fichamento de memória coletiva

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A Memória Coletiva de Halbwachs.

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A memria coletiva

HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Trad. Beatriz Sidou. So Paulo: Centauro, 2003.

Captulo IMemria individual e memria coletiva

p. 29 Recorremos a testemunhos para reforar ou enfraquecer e tambm para completar o que sabemos de um evento sobre o qual j temos alguma informao, embora muitas circunstncias a ele relativas permaneam obscuras para ns. O primeiro testemunho a que podemos recorrer ser sempre o nosso.p. 29 Assim, quando voltamos a uma cidade em que j havamos estado, o que percebemos nos ajuda a reconstituir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. Se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referncias de nossas lembranas antigas, inversamente essas lembranas se adaptam ao conjunto de nossas percepes do presente.

p. 30 Nossas lembranas permanecem coletivas e nos so lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente ns estivemos envolvidos e objetos que somente ns vimos. Isto acontece porque jamais estamos ss. No preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de ns, porque sempre levamos conosco e em ns certa quantidade de pessoas que no se confundem.p. 31 Para confirmar ou recordar uma lembrana, no so necessrios testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivduos presentes sob uma forma material e sensvel.Alis, eles no seriam suficientes. Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranas conseguem descrever com muita exatido fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem at reconstituir toda a sequncia de nossos atos e nossas palavras em circunstncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso.

p. 32 Inversamente, pode acontecer que os testemunhos de outros sejam os nicos exatos, que eles corrijam e rearranjem a nossa lembrana e ao mesmo tempo se incorporem a ela. Em um e outro caso, quando as imagens se fundem muito estreitamente com as lembranas e parecem tomar sua substncia emprestada a estas, porque a nossa memria no estava como um tabula rasa, e ns nos sentamos capazes de nelas distinguir, por nossas prprias foras, como num espelho turvo, alguns traos e alguns contornos (talvez ilusrios) que a imagem do passado nos trazia.

