobre o ser do ente passa, agora, pelo enunciar, regido pelo princípio de não

contradição. Esta é tanto uma lei do ser quanto do pensar. A verdade como correção é

também a origem da consideração do ser a partir das categorias. “ ‘Ideia’ e ‘categoria’

serão no futuro os dois títulos a que se submeterá o pensar, o fazer e o julgar, toda a

existência do ocidente”. O predomínio da filosofia grega como metafísica, como onto-

teo-lógica, mais propriamente, como lógica, segundo Heidegger, atingiu a sua

“grandiosa e definitiva plenitude” em Hegel127.

E o que é de Deus nisso tudo? No primeiro livro da Ciência da Lógica, que trata

da “doutrina do ser”, Hegel diz que Deus deveria ser o ponto de partida da filosofia. A

“Ciência da Lógica”, isto é, do Lógos, deveria começar com o seu fim, isto é, com o seu

resultado: “o resultado é o começo”. E Hegel anota: “e o mais indiscutível direito teria

Deus de que se começasse com ele”. Isto quer dizer: A Lógica é constituída de ontologia

e, ao mesmo tempo, de teologia. Teologia significa, aqui, não a ciência da fé a partir de

uma doutrina eclesial; significa, antes, a enunciação do pensamento especulativo sobre

Deus. A metafísica é, desde os gregos, ontologia e teologia, a um só tempo. É o que

Heidegger chamou de caráter onto-teo-lógico da metafísica. A metafísica recebe da

tradição platônica a investigação do ser no sentido do ente sumo e autêntico, isto é, do

ente que satisfaz de modo mais adequado a ideia de ser – e, assim, se faz teologia. Por

outro lado, a tradição aristotélica dá à metafísica uma segunda orientação, que investiga

o ser no sentido do ente enquanto ente, do ente em geral. E, no entanto, em Aristóteles

também aparece um traço teológico da metafísica. Para Aristóteles, Deus é o centro do

movimento e da ordem, a realidade pura e suprema do pensamento que se pensa a si

mesmo no meio do ente mesclado de possibilidade e de realidade, de potência e ato,

que tende ao divino como o amante ao amado. Assim, com a fundamentação da filosofia

enquanto metafísica, aparece a unidade da doutrina do ente enquanto ente (do ente no

tocante ao ser), que se desdobra no sentido do ente em conjunto (mundo) e no sentido

127 Introdução à Metafísica, p. 208.

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do ente supremo (Deus). Deus é, na metafísica, o fundamento produtor do ente. A

filosofia exige e determina a entrada de Deus no seu horizonte a modo de fundamento

do ente. É a plenitude do ser no sentido do sumo ente. É a coisa originária: a causa

primeira. A causa sui. No entanto, “a este Deus não pode o homem nem rezar nem

sacrificar. Diante da causa sui, não pode o homem nem cair de joelhos por temor nem

pode, diante deste Deus, tocar música e dançar”128. Assim, na filosofia há ambiguidade

de presença e ausência de Deus.

Hegel entendeu que era chegada a hora de, de novo, de antemão, colocar Deus

no ápice da filosofia, como o fundamento único de tudo, como o único principium

essendi et cognoscendi (Princípio de ser e conhecer). Para ele, a primeira condição para

se demonstrar a existência de Deus é a identidade de ser e pensar. A segunda condição

é que se recorra não ao entendimento (Verstand: pensamento abstrato e categorial),

mas à razão (Vernunft: pensamento concreto e dialético). Este é o pensamento que é

capaz de transcender o sensível. É o puro pensar (puro = homogêneo e intrínseco). O

pensamento puro é a dinâmica de absolutização do Absoluto. É uma ascensão para

Deus. A autoconsciência vive no éter do Absoluto. O Absoluto é o supremo grau de

entificação.

Na meditação de Heidegger, a onto-teo-logia leva a uma teologia sem Deus. Nela

acaba acontecendo uma desdivinização de Deus na existência histórica dos homens. A

“teologia ontológica do Absoluto” em que se consuma a metafísica com Hegel, acaba

por absorver a vigência histórica do divino no “éter do pensamento puro”. A presença

de Deus na metafísica acaba se tornando a ausência do Deus divino. Acaba dando em

“a-teísmo” (Gott-losigkeit). Justamente a teologia metafísica impede o homem de um

encontro apropriado com o sagrado, com o divino, com a deidade, com os deuses, com

Deus. Na figura do Deus Absoluto da metafísica se retrai o Deus divino do sagrado. O

Deus Absoluto da Metafísica, absorvido pelo “éter do pensamento puro”, acaba por se

tornar um simulacro do divino, um ídolo da razão. É o Deus submetido à lógica. É o Deus

128 Heidegger, Martin. A constituição onto-teo-lógica da metafísica (Identidade e Diferença). In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 199.

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submetido à essência do ente e à essência da verdade que o fundamento metafísico da

época moderna permite:

Na metafisica cumpre-se a meditação sobre a

essência do ente e uma decisão sobre a essência da verdade.

A metafisica funda uma era, na medida em que, através de

uma determinada interpretação do ente e através de uma

determinada concepção da verdade, lhe dá o fundamento da

sua figura essencial. Este fundamento domina por completo

todos os fenómenos que distinguem essa era. Em sentido

contrário, o fundamento metafisico tem de se deixar

reconhecer nestes fenómenos, para uma meditação

suficiente sobre eles129.

Dentre os fenômenos que permitem reconhecer o fundamento metafísico da

época moderna está, diz Heidegger, a desdivinização. Em 1938, ele aponta cinco

fenômenos indicativos da vigência metafísica da época moderna: 1) o protagonismo da

ciência; 2) o protagonismo da técnica das máquinas; 3) a transformação da obra de arte

em objeto de vivência estética e como expressão da vida do homem; 4) o fazer humano

tomado no sentido da cultura; 5) a desdivinização:

Um quinto fenómeno da modernidade é a

desdivinização. Esta expressão não visa a simples eliminação

dos deuses, o ateísmo grosseiro. A desdivinização é o dúplice

processo de, por um lado, a imagem do mundo se

cristianizar, na medida em que o fundamento do mundo é

estabelecido como o infinito, o incondicionado, o absoluto,

e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua

cristianidade numa mundividência (a mundividência cristã)

e, deste modo, se modernizar. A desdivinização é o estado

de ausência de decisão sobre o deus e os deuses. Ao

129 Heidegger, M. Caminhos de Floresta: p. 97.

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cristianismo cabe a maior parte no seu despontar. Mas a

desdivinização não só não exclui a religiosidade, como é até

só através dela que a relação aos deuses se transforma na

vivência religiosa. Ao chegar-se aqui, é porque os deuses

fugiram. O vazio que surgiu é substituído pela investigação

historiográfica e psicológica do mito130.

À consumação da metafísica como dinâmica histórica de absolutização em Hegel,

segue o mundo do predomínio da racionalidade científico-técnica e da vivência estética

e religiosa, que desemboca na desdivinização, que Nietzsche, de outro modo, anunciou

como “morte de Deus”. Ao pensamento do ser, diz Heidegger, não resta outra

alternativa que abandonar o Deus da filosofia. O pensamento do ser aparece, assim,

como um pensamento a-teu (sem Deus: ein gott-loses Denken). No entanto, justamente

este pensamento que abandona o Deus da filosofia (o Deus como causa sui) pode estar

mais próximo do Deus divino, isto é, pode estar mais livre para ele131.

2.1.2.2.2 KIERKEGAARD: O APÓSTOLO132 DA EXISTÊNCIA

A absorção do real, das realizações e da realidade, da natureza, do espírito e de

Deus no “éter do pensamento puro”, realiza a consumação da metafísica em Hegel. Na

descendência filosófica de Hegel, porém, começa-se a ressaltar a facticidade, a

existência e a finitude. Em Kierkegaard abre-se a via da existência para o pensamento

contemporâneo.

O pensamento de Kierkegaard, negativamente concebido, se determina pela

polêmica com o pensamento de Hegel, por se voltar contra a apresentação de “uma

realidade concebida como uma estrutura essencial dotada de racionalidade e

130 Idem, p. 98. 131 Cf. Heidegger, Martin. A constituição onto-teo-lógica da metafísica (Identidade e Diferença). In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 199. 132 “Apóstolo” no sentido da palavra grega: enviado - (apóstolos) deriva de (apostéllo: enviar).

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consequencialidade lógica, que se desdobra na história”133. Esta concepção da realidade

pautada pelo pensar e pelo ser entendido como essência ameaça a consideração para

com a forma de realização peculiar do homem, para com a sua existência. O caráter

necessário deste desdobramento ameaça a sua liberdade. A redução do indivíduo a um

momento no desenvolvimento da ideia absoluta (cf. a noção de “astúcia da razão”)

ameaça sua singularidade e sua historicidade. A rebelião contra o pensamento de Hegel

e a defesa do homem contra estas ameaças determina em boa medida as tendências da

filosofia desde o século XIX.

2.1.2.2.2.1 A ARRANCADA DA REBELIÃO: O ROMANTISMO E A ESCOLA HISTÓRICA.

Um primeiro movimento neste sentido veio do romantismo alemão. O

movimento romântico parece pressentir a radical apatridade que acometeria o homem

moderno, que chega hoje, ao que parece ao seu paroxismo, e o encaminha para a

possibilidade de uma terra incógnita, mas bela e acolhedora134. Põe o homem ocidental

em contato com o “lado” noturno da sua condição. Foi neste contexto que Novalis

propusera uma nova definição de filosofia: “Die Philosophie ist eigentlich Heimweh, ein

Trieb überall zu Hause zu sein”135. O mesmo Novalis, num de seus hinos à noite escreve:

Por que a manhã deve sempre retornar? O

despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana

consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em

que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o

tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e

ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo

dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho

133 Vattimo, Gianni. Tecnica ed esistenza: Uma mappa filosófica del Novecento. Milano: Mondadori, 2002, p. 12. 134 Hölderlin, em carta a Neuffer, de 1793, fala da existência dos precursores do romance que haviam, e faz notar que havia apenas“ poucos que chegaram a uma terra nova e bela” e que havia “uma imensidade a descobrir e elaborar”. Idem, p. 7. 135 “A filosofia é propriamente uma nostalgia, um impulso de estar por toda a parte em casa”. Novalis, Schriften. Vol. 2. Jena: 1923, 179. Cf. Heidegger, M. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt – Endlichkeit – Einsamkeit. GA 29/30. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, p. 7.

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mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo

do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre

nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo

dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das

amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não

sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e

transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és

tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias,

mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da

chave para a morada dos abençoados.

O romantismo marca uma ruptura com o pensamento apolíneo, isto é, o

pensamento da claridade meridiana do discurso e sua consequencialidade (lógica). Ele

aponta para o claro-escuro da vida humana, para o lusco-fusco do mistério. Apela para

a renúncia à pretensão da absoluta transparência da realidade para o saber absoluto.

Ao longo de mais de dois mil anos, a história do

espírito europeia foi dominada pela ideia de luz, de verdade

e de ordem. Toda aspiração culminava na meta da mais alta

clareza, da última determinação, do bem absoluto e da

revelação completa de toda conjuntura essencial. Como

sempre, no individual, a história universal fora representada

sob uma lei, segundo a qual tudo tem que vir “à luz do

dia”136.

Os “hinos à noite”, de Novalis apontam nesta direção. Evocam o pertencimento

dos fenômenos fundamentais da vida humana à dimensão da “noite”, isto é, do

velamento do mistério:

Com a corrente do espírito europeia, que nós

chamamos de “romântica”, entretanto, veio à palavra um

traço contrário, que tem a ver não com o dia, mas com a

noite. Uma secção dos “hinos à noite” de Novalis, nos

mostra, que a noite é o fundamento de sentido e o símbolo

de um grupo de fenômenos, que, até então, ou se esquecera

136 H. Rombach.

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ou se entendera falsamente. Para um olhar mais atento eles

se descobrem justamente como os mais importantes, os

mais abrangentes e os mais originários eventos, que

pertencem a uma conexão não esclarecida e não

esclarecível, a saber, amor, vida, morte e nascimento.

Todos os fenômenos centrais e iniludíveis da vida e

da existência são de natureza hermética. Eles vêm antes dos

conceitos, ou eles deixam para trás de si todo o

entendimento. O elevar-se do entendimento é o declínio do

fenômeno. Neste declínio entra também o saber de que o

mundo da origem é o mundo propriamente dito, o mundo

verdadeiro e oniabrangente. Ao contrário, o mundo do

entendimento é só uma conexão derivada de fenômenos

arrogados e trazidos para o entorno da dimensão

profunda137.

O romantismo retoma a consciência histórica, decisiva para o iluminismo, para

Kant e para Hegel, mas desperta o sentido da singularidade indeduzível do histórico.

Herder “viu a realidade histórica na sua plenitude multiforme e irracional e reconheceu

o valor próprio e autônomo de cada nação, de cada época, de cada manifestação

histórica como tal”138. A realidade histórica já não é mais vista a partir da ideia de um

progresso esquemático, regular, racional e linear que visa a superação da barbárie e o

alcance da racionalidade. Cada povo, cada nação, cada época é singular e na sua

singularidade se concretizam o específico e o universal. A felicidade não é uma meta

colocada fora de si mesmo, mas se dá ali onde cada singular entidade histórica atinge o

centro de gravidade da própria existência. A categoria de “Eigenheit” (singularidade)

torna-se plena de sentido e com ela vêm à luz as configurações da vida como tal139. As

intuições de Herder foram em seguida aprofundadas, alargadas e receberam uma

fundação filosófica de princípio. “Schlegel dirigiu o olhar para a literatura e suas originais

137 Idem. 138 Heidegger, Martin. Zur Bestimmung der Philosophie – GA 56/57. Frankfut am Main: Vittorio Klostermann, p. 1987, p. 133. 139 Idem, p. 134.

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e autônomas formas históricas”140. Os mitos, as sagas, os cantos dos povos passam a ser

investigados como formas plenas de sentido e não como produtos da imaginação

caótica de povos que ainda dormem o sono da irracionalidade na condição de

prisioneiros da barbárie e da natureza. Herder e o romantismo alemão tiveram um papel

importante no desdobramento da consciência histórica moderna. Gadamer considera

que, quanto à inspiração, o método das ciências humanas remonta a eles. Gadamer se

refere a isso do seguinte modo:

Em conformidade com esse método, a vida moderna

assume – precisamente como “consciência histórica” – uma

posição reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido

pela tradição. A consciência histórica já não escuta

beatificamente a voz que lhe chega do passado, mas, ao

refletir sobre a mesma, recoloca-a no contexto em que ela

se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que

lhe são próprios. Esse comportamento reflexivo diante da

tradição chama-se interpretação141.

Também a “escola histórica” alemã (Droysen, Ranke) do século XIX nasce de uma

contraposição ao pensamento histórico de Hegel142. É assim que Heidegger apresenta a

sua importância na constituição da historiografia científica moderna: “Ranke começa o

seu trabalho; e a compreensão de mundos históricos, a dedicação à riqueza e ao

movimento destes alcançam sua consumação. Ele evita toda especulação dialética e

aspira pelos meios efetivos e portadores de conteúdo da narração da história mundial

140 Idem, ibidem. 141 Gadamer, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 18-19. 142 Leopold von Ranke foi o expoente principal da universidade berlinense nos decênios centrais do século XIX. Graças a Ranke e à sua escola (Treitschke, Meinecke e outros estudiosos que se reuniram em torno da ‘Historische Zeitschrift’ fundada no ano de 1859), vem a se afirmar uma nova concepção e uma nova prática da história como ciência. A ele mais do que a qualquer outro se deve atribuir o título de artífice do método crítico-filológico como cânone do procedimento da investigação na ciência da história. A história para ele devia proceder a partir das fontes, mas não devia parar aí. A meta do historiador não é colecionar os fatos, mas – através de um estudo fortemente documentado – tentar uma compreensão do passado, coisa que não é possível se não através de uma intuição vivencial (Erlebnis), ou seja de uma “viva participação” do historiador nos eventos que ele reconstrói. Para ele, tal reconstrução era essencialmente narrativa: a história exige a arte da narração. Mais tarde o próprio Dilthey reconhecerá em Ranke uma tal habilidade artística, isto não obstante toda a exigência de objetividade que Ranke e sua escola imprimiu à historiografia.

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em seus nexos genuínos e universalmente históricos e com isto se torna propiciador de

orientação para o futuro”143. Mesmo tendo recebido alguma coisa do romantismo no

tocante à orientação espiritual do seu trabalho, ele tomou distância das especulações

dialéticas como meios de explicação da história no seu todo144. Foi radical na rejeição

do idealismo, especialmente da filosofia hegeliana. Por extensão, rejeitava toda e

qualquer filosofia da história, isto é, toda tentativa filosófica de dar uma explicação da

história como um todo a partir da postulação de uma meta suprema ou de um sentido

absoluto para mesma. Contra o positivismo ele negou que na história se pudesse falar

de “progresso”. O que o historiador pode fazer é penetrar nas tendências das diversas

épocas históricas e detectar as diferenças entre umas e outras. Somente a partir daí é

que se torna admissível uma periodização da história mundial. A historiografia de Ranke

rejeita, pois, toda tentativa de estabelecer leis no âmbito da história; ela não é voltada

ao geral, mas sim ao particular, isto é, aos fatos, os quais se mostram como eventos

totalmente singulares quando são exaustivamente estudados. Por conseguinte, para ele

o indivíduo se reveste de uma importância fundamental; mas, deve-se observar, não se

trata de todo e qualquer indivíduo e sim aqueles em cuja ação é decidida o destino das

instituições, dos povos e nações. E como tal ação realiza-se sobretudo no plano público,

compreende-se que para ele a política é a dimensão onde a história realmente se

concretiza. A história de Ranke, no seu conteúdo, é essencialmente uma história das

instituições políticas, das entidades estatais, das relações diplomáticas, em resumo, é

não somente história da política entre outras coisas, mas história política.

Com Jacob Burckhardt nasce, porém, na segunda metade do século XIX, a história

da cultura e da civilização (Kulturgeschichte). Tal história investiga sobretudo as

manifestações do gênio individual (os grandes personagens) e coletivo (os povos) a partir

do estudo de elementos biográficos, político-institucionais, filosóficos e artísticos.

Burckhardt é para a história da cultura aquilo que Ranke é para a história política. Suas

obras mais importantes são aquelas dedicadas aos gregos e ao Renascimento145.

Contributo muito importante à história da cultura deu Karl Lamprecht e a escola de

143 Heidegger, Martin. Zur Bestimmung der Philosophie – GA 56/57. Frankfut am Main: Vittorio Klostermann, p. 1987, p. 135. 144 Cfr. D’Orsi A.., Alla ricerca della storia. Teoria, metodo e storiografia. Torino: Paravia, 1999, p. 138-141. 145 Cfr. D’Orsi A., Alla ricerca della storia. Teoria, metodo e storiografia. Torino: Paravia, 1999, p. 145.149-150.

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história da arte de Viena. Lamprecht foi “o protagonista de uma alternativa ao modelo

rankiano justamente neste sentido: para ele a ‘nova história’ deve ser uma história

coletiva; o historiador, aquele alemão em especial, deverá romper com a tradição

individualista. Enquanto indivíduos forem assumidos como objeto de investigação, ficar-

se-á prisioneiro da biografia”146. Deixou como obra monumental a sua Deutsche

Geschichte (História Alemã), escrita entre 1891 e 1909. Lamprecht não somente se opôs

a Ranke, como também ao próprio Burckhardt, na medida em que a história da cultura

deste lhe parecia por demais heroicista e individualista. “Aquilo que interessa sobretudo

a Lamprecht é a história da coletividade, começando mesmo do Volk (povo), que ele

entende, com efeito, como grupo ideal para o exame do historiador. Isto é, um

aglomerado de indivíduos cuja vida espiritual passa através de estágios sucessivos,

condicionando, até quase a determinar-lhes, as características dos indivíduos que são

parte da comunidade”147. Para ele, portanto, é muito importante investigar o substrato

psíquico da coletividade, pois, a seu ver, a cultura não é outra coisa que a manifestação

da psique social. A partir destes impulsos de investigação no âmbito geral da história da

cultura dá-se o nascimento de novas historiografias específicas, como a história da

filosofia, a história da literatura, a história da arte, a história da religião, todas estas

disciplinas que tanta importância terão ao longo do século XX. Nos últimos anos do

século XIX e nos primeiros do século XX vários estudiosos serão influenciados pelo

exemplo de Burckhardt e Lamprecht: na Europa pode-se citar Meinecke, Huizinga,

Cassirer e, na América, Robinson, Beard, Becker, Lovejoy

A escola história (Ranke, Droysen) nasce em reação a Hegel e ao idealismo. “De

certa forma, sua certidão de nascimento é sua recusa à construção apriorista da história

do mundo. Sua nova pretensão é que o que pode conduzir a uma concepção da história

universal não é a filosofia especulativa, mas unicamente a investigação histórica”148.

Ranke, Droysen e Dilthey afirmam, contra o idealismo e sua filosofia especulativa da

história, que a ideia (essência) não encontra uma expressão completa e adequada na

história, mas apenas uma expressão imperfeita. “É só por isso que em vez de filosofia

146 D’Orsi A., Alla ricerca della storia. Teoria, metodo e storiografia. Torino: Paravia, 1999, p. 145. 147 D’Orsi A., Alla ricerca della storia. Teoria, metodo e storiografia. Torino: Paravia, 1999, p. 150. 148 Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 1997, p. 273.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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precisamos de uma investigação histórica que instrua o homem sobre si mesmo e sobre

sua posição no mundo”149.

Entretanto, isso não quer dizer que a história seja um medium opaco, resistente

a toda a tentativa de compreensão e de interpretação. A história não é a mera queda

do espírito no reino da temporalidade e da materialidade, como pensara uma

concepção gnóstica e neoplatônica da antiguidade. A temporalidade e a materialidade

do devir histórico testemunham a produtividade e a criatividade do espírito, da essência

e da liberdade humana em relacionamento com o mundo. “É a plenitude e a diversidade

do humano que, através da mudança interminável dos destinos humanos, encaminha a

si mesma para uma realidade cada vez maior. Essa poderia ser uma maneira de formular

a premissa básica da escola histórica”150.

2.1.2.2.2.2 SCHELLING: A IRRUPÇÃO DA EXISTÊNCIA NA QUESTÃO DA LIBERDADE

Em 1809 (dois anos depois da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel) Schelling

publica as “philosophischen Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freyheit

und die damit zusammenhängenden Gegeständen” (Investigações filosóficas sobre a

essência da Liberdade humana e das questões conexas)151. A obra pretende ser uma

149 Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 1997, p. 275. 150 Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 1997, p. 276. 151 Friedrich Willhelm Joseph von Schelling nasceu em 1775 em Leonberg (Wüttenberg) e morreu em 1854 em Bad Ragaz (Suíça). Estudou com Hegel e Hölderlin no seminário protestante de Tübingen. Lecionou em Jena, Würzburg, Erlangen, Munique e em Berlim. Ensamblando com Fichte, fortemente influenciado por Espinosa, Giordano Bruno e Jakob Böhme, deu ao romantismo a mais clara expressão filosófica. De 1797 a 1800 seus esforços se concentram em desenvolver uma filosofia (panteísta) da natureza. Esta é um organismo, configurado desde o espírito inconsciente, o qual, nela e por ela, se desenvolve como o eu consciente de si. Schelling procura, assim, elevar o real ao ideal, em contraposição, segundo ele, à filosofia transcendental, que levava o ideal ao real. Na filosofia transcendental (Kant) acontece o seguinte: na filosofia teorética, a natureza aparece sem consciência; na filosofia prática, aparece a consciência com a liberdade, e, por conseguinte, a esfera do direito e do Estado; na filosofia da arte, descortina-se a possibilidade de contemplar como beleza a harmonia do inconsciente e da consciência. Na filosofia da natureza de Schelling a natureza aparece como uma totalidade viva. Tudo é vivo. E, enquanto tudo é vivo, tudo se constitui como um eu, mas em diferentes níveis de egoidade. Assim, a natureza é o espírito inconsciente, assim como o espírito é a natureza consciente. Nas plantas, o eu é inconsciente. Nos animais, o eu é consciente. No homem, o eu é autoconsciente. O cosmos inteiro é um único acontecer em diferentes níveis de posições e auto-posições, um autonascimento da realidade, que, em conjunto, pode ser considerado como o único e unificador viver da deidade. A natureza é, pois, o acontecer do

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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investigação: um buscar e questionar que se torna transparente para si mesmo. Uma

investigação filosófica: que interroga pelo ser do ente como tal e no todo; que questiona

o ser no sentido da essência e existência. Uma investigação filosófica da essência:

essência é, aqui, entendia, ao mesmo tempo, como possibilidade intrínseca e como

fundamento da realidade. Uma investigação filosófica da essência da liberdade, mais

precisamente, da liberdade humana. Uma investigação filosófica que interroga a

essência da liberdade humana e aquilo que está em conexão com esta: o “sistema da

liberdade”.

Schelling, nas Investigações sobre a essência da Liberdade Humana examina a

questão da liberdade em conexão com as grandes questões metafísicas: Deus, a criação

do mundo, o bem e o mal. Ali ele distingue em Deus entre Deus mesmo e o fundamento

de sua existência, que não é ele mesmo, não a livre vontade do amor, mas a “natureza”

em Deus, de certo modo um belo impulso (uma dualidade que pressupõe a absoluta

indiferença como fundamento originário). No obscuro fundo impulsivo da existência

radica a vontade própria da criatura, vontade que explica a possibilidade do mal no

homem, e isso de tal forma que a realidade do mal feito com liberdade é a ação própria

do homem. O mal, na forma de pecado, é necessário à humanidade para que ela se

purifique. É permitido por Deus, por se autocriar desdobrando o Urgrund, o fundamento

indiferenciado, anterior a essa criação, em natureza e espírito. Mas é esse mesmo

desdobramento que possibilita o triunfo do bem sobre o mal. A luta do bem contra o

mal é obra da liberdade humana. Esta não é incompatível com a necessidade do espírito,

pela qual todos os entes se encontram na inteira dependência de Deus. Toda a criação

sistema da realidade como auto-organização. Na segunda fase de seu pensamento (1801-1809), a da filosofia da identidade, o espírito e a natureza são idênticos no “absoluto” indistinto, a partir do qual se desenvolve a dualidade de real e ideal, que pugnam de novo pela unidade. O absoluto se capta no ato da “intuição intelectual” como identidade universal. A intuição intelectual é, na verdade, “autointuição intelectual de Deus”. O universo é automanifestação do absoluto, como identidade do organismo absoluto e da obra de arte absoluta. Na terceira fase, a partir de 1809, seu pensamento respira na atmosfera de uma teosofia gnóstica, influenciada sobretudo por Franz von Baader. Nos cursos de Berlim, dirigidos contra o racionalismo de Hegel, Schelling passa da filosofia negativa da razão para a filosofia positiva da mitologia e da revelação, propondo um “empirismo metafísico”. Nela, propõe-se experimentar a evolução de Deus mesmo pela maneira como ele se revela na vida religiosa da humanidade. Para Schelling, a meta da história de Deus é a unificação do cristianismo católico-petrino e do evangélico-paulino numa Igreja segundo o evangelho de João (joanino).

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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se realiza, com efeito, sob a égide da liberdade e, ao mesmo tempo, da necessidade

(dependência de Deus).

Para além da interpelação do contexto histórico, a obra de Schelling responde ao

apelo e ao desafio de uma nova compreensão do ser do ente no todo152. Em Hegel a

filosofia apresenta o Todo como “sistema da ciência” (sabença)153. Já em Schelling a

filosofia apresenta o Todo como “sistema da liberdade”. A liberdade humana está no

centro do Todo. Em linguagem metafísica e teológica Schelling diz:

Poder-se-ia dizer que um sistema ensina a imanência

das coisas em Deus. Essa afirmação não chega a nos dizer

nada embora não possa ser chamada de não verdadeira. Já

mostramos que todos os seres da natureza possuem um

mero ser no fundamento ou na nostalgia originária de unir-

se com o entendimento, ou seja, de que, com relação a Deus,

são simples seres periféricos. Só o homem é em Deus e justo

por esse ser-em-Deus é capaz de liberdade. Só ele é um ser

central, devendo, por isso, permanecer no centro. Nele

todas as coisas são criadas da mesma forma que Deus só se

liga à natureza e a assume através do homem. Na medida em

que as coisas ainda se encontram fora do centro e, por isso,

sujeitas à lei, a natureza é o primeiro ou antigo testamento.

O homem é o começo da nova aliança e, estando ligado a

Deus, é o meio pelo qual Deus (depois da última cisão)

também assume a natureza e dela faz ele mesmo. O homem

152 O expansionismo napoleônico empreendia uma unificação das individualidades sob a égide da ideia universalista de um império que abrangeria toda a Europa. Num encontro com Goethe em Erfurt, Napoleão dissera: “la politique c’est le destin” (a política é o destino). Na Alemanha, o movimento romântico e o idealismo alemão se empenhavam por um outro projeto de unidade, que sob a égide do espírito. Ao contrário da máxima napoleônica, o destino seria o espírito – e o espírito seria, em sua essência, liberdade. 153 Desde os gregos, a filosofia é um “philein”, um amar, no sentido de aspirar a, tender para, uma aspiração (horéksis) ao Todo, ou melhor, ao saber do Todo. Este saber do Todo aparece em Hegel como “Wissenschaft” (ciência, no sentido de sabença). Hegel entende que a filosofia é “o real saber daquilo que em verdade é”. Aquilo que, para Hegel, “em verdade é” é o “espírito” e a essência do espírito consiste na autoconsciência. Nisso, Hegel, como já vimos, dá continuidade à filosofia moderna e ao primado do “cogito ergo sum” como sendo o que há de mais sabível em toda a sabença e na sabença de tudo: o primado da “mens sive animus”, o primado da “ratio” ou “Vernunft”, o primado do “Geist” (Espírito).

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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é, portanto, o redentor da natureza, escopo de todos os

modelos154.

Vemos, assim, como na consideração de Schelling articulam-se os três temas da

metafísica: Deus, o homem e o mundo. Sua exposição parte, primeiramente, de Deus.

Desde Aristóteles, a “prote philosophia” (filosofia primeira) é “episteme theologiké”:

saber do “theion”, do divino. Pensa-se o ser do ente a partir do ente supremo

(akróstaton on). Em Hegel e em Schelling o saber de Deus deve ir além da religião. A

religião considera Deus como um objeto especial. Já a filosofia considera Deus como

sujeito, ou seja, como o mais profundo fundamento de explicação de todas as coisas.

Deus é o infinito, o incondicionado, o “Ab-soluto”155: o que é solto, livre, em si mesmo,

e, por conseguinte, o fundamento da própria liberdade humana.

A liberdade humana é pensada, em Schelling, a partir da estrutura onto-teo-

lógica da metafísica. Sua consideração é lógica, pois se funda na razão; é teológica, pois

pensa o ser do ente a partir do ente supremo, Deus; é ainda ontológica, pois procura,

como há pouco foi dito, pensar o ser do ente e definir a liberdade em referência ao ser

de tudo aquilo que é. Do ponto de vista ontológico, Schelling apresenta uma diferença

decisiva: “Foi a filosofia da natureza própria a nosso tempo que primeiramente

apresentou, na ciência, a diferença entre o ser que existe e o ser que constitui mero

fundamento da existência” 156. Aqui, a “filosofia da natureza própria a nosso tempo” é a

própria filosofia da natureza de Schelling. Esta não é uma teoria da natureza como uma

“região” do ser. Natureza, aqui, não é uma parte, mas sim o Todo. O conhecer a natureza

é, aqui, um saber do Absoluto. A natureza é o Absoluto. Ela é o espírito que se apresenta

visível. A natureza é idêntica com o espírito. Tema da filosofia é esta identidade, esta

unidade de opostos: natureza e espírito. A “ciência” a que Schelling se refere não é

também a pesquisa das ciências positivas, como as que existem em nosso tempo.

“Ciência” é o nome da filosofia: é o saber incondicionado do Absoluto. A diferença

introduzida por Schelling é o fundamento e o meio de todo o “Sistema da Liberdade”. O

154 Schelling, F. W. A Essência da Liberdade Humana. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 82. 155 Absoluto vem de “absolutum”: particípio passado de “absolvo”: separar, desligar, desembaraçar; daí: absolver, perdoar; e, por fim, acabar, terminar. Neste sentido, absolutus, como adjetivo, significa acabado, perfeito. “Absolutio” é ação de desembaraçar, de libertar (-se); quitação; acabamento, perfeição. 156 Idem, p. 38.

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sistema da liberdade, porém, não é um feito do homem. É, antes a conjuntura do

Absoluto, que é espírito, que é espírito do amor.

A exposição do sistema da liberdade tem como plano de fundo a diferença entre

essência e existência. Mais precisamente, Schelling fala da diferença entre fundamento

e existência. Como entender esta diferença? Antes de tudo, Schelling não entende que

esta diferença seja apenas conceitual, uma distinção que fosse produto de nosso

pensamento. Não. Esta diferença é real. Ela é um traço do ser mesmo de todo o ente.

Na tradição filosófica, é usual a diferença entre “essência” e “existência”, entre

o “o que é” e o “que é” do ente; entre a “quididade” (o que é o ente em questão, o teor

de seu ser) e a realidade efetiva, isto é, o ser atual e atuante, o ser efetivado e eficiente

de um ente. Antes de ser produzida, uma casa pode ser pensada por um construtor;

neste caso, a casa tem um “teor”, um ser certo quê, uma forma de ser. Mas, uma vez

produzida, a casa tem uma existência (Existenz), ou seja, ela tem uma realidade, pois ela

foi efetivada e ela tem uma eficiência, ela é atual e atuante no mundo. A existência é,

portanto, a realidade efetiva, a presença e vigência da coisa. “Existentia” significa

“sistentia extra nihilum et extra causas”: um estar de pé em si mesmo e no mundo, fora

do nada e das causas. O existente é o que foi produzido; ele é um “eductum inter entia

actualia”: um ter sido transportado, trasladado, (do nada ou das causas) para o mundo,

para estar entre as coisas atualmente presentes e vigentes.

Em Kant, a existência aparece no contexto das categorias, como uma

modalidade. Segundo a doutrina do esquematismo, em que todas as categorias do

entendimento são determinações do tempo, existência significa estar no tempo. o

tempo é a forma de todos os fenómenos em geral. “Nele, somente, é possível toda

efetividade [quer dizer, a existência, presença] dos fenômenos” (A31, B46). Cada

existência de cada fenômeno encontra-se, como existente, numa relação com o tempo.