p. 39 Para que a nossa memria se aproveite da memria dos outros, no basta que estes apresentem seus testemunhos: tambm preciso que ela tenha deixado de concordar com as memrias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrana que nos fazem recordar venha a ser reconstruda sobre uma base comum. No basta reconstituir pedao a pedao a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrana. preciso que esta reconstituio funcione a partir de dados ou de noes comuns que estejam em nosso esprito e tambm no dos outros, porque elas esto sempre passando destes para aquele e vice-versa, o que ser possvel somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma lembrana seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruda.p. 41 Talvez seja possvel admitir que um nmero enorme de lembranas reaparea porque os outros nos fazem record-las; tambm se h de convir que, mesmo no estando esses outros materialmente presentes, se pode falar de memria coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida de nosso grupo e que vamos, que vemos ainda agora no momento em que o recordamos, do ponto de vista desse grupo.p. 42 No h lembranas que reaparecem sem que de alguma forma seja possvel relacion-las a um grupo, porque o acontecimento que elas reproduzem foi percebido por ns num momento em que estvamos sozinhos (no em aparncia, mas realmente ss), cuja imagem no esteja no pensamento de nenhum conjunto de indivduos, algo que recordaremos (espontaneamente, por ns) nos situando em um ponto de vista que somente pode ser o nosso? Ainda que fatos desse tipo sejam muito raros, at mesmo excepcionais, bastaria que pudssemos confirmar alguns deles para estabelecer o fato de que a memria coletiva no explica todas as nossas lembranas e talvez no explique por si a evocao de qualquer lembrana. Afinal de contas, nada prova que todas as idias e imagens tiradas dos meios sociais de que fazemos parte e que intervm na memria no recubram uma lembrana individual como um painel, mesmo no caso em que no o percebemos.p. 52 s vezes essas relaes ou esses contatos so permanentes ou, em todo caso, se repetem com muita frequncia, prosseguem durante muito tempo. Por exemplo, quando uma famlia vive por muito tempo em uma mesma cidade ou na proximidade dos mesmos amigos, cidade e famlia, amigos e famlia so como sociedades complexas. Surgem ento lembranas compreendidas em dois contextos de pensamentos, comuns aos membros dos dois grupos. Para reconhecer uma lembrana desse tipo, preciso fazer parte ao mesmo tempo de um e de outro, uma condio que durante algum tempo preenchida por uma parte dos habitantes da cidade, por uma parte dos membros da famlia. Contudo, preenchida desigualmente nos diversos momentos, segundo o interesse deste diz respeito cidade ou sua famlia.p. 53 Nem sempre encontramos as lembranas que procuramos, porque temos de esperar que as circunstncias, sobre as quais nossa vontade no tem muita influncia, as despertem e as representem para ns. Nada mais surpreendente em relao a isso do que o reconhecimento de uma figura ou de um lugar, quando estes voltam a se encontrar no campo de nossa percepo.p. 53 Em outras palavras, a condio necessria para voltarmos a pensar em algo aparentemente uma sequncia de percepes pelas quais s poderemos passar de novo refazendo o mesmo caminho, de modo a estar outra vez diante das mesmas casas, do mesmo rochedo etc.p. 53 Contudo, quando essa lembrana reaparece, no consequncia de um conjunto de reflexes, mas de uma aproximao de percepes determinada pela ordem em que se apresentam determinados objetos sensveis, ordem essa resultante de sua posio no espao. Diferente de reflexes ou de idias, as percepes enquanto percepes limitam-se a reproduzir os objetos exteriores, no contm nada mais do que esses objetos e no podem nos conduzir (p. 54) alm deles. Da a convico (temos de admitir) de que elas serviram unicamente para nos deixar determinada disposio fsica e sensvel, favorvel ao reaparecimento da lembrana.p. 66 Essas lembranas que nos parecem puramente pessoais e tais que s ns as conhecemos e somos capazes de reencontr-las, se distinguem das outras pela maior complexidade das condies necessrias para que sejam recordadas em todo caso, esta apenas uma diferena de grau.p. 66 Assim, os fatos e idias que mais facilmente recordamos so do terreno comum, pelo menos para (p. 67) um ou alguns ambientes. Essas lembranas existem para todo o mundo nesta medida e porque podemos nos apoiar na memria dos outros que somos capazes de record-las a qualquer momento e quando o desejamos. Das segundas, das que no conseguimos recordar vontade, de bom grado diremos que no pertencem aos outros, mas a ns, porque somente ns podemos reconhec-las. Por mais estranho e paradoxal que isto possa parecer, as lembranas que nos so mais difceis de evocar so as que dizem respeito somente a ns, constituem nosso bem mais exclusivo, como se s pudessem escapar aos outros na condio de escaparem tambm a ns.p. 67 Na verdade, entre as lembranas que evocamos facilmente e as que parecemos ter perdido, encontraramos todos os graus. As condies necessrias para que umas e outras reapaream no diferem seno pelo grau de complexidade. Estas esto sempre a nosso alcance porque se conservam em grupos nos quais temos liberdade de entrar quando quisermos, nos pensamentos coletivos com os quais estamos sempre em estreito relacionamento, ainda que todos os seus elementos, todas as ligaes entre esses elementos e as passagens mais diretas de uns aos outros nos sejam familiares. Aqueles nos so menos e mais raramente acessveis, porque os grupos que os trariam para ns esto mais distantes, s estamos em contato com eles de modo intermitente.p. 69 Contudo, se a memria coletiva tira sua fora e sua durao por ter como base um conjunto de pessoas, so os indivduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranas comuns, umas apoiadas nas outras, no so as mesmas que aparecero com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diramos que cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relaes que mantenho com outros ambientes.p. 69 A sucesso de lembranas, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanas que produzem em nossas relaes com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformaes desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto.