O próprio tempo é “estável e permanente”, ele “não passa” (A144, B183). “...não é o

próprio tempo que se modifica, mas é aquilo que se encontra no tempo que se modifica”

(A41, B58). Pois bem: existência quer dizer, aqui, estar no tempo. A existência é tomada

segundo a grandeza de tempo e determinável na sua duração, quer dizer, no quantum

do tempo no seu todo. O ser, porém, no sentido da efetividade ou da existência, “não é

um predicado real”, isto é, não é uma determinação adicionada ao conceito da coisa.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Existência quer dizer, aqui: a posição de uma coisa em uma ação do entendimento

(juízo), o qual pressupõe, de qualquer maneira, uma intuição sensível, uma afecção. “A

existência como actualitas, realidade efetiva, ser efetuado (Gewirktheit) e ser eficiente

(Wirkendheit) se torna objetividade da experiência e, portanto, uma modalidade ao lado

da possibilidade e da necessidade”157.

Em vez de essência e existência, Schelling fala de fundamento e existência. Nós

falamos de fundamento (Grund) em vários sentidos. Num sentido, fundamento é chão,

solo, alicerce, base, suporte, sustentáculo ou sustentação. Num outro sentido,

fundamento é causa, quer como motivo, ocasião, oportunidade ou ensejo, que provoca

um efeito, quer como o que propriamente produz um efeito, o que efetiva alguma coisa:

a causa eficiente. Num terceiro sentido, fundamento é o que dá razão, o que justifica

uma reivindicação, aquilo a que se pode apelar para justificar ou dar razão de alguma

coisa. Seja como for, o fundamento é aquilo que principia, tanto no sentido de deixar e

fazer começar, como no sentido de reger e dominar, de antemão. É o que os gregos

chamaram de “arkhé”: o princípio, que rege alguma coisa; o princípio que de antemão

rege e domina um processo (hyparché). É o primeiro, o princípio, a partir donde provém

existir de alguma coisa.

Leibniz pensou a essência como “exigência de existência”. A essência foi pensada

por ele como “vis” (força), “vis primitiva” (força primitiva, primordial); e esta, por sua

vez, como “conatus” (esforço) ou “nisus” (finca pé, apoio; mas também esforço,

movimento de deslocamento, dores de parto!), como appetitus (apetição, apetite,

desejo, vontade). No pensamento de Leibniz isso seria o subiectum, o fundamento por

excelência, o ser mesmo da subjetividade. Schelling parece pensar a essência do ser de

todo o ente nesta direção. De fato, ele chama de “vontade” o ser primordial, originário,

o fundamento do existir de tudo aquilo que existe. Ele diz:

Na última e mais elevada instância, não existe

nenhum outro ser além da vontade. A vontade (Wollen) é o

ser primordial (Urseyn) e somente a ela se adequam os

predicados como ausência de fundamento, eternidade,

157 Heidegger, Martin. Nietzsche. Milano: Adelphi, 1994, p. 925.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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independência do tempo, auto-afirmação. Todo o esforço da

filosofia consiste, portanto, em alcançar essa expressão mais

elevada 158.

Este texto que está na introdução do tratado da liberdade de Schelling parece

dar uma resposta à pergunta fundamental da filosofia, aquela pergunta que quer saber,

em última instância, o que é o que está sendo (“ti to on”, como dizia Aristóteles) 159. A

última instância, que é também a mais elevada, é o fundamento de tudo o que existe.

Este fundamento é entendido aqui como “ser originário” (Urseyn). E o “ser originário”

é, então, determinado como “vontade” (Wollen). Vontade é, pois, o ser em sentido

absoluto, incondicionado, por ser a condição de possibilidade de tudo aquilo que existe.

A vontade é o “subiectum”, o fundamento primordial de tudo. Neste sentido, os

predicados que são atribuídos a ela devem ser os mais elevados. Por isso, Schelling

apresenta, em seguida, os predicados que convêm à vontade como “arkhé”, como

princípio de tudo. Quais são estes predicados?

• Falta de fundamento (Grundlosigkeit) (!) – justamente por que a vontade

é o fundamento de tudo, ela não tem nenhum fundamento. Aquilo que

funda e fundamenta tudo não tem fundamento. É o primeiro, arcaico: a

última instância. Enquanto tal, a vontade pode ser chamada de “não-

fundamento” (Ungrund): ela é o in-diferente, no sentido de ser o que é

anterior a toda e qualquer diferenciação.

• Eternidade (Ewigkeit) – não como uma duração sem fim, mas como o

caráter de ser sem duração; como a permanência.

• Independência do tempo (Unabhängigkeit von der Zeit) – não significa o

mesmo que eternidade, significa, antes, sempiternidade: o caráter de ser

do que não está submetido à sucessão: a consistência do que não é

arrastado no fluxo da sucessão, do surgir e desaparecer das coisas.

158 Schelling, F. W. A Essência da Liberdade Humana. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 33. 159 Heidegger observa que, se aqui se dá uma resposta decisiva e cabal sobre o que é o ser do ente, falta, todavia, o “aei aporoumenon” da frase de Aristóteles. É que Aristóteles (Metafísica Z 1 1028 b 2-4) não somente aponta o fato de que a filosofia sempre busca, interroga e investiga o que é o ente como tal e no seu todo, mas também o fato de que ela, a filosofia, sempre de novo entra em aporia. Aporia = dificuldade de passagem, falta de recurso, embaraço, dificuldade, angústia, incerteza.

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• Auto-afirmação (Selbstbejahung) – pura positividade, ou seja, capacidade

de se pôr e de pôr tudo na existência; capacidade de se fornecer a si

mesmo.

Entretanto, esta vontade é vontade de que? Schelling diz que esta vontade é

vontade de entendimento (Verstand): “o entendimento é propriamente a vontade na

vontade”. Entretanto, o que é o entendimento? É o re-presentar e o pro-duzir da

unidade: logos, reunião, recolhimento, síntese originária; representação do universal

enquanto tal; regra, ordem, lei. Nesta resposta, Schelling ainda segue pela trilha de

Kant160 e de Hegel. Mas, Schelling vai além de Kant e Hegel, ao compreender que a

vontade de entendimento é, no fundo, vontade de amor.

De acordo com essa discussão dialética, podemos

esclarecer com toda precisão o seguinte: tanto a essência do

fundamento como a do existente só pode ser aquela anterior

a todo fundamento, ou seja, o que se observa de forma pura

e simplesmente absoluta, o abismo (Ungrund). Como

demonstramos, ele só pode constituir essência separando-

se em começos igualmente eternos. Não se trata, porém, de

dois começos ao mesmo tempo. Trata-se de que, em cada

um, vigora, do mesmo modo, o todo ou a sua própria

essência. O abismo se divide, por sua vez, em dois começos

igualmente eternos somente para que os dois possam nele

tornar-se uno pelo amor, na medida em que, como abismo,

não poderiam ser ao mesmo tempo e nem ser um só. Ou

seja, ele se divide apenas para que a vida, o amor e a

existência pessoal possam acontecer. Pois o amor não reside

nem na indiferença e nem aonde ainda estão unidas as

oposições, que necessitam dessa união para ser (...). O

mistério do amor é unir o que poderia ser para si mas que

não é e não poderia sem o outro 161.

160 Kant entendia que a vontade é um agir segundo conceitos; um atuar a partir da representação de algo na sua universalidade. 161 Schelling, F. W. A Essência da Liberdade Humana. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 80.

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No bojo desta nova compreensão do ser passa-se a uma nova compreensão de

existência. Entretanto, que nova compreensão de ser como existência emerge aqui?

Resposta:

A incondicionada certeza da vontade que sabe si

mesma, como a realidade absoluta (espírito, amor).

A existência enquanto ser é determinada com base

na “real” distinção do ser do ente segundo: o fundamento da

existência e a existência do fundamento.

Porque a vontade constitui a essência do ser, a

distinção é aquela que pertence ao querer mesmo: na

vontade de fundamento e na vontade do intelecto.

A existência: o tornar manifesto, o trazer-se-a-si-

mesmo, o ser-si-mesmo no tornar-se-si-mesmo em face

(gegen) e contra (wider) o fundamento.

Devir em si contraditório (Schelling).

2.1.2.2.2.3 KIERKEGAARD E O PENSAMENTO NA VIA E NO ENVIO DA EXISTÊNCIA

Com Kierkegaard o pensamento ocidental se avia na via da existência:

Kierkegaard é apóstolo da existência no sentido

originário do verbo grego, apo-stellw, apostollos é aquele

que é enviado para deixar aparecer na vida o vigor criativo

da existência, tanto na biografia dos indivíduos como na

história da humanidade.

Em 42 anos entre 1813 e 1855, Soeren Aabye

Kierkegaard nasceu, escreveu e morreu. Desde 1832, com

dezenove anos começou um Diário que só terminou de

escrever dois meses antes da morte. Em todos seus escritos,

Kierkegaard confirma mais uma vez o testemunho de toda

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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história da filosofia: todo grande filósofo diz sempre a

mesma coisa, mas de maneira tão criativa, que cada vez

parece e aparece a primeira vez. É o segredo dos criadores.

Assim como todo grande pintor pinta sempre a mesma

pintura em todos os seus quadros, assim como todo grande

músico toca sempre a mesma música em todas as suas

músicas. Henry Bergson (1859-1941) já dissera no início do

século XX: ”um filósofo digno deste nome não diz senão uma

coisa só, ou melhor, tenta dizê-la mais do que consegue. E

não diz senão uma só coisa, porque não viu senão um só

ponto, mesmo que se trate menos de uma visão do que de

um contacto”.

Por força deste contacto, Kierkegaard escreveu os 20

volumes de seus escritos tal como constam das Semlede

Vaerker da 3ª Edição de 1962-64 em Copenhagen, e os 22

volumes de seus Papierer, na 2 edição de 1968-1978162.

2.1.2.2.2.3.1 Kierkegaard: seu itinerário biográfico

Kierkegaard é uma figura singular. É um “escritor religioso”, ou melhor, como ele

gostava de dizer: um “pensador subjetivo”. Como “escritor religioso”, contudo,

Kierkegaard está além da teologia. E como “pensador subjetivo”, leva à consumação a

filosofia ocidental enquanto metafísica, mas não se deixa limitar por ela. Mas, como

caracterizar o “pensador subjetivo”? Kierkegaard responde:

O pensador subjetivo não é um homem de ciência,

mas um artista. Existir é uma arte. O pensador subjetivo é

bastante estético para dar à sua vida um conteúdo estético,

bastante ético para regulá-la, bastante dialético para

dominá-la pelo pensamento (Post-Scriptum).

162 Emmanuel Carneiro Leão. Texto não publicado.

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Em 42 anos de vida, de 1813 a 1855, o dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard

nasceu, escreveu e morreu. Seu diário, que começou a ser escrito em 1832, quando ele

contava com 19 anos, e terminado dois meses antes de sua morte, diz algo da obra, que

foi sua própria existência. Ao escrever e terminar o seu diário, Kierkegaard permite ao

leitor abrir caminhos para compreender as motivações e as tendências fundamentais da

obra de sua escrita e da obra de sua vida. No dia 15 de abril de 1838, ele anota: “a vida

só se deixa esclarecer (erklären), se for vivida de ponta a ponta (durchgelebt), do mesmo

modo como Cristo só começou a esclarecer e a mostrar as Escrituras, como elas

ensinavam dele – quando ele havia ressuscitado” 163.

Kierkegaard escreve não somente sobre a existência, mas a partir dela. Vejamos

agora como ele se pronuncia sobre a sua própria biografia. Do seu nascimento ele diz:

Nasci em 1813, neste ano de loucuras financeiras em

que mais de um título mau foi posto em circulação. É a um

deles, assim parece, que minha existência melhor se pode

comparar. Há em mim como que um índice de grandeza, mas

por causa de loucas conjunturas não tenho senão pouco

valor. Um título dessa espécie fez a infelicidade de mais de

uma família (VA 13).

Algumas pessoas marcaram a existência de Kierkegaard. Primeiramente, seu pai.

Kierkegaard foi o caçula de sete irmãos de um casal rigidamente religioso. O pai era um

rico empresário de malhas em Kopenhague. A mãe, uma mulher do povo, com quem o

seu pai se casara em segundas núpcias, depois de ter ficado viúvo sem filhos. Quando

ele nasceu, o pai tinha 56 anos e a mãe, 44. Kierkegaard se dizia, como Isaac, “filho da

velhice”. O destino da família de Kierkegaard foi trágico. Dos sete irmãos, 5 morreram.

Sobrou apenas ele e o seu irmão mais velho. A mãe também morreu, quando

Kierkegaard tinha 21 anos.

O temperamento melancólico do pai o marcara. Ele declara: “Desde o começo,

eu devo tudo a meu pai. Era ele quem, melancólico como era, ao me ver melancólico,

suplicava: ‘Trata de amar verdadeiramente a Jesus Cristo’” (IXA68). A personalidade

163 KIERKEGAARD, S.A. Tagebuch, 15.04.1838: apud HEIDEGGER, M. Ontologie: Hermeneutik der Faktizität – Gesammtausgabe Band 63. Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1995, p. 16s.

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rigidamente religiosa e o temperamento melancólico do pai tornaram-se um peso para

Kierkegaard: “Aqui reside a dificuldade de minha própria vida. Fui educado por um velho

com uma severidade extrema no cristianismo, o que perturbou minha vida de uma

maneira horrível e me levou a conflitos dos quais ninguém suspeita e muito menos

chega a falar” (VIIIA663). Ainda quando criança, Kierkegaard podia sentir que, apesar de

o pai ser um homem piedoso e temente a Deus, não era feliz e, com a educação que lhe

dava, tendia a fazê-lo também infeliz. A melancolia e a infelicidade do pai depunham

contra a sua fé. Ele diz:

“O mais perigoso não é o fato de que o pai ou o

educador seja livre-pensador ou mesmo hipócrita. Perigo

existe, ao contrário, quando ele é piedoso e temente a Deus,

que a criança tenha a convicção disso, mas perceba também

que no fundo da alma dele esconde-se uma inquietação,

como se o próprio amor de Deus e a piedade fossem

incapazes de lhe proporcionar a paz. O perigo reside no fato

de que a criança pode ser levada a concluir, quase face a face

com Deus, que Deus não é infinito amor” (X2A454).

Não obstante amasse o seu pai, Kierkegaard sofria por ter herdado dele uma

formação rigorosa e um temperamento melancólico. Toda esta situação levou

Kierkegaard a buscar o cristianismo em sua verdade. Ele diz: “E por amor a meu pai,

empenhei-me em expor o cristianismo da maneira a mais verdadeira, contrastando

assim com todo esse palavrório que (na cristandade) se faz passar por cristianismo”. É

que, para Kierkegaard, cristandade, enquanto fenômeno histórico, político e cultural,

não coincide com o cristianismo, isto é, com a essência do ser-cristão. Veremos como o

pensamento de Kierkegaard se volta à tarefa de determinar o que é a essência do ser-

cristão, ou seja, como se determina a existência do cristão enquanto tal.

Um terremoto abala Kierkegaard e as suas relações com o pai, quando descobre

que o pai tivera violentado a sua mãe, quando esta era empregada da família, e que ele

se casara com ela quando estava grávida do seu irmão mais velho. Toda a idealização

que Kierkegaard fazia do pai foi de água abaixo. Kierkegaard brigou com o pai,

abandonou os cursos e começou a viver uma vida desregrada. Em 1836 é ameaçado de

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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não poder entrar na sala da Associação dos Estudantes por não ter pago as

mensalidades. Em fevereiro de 1838 o seu irmão, Peter Christian, escreve em seu diário:

“Soeren torna-se cada vez mais irritável, descontente e desanimado. Minhas conversas

com ele – e é necessário que eu o procure – não produzem qualquer efeito”. Em 13 de

março do mesmo ano, morreu o poeta Poul Martin Moeller, grande humanista clássico,

professor de ética e de teologia moral, que tinha se tornado amigo de Kierkegaard e a

quem ele dedicará, em 1844, a sua obra “O Conceito de Angústia”.

Esta morte o leva a refazer seu modo de vida.

Reconcilia-se com o pai, retoma o curso universitário e se

prepara para ser pastor, como o irmão mais velho. Como

outrora no primeiro grau, também pleno sucesso agora sua

inteligência privilegiada lhe garante pleno sucesso em todos

os cursos e nas provas de retórica. Conclui os cursos em 1840

e prepara a famosa tese de láurea sobre a ironia em

Sócrates. Uma tese concluída em menos de um ano, escrita

em dinamarquês e defendida perante uma banca de

professores da universidade. Eles teriam preferido uma tese

em latim. A primeira arguição lamentou de nem todos terem

condições de escreverem em latim. Kierkegaard respondeu,

então, a todas as perguntas e arguições num latim castiço164.

Após o doutorado, Kierkegaard resolve noivar-se com Regina Olsen, que ele

conhecera em 1837. O noivado se deu a 10 de setembro de 1840, mas em 11 de outubro

de 1841 Kierkegaard rompe definitivamente com Regina. “Desfez o compromisso,

visando poupar a noiva de uma vida de melancolia e angústia, como escreveu no Diário,

anos depois. Foi o segundo terremoto de sua vida” 165. Uma de suas anotações diz:

“Quanta grandeza no abandono da mulher! – Esta a maldição que pesa sobre mim, a de

nunca me atrever a permitir que alguém se apegue intimamente a mim...” (IIIA161).

De 25 de novembro de 1841 a 04 de fevereiro de 1842 Kierkegaard assiste ao

curso de Schelling, na Universidade de Berlim. Hegel já tinha morrido fazia dez anos. As

164 Leão, E. Carneiro. Filosofia Contemporânea. Teresópolis-RJ: Daimon, 2013, p. 13. 165 Idem, ibidem.

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relações entre fé e saber, filosofia e religião, tornara-se problemática e vacilante no

círculo dos discípulos de Hegel. Na esquerda hegeliana entra em movimento toda uma

crítica do cristianismo. Em 1835 David F. Strauss escrevera a sua “Vida de Jesus”, que

era um duro ataque ao cristianismo histórico, positivo. Na mesma linha seguiram-se

Feuerbach, com a “Essência do Cristianismo”, reinterpretando toda a teologia como

forma de antropologia, e a crítica dos sinóticos de Bruno Bauer. Como reação, os

hegelianos de direita se aproximaram mais de Schelling. Em 15 de novembro de 1841

Schelling teve sua primeira lição em Berlim, a universidade para a qual o rei da Prússia,

Frederico Guilherme IV, tinha convidado a Schelling, a fim de que este ajudasse a

combater a “escola do conceito vazio” e as “sementes de dente de dragão do panteísmo

hegeliano” 166.

Em sua primeira lição, Schelling anuncia uma transformação em sua filosofia. Ele

disse: “Tinham me acomodado, fui catalogado, se sabia no modo mais exato aquilo que

estava em mim. Agora se deve recomeçar do zero e reconhecer que havia alguma coisa

em mim que não se sabia” 167. Schelling se movia do idealismo para uma filosofia que

ele denominava de “positiva”. Trata-se do reconhecimento de que a razão tira o seu

conteúdo do existente, do real, isto é, do ser atual, efetivo. É o sentido do título

“empirismo metafísico” que Schelling usa. Nesta nova fase do pensamento de Schelling,

a existência recebe uma nova ênfase, e é apresentado num contexto teológico.

Para Schelling, a filosofia deve se voltar para o Ente Verdadeiro, aquele que não

está submetido ao devir, que não pode ser pensado como não existente, e que também

está absolutamente fora do pensamento: Deus, o ser que nada tem de não ser, o puro

positum, que existe como necessariamente existente. Neste Ente Verdadeiro o existir

precede a potência: o existir é o prius (primeiro) e a potência é o posterius (posterior).

Os demais entes, acessíveis à nossa experiência, só existem, porque eram antes

possíveis, e por que passaram da potência para o ato, da possibilidade para a

efetividade, porque foram criados pelo Ente Verdadeiro, que é o Senhor do ser. Ou seja:

há um ente necessário e este ente necessário é Deus. Neste ente necessário reside a

infinita potência do ser, que pode, se quiser, produzir um mundo. O mundo existe

166 Palavras de uma carta do rei a Ch. K. J. Bunsen. 167 Schelling, F. W. J. Filosofia della rivelazione. Milano: Rusconi, p. 1477.

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(segundo a nossa experiência), a partir de uma passagem do possível para o efetivo, mas

o seu fundamento está naquele que é necessariamente existente, que é “actus purus” (

o existente puro) e que se chama Deus. O querer e o poder deste ente é que está à base

de todo o ente efetivo no mundo.

Kierkegaard foi a Berlim para escutar Schelling. O eco da sua última filosofia tinha

chegado aos seus ouvidos na Dinamarca, por meio de círculos filosóficos alemães, com

os quais Kierkegaard tinha contato. Por quatro meses, pois, Kierkegaard pôs-se na

escuta de Schelling e de sua última filosofia. No começo, a esperança alentava o coração

de Kierkegaard. No seu diário, ele anotou:

Eu estou tão contente de ter escutado a segunda

lição de Schelling, indizivelmente contente. Há tanto tempo

suspiravam por isso eu e os meus pensamentos em mim.

Assim que ele, falando da relação entre filosofia e realidade,

nomeou a palavra “realidade” o fruto do meu pensamento

estremeceu de alegria como o seio de Isabel (Lc 1, 44).

Recordo quase palavra por palavra aquilo que ele disse

desde aquele momento. Daqui talvez possa vir um pouco de

luz. Somente esta palavra me fez vir em mente todos os

meus sofrimentos e penas filosóficos... Agora pus toda a

minha esperança em Schelling” 168.

Tal esperança logo se viu frustrada. Kierkegaard se cansou logo das aulas de

Schelling. O entusiasmo se transformou em aversão. Em carta ao seu irmão de 27 de

fevereiro de 1842, Kierkegaard fala de Schelling como sendo um tagarela, do seu

filosofar como sendo errante, e arremata: “Sou muito velho para estar a escutar aulas,

mas Schelling é muito velho para dar aulas. Toda a sua teoria sobre as potências revela

uma grande impotência” 169. Kierkegaard esperava encontrar em Schelling uma crítica

definitiva ao idealismo de Hegel. Entretanto, ele viu que Schelling não caminhou de

modo mais decisivo na superação do idealismo. Em Schelling, tanto quanto em Hegel, o

ser, a realidade, continua sendo determinado pelo pensar e não vice-versa, embora o

168 Apud Bausola, Adriano. Saggio Introduttivo. In: Schelling, F. W. J. Filosofia della rivelazione. Milano: Rusconi, p. X. 169 Idem, p. XI.

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pensamento não seja mais reduzido simplesmente à estrutura lógico-dedutiva. O

idealismo considera toda a realidade como imanente à consciência. Schelling dá um

passo para a superação do imanentismo ao partir de Deus, como Ente Verdadeiro. Mas

permanece ambíguo: o Deus, por um lado, é dado como existente e existente em si

mesmo, isto é, como transcendente à consciência. Entretanto, por outro lado, é posto

como horizonte transcendental, isto é, como condição de possibilidade do mundo, do

homem e da sua consciência.

Depois de se reinstalar em Kopenhague, Kierkeggard iniciou uma atividade

frenética de escritor, que durou até o fim de sua vida, isto é, por volta de 13 anos. Nos

anos de 1845/1846, Kierkegaard trava uma luta com um jornal chamado “O Corsário”.

Com a publicação do último livro em 1845, pensou

ter encerrado a carreira de escritor religioso. Eis, porém, que

o semanário sarcástico, “O Corsário”, publicou uma

apreciação negativa de seu livro “As Etapas no Caminho da

Vida”, apreciação escrita por seu antigo mentor de estudos

na universidade, Martensen. Kierkegaard respondeu com

um artigo mordaz em que confessava ser preferível a crítica

ao elogio de uma tal publicação. O editor aceitou, então, o

desafio e publicou uma série de artigos e caricaturas,

ridicularizando Kierkegaard. Em resposta, Kierkegaard

escreveu nove números de “O Instante”, oyebliket. Foi o

terceiro e último terremoto de sua vida 170.

Kierkegaard se sente perseguido pela imprensa, dotada de uma ironia medíocre,

e descobre a força que tem o público nessa época. Se antigamente se jogavam os

homens às feras para a diversão do público, hoje se jogam aos jornalistas. Para o público,

o maior crime que há é o de ser um indivíduo:

O crime máximo aos olhos dos homens, aquele que

castigam mais cruelmente é o de a gente não ser como os

demais. Isso prova sua natureza animalesca. Porque os

pássaros tem razão de perseguir a bicadas o pássaro que não

170 Leão, E. Carneiro. Filosofia Contemporânea. Teresópolis-RJ: Daimon, 2013, p. 13-14.

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é como os outros, posto que a espécie é superior aos

indivíduos. Os pássaros são animais, nem mais nem menos.

Em troca, o destino dos homens é o de não ser como os

demais, o de possuir cada um sua própria singularidade. Os

homens perdoam qualquer crime, menos este que julgam

inumano: o delito de ser homem (IXA80).

Em meio à turbulência, ele mantém dois propósitos de vida, um com sentido

grego, e o outro com sentido cristão, que são, em suas próprias palavras: “1º

permanecer intelectualmente, em sentido grego, fiel à minha existência-ideia, custe o

que custar; 2º que esta perseguição, em sentido religioso, tenha para mim um efeito tão

enobrecedor quanto possível” (VIIA98). Kierkegaard considera que o homem que

professa a ética é perseguido pelos demais, porque “exige deles a existência”. Como

Sócrates, Kierkegaard foi acusado de corromper os jovens. Ele diz:

Acusam-me de levar os moços a instalarem-se, sem

escrúpulos, em sua subjetividade. Talvez, por um momento.

Mas como seria possível suprimir todas essas fantasmagorias

da objetividade, como o público, etc. sem pôr em destaque

a categoria do indivíduo? Com o falso pretexto da

objetividade, pretendeu-se sacrificar inteiramente as

individualidades (VIIIA8).

Kierkegaard venceu a luta contra “O Corsário”. Em menos de um ano, este órgão

de comunicação cessou suas publicações. Este episódio de vilania literária, porém, lhe

fez penetrar na existência inautêntica da cultura de massa veiculada pela sociedade

burguesa. Junto com este episódio, veio a Kierkegaard, porém, uma outra decepção:

com o bispo Mynster. O bispo tinha mostrado certa condescendência com “O Corsário”.

Kierkegaard, que até então se propunha ser um “espião da cristandade”, ficou

decepcionado. O bispo Mynster era o capelão de seu pai. Kierkegaard tinha por ele certa

veneração e lia com atenção as suas prédicas. A atitude de condescendência do bispo,

porém, lhe pareceu pávida e oportunista, uma capitulação diante da imprensa e do

público. Esta foi a ocasião para a gestação de uma declaração de guerra que Kierkegaard

ia mover à “ordem estabelecida” da cristandade, mais precisamente, à Igreja nacional

da Dinamarca, nos últimos anos de sua vida. Esta guerra se declara já em 1850, com a

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obra “Exercício de Cristianismo”. Kierkegaard entende que a cristandade estabelecida é

uma apostasia do cristianismo do Novo Testamento. A cristandade estabelecida é uma

capitulação ante o mundo. Ela “não só dilui e tornada aguado o cristianismo, mas o

falsifica no seu princípio, tornando-o, do ponto de vista cristão, o veneno mais perigoso,

de tal modo que ao invés de ser o remédio que salva é o veneno que mata”, expressa

ela no Diário171.A crítica explícita à cristandade estabelecida era, por sua vez, uma crítica

implícita ao bispo Mynster, arauto e herói da “Igreja de Estado”. Em 1852, Kierkegaard

diz que “o cristianismo já não existe" e sente irromper “o conflito possível com

Mynster”. O bispo Mynster chegou a considerar os escritos de Kierkegaard como um

“jogo sacrílego com as coisas santas”172. A propósito deste conflito com Mynster, anota

Kierkegaard: “Mynster pensa, sem dúvida, mais ou menos (é este, em geral, o ponto

de vista moderno) que o cristianismo é: cultura (...) (X3A588)”. “Mynster e eu – é o

conflito entre a tradição e a novidade” (X2A251). A cristandade estabelecida se apoia no

número dos cristãos, e não na consistência do testemunho de fé destes cristãos. Com o

advento do protestantismo isso não foi superado. Ele diz: “Oh! Lutero! – Lutero, tu tens

uma responsabilidade enorme! Quanto mais observo, tanto mais claramente eu vejo

que derrubaste o Papa – e colocaste no trono o “público”. Alteraste o conceito de

“martírio” do Novo Testamento, ensinando os homens a vencerem com a força do

número” (XIA108). Em 1853, Kierkegaard escreve a seguinte anotação:

Epigrama – conta-se de um pastor sueco que, tendo

comovido seu auditório com um magistral sermão, mas

preocupado com o efeito obtido, acrescentou, para

tranquilizar: - Não choreis, meus filhos, poderia ser tudo

mentira. – Por que atualmente o pastor não diz o mesmo?

Resposta: - Hoje, não é necessário dizê-lo porque os fiéis já

o sabem. Mas, apesar disso, suas lágrimas poderiam ser

igualmente sinceras! Por acaso não são sinceras as lágrimas

que se derrama no teatro, onde fiéis e público sabem que

tudo é mentira?” (X5A110).

171 Kierkegaard, Soeren. Diario. A cura di Cornelio Fabro. Edizione Ridota. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 2000, p. 291. 172 Idem, p. 9.

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Entretanto, se cristianismo e cristandade não se identificam, e se cristandade é

a apostasia do cristianismo, mundanizado e tornado cultura, o que é, então,

cristianismo? O que é ser-cristão? A resposta, breve, pode ser: cristianismo é existência.

Kierkegaard declara:

Em geral, dois são os desvios fundamentais com

respeito ao cristianismo: 1º) o cristianismo não é uma

doutrina, mas uma mensagem existencial (...). 2º) Em

consequência (...), no tocante ao cristianismo não é

indiferente a pessoa que o expõe, como seria no caso de uma

doutrina, contanto que exponha (objetivamente) o

verdadeiro. Não, Cristo não instituiu docentes – mas

imitadores. Se o cristianismo (...) não se reduplica em quem

o expõe, este não expõe o cristianismo, pois o cristianismo é

uma mensagem existencial e só pode ser exposto com a

existência. Em suma, existir nele é expressá-lo existindo, isto

é, reduplicando-o (IXA207).

A existência, porém, não é uma questão de doutrina, mas de experiência.

Entretanto, observa Kierkegaard, se na modernidade a “experiência” é um princípio tão

adotado do ponto de vista científico, não se pode dizer o mesmo com relação à

existência, especialmente com relação à existência cristã:

Estranha contradição de nossa época – Se houve

alguma vez um tempo ou uma época que tenha apreciado e

levado em conta a experiência é a nossa. Tudo deve ser

experiência, ciência experimental etc. Só no que respeita o

cristianismo a gente se exime de fazer experiências.

Pretende-se julgá-lo sem ousar relacionar-se com ele, sem se

arriscar ao ponto de penetrar nessas decisões vitais, de onde

surgem as situações cristãs. Por isso, não se encontra

ninguém que se converta em cristão (X5A76).

Em 30 de janeiro de 1854 faleceu o bispo Mynster. Em 15 de abril, Martensen é

elevado a bispo. Em 18 de dezembro do mesmo ano Kierkegaard publica um artigo num

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jornal e deflagra a polêmica com Martensen, que responde com outro artigo de 28 de

dezembro, ao qual segue uma réplica de Kierkegaard de 30 de dezembro.

1855 é o ano da morte de Kierkegaard. A polêmica com a Igreja Oficial da

Dinamarca se torna ardente, com a publicação de nove fascículos de “O Momento” (o

décimo ficou inédito). Kierkegaard constata a dissolução da mensagem de Cristo na

cristandade: esta “é um mundo de liberdade que livremente se apostatou dele”,

escrevia no Diário em 22 de setembro de 1855, poucas semanas antes de sua morte.

Kierkegaard tem algo de profeta e de mártir (testemunha) da verdade. Ele sente que

está caminhando para o fim e se sente o provocador de uma catástrofe:

Os verdadeiros extraordinários de primeira classe.

Não se sentem nunca tão felizes a ponto de poder

acomodar-se neste mundo. Não, eles são viajantes em

missão, têm pressa de ir embora o mais rápido possível, para

retornar para casa.

Quando se sentem de estar encaminhando para o

fim e que estão no término da sua missão tendo produzido

o efeito mais intensivo e no tempo mais breve, então fazem

saltar uma pequena mola da qual eles conhecem o segredo.

Assim, a vida deles provoca a catástrofe e com um salto são

lançados fora do mundo.

Aqui, tudo é heterogeneidade do princípio ao fim:

abandonar este mundo em uma catástrofe é a maior

heterogeneidade, em confronto com uma vida tranquila e de

um tranquilo adormecer-se na morte173.

Em 02 de outubro de 1855 Kierkegaard foi recolhido sem sentidos na rua e

levado para um hospital. Recebe, por diversas vezes, a visita de seu amigo de infância,

o pastor Emil Boesen, com o qual mantém seus últimos diálogos. Morre no dia 11 de

novembro, num domingo à tarde. Ao descer à sepultura, Kierkeggard levou consigo o

173 Kierkegaard, Soeren. Diario. A cura di Cornelio Fabro. Edizione Ridota. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 2000, p. 367.

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segredo de seu “espinho na carne”, e deixou para os pósteros, homens da catástrofe, o

mistério do envio de sua existência e de seu pensamento. Um dia, de fato, ele tinha

anotado no seu Diário:

Depois da minha morte não se encontrará nos meus

papeis (e esta é a minha consolação) uma só explicação

daquilo que em verdade preencheu a minha vida. Não se

encontrará nos recônditos da minha alma aquele texto que

explica tudo e frequentemente, aquilo que o mundo tem

como bagatelas, tornam-se eventos de enorme importância

para mim e que também eu considero como coisas fúteis

assim que tiro aquela nota secreta que é a sua chave174.

Com sua morte, Kierkegaard passou a viver definitivamente na vida do

pensamento, no diálogo perene que envolve a humanidade, em seu esforço de pensar,

que se volta para o mistério da existência humana, o qual só se dá obliquamente, isto é,

enquanto e à medida que se subtrai.

2.1.2.2.2.3.2 KIERKEGAARD: O ESCRITOR RELIGIOSO. A LUTA CONTRA O SISTEMA PELO

INDIVÍDUO.