Captulo IIMemria coletiva e memria histrica

p. 72 Por outro lado, a memria coletiva contm as memrias individuais, mas no se confunde com elas evolui segundo suas leis e, se s vezes determinadas lembranas individuais tambm a invadem, estas mudam de aparncia a partir do momento em que so substitudas em um conjunto que no mais uma conscincia pessoal.p. 72 Examinemos agora a memria individual. Ela no est inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu prprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer s lembranas de outras, e se transporta a pontos de referncia que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memria individual no possvel sem esses instrumentos que so as palavras e as idias, que o individuo no inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. No menos verdade que no conseguimos lembrar seno do que vimos, fizemos, sentimos, pensamos num momento do tempo, ou seja, nossa memria no se confunde com a dos outros. Ela est muito estreitamente limitada no espao e no tempo. A memria coletiva tambm assim, mas esses limites no so os mesmos, podem ser mais estreitos e tambm muito mais distanciados.p. 73 Haveria portanto motivos para distinguir duas memrias, que chamaramos, por exemplo, uma interior ou interna, a outra exterior ou ento uma memria pessoal e a outra, memria social. Mais exatamente ainda (e do ponto de vista que terminamos de indicar), diramos memria autobiogrfica e memria histrica. A primeira receberia ajuda da segunda, j que afinal de contas a histria de nossa vida faz parte da histria em geral. A segunda, naturalmente, seria bem mais extensa do que a primeira. Por outro lado, ela s representaria para ns o passado sob uma forma resumida e esquemtica, ao passo que a memria da nossa vida nos apresentaria dele um panorama bem mais contnuo e mais denso.p. 81 Podemos verdadeiramente distinguir, por um lado uma memria sem contextos, ou que s disporia da linguagem e algumas idias tiradas da vida prtica para classificar suas lembranas e, por outro lado, um panorama histrico ou coletivo, sem memria, ou seja, que absolutamente no seria construdo, reconstrudo e conservado nas memrias individuais. No acreditamos nisso. Depois que ultrapassa a etapa da vida puramente sensitiva, a partir do momento em que se interessa pelo significado das imagens e dos quadros que v, pode-se dizer que a criana pensa em comum com as outras pessoas, e que seu pensamento se divide entre o fluxo de impresses inteiramente pessoais e as diversas correntes do pensamento coletivo. A criana j no est encerrada em si mesma, pois seu pensamento agora domina perspectivas inteiramente novas, e onde ela sabe muito bem que no est s a passear seus olhares; entretanto, ela no saiu de si e, para se abrir a essas sries de pensamentos que so comuns aos membros de seu grupo, no obrigada a esvaziar seu esprito, porque em algum aspecto e sob alguma relao, essas novas preocupaes voltadas para fora sempre interessam o que chamamos aqui de homem interior, ou seja: elas no so inteiramente estranhas nossa vida pessoal.p. 83 Essas ocasies em que, depois de alguma comoo do meio social, a criana v bruscamente se entreabrir o crculo estreito que a encerrava, essas revelaes, por sditas escapadas, de uma vida poltica, nacional, ao nvel da qual ela no se eleva normalmente, so bastante raras. Quando se envolver nas conversar srias dos adultos, quando comear a ler os jornais, ter a sensao de descobrir uma terra desconhecida. No entanto, no ser a primeira vez que ela entra em contato com um meio mais amplo do que sua famlia ou o grupinho de seus amigos e dos amigos de seus pais. A gente grande, os pais, tm seus interesses, as crianas tm outros e h muitas razes para que o limite que separa essas duas zonas no seja transposto. A criana tambm tem um relacionamento com uma categoria de adultos a que a simplicidade habitual de suas concepes aproxima. Esses adultos so, por exemplo, os empregados domsticos. Com eles a criana se entretm espontaneamente e compensa a reserva e o silncio a que a condenam seus pais em relao a tudo o que no para sua idade. Os empregados domsticos s vezes falam com muita liberdade diante de uma criana ou com ela, e as compreendem, porque eles s vezes se expressam como (p. 84) crianas grandes. p. 90 Assim, como acabamos de demonstrar, a vida da criana mergulha mais do que se imagina nos meios sociais pelos quais ela entra em contato com um passado mais ou menos distanciado, que como o contexto em que so guardadas suas lembranas mais pessoais. neste passado vivido, bem mais do que no passado apreendido pela histria escrita, em que se apoiar mais tarde a sua memria. Se antes ela no fazia distino entre esse contexto e os estados de conscincia que nele ocorriam, verdade que, pouco a pouco, a separao entre seu pequeno mundo interno e a sociedade que o circunda acontecer em seu esprito. Entretanto, do momento em que essas duas espcies de elementos inicialmente estiverem estreitamente fundidas, que tero parecido fazer parte de seu eu de criana, no se pode dizer que, mais tarde, todos os que correspondem ao meio social se apresentaro a ela como um contexto abstrato e artificial.p. 91 Ao crescer, especialmente quando se torna adulta, a criana participa de modo mais distinto e mais refletido com relao vida e ao pensamento desses grupos de que fazia parte, no incio quase sem perceber. Como isso no modificaria a idia que ela tem de seu passado? Como as novas noes que ela adquire, noes sobre fatos, reflexes e idias, no reagiriam sobre suas lembranas? J repetimos muitas vezes: em medida muito grande, a lembrana uma reconstruo do passado com a ajuda de dados tomados de emprstimo ao presente e preparados por outras reconstrues feitas em pocas anteriores e de onde a imagem de outrora j saiu bastante alterada. Claro, se pela memria somos remetidos ao contato direto com alguma de nossas antigas impresses, por definio a lembrana se distinguiria dessas idias mais ou menos precisas que a nossa reflexo, auxiliada por narrativas, testemunhos e confidncias dos outros, nos permite fazer de como teria sido o nosso passado. No obstante, ainda que seja possvel evocar de maneira