A obra de Kierkegaard nasce dos terremotos de sua existência, das destinações

de suas relações com o pai, de quem herda a melancolia e o rigor do cristianismo; e com

Regina, com quem conhece a alegria da realidade e o fascínio da idealidade do amor.

Além disso, nasce da polêmica com “O Corsário”, em que Kierkegaard intui a

inautenticidade da existência na vida da sociedade burguesa, e, ademais, da polêmica

com a Igreja de Estado da Dinamarca, na qual Kierkegaard denuncia a agonia do

cristianismo na apostasia da cristandade.

Kierkegaard se concebe com a vocação de escritor: entende-se como “escritor

religioso”, “escritor para escritores”, “escritor dialético”, “escritor essencial”, que quer

174 Idem, p. 20.

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servir à causa do cristianismo175. A sua produção literária pode ser recolhida em três

grupos:

1) As obras pseudonímicas: algumas são inteiramente pseudonímicas, outras

são atribuídas a um pseudônimo ou heterônimo de Kierkegaard, mas

editadas por ele. Inteiramente pseudonímicas são as obras dos heterônimos

Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, Nicolaus

Notabene, Vigilius Haufniensis, Frater Taciturnus, Hilarius Bogbinder.

Kierkegaard assinou a edição, porém, das “Migalhas Filosóficas”, de Johannes

Climacus, o “Post-Scriptum conclusivo, não científico, às Migalhas Filosóficas:

composição mímico-patético-dialética”, escrita também sob o pseudônimo

de Johannes Climacus, “A doença mortal (o desespero humano): um

desenvolvimento de psicologia cristã para edificação e tomada de

consciência”, obra publicada sob o pseudônimo de Anti-Climacus; e “O

exercício de cristianismo”, também de Anti-Climacus.

2) As obras assinadas e publicadas com o seu nome: que consta sobretudo das

copiosas coleções de “Discursos Edificantes”, a qual acompanha toda a

produção pseudonímica do início ao fim.

3) Os “Papéis” (Papirer), dos quais fazem parte as anotações do Diário.

Fora desta classificação, deve-se lembrar da tese sobre “O Conceito de Ironia

constantemente referido a Sócrates”, dissertação acadêmica defendida em 1841, e “O

ponto de vista da minha atividade de escritor”, de 1848.

Nas obras pseudonímicas, Kierkegaard usa da “comunicação indireta”, já nos

textos assinados por ele como sendo da sua própria autoria, ele usa da “comunicação

direta”. Nestes últimos, Kierkegaard fala a si mesmo “diante de Deus”. Os pseudônimos

exprimem possibilidades várias de existência estética, ética ou religiosa. Idealizam ou

isolam um ou outro aspecto da vida. Sobre a sua obra pseudonímica, ele se expressa:

“ que foi escrito é, pois, meu, mas somente na

medida em que me coloco na boca da personalidade poética

175 Cfr. Kierkegaard, Soeren. Diario. A cura di Cornelio Fabro. Edizione Ridota. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 2000, p. 9.

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real, que produz sua concepção da vida tal como se percebe

pelas réplicas, pois minha relação com a obra é ainda mais

exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no

entanto, é ele mesmo o autor no prefácio. Sou, com efeito,

impessoal ou pessoalmente um assoprador na terceira

pessoa, que poeticamente criou autores, os quais são os

autores de seus prefácios e mesmo de seus nomes”.

Se Kierkegaard se distancia da sua obra pseudonímica, atribuindo a si uma

autoria hesitante e ambígua, no entanto, em relação aos Discursos Edificantes ele aceita

atribuir-se uma autoria plena, assumindo-se como o autor “dos discursos edificantes e

de cada palavra que estes contêm”.

Kierkegaard vive num mundo que é a confluência de vários mundos: o mundo do

idealismo alemão, o mundo do romantismo, o mundo do Novo Testamento, o mundo

de Lutero. É a partir da contextura destes mundos que ele se tornou um escritor. Ele diz:

“Salvei minha vida, contando-a, isto é, tornando-me escritor. Escrever foi minha vida...”.

“Minha vida foi produzir” (Do Diário, 1849). “Nulla dies sine linea – Nenhum dia sem

uma linha” (Papéis). “Algumas ideias surgem apenas uma vez na vida” (Papéis). “Eu

escrevo impetuosamente, sinto que se agita em mim um furor de escrever” (Carta a Emil

Boesen). Entretanto, como Kierkegaard se tornou um escritor? Em “Ponto de vista

explicativo da minha obra como escritor”, escrita em 1848, mas publicada

postumamente pelo seu irmão Peter Christian, Kierkegaard diz:

Não conheci a imediatidade; por conseguinte, de um

ponto de vista estritamente humano, não vivi. Comecei de

imediato pela reflexão; não a adquiri aos poucos com a

idade; sou reflexão do começo ao fim. Nos dois períodos da

imediatidade (infância e juventude), eu me muni, por

necessidade, de um certo sucedâneo com a flexibilidade

própria à reflexão e mesmo, ainda mal instruído a respeito

da parte que me coubera, sofri a dor de não ser como os

outros; teria dado tudo na juventude para sê-lo, ainda que

por um momento. Um espírito pode perfeitamente aceitar

não ser como os outros, e é esta, do ponto de vista negativo,

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

103

a determinação do espírito; mas a infância e a juventude se

relacionam às categorias de gênero, de espécie, e é por isso

que nessas idades o maior tormento consiste em não ser

como os outros ou, como foi no meu caso, em começar por

um contrasenso singular, no ponto em que alguns acabam

em cada geração: a maioria, que conhece na sua vida apenas

os momentos da síntese do corpo e da alma, não chega

nunca à determinação do que é o espírito. Mas, assim, a vida

se apresenta para mim agora sob uma outra luz. Nada me é

mais desconhecido e estranho que essa melancólica

aspiração à infância e à juventude; agradeço a meu Deus por

ter superado esse desejo e sinto crescer minha felicidade a

cada dia que envelheço, ainda que apenas a ideia da

eternidade me encha de felicidade, pois a temporalidade

não é e jamais será o elemento do espírito, mas em certo

sentido seu sofrimento. Um observador verá também como

tudo foi dialeticamente posto em ação: eu tinha um espinho

na carne, os talentos do espírito (sobretudo a imaginação e

a dialética), uma experiência muito grande de observador,

uma educação cristã verdadeiramente rara, e uma atitude

especialmente dialética com relação ao cristianismo; tinha

aprendido desde a infância a obedecer com uma obediência

absoluta; estava munido de uma fé quase temerária em

minha capacidade de poder todas as coisas, salvo uma,

tornar-me um pássaro livre, ainda que um único dia, ou

romper as cadeias da melancolia em que uma outra força me

retinha; enfim, eu era para mim mesmo um penitente.

Parece-me agora que uma outra força ocupou-se desde o

primeiro momento desse adiamento, semelhante nisso ao

pescador dizendo do peixe: deixemo-lo, ainda é muito cedo

para pescá-lo. E, de fato, curioso que também remonta a

muito longe na minha lembrança, sem que eu possa de

modo algum indicar a data ou dizer como sua ideia me veio:

constantemente, isto é, a cada dia, eu pedi a Deus que me

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

104

concedesse o zelo e a paciência necessários para realizar a

tarefa que ele me designaria. Foi assim que me tornei autor”.

Pouco depois da morte de seu pai, em 9 de agosto de 1838, Kierkegaard publicou

o seu primeiro livro, intitulado “Dos papéis de um homem ainda em vida”, crítica ao

romance de H. Andersen, “Apenas um violinista”. Kierkegaard seguiu sua vida de

estudante até a defesa da dissertação para obtenção do grau de “Magister Artium”,

defendida em 29 de setembro, “O Conceito de Ironia, constantemente referido a

Sócrates”. Em Agosto Kierkegaard já tinha devolvido o anel de noivado a Regina e em

outubro ele rompe definitivamente com ela. Começa, então, a trabalhar na redação de

“A alternativa”, prosseguindo o trabalho também enquanto estava em Berlim.

Entrementes, no ano de 1842, Kierkegaard dedicou-se a elaborar um escrito que se

intitulou “Johannes Climacus ou De Ominibus est Dubitandum. Ensaio biográfico-

filosófico”, que ficou incompleto176. O nome, Johannes Climacus, é tirado da história do

cristianismo. João Clímaco, de fato, foi um monge grego que se refugiou como eremita

no monte Sinai, por volta do ano 600. “Na sua solidão, meditando sobre o sonho de Jacó

descrito no capítulo 28 do Gênesis, escreveu A escada do paraíso, ou A escada espiritual,

que lhe valeu o nome (climax significa escada, em grego)” 177. O nome deste “herói

dialético” foi retomado por Kierkegaard como um de seus pseudônimos, “aquele que

em 1844 assinará as Migalhas Filosóficas e, em 1846, seu imponente Post-Scriptum final

não científico. Ao publicar em 1849 A doença mortal e, em 1850, A escola do

cristianismo, sob o pseudônimo de Anti-Climacus Kierkegaard escreverá que, ‘como

indica seu nome, ele se opõe, coloca um termo’” 178. Johannes Climacus é descrito como

um jovem estudante, cuja alma era “por demais determinada pelo intelecto para se

deixar cativar pela beleza de uma mulher. Estava apaixonado, ardorosamente

apaixonado – pelo pensamento, ou, antes, pelo pensar” 179. Johannes Climacus era um

sonhador, que se destacava, pela reflexão, da imediatidade da vida. Um homem que

erguia entre o céu e a terra uma escada, feita de pensamentos.

176 Kierkegaard, S. É preciso duvidar de tudo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 177 Lafarge, Jacques. Prefácio. In: Kierkegaard, S. É preciso duvidar de tudo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XVII. 178 Idem, p. XXII. 179 Idem, p. 6.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Seu prazer consistia em começar por um

pensamento particular, a partir dele seguir o caminho da

consequência, escalando degrau por degrau até um

pensamento mais alto; pois a consequência era a seus olhos

uma scala paradisi [escada do paraíso], e a sua beatitude lhe

parecia maior até que a dos anjos. Com efeito, tendo

alcançado este pensamento mais alto, ele experimentava

uma alegria indescritível, uma voluptuosidade apaixonada

em mergulhar sob as mesmas consequências no raciocínio

inverso, até chegar ao ponto do qual partira (...)180.

Quem seria “Johannes Climacus”? Seria o próprio Kierkegaard, que, mesmo na

infância e juventude, tempos da imediatidade do viver, em que o homem se empenha

em ser como os outros homens, já era “reflexão do começo ao fim”? O subtítulo do

escrito “De omnibus dubitandum est” (há que se duvidar de tudo), é uma expressão

tirada de Descartes, dos “Princípios de Filosofia” (Primeira parte, 1). Johannes Climacus

é um jovem estudante que resolve pôr em prática seriamente este princípio da dúvida,

que é o princípio mesmo da filosofia moderna. Esta fórmula foi, por sua vez, escolhida

por Hegel, nas suas Lições sobre a história da filosofia, como o marco do início da

filosofia moderna, conforme a citação que já apresentamos neste nosso estudo:

Só agora nós chegamos propriamente à filosofia do

mundo moderno e a começamos com Descartes. Com ele

penetramos propriamente em uma filosofia autônoma que

sabe que provém autonomamente da razão e que a

consciência de si mesmo é o elemento essencial do

verdadeiro. Aqui podemos dizer que estamos em casa e,

como o navegante depois de um longo vagar pelo impetuoso

mar, podemos gritar: “terra!”... Neste novo período é o

princípio do pensar o pensar que parte de si mesmo.

A filosofia moderna nasce, pois, da paixão pelo “pensamento”, ou melhor, pelo

“pensar que parte de si mesmo” e que constrói no “elemento” ou no “éter” do pensar,

para usar expressões de Hegel, a “escada do paraíso”, que conduz o homem do finito ao

180 Idem, p. 7.

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infinito, do relativo ao Absoluto. Em 20 de janeiro de 1839 Kierkegaard escreveu: “Hegel

é um Johannes Climacus, que não toma o céu de assalto empilhando montanhas sobre

montanhas, como os gigantes, mas entra nela a golpes de silogismos” 181.

Seja como for, o Johannes Climacus do escrito de Kierkegaard é um jovem herói

do pensamento que procura fazer aquilo que os filósofos recomendam: duvidar de tudo.

Entretanto, tentando pensar propiis auspiciis (por conta própria) este princípio, o jovem

chega a pôr a questão: “o que é duvidar?”. Esta questão primeiramente se põe sob a

forma da pergunta: “como deve ser definida a existência para que seja possível

duvidar?”. Ele procurava “descobrir a possibilidade ideal da dúvida na consciência” 182.

Isto quer dizer: ele procura se orientar não empiricamente, mas idealmente, ou seja, ele

procurou “orientar-se na consciência pela forma como é, em si mesma, tal qual aquilo

que explica cada consciência individual, sem, contudo, ser individual em si. Ele

perguntava qual seria a natureza da consciência quando tivesse a dúvida fora de si” 183.

Por exemplo, como é a consciência da criança? Resposta: “ela é imediata. A

imediatidade é precisamente a indeterminação”. No imediato não há nenhuma

determinação, nenhuma relação. Não há o verdadeiro, nem o não-verdadeiro. Não há o

possível, nem o impossível. Ou, se quisermos, tudo é verdadeiro e não verdadeiro, e o

impossível é tão efetivo quanto o possível. Assim, também não há a dúvida. A

imediatidade, no entanto, é suprimida, justamente ao ser pressuposta.

O que é, então, a imediatidade? É a realidade. O que

é a mediatidade? É a palavra. Como esta suprime aquela?

Por enuncia-la; pois aquilo que é enunciado é para sempre

pressuposto.

A imediatidade é a realidade, a linguagem é a

idealidade, a consciência é a contradição. No momento em

que enuncio a realidade, surge a contradição, pois o que eu

digo é a idealidade.

181 Idem, p. XVII. 182 Idem, p. 104. 183 Idem, p. 105.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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A possibilidade da dúvida situa-se na consciência,

cuja natureza é uma contradição, que é produzida por uma

duplicidade e, ela mesma, produz uma duplicidade184.

O que é dito está em relação com a realidade, por exprimi-la. Mas está também

em relação com a idealidade, já que o dizer não simplesmente expressa a realidade, mas

também produz uma idealidade. Mas nem a realidade nem a idealidade, de per si, perfaz

o ser da consciência: “a realidade não é a consciência, a idealidade tampouco, e contudo

a consciência não existe sem ambas, e esta contradição é o ser da consciência e sua

essência”. A consciência, assim, é relação com a realidade e a idealidade ao mesmo

tempo. A consciência não se identifica, simplesmente, com a reflexão, embora a

pressuponha. As formas da reflexão são dicotômicas, como mostram as determinações

de “idealidade e realidade, alma e corpo, conhecer – o verdadeiro, querer – o bem, amar

– o belo, Deus e o mundo, etc” 185. Quando o homem reflete, aparecem as dicotomias.

Entretanto, as determinações da consciência são tricotômicas:

o que a língua também demonstra, pois quando

digo: eu tomo consciência desta impressão sensorial, eu

formulo uma tríade. A consciência é espírito e,

notavelmente, no mundo espiritual a divisão de uma

unidade sempre produz três, jamais duas unidades. A

consciência pressupõe, portanto, a reflexão. Se não fosse

assim, seria impossível explicar a dúvida 186.

A dúvida como um fenômeno da reflexão parece falar de uma dicotomia.

Testemunha disso é a própria linguagem. De fato, a palavra “dúvida”, como atestam o

latim e o alemão, vem de “dois” 187. Entretanto,

tão logo eu, como espírito, me torno dois, sou eo

ipso três. Caso não houvesse nada mais do que dicotomias,

não haveria a dúvida; pois a possibilidade da dúvida consiste

184 Idem, p. 108. 185 Idem, p. 111. 186 Idem, p. 112. 187 Em latim, “dubitatio” (dúvida) vem de “duo” (dois); em alemão, “zweifeln” (duvidar) vem de “zwei” (dois).

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justamente neste terceiro, que coloca os dois em relação

recíproca. Portanto, não se poderia dizer que a reflexão

engendra a dúvida, a menos que se quisesse utilizar uma

inversão. Seria preciso dizer que a dúvida pressupõe a

reflexão, sem que esta seja, contudo, temporal. A dúvida

surge quando uma relação se estabelece entre dois

elementos; mas para que isso aconteça é preciso que os dois

existam, enquanto, porém, a dúvida, como uma expressão

mais elevada, os precede, não os sucede 188.

No acontecer da dúvida, entre os dois elementos da reflexão se dá a relação da

consciência. Esta é o terceiro, que na verdade é o primeiro, o primordial. Kierkegaard

chama esta relação “interesse” (ser, estar entre). A dúvida não é tanto uma questão da

reflexão e suas dicotomias, mas da consciência e do seu interesse. Por isso, a reflexão,

no sentido de um raciocínio, não pode vencer a dúvida, antes, só pode neutralizá-la.

Assim, enquanto alguém pretendesse vencer a

dúvida por um raciocínio, assim chamado objetivo, haveria

um mal-entendido; pois a dúvida é uma forma superior a

todo raciocínio objetivo; pois esta o pressupõe, mas tem um

algo a mais, um terceiro, o qual é o interesse ou a

consciência. Neste sentido, o procedimento dos céticos

gregos pareceu-lhe muito mais consequente que a moderna

superação da dúvida. Estes compreendiam bem que a dúvida

situa-se no interesse, e bem consequentemente pretendiam

suspender a dúvida, transformando o interesse em apatia189.

A dúvida não é, primordialmente, uma questão de reflexão, de raciocínio, de

objetividade, mas sim, de consciência, de interesse, de subjetividade. A filosofia

moderna, porém, especialmente a de Hegel, no parecer de Kierkegaard, se constrói

como um projeto da reflexão e, assim, de um conhecimento desinteressado,

sistemático, objetivo.

188 Idem, p. 112-113. 189 Idem, p. 114-115.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Talvez possamos, aqui, dizer algo sobre a relação de Kierkegaard com a

metafísica de Hegel. Hegel parte a seu modo do “cogito ergo sum”. Mas, de que modo?

Identificando o ser, a realidade, com o pensar, o pensamento. O real é racional e o

racional é real, segundo o famoso dito de Hegel, no prefácio da Filosofia do Direito. O

que há em última instância é a identidade de interno e externo, de sujeito e objeto, de

racional e real, de essência e existência. Assim, o ser, o existir, é absorvido no elemento

do pensar, da lógica. Na perspectiva de Kierkegaard, porém, aqui aconteceria uma fusão

ou confusão de pensar e ser, que é alcançada graças à abstração da existência. No seu

Diário, Kierkegaard escreverá:

O erro da filosofia moderna, que identifica o ser com

o pensar, é de ter trocado a objetividade com a subjetividade

e a possibilidade com a realidade. Mas esta chagada filosofia

moderna fez entrar a “realidade” na Lógica, e depois, por

distração, se esquece que a “realidade” na Lógica não é outra

coisa que a “realidade pensada”, isto é, possibilidade 190.

Contra a abstração da realidade e da existência no pensamento e na Lógica se volta

Kierkegaard e sua crítica anti-Hegel, sobretudo em nome do cristianismo. A filosofia põe

o existir a partir do pensar. O cristianismo, por sua vez, põe o existir a partir do crer. Se

a filosofia moderna afirma que “pensar é ser”, o cristianismo afirma que “crer é ser”:

“como tu crês, assim tu és” 191. Para Hegel, o que se dá é a comensurabilidade e a

homogeneidade de interno e externo. Mas a ética e a fé testemunham a

incomensurabilidade e a heterogeneidade de interior e exterior. A ética, colocando a

alternativa entre um e outro: ou isto – ou aquilo; a fé, indicando exatamente o oposto:

“quanto menor é a exterioridade tanto maior será a interioridade” – “a verdadeira

interioridade não exige nenhum sinal na exterioridade”, a “verdadeira religiosidade é

reconhecível como a onipresença de Deus, pela sua invisibilidade” 192. Hegel defendia

que o aumento de determinações quantitativas faz vir à tona uma qualidade nova.

190 Diario 1849-50, X² A 390. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 35. 191 Cfr. A doença mortal. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 28. 192 Citações do Post-Scriptum. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 29.

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Kierkegaard, a seu turno, vê nisso apenas uma superstição. Para Kierkegaard toda

passagem qualitativa é um salto, mais do que uma mera continuidade. “A nova

qualidade nasce com o primeiro momento, com o salto, com a subitaneidade do

enigmático” 193. Hegel afirma a supremacia da espécie sobre o indivíduo. Kierkegaard

afirma a primazia do indivíduo sobre a espécie ou o gênero. “O indivíduo é mais alto do

que o ‘gênero’, porque ele é todo o gênero e ao mesmo tempo a individuação”194.Contra

Hegel, mas também contra os pressupostos filosóficos da teoria da evolução 195,

Kierkegaard entende que

no homem o agente de toda transformação está no

indivíduo. É o testemunho que a existência dá à

singularidade original no seu desdobrar-se pela história.

Fosse a espécie portadora da evolução não haveria na vida

dos indivíduos nem angústia, nem liberdade, somente

fatalidade (...). No homem, a evolução só se dá no indivíduo

por causa da liberdade. Evolução das espécies é sempre um

processo sem existência histórica196.

Pensando em termos gregos, existência é a criatividade da “Zoé” (Vida) tomando

corpo e consistência no “Bíos” (Vida) do indivíduo, e se desdobrando como história. Isso

implica afirmar a pertença mútua de indivíduo e existência: “Mas existir significa antes

de tudo e acima de tudo ser um indivíduo, e é por isso que o pensamento deve prescindir

da existência, porque o singular não se deixa pensar, mas somente o universal” 197. O

devir da existência é a história. E a base deste devir é o acontecer da liberdade dando-

se na singularização, na individuação, na personalização de indivíduos. A socialidade só

tem sentido enquanto se constrói com base no respeito por esta liberdade, ou seja,

enquanto deriva da comunidade dos singulares. O “público”, a “massa” é a socialidade

amorfa, um aglomerado, que reduz o indivíduo a um mero número. A revelação cristã

193 O conceito de Angústia. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 29. 194 Diário 1849-50, X² A 489. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 49. 195 Kierkegaard não conheceu a obra de Charles Darwin, de 1859, já que morreu em 1855, mas teve conhecimento dos antecedentes da teoria da evolução em Lamark e Saint-Hilaire. 196 Leão, E. Carneiro. Filosofia Contemporânea. Teresópolis-RJ: Daimon, 2013, p. 19. 197 Post-Scritum. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 38.

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trouxe à tona este estatuto fundamental do indivíduo, enquanto pessoa (uma

singularidade que se constitui a partir da liberdade), e a socialidade que se baseia na

comunidade. Hegel entendia que Cristo era a unidade especulativa e conceitual de Deus

e homem “sub specie aeternitatis”198, Kierkegaard, no entanto, afirma, com o

cristianismo, que Cristo não é a unidade de Deus e homem simplesmente, mas a unidade

de Deus com um homem, um indivíduo humano: “Homem-Deus não é a unidade de

Deus e do homem... Homem-Deus é unidade de Deus e de um homem singular. Que o

gênero humano seja ou deva ser afim com Deus, é velho paganismo; mas que um

homem singular seja Deus, é cristianismo, e este homem singular é o homem-Deus”199.

Isso leva Kierkegaard também a contrapor-se a Lessing (1729-1781), um dos maiores

representantes do iluminismo alemão. A filosofia da religião de Lessing anulava a

historicidade do cristianismo ao identificar razão e revelação, entendendo a revelação

como um “artifício pedagógico” da razão (divina). Lessing considerava um contrassenso

afirmar que a salvação eterna de todos os homens depende de um evento histórico de

um indivíduo (Cristo). Mas, como salienta Kierkegaard, no cristianismo, emerge o

caráter paradoxal da existência humana. Tudo o que a revelação ensina é paradoxal,

inclusive isto, que o Eterno entrou no tempo, e que o evento histórico da encarnação e

da paixão e morte de cruz do Deus-homem tem um valor eterno e universal (para todos

os homens).

A oposição entre Hegel e Kierkegaard se deixa formular também na oposição

entre dialética e paradoxo. Para Hegel

toda realização do absoluto, como natureza e como

espírito, e portanto toda história desta realização, tem lugar

dialeticamente: todo estágio posto (tese) faz surgir seu

contrário (antítese) e ambos são “absorvidos” (aufgehoben)

na síntese subsequente, isto é, ao mesmo tempo negados,

conservados e elevados, assim como todo conceito

198 Sob o aspecto ou a perspectiva da eternidade. 199 Exercício de Cristianismo. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 35.

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engendra por si mesmo o conceito contrário e ambos são

“absorvidos” em outro superior 200.

Em sua crítica à dialética, Kierkegaard aplicou o que aprendeu, em Berlim, com

Adolf Trendelenburg (1802-1872). Trendelenburg é responsável pelo surgimento de uma

nova tradição aristotélica, que veio atuando na filosofia desde os idos de 1840. Nova,

pois buscava compreender Aristóteles não a partir da escolástica, mas a partir dele

mesmo. Esta tradição fundada por Trendelenburg “cresceu a partir da oposição a Hegel

e foi posta em andamento como recepção da investigação histórica de Schleiermacher

e Böckh no campo da filosofia grega” 201. Em Berlim, frequentaram as lições de

Trendelenburg pensadores como Kierkegaard, Feuerbach, Marx, Brentano e Dilthey.

Trendelenburg pôs-se a fazer uma crítica da dialética hegeliana. Giovanni Reale

apresenta esta crítica com o seguinte teor:

A dialética hegeliana, segundo Trendelenburg, se

debate em um dilema por si mesmo insuperável, sem sair

dele. De fato, a negação, que, segundo Hegel, como

momento antitético à tese, põe em movimento o processo

dialético que leva à síntese superior, deveria ser uma destas

duas coisas: ou pura negação lógica (A e não-A), ou então

oposição real. Mas, no primeiro caso, a negação não pode de

maneira alguma pôr em movimento a mediação sintética do

terceiro momento. No segundo caso, ao invés, a oposição

não pode ser introduzida na esfera do lógico, porque se

move na esfera do empírico: em tal caso, segundo

Trendelenburg, o sistema de Hegel é construído sobre um

tipo de dialética que funde junto (con-funde) as figuras da

contradição e da contrariedade, ou seja, a contradição lógica

e a oposição real. As contraposições reais de interesse e as

revoluções históricas não se reduzem absolutamente a

meras contradições lógicas e não se podem descrever e

200 Müller, Max e Halder, Alois. Breve diccionario de filosofia. Barcelona: Herder, 1976, p. 209. 201 Heidegger, M. Prolegomena zur Geschichte der Zeitbegriffs, p. 23.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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compreender com métodos apriorísticos da lógica, como

Hegel pretendia com a sua dialética 202.

Com as lições de Trendelenbug, Kierkegaard se mune mais fortemente em seu

anti-hegelianismo, ou seja, se afirmará mais fortemente contra o “pensar abstrato” do

“sistema”, para dizer sim à “existência” em sua concretude fática. A crítica de

Kierkegaard ao sistema de Hegel contrapõe o salto à mediação, o paradoxo à dialética.

Para Kierkegaard, a mediação, aquilo que Hegel chama de a “enorme força do negativo”,

“quer facilitar a existência ao existente negligenciando a relação absoluta com o télos

absoluto” 203. O cristianismo está do lado da existência e do pensamento concreto, não

do pensamento abstrato, da especulação, do sistema. “Se o cristianismo é a antítese da

especulação, é também a antítese da mediação, porque a mediação é a essência da

especulação: que sentido pode ter então ‘mediar’ o Cristianismo? Mas o que é a antítese

da mediação? É o paradoxo absoluto” 204. Na compreensão do pensador dinamarquês,

o paradoxo é a irrupção do infinito no finito, irrupção que faz rebentar o finito, sem,

contudo, tirar-lhe o caráter de finito. O finito, entretanto, é posto numa relação absoluta

com o Absoluto, sendo esta relação uma relação de pessoa a pessoa, que se chama “fé”.

Aqui, porém, não se trata de “passagem”, mas de “salto”. Se a lógica é uma coisa do

pensamento abstrato, a fé é uma coisa da existência.

Assim, por exemplo, no silogismo da forma: “Todo

homem é mortal. Pedro é homem. Pedro é mortal.”, a

conclusão repete, apenas, a afirmação universal da premissa

maior. Esta conclusão logicamente necessária é, somente,

uma repetição enfadonha do que já se sabe contido na

verdade da primeira premissa. Na terminologia de I. Kant,

nenhum silogismo estende o conhecimento, apenas explica

o que já se sabe.

Outra, bem outra, é a situação existencial. Aqui, o

indivíduo tira uma outra conclusão, ora em nível estético, a

202 Reale, Giovanni. Prefazione. In: Trendelenburg, A. La Dottrina delle categorie in Aristotele. Milano: Vita e Pensiero, 1994, p. 11. 203 Post-Scriptum. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 44. 204 Idem, p. 39.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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saber, se todo homem é mortal e Pedro é homem, logo

Pedro deve gozar a vida, ora em nível ético, logo Pedro deve

respeitar a vida, ora em nível religioso, logo Pedro deve viver

na vida toda a fé paradoxal da vida.

Para Kierkegaard, foi a revelação no cristianismo que

tirou para o destino da existência de todo ser humano a

conclusão paradoxal da fé. Foi o paradoxo que levou o Autor

da Epístola aos Hebreus, atribuída a São Paulo, a viver e a

sentir na fé “o sustentáculo do que se espera” e “na

esperança, o penhor do que não se vê”. Eis porque a fé é

cega, diz Kierkegaard. É visionária, no sentido de não lhe

faltar, mas de lhe sobrar visão. A fé vê no visível o invisível,

vê no mundo, e em tudo que o mundo contém, a luz de um

paradoxo vivo. Esta fé é o destino de toda existência humana

205.

A luta de Kierkegaard contra o assim chamado panlogismo206 hegeliano é

também a defesa da liberdade e da contingência contra a necessidade. O lógico se

desdobra segundo a necessidade. Já a realidade que encontramos no mundo se dá em

realizações que se efetivam segundo o caráter do possível ou do contingente. “Tudo

aquilo que devém demonstra precisamente mediante o devir que não é necessário; a

única coisa que não ode devir é o necessário, porque o necessário é” 207. O devir se opõe

por si mesmo à necessidade: “Nenhum devir é necessário; não antes de devir, porque

não poderia devir, não depois de ter se tornado, porque então não teria se tornado” 208.

Pensar o devir da existência histórica como necessária, como faz Hegel, é, pois, um

205 Leão, E. Carneiro. Filosofia Contemporânea. Teresópolis-RJ: Daimon, 2013, p. 19-20. 206 Müller, Max e Halder, Alois. Breve diccionario de filosofia. Barcelona: Herder, 1976, p. 333: “Concepção segundo a qual a “razão” é o verdadeiro princípio do mundo, e o mundo é sua representação desenvolvida (= realizada) no processo dialético. Particularmente em Hegel todo ente é só momento parcial deste desenvolvimento, uma etapa na evolução rumo ao estágio em que a razão se compreende a si mesma.” O nome “panlogismo” foi criado por E. Erdmann, em sua História da filosofia mais recente (1853), para designar a doutrina de Hegel: “O nome mais conveniente para a sua doutrina é panlogismo: apenas a razão é posta como real; ao irracional atribui apenas uma existência transitória, que suprime a si própria” (apud Lalande, Andre. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 786). 207 Migalhas de filosofia. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 49. 208 Idem, ibidem.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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contrasenso. A existência histórica, com efeito, implica em contingência e liberdade:

“tudo aquilo que é histórico é contingente, porque precisamente pelo fato de isso

acontece, se torna histórico, tem o seu momento de contingência, porque a

contingência é justamente o único fator que explica o devir. É nisso que consiste a

incomensurabilidade de uma verdade histórica com uma decisão eterna”. O cristianismo

ensina o paradoxo segundo o qual o salto de uma escolha infinita feita a partir da

liberdade no tempo tem uma envergadura e uma valência eterna. “E portanto o existir

gera por si mesmo uma determinação que é infinitamente superior à existência”209.

Todas estas contraposições a Hegel, embora condicionem Kierkegaard a um

hegelianismo negativo, como dizia Heidegger, apontam para uma superação da

metafísica do sistema.

A influência de Kierkegaard na filosofia

contemporânea se deve principalmente à crítica existencial

a que submeteu o sistema de Hegel dominante em seu

tempo e ambiente. Trata-se de uma crítica impiedosa que se

estendeu a toda e qualquer sistematização com ou sem

dialética, quer se trate de análise racional ou irracional, seja

empírica ou transcendental. É que para a existência o desafio

não está no ponto de partida, na tese, nem na mediação, “a

força descomunal da negação”, na antítese, nem no ponto

de chegada da realização, na síntese, mas na pretensão

totalitária de todo sistema de poder esgotar a riqueza

inesgotável da realidade com o fechamento de uma síntese

conclusiva. Kierkegaard está convencido de ter “combatido

o bom combate”. Para ele, a demolição do sistema e da

sistematização pela existência do indivíduo singular abalou e

desmontou toda a confiança vigente em qualquer dialética.

Nos dois volumes de Enten\Eller, “Ou\ou” de 1843, mostra

como a existência finita é a superação de toda composição

de “og\og”, e\e, com a liberdade de uma escolha paradoxal.

209 Post-Scriptum. Apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 43.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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No Diário escreve que na Kopenhagen de seu tempo

o indivíduo não era nem compreendido, nem valorizado, o

que só virá a ocorrer muito mais tarde. “Com o indivíduo,

comemora ele no Diário, derrotei a sistematização quando

aqui tudo era sistema sobre sistema e só havia interesse por

conceito e cálculos lógicos. Agora, porém, já não se fala em

sistema”. Nenhum homem pode viver trancado dentro de

um sistema. A demolição do sistema resulta no

reconhecimento da individualidade nas peripécias da

existência humana. Se nos animais, o indivíduo é inferior e

menos do que a espécie, na humanidade se dá o contrário, o

indivíduo é sempre superior e mais do que a espécie210.

Kierkegaard procura, ao defender a realidade, o existente, o indivíduo, pôr-se a

serviço da liberdade. Mesmo do ponto de vista do debate teológico, Kierkegaard

colocou-se como defensor da liberdade. Assim, num debate com Martensen,

“Kierkegaard não aceitou a interpretação da teologia cristã de que a Graça da Salvação

já está predestinada desde sempre. Kierkegaard recusou todo e qualquer determinismo

que viesse restringir a liberdade da existência” 211, quer viesse do naturalismo, quer do

idealismo, quer da própria teologia.