to direta algumas lembranas, impossvel distinguir os casos em que assim procedemos e aqueles que imaginamos o que teria acontecido. Assim, podemos chamar de lembranas muitas representaes que, pelo menos parcialmente, se baseiam em testemunhos e dedues mas ento, a parte do social, digamos, do histrico na memria que temos de nosso prprio passado, bem maior do que podemos imaginar. Isso, porque desde a infncia, no contato com os adultos, adquirimos muitos meios de encontrar e reconhecer muitas lembranas que, sem isso, teramos esquecido rapidamente, em sua totalidade ou em parte.p. 97 De onde se conclui que, quando o acaso nos pe novamente na presena do que participaram dos mesmos acontecimentos, neles atuaram ou a eles testemunharam ao mesmo tempo que ns, quando algum nos conta ou descobrimos de outra maneira o que ento acontecia a nossa volta, estaramos (p. 98) preenchendo essas lacunas aparentes? Na realidade, o que tomamos por espao vazio era apenas uma zona um tanto indecisa, da qual nosso pensamento desviava porque a encontrava muito poucos vestgios. No presente, se nos indicarem com preciso o caminho que seguimos, esses vestgios se destacam, ns os ligamos uns aos outros, eles se aprofundam e se renem por si mesmos. Eles existiam, mas estavam mais acentuados na memria dos outros do que em ns. p. 98 Para que a memria dos outros venha assim reforar e completar a nossa, como dizamos, preciso que as lembranas desses grupos no deixem de ter alguma relao com os acontecimentos que constituem meu passado. Cada um de ns pertence ao mesmo tempo a muitos grupos, mais ou menos amplos. Ora, se fixamos nossa ateno nos grupos maiores, como a nao por exemplo, embora a (p. 99) nossa vida e a de nossos pais ou nossos amigos estejam contidas na vida da nao, no se pode dizer que esta se interesse pelos destinos individuais de cada um de seus membros.p. 101 A necessidade de escrever a histria de um perodo, de uma sociedade e at mesmo de uma pessoa s desperta quando elas j esto bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrana. Quando a memria de uma sequncia de acontecimentos no tem mais suporte por grupo, o prprio evento que nele esteve envolvido ou que dele teve consequncias, que a ele assistiu ou dele recebeu uma descrio ao vivo de atores e espectadores de primeira mo quando ela se dispersa por alguns espritos individuais, perdidos em novas sociedades que no se interessam mais por esses fatos que lhe so decididamente exteriores, ento o nico meio de preservar essas lembranas fixa-los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem. COLASANTIp. 106 No podemos reunir em um nico painel a totalidade dos eventos passados, a no ser tirando-o da memria dos grupos que guardavam sua lembrana, cortar as amarras pelas quais eles participavam da vida psicolgica (p. 107) dos ambientes sociais em que ocorreram, deles no reter somente o esquema cronolgico e espacial. No se trata mais de reviv-los em sua realidade, mas de recoloc-los nos contextos em que a histria dispe os acontecimentos, contextos esse que permanecem exteriores aos grupos, e defini-los cotejando uns com os outros. dizer que a histria se interessa principalmente pelas diferenas, e abstrai as semelhanas sem as quais, contudo, no haveria nenhuma memria, pois ns s nos lembramos de fatos que tm por trao comum pertencer a uma mesma conscincia, o que lhe permite ligar uns aos outros, como variaes sobre um ou alguns temas. Somente assim ela consegue nos proporcionar uma viso abreviada do passado, juntando em um instante, simbolizando em algumas mudanas bruscas, em alguns avanos dos povos e dos indivduos, lentas evolues coletivas. assim que ela nos apresenta sua imagem nica e total.p. 108 Consideremos agora o contedo dessas memrias coletivas mltiplas. No diremos que, diferente da histria, ou melhor, da memria histrica, a memria coletiva retm apenas semelhanas. Para que se possa falar de memria, preciso que as partes do perodo sobre o qual ela se estende sejam diferenciados em certa medida. Cada um dos grupos tem uma histria. Neles distinguimos personagens e acontecimentos mas o que chama a nossa ateno que, na memria, as semelhanas passam para o primeiro plano. No momento em que examina seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e toma conscincia de sua identidade atravs do tempo. A histria, como j dissemos, deixa passar esses intervalos em que aparentemente nada acontece, em que a vida se limita a se repetir, sob formas um tanto diferentes, mas sem alterao essencial, sem ruptura nem perturbao. Mas o grupo que vive no primeiro instante e, sobretudo, para si mesmo, visa perpetuar os sentimentos e imagens que formam a substncia do seu pensamento. o tempo decorrido, durante o qual nada o modificou profundamente, que ocupa o maior espao em sua memria. Os eventos que ocorreram na famlia e os diversos caminhos e descaminhos de seus membros, sobre os quais insistiramos se fssemos escrever a histria dessa famlia, para ela retirar todo o sentido daquilo que permite ao grupo de parentes mostrar que ele tem realmente uma caracterstica prpria, distinta de todos os outros, e praticamente no muda.Comment by dantas: Essa citao cabe muito bem para as crnicas de Marina Colasanti, fala da memria coletiva e famlia.p. 109 A memria coletiva, ao contrrio, o grupo visto de dentro e durante um perodo que no ultrapassa a durao da mdia da vida humana, que de modo geral, lhe bem inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesma que certamente se desenrola no tempo, j que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele sempre se reconhea nessas imagens sucessivas. A memria coletiva um painel de semelhanas, natural que se convena de que o grupo permanea, que tenha permanecido o mesmo, porque ele fixa sua ateno sobre o grupo e o que mudou foram as relaes ou contatos do grupo com os outros. Como o grupo sempre o mesmo, as mudanas devem ser aparentes: as mudanas, ou seja, os acontecimentos que ocorreram no grupo, se resolvem em semelhanas, pois parecem ter como papel desenvolver sob diversos aspectos um contedo idntico, os diversos traos essenciais do prprio grupo. Captulo IIIA memria coletiva e o tempo