2.1.2.2.2.3.3 Kierkegaard: angústia, temporalidade, instante

Kierkegaard apresenta o homem como síntese. O homem é, antes de tudo,

síntese de alma e corpo, síntese que se dá como eu na dimensão do espírito. O homem

é também síntese de tempo e eternidade. Mas, como chamar o terceiro em que o tempo

e a eternidade se sintetizam, isto é, se compõem?

210 Leão, E. Carneiro. Filosofia Contemporânea. Teresópolis-RJ: Daimon, 2013, p. 18-19. 211 Idem, p. 26.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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Para Kierkegaard, o tempo como uma sucessão infinita de passado, presente e

futuro não é um tempo pensado, mas sim um tempo imaginado, que não passa de uma

paródia do eterno. O eterno, porém, é o presente, como sucessão abolida. É um

presente sem passado nem futuro. Já o tempo é sucessão, logo, passagem, trânsito,

transitoriedade. Como se possível, então, encontrar um ponto de contato entre o tempo

e a eternidade? A esta síntese entre o tempo e a eternidade Kierkegaard chama de

“instante” (oyeblickt: piscar de olhos).

Platão chamou o instante de “to exaiphnés”: o súbito, o “de repente”. E pensava

na passagem do movimento ao repouso e do repouso ao movimento. É uma “coisa

estranha” que se coloca, portanto, entre o movimento e o repouso. Vejamos uma

citação do diálogo intitulado Parmênides, em que Parmênides, o pensador mais velho,

dialoga com Aristóteles, o pensador mais novo:

Parmênides: Aquilo em que se está, quando se muda

não é esta coisa estranha?

Aristóteles: Que coisa?

O instante, pois o instante parece significar algo

como o ponto de partida de uma mudança nas duas

direções. Com efeito, não é da imobilidade ainda imóvel que

parte a mudança, nem o movimento ainda movente que o

produz. Mas existe esta estranha entidade, o instante, que

se coloca entre o movimento e o repouso, sem estar em

qualquer tempo, e é daí que vem e daí que parte a mudança,

seja do movimento ao repouso seja do repouso ao

movimento.

Aristóteles: pode ser.

Para Platão, pois, o instante é “essa coisa estranha” (atopon): ponto de partida

da mudança nas duas direções, do movimento ao repouso e do repouso ao movimento.

A mudança do repouso ao movimento não vem do imóvel. A mudança do movimento

ao repouso não vem do movimento. O instante não é temporal. Entretanto, ele

determina o tempo: a mudança. Ele é fonte de mudança, mas ele mesmo não muda,

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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não conhecendo nem geração nem corrupção. O instante não é o presente que passa

na sucessão. Por isso, ele não pode ser medido. Ele está fora do tempo. E nisso ele

mantém uma característica do eterno: a não divisibilidade. Na verdade, o instante é um

átomo da eternidade. Ele funda o tempo, que é uma imagem móvel e circular da

eternidade. De fato, é a partir do movimento circular do céu que nós medimos,

numeramos, o tempo: os dias, as noites, os meses, os anos.

Kierkegaard entende que a compreensão grega do instante, embora tenha

vislumbrado corretamente sua natureza como “átomo da eternidade”, é por demais

abstrata, por que os gregos pensavam o instante a partir da natureza (física, psíquica),

mas não a partir do espírito. É o cristianismo que traz uma nova compreensão do que

seja o instante, a partir do espírito, ou seja, um entendimento concreto, existencial,

fáctico.

O homem sensual, estético, não conhece o instante. Conhece apenas o fugaz

momento 212. Já o homem ético, como vimos, luta com o tempo, vencendo-o, mas

vencer o tempo não significa destruí-lo, mas sim salvá-lo para a eternidade. Mas é na

experiência religiosa do espírito, especificamente, da religiosidade cristã que o instante

adquire toda a sua pregnância, toda a sua concretude.

Os gregos entendiam o tempo a partir da natureza. Mas, observa Kierkegaard, a

aparente segurança com que a natureza persiste no tempo não significa que a natureza

seja eminentemente temporal. Ao contrário, significa que o tempo não conta

propriamente para a natureza. Não é no horizonte da natureza que podemos

compreender o tempo em todo o seu caráter decisivo, pregnante, concreto, mas sim no

horizonte da história, do espírito, da existência em sua concretude e facticidade. A

história, porém, nasce do instante.

O instante é esta coisa ambígua em que se tocam o

tempo e a eternidade. Esse contato institui o conceito de

temporal, em que o tempo não mais cessa de repelir a

212 A palavra “momentum” vem de “movere”: mover, no sentido de esvaecer, desaparecer.

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eternidade e a eternidade não mais cessa de penetrar o

tempo213.

Somente a partir deste jogo de eternidade e tempo é que faz sentido falarmos

de passado, presente e futuro. Para Kierkegaard, o futuro, o porvir, é a incógnita com

que o eterno, irredutível ao tempo, quer salvaguardar o seu comércio com o tempo.

Platão fala da eternidade como um agora imóvel, imutável, sempre idêntico consigo

mesmo, mas, por outro lado, fala dela como se fosse um passado imemorial. Para Platão,

o Uno se detém no agora imutável, não pode tornar-se mais velho (nem mais jovem), e,

no entanto, ele é o mais velho. Com outras palavras, o comércio da eternidade com o

tempo tem mais a ver com o passado do que com o futuro. “A eternidade grega perfila-

se à retaguarda como um passado em que só se entra às arrecuas” 214. Daí, a importância

da reminiscência (anamnesis), como forma de acessar o eterno (as ideias, o Uno). Já

para o cristianismo, é a partir do futuro que acontece o tempo e é também por meio do

futuro que se dá o comércio da eternidade com o tempo. É a partir do futuro que

acontece o tempo. Afinal, “não é o porvir o todo de que o passado representa uma

parte?” 215. Por isso, os cristãos falam da vida futura como vida eterna.

Lá onde tudo é em devir, lá onde há somente aquele

tanto de eternidade se comporta como o futuro referido ao

indivíduo que devem, lá verdadeiramente a disjunção

absoluta está em seu lugar. Quando de fato eu uno a

eternidade e o devir não obtenho o repouso, mas o futuro.

Esta é provavelmente a razão pela qual o cristianismo pregou

a eternidade como futuro, porque foi pregado a existentes e

por isso este admite também um absoluto aut-aut (ou-ou)216.

O instante e o futuro determinam o passado. Kierkegaard observa que a

categoria de “repetição” não diz respeito tanto ao passado, mas ao futuro: ela quer dizer

que se entra na eternidade por antecipação – um regresso projetado para a frente.

213 Reichmann, E. O instante: textos e notas. Curitiba: EPU (Editora Pedagógica e Universitária – UFPR), 1981, p. 86. 214 Idem, p. 87. 215 Idem, p. 86. 216 Kierkegaard apud Di Stefano, Tito. Soeren Kierkegaard: dalla “situazione” dell’angoscia al “rischio” della fede. Assisi: Cittadella Editrice, 1986, p. 123.

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O espírito, no estado de inocência, sonha. “A inocência é ignorância. Na

inocência o homem não está determinado como espírito, mas psiquicamente em

unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem” 217. Mas

já neste estado de inocência, ignorância, se insinua a força da angústia, que não é a força

disto ou daquilo, mas sim a força “do nada”. Diz Kierkegaard:

Neste estado há paz e repouso, mas ao mesmo

tempo há outra coisa, sem embargo, não é agitação nem

luta, pois não há nada contra o que lutar. Mas, então o que

é? Nada. Mas que efeito exerce este nada? Engendra

angústia. Este é o profundo mistério da inocência, que é ao

mesmo tempo angústia. Sonhando projeta o espírito sua

própria realidade. Mas esta realidade é nada e este nada vê

continuamente fora de si a inocência 218.

Angústia não é medo. O medo se refere a algo determinado. A angústia é

angústia com nada, isto é, angústia com o nada.. Por isso, só o espírit“A angústia é a

realidade da possibilidade antes da possibilidade” o pode angustiar-se – afinal, espírito

difere de alma: enquanto alma é vitalidade animal, o espírito é transcendência (da

animalidade), transcendência pela liberdade. “Quanto menos angústia, menos espírito”.

A angústia convive com a felicidade da inocência. Nas crianças, a angústia aparece como

um afã de aventuras, de coisas monstruosas e enigmáticas. A angústia prende a criança

com uma doce ansiedade. A angústia é, ao mesmo tempo, atração e repulsão. Na

linguagem de Kierkegaard, a angústia “é uma antipatia simpática e uma simpatia

antipática”219.

“A angústia é a realidade da possibilidade antes da possibilidade”. O possível

coincide inteiramente com o futuro. Para a liberdade, o possível é o futuro. Para o

tempo, o futuro é o possível. A angústia é, fundamentalmente, angústia com o possível,

com o futuro. Só se pode angustiar com o passado, caso este passado apareça como

possível de se reproduzir.

217 Kierkegaard (antologia de Reichmann): p. 265. 218 Idem, ibidem. 219 Idem, ibidem.

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Na inocência, a angústia é angustiada não só pelo nada, pelo possível e pelo

futuro, mas também pela proibição e pela ameaça do castigo. Entretanto, a proibição

desperta o desejo. E o desejo produz o salto qualitativo do pecado. O pecado produz,

por sua vez, mais angústia, junto com o conhecimento do bem e do mal. Como

aconteceu com o primeiro homem da história bíblica, Adão, assim acontece com todo

homem. Adão é todo homem e todo homem é Adão. Segundo a dogmática cristã, cada

indivíduo que passa a participar da espécie humana traz consigo a pecaminosidade,

acrescentando algo a mais de pecado na cadeia das gerações. Entretanto, cada

indivíduo, motivado pela angústia220, põe o pecado no mundo, a modo de um salto

qualitativo, que provém de sua liberdade. E, ao pôr o pecado no mundo, o indivíduo

gera para si mais angústia.

A angústia significa, pois, duas coisas. A angústia por

meio da qual o indivíduo coloca o pecado, por meio do salto

qualitativo e a angústia que sobreveio e sobrevém com o

pecado e que, portanto, também entra no mundo

determinada quantitativamente, a cada vez que o indivíduo

põe o pecado221.

A angústia é, antes de tudo, a angústia como vertigem da liberdade, de uma

liberdade que está solta, mas ao mesmo tempo vinculada a si mesma. Angústia é o ser

determinado a partir da possibilidade. “Aquele que é formado pela angústia é formado

mediante possibilidade; e somente quem é formado pela possibilidade, é formado

segundo a sua infinitude. Por isso a possibilidade é mais pesada de todas as categorias”

222. “A angústia é o primeiro reflexo da possibilidade, um clarão, e, todavia, de um

encanto tremendo” 223. Esta angústia originária é o que Kierkegaard chamou de

“vertigem da liberdade”:

Pode-se comparar a angústia com a vertigem.

Aquele cujos olhos são levados a olhar para o abismo, sente

220 “A angústia não é uma determinação da necessidade, mas não é nem mesmo uma determinação da liberdade. Ela é uma liberdade vinculada, não à necessidade, mas em si mesma”. K. apud Di Stefano: p. 66. 221 Kierkegaard (antologia de Reichmann): p. 269. 222 K. apud Di Stefano: p. 67. 223 Idem, ibidem.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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vertigem. A causa deve ser encontrada tanto nos olhos

quanto no abismo. Se ele não tivesse olhado para baixo!...

Assim, a angústia é a vertigem da liberdade. Vertigem que

surge quando o espírito, ao querer colocar a síntese, a

liberdade fixa os olhos no abismo de sua própria

possibilidade e lança mão da finitude para sustentar-se.

Nesta vertigem, a liberdade cai desmaiada. A psicologia não

pode ir além, nem tampouco o quer. No mesmo instante,

tudo se modifica e quando a liberdade ergue-se novamente

vê que é culpada. Entre estes dois momentos está o salto que

nenhuma ciência explicou nem pode explicar 224.

O pecado, por sua vez, gera mais angústia, não só para o homem, como também

para a “criação”, ou seja, a esfera não humana da realidade. “Tendo entrado, pois, o

pecado no mundo, ele adquiriu importância para toda criação. Este efeito do pecado na

esfera não-humana do ser é o que se designou como angústia objetiva”225. Kierkegaard

recorda o que diz Paulo na sua Carta aos Romanos (8, 19s): “a criação espera com

impaciência a revelação dos filhos de Deus: entregue ao poder do nada226 (...) ela guarda

a esperança”227. Por isso, em toda a criação, há nostalgia e, ao mesmo tempo,

esperança. “A expressão de uma nostalgia semelhante é a angústia, pois na angústia se

denuncia o estado do qual o indivíduo deseja sair e se denuncia por meio da angústia,

porque só a angústia não basta para salvá-lo”228. A angústia objetiva é a que se dá na

criação. A angústia subjetiva, a que se dá no indivíduo humano. No indivíduo histórico,

que participa da pecaminosidade da espécie humana, a angústia é mais reflexiva. Aqui

o nada da angústia se torna um quase-algo, “um complexo de pressentimentos, que se

refletem em si mesmos, aproximando-se cada vez mais no indivíduo, ainda que,

considerados essencialmente, não signifiquem nada na angústia”229. Outra forma de

angústia é a que Kierkegaard chama de angústia do bem (o demoníaco). Em que consiste

esta “angústia do bem?”. Significa, primeiramente, que, com o pecado, o homem perde

224 Kierkegaard (antologia de Reichmann): p. 272. 225 Kierkegaard (antologia de Reichmann): p. 271. 226 “Submetida à vaidade”. 227 “Apokaradokía” significa “ardente espera”. 228 Idem, ibidem. 229 Kierkegaard (antologia de Reichmann): p. 273.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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a realidade da liberdade e se torna escravo do mal; em segundo lugar, que ele angustia

sempre de novo diante da possibilidade da liberdade. É a tentativa do homem de fechar-

se em si mesmo, evitando o seu bem, ou seja, que a possibilidade da liberdade se torne

uma realidade.

Desde que a existência do homem é determinada pela liberdade e pela culpa, a

angústia se torna não somente um fato da sua facticidade, mas também uma tarefa de

sua transcendência.

Encontra-se num conto de Grimm a história de um

jovem que saiu a correr mundo para aprender a angustiar-

se. Deixemos esse aventureiro seguir o seu caminho, sem

nos preocupar se encontrou ou não algo horroroso. Ao

contrário, quisera advertir que é uma aventura que todos

tem que correr, este de aprender a angustiar-se. Aquele que

não o aprende, sucumbe por nunca sentir angústia ou por

mergulhar na angústia. Aquele que, pelo contrário,

aprendeu a angustiar-se corretamente, aprendeu o supremo

saber230.

Para Kierkegaard, o homem se angustia por ser a síntese de corpo e alma como

espírito. Um animal não se angustia. Um anjo não se angustia. O animal não se angustia

por estar todo imerso na sua vitalidade orgânica, desconhecendo a realidade do espírito:

a possibilidade da liberdade. Ele apenas segue o que é natural em sua espécie. O anjo

também não pode se angustiar, pois desconhece a mortalidade e a culpa. Mas o homem

se angustia por ser espírito, e quanto mais é espírito tanto mais conhece a angústia e

sua força educativa.

O homem é espírito. Mas o que é o espírito? O

espírito é o eu. E o eu, o que é? É um reportar que se reporta

a si mesmo, ou então é, na reportação, o reportar-se que a

reportação se reporta a si mesma. O eu não é a reportação,

mas o reportar-se a si mesmo. O homem é uma síntese de

230 Kierkegaard (antologia de Reichmann): p. 277.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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finito e infinito, de tempo e de eternidade, de possibilidade

e necessidade, em suma, uma síntese231.

Como em Fichte, também aqui, em Kierkegaard, o eu (o espírito) é

“autoposição”. O eu só é enquanto se põe a si mesmo em relação consigo mesmo. É a

“reditio in se ipsum” (reentrada em si mesmo), que os medievais viam como caráter do

espírito. O eu se põe a si mesmo para si mesmo: ele se reporta a si mesmo, ele retorna

sobre si mesmo. E isso tudo não como simples reflexão ou consciência, mas como

vontade e liberdade. Entretanto, diferentemente do que aparece em Fichte, aqui o eu

não é ilimitado. Antes, o eu é finito, limitado. Pois ser um eu, ter um eu, é para o homem

algo que lhe é doado por Outro, por um Outro que é mais propriamente um Eu do que

o eu finito do homem, a saber, Deus, que é a subjetividade que põe o homem na

liberdade, que o “constringe infinitamente” com a concessão e com a exigência da

liberdade. Sim, porque ser um eu, ter um eu, é ao mesmo tempo, a mais alta concessão

feita ao homem, mas é, ao mesmo tempo, uma exigência que a eternidade pretende

dele. Por isso, existir é ter que ser, é reconhecer-se que não sou fundamento de meu

próprio ser; é reconhecer que minha egoidade é concedida como graça; é agradecer a

graça desta concessão, tornando-me o que sou. Na aprendizagem, porém, de ser o que

é, o homem é educado fundamentalmente pela angústia:

Em suas peregrinações de ser, não ser e vir a ser, o

indivíduo sente a cada passo de sua vida uma diferença

insuperável entre possibilidade e realização. É a estranheza

constitutiva e o desafio próprio da existência histórica dos

homens. Com ser inesgotável, a possibilidade tem sempre de

ser subreptícia. Sua vigência nunca é direta. Seu impacto é

sempre oblíquo por ser inesgotável. As possibilidades

acontecem nas realizações, na medida que se retiram para

as limitações da vida de cada um. Ora, dar-se enquanto se

retrai, tornar-se presente na ausência, manter-se vigente na

falta, eis o vigor angustiante da realidade na existência. A

força e o modo de ser de todo indivíduo se caracteriza pela

integração de identidade e diferença no movimento desta

231 K. apud Di Stefano: p. 72.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

125

angústia de ser e de não ser. Sendo histórico e biográfico, a

um só tempo, o indivíduo torna-se uma viagem entre

possibilidades inesgotáveis e realizações deficientes. Para

existir tem de irromper nas possibilidades de seus empenhos

e nesta irrupção instalam-se limites e restrições em tudo que

é e está sendo, em tudo que não é nem está sendo, em tudo

que está apenas vindo a ser. Em sua biografia, o existente

sente escoar-se pelos dedos as suas realizações sem poder

nem detê-las, nem dirigi-las, nem incorporá-las232.

Assim, o indivíduo se forma – vem a ser um eu, espírito – graças ao aguilhão da

angústia, que o põe na dinâmica da liberdade e da finitude. “A angústia é a força criadora

da existência, vigor livre de criação” 233. Entretanto, impulsionado pela angústia, o

indivíduo é constringido a assumir os limites de seu ser, de seu poder, de sua situação,

de sua facticidade.

Impulsionado pelo impacto dessa angústia, constrói

a existência em contato direto da sua liberdade com os

dados e as condições de seu tempo, de seu ambiente, de sua

família. As fases biográficas são percalços do choque oblíquo

e do contato direto com as variações provocadas pelo

impacto da angústia da liberdade. Para fazer a sua biografia,

o indivíduo sente-se feito pelos limites e restrições de sua

própria individualidade234.

De todas as limitações, a morte é a maior. Para Kierkegaard, propriamente

falando, somente o homem morre. A morte aparece como tal, em sua forma aguda,

quanto mais perfeita é a estrutura do vivente. Observa Kierkegaard que quando uma

planta morre ela exala um perfume, que é quase mais suave que o seu próprio aroma.

Entretanto, quando um animal morre, a sua putrefação empesta os ares. Mas, para ser

mais exato, o animal não morre. Ele finda, apenas. É que há propriamente morte ali

onde há angústia e só há angústia ali onde há espírito. Morrer como eu, como espírito,

232 Leão, E. Carneiro. Filosofia Contemporânea. Teresópolis-RJ: Daimon, 2013, p. 15-16. 233 Idem, p. 14. 234 Idem, p. 16.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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significa saber a morte. Saber a morte significa, aqui, porém, ter o sabor da angústia em

cada momento da vida. É um sabor que permeia nosso ser em todos os gostos de ser e

em todos os desgostos de não ser: “Na doçura e no prazer, na amargura e na dor, um

elã incontentável nos atropela o senso e domina tanto o que temos e não somos como

o que não temos, mas somos, como o que nem temos nem somos” 235. Assim, o saber-

se mortal acompanha-nos a existência, desde o nascimento até a morte. Já o nosso parto

é acompanhado pela angústia da morte. E, como dizia Guimarães Rosa, no seu conto

“As margens da alegria”, precisamos sempre de novo, nas frustrações da nossa

existência, “no grão nulo de um minuto”, receber em nós mesmos “um miligrama de

morte” 236. Se é verdade que o homem precisa morrer desde que nasceu, também é

verdade que o seu morrer é o arremate da obra perfeita da liberdade, o arremate de

sua finitude. Por isso, dizia Kierkeggard que o dia da morte é, na verdade, o dia em que

o homem de fato nasce, é o seu “dies natalis”. A morte é o ponto extremo da síntese do

espírito na finitude do corpo. Ela é, por outro lado, o maior testemunho do Incógnito na

existência do homem.

Por ser um ente um impulsionado pela angústia, um ser de liberdade,

possibilidade e finitude, o indivíduo humano está sempre de novo, em sua história,

posto diante da necessidade de escolher, ou seja, ele está sempre lançado diante de

bívio, na encruzilhada entre o estético e o ético, por exemplo, ou, mais ainda, na

encruzilhada entre desespero e fé. Isso implica a necessidade de o homem determinar

como é que ele vai escolher ser si-mesmo. A decisão, a escolha ética, não é a escolha

entre isto ou aquilo, mas a escolha do como o indivíduo vai se determinar a si mesmo, a

partir de sua liberdade. Em última instância ele tem de se determinar, se ele vai viver de

modo não decidido ou se vai viver de modo decidido, se ele vai viver esteticamente ou

eticamente. Por isso, o instante ético é carregado com a gravidade da responsabilidade,

pois traz consequências tanto na direção do passado quanto na direção do futuro. E não

se pode postergar a decisão, sob pena de que as potências ocultas da personalidade

235 Idem, p. 15. 236 A estória fala de um menino que foi passear no campo e que ficou encantado com um peru, mas ficou extremamente frustrado ao ver, depois, que tinham matado o peru: “Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele. O peru – seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte”.

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decidam por nós. Mas a necessidade de escolher e de escolher-se, que é uma

necessidade da liberdade, traz consigo o sofrimento:

É nestes termos que sem angústia não se dá

liberdade. Diz um provérbio germânico: wer hat die Wahl,

hat die Qual, “quem tem de escolher tem de sofrer.” Em

Kierkegaard, a formulação é existencial: quem passou pela

vida e não teve angústia, passou pela vida, mas não existiu.

É pela angústia que se produzem realizações privilegiadas,

realizações que parecem abolir as diferenças não somente

de espaço e tempo, como sobretudo entre ser e poder ser.

Por isso, é que dão acesso, embora indireto e oblíquo, ao

desafio subreptício de possibilidades em fuga. São as

criações. Em seu envio concentram-se instantes intensos de

uma temporalidade não apenas povoada de desempenhos,

mas provinda da angústia de possibilidades em retração. As

criações não são, portanto, exceções à regra da história

biográfica e social dos homens. Criação é o vigor inaugural

da própria vida, existindo nos indivíduos. Sentir a Criação

como exceção equivale a avaliar o grande pelo pequeno, é

reduzir o impulso de reforma e transformação à

mediocridade da repetição. Se “as retas não sonham como

as curvas”, é preciso vencer a repetição para não acordar as

curvas. A angústia de Jó traz consigo mais força criadora do

que o entusiasmo e o espanto de Platão e Aristóteles, ou a

dialética de Hegel e as descobertas da Ciência. Toda criação

é a ventura singular de um salto no escuro. Nenhum criador

sabe, no sentido de conhecer e controlar, tanto o porquê,

quanto o como de sua criação. Toda criação consiste numa

aventura singular da angústia de nossa liberdade. O instante

de invenção, oyeblikit, não apenas nunca se repete como

também nunca se aprende237.

237 Idem, p. 16s.

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2.1.2.2.2.3.4 KIERKEGAARD: O NOVO CONCEITO DE EXISTÊNCIA

Segundo a meditação que Heidegger realiza a respeito da história do ser, na

consumação da época metafísica da história do ser já começa a se dar o aceno para o

“kairós” de outro início (andere Anfang) do pensar. Sobretudo com Kierkegaard e

Nietzsche, é despertada a disposição para este outro início de modo existenciário,

embora a questão do ser em sua articulação existencial permaneça ignorada238. É o que

nos acena a nota introduzida por Heidegger no final do § 45 de Ser e Tempo, que

introduz a segunda seção da primeira parte, retomando o resultado da análise

preparatória dos fundamentos do Da-sein em vista da realização da tarefa de sua

interpretação existencial originária:

No séc. XIX, S. Kierkegaard concebeu,

explicitamente, o problema da existência como

existenciário, refletindo, a seu respeito com profundidade. A

problemática existencial, contudo, lhe é tão estranha que

ele, no que tange à perspectiva ontológica, encontra-se,

inteiramente, sob o domínio de Hegel e da filosofia antiga

vista por este último. É por isso que há mais para se

aprender, filosoficamente, com seus escritos “edificantes”

do que com os teóricos, à exceção do tratado sobre o

conceito de angústia” (Heidegger, 1989, p. 14).

Heidegger, aqui, distingue entre “existencial” (existenzial) e “existenciário”

(existenziell). Para Heidegger, existenciário “quer dizer isso: o homem, no seu ser

homem, é referido mediante modos de comportamento não somente ao real, mas,

enquanto existente, preocupa-se consigo mesmo, com estes referimentos e com o real”

(Heidegger, 1998b, p. 437). Para ele, este caráter existenciário emerge de modo

relevante no pensamento do século XIX, em Kierkegaard e em Nietzsche. No contexto

de estudos feitos por Heidegger acerca de Nietzsche na segunda metade dos anos 30 e

no início dos anos 40 aparecem alguns acenos sobre o pensamento de Schelling e, em

sua proximidade, sobre o pensamento existenciário de Kierkegaard. Assim, nos “Esboços

238 Cfr. a nota de Ser e Tempo referente a Kierkegaard:

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para a história do ser como metafísica”, de 1941, Heidegger apresenta Schelling como a

primeira consumação (Vollendung) da metafísica. Para ele, a obra “Investigações

Filosóficas sobre a essência da liberdade humana e os objetos com ela conexos”, de

1809, é o ápice da metafísica do idealismo alemão, que, por sua vez, é a consumação da

história do ser como metafísica. Em relação a Schelling, porém, o caminho de

pensamento de Kierkegaard não é tanto uma continuação, mas é uma ruptura e um

desvio, já que Kierkegaard, segundo Heidegger, não é nem teólogo nem metafísico, mas

é o essencial de ambos (Heidegger, 1998, p. 430). Na preleção sobre “A metafísica do

idealismo alemão”, que é do primeiro trimestre de 1941, Heidegger diz que Kierkegaard

é “mais teológico do que poderia ser um teólogo cristão e mais não-filosófico do que

poderia ser um metafísico” (1991, p. 19).

A existência, tomada no sentido de Schelling e, em última instância, da tradição

metafísica, como efetividade do real, é limitada por Kierkegaard ao homem, entendido

ainda como sujeito, ou seja, ao ente que é na contradição de temporalidade e

eternidade, ao homem que, na tensão desta contradição, quer ser si mesmo. O conceito

de existência em Kierkegaard mantém ainda o sentido metafísico de existência, como

realidade efetiva, só que é restringido ao modo de ser subjetivo do homem. Este

conceito restringido de existência, por sua vez, é pensado por Kierkegaard em

contraposição ao pensamento onto-teo-lógico de Hegel, que é chamado por

Kierkegaard de “pensar abstrato”. Com um tom de ironia, característica de seu pensar

socrático, assim diz Kierkegaard:

Existir, pensa-se, não é nada, menos ainda uma arte:

não existimos todos? Mas pensar abstratamente: eis aqui

algo! Mas existir em verdade e penetrar sua existência por

sua consciência, ao mesmo tempo quase eternamente,

muito além dela e, não obstante, presente nela e, não

obstante, no devir: é verdadeiramente difícil.

Esta citação traz uma contraposição: entre “pensar abstratamente” e “existir em

verdade”. Se perguntarmos o que significa “existir em verdade” a resposta nos é dada

pelo próprio texto: existir em verdade é “penetrar sua existência por sua consciência”.

Pelo “pensar abstratamente” Kierkegaard entende o pensar filosófico no modo da mais

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elevada configuração que este pensar tinha alcançado em sua época: na forma da

metafísica de Hegel. Aqui temos, por um lado, o existir no sentido de ser-real, ser-

efetivo, entretanto, no sentido mais agudo, apontando para o existir humano. Por outro

lado, a diferença entre “existir” e “pensar abstratamente” quer dizer: pensar e agir como

indivíduo humano que efetivamente existe e, enquanto pensador, pensar o absoluto.

Pensar e agir como indivíduo humano é algo que, à primeira vista, parece fácil, algo que

se dá por si mesmo, afinal, nós todos somos, enquanto “sujeitos”, determinados pela

subjetividade, ou seja, nós todos nos comportamos e nos reportamos de modo

consciente para com as coisas e de modo autoconsciente para conosco mesmos. E esta

subjetividade é, justamente, a existência, que cada um de nós, tem. Entretanto, “pensar

abstratamente”: isso parece uma arte e algo difícil de se fazer. Entretanto, o que é

“pensar abstratamente” para Kierkegaard? Significa abstrair, prescindir, do indivíduo, o

singular que a cada vez se apresenta num aqui e agora; significa extrair com o pensar

apenas o universal, sem nem mesmo tentar pensar em sua conjunção o singular e o

universal. Por detrás deste desprezo pelo indivíduo, pelo singular, está um platonismo:

o indivíduo aqui e agora é o temporal, o universal é o permanente, eterno. Assim, pensar

abstratamente significa esquecer o temporal, perder-se no eterno. A “abstração” explica

tudo, mas deixa de fora o existir, o indivíduo em sua singularidade, aqui e agora, e a cada

vez, aquilo que Aristóteles chamou de “substância primeira” (prote ousia).

Hegel, na verdade, se propunha a pensar concretamente. Mas, o que é “pensar

abstrato” e “pensar concreto” de Hegel? Pensar abstratamente é, para ele, pensar

unilateralmente. Alguém pensa abstratamente também quando considera como real

apenas um aspecto ou uma dimensão da realidade. Pensar concretamente, no sentido

de Hegel, só pensa quem pensa todos os lados essenciais, em que se pode pensar, a

partir da unidade da mútua pertença deles e de sua concreção239. Entretanto,

Kierkegaard afirma que Hegel pensa “abstratamente”, ou seja, unilateralmente. Para

Kierkegaard, pensar abstratamente significa pensar pondo de lado o existir fático, real,

do homem individual, seu interesse pela realidade, isto é, pelo existir, em sua

composição de finito e infinito.

239 Neste caso, a palavra concreção vem de com + crescer (em latim: concresco > concrescere > concretum): con-crescimento.

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O contrário do “pensar abstratamente” é, para Kierkegaard, “existir”, ou melhor,

“existir em verdade”. Mas, o que significa, aqui, “existir em verdade”? A resposta é:

“penetrar sua existência por sua consciência”. Com outras palavras: ser interessado

infinitamente no existir, na realização do próprio ser-si-mesmo; ter interesse em existir

a partir da mais profunda raiz da existência, em existir a partir de uma tomada de

consciência da própria responsabilidade de ser; conduzir uma vida humana plena; existir

eticamente e, acima de tudo, religiosamente, a partir do próprio con-crescimento com

o divino. A autoconsciência deve estar enraizada na existência do homem individual. O

saber da autoconsciência deve ser assumido de modo vivo no existir mesmo do homem

individual, de modo que este saber penetre o chão da existência mesma. Este penetrar

na própria existência pela consciência, entretanto, “ao mesmo tempo” quer, por assim

dizer, “como que eternamente”, penetrar “muito além dela”. Isto quer dizer: quer,

transcendendo a temporalidade, penetrar no eterno, quer chegar e permanecer de pé

diante de Deus.

Entretanto, esta penetração para além da existência, no eterno, não se há que

realizar de modo especulativo, apenas com a fantasia ou com o pensamento, de modo

a pôr de lado a existência temporal, perdendo-se e sendo absorvido no Absoluto.

Kierkegaard fala, por isso, de “permanecer na existência”, mantendo-se firme na tensão

da infinita diferença entre tempo e eternidade. Existir em verdade é, pois, penetrar na

existência, de tal modo a ir para além dela, projetar-se no eterno, permanecendo, no

entanto, na própria existência temporal, permanecendo, no entanto, “no devir”, ou seja,

no agir temporal, ir ao encontro do eterno. A síntese de eternidade e tempo, de infinito

e finito, deve se dar no devir. Como caracterizar este devir? Kierkegaard interpreta este

devir a partir do cristianismo. Podemos caracterizá-lo em dois momentos: tornar-se o

que se é, como sujeito; e tornar-se cristão. Para Kierkegaard, em última instância, existir

é crer, ou seja, dar-se ao real, deixar que o real nos importe, pôr-se diante do real em

sentido absoluto, tornar-se manifesto diante de Deus, ater-se ao fato de que Deus se fez

homem. Enfim: fé como ser cristão, ou melhor, tornar-se cristão. A contraposição entre

Kierkegaard e Hegel é, mais exatamente, a oposição entre o cristão crente e a metafísica

absoluta do idealismo alemão, o qual pretendera ter superado a verdade do cristianismo

na verdade do saber absoluto. Kierkegaard, enfim, foi um pensador subjetivo do século

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XIX, em quem o pensamento se torna potente, como a confrontação de um escritor

religioso com as tendências filosóficas de seu tempo, especialmente com a filosofia do

idealismo alemão, mais exatamente, com a filosofia de Hegel. Dele Heidegger disse: “Ele

se torna alguém, em relação ao qual não se pode passar ao largo, quer a gente seja um

defensor ou um opositor ou também apenas um indiferente para com ele” (1991, p. 26).

Isso se deve à singularidade de Kierkegaard que não pode ser simplesmente enquadrado

na história da filosofia nem na história da teologia. É que ele “em um sentido enfático –

segundo a atitude e o modo de pensamento – é incomparável; ele deve permanecer de

pé em si; nem a teologia nem a filosofia pode incorporá-lo em sua história” (Heidegger,

1991, p. 19).