p. 119 A condio da memria, ou melhor, da forma da memria tal, que s verdadeiramente atuante e psquica e no se confunde com o mecanismo do hbito. A memria (entendida neste sentido) no tem poder sobre os estados passados e no os devolve a ns em sua realidade de outrora, porque no os confunde entre si nem com outros mais antigos ou mais recentes, ou seja: ela se baseia nas diferenas. Estados distintos e claramente separados sem dvida por isso mesmo so diferentes. No entanto, desligados da sequncia dos outros, retirados da corrente em que eram arrastados (e seria esta a sua sorte se considerssemos cada um deles uma realidade distinta, de contornos bem marcados no tempo), como permaneceriam (p. 120) inteiramente diferentes de qualquer outro estado igualmente tomado parte e delimitado? Qualquer separao desse gnero significa que se comea a projetar esses estados no espao. Entretanto, objetos no espao, por diferentes que sejam, comportam muitas semelhanas. Os lugares que ocupam so distintos, mas encerrados em um meio homogneo. As diferenas que sobressaem entre eles so determinadas em relao a tantos gneros comuns dos quais uns e outros participam. Ao contrrio, a corrente na qual os pensamentos so arrastados para dentro de cada conscincia no um meio homogneo, pois aqui a forma no se distingue da matria e o continente se mistura ao contedo.p. 133 A memria coletiva retrocede no passado at certo limite, mais ou menos longnquo conforme pertena a esse ou aquele grupo. Alm disso, ela j no atinge diretamente os acontecimentos e as pessoas. Ora, precisamente o que est alm desse limite que prende a ateno da histria.p. 146 Quando dizemos que um indivduo recorre memria do grupo, devemos entender que esta ajuda no implica na presena real de um ou mais de seus membros. De fato, continuo a sofrer a influncia de uma sociedade mesmo que dela tenha me afastado basta que eu carregue comigo em meu esprito tudo o que me permite estar altura de me postar no ponto de vista de seus membros, de me envolver em seu ambiente e em seu prprio tempo, e me sentir no corao do grupo.

Captulo IVMemria coletiva e o espao

p. 157 Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos mveis e a maneira como so arrumados, todo o arranjo das peas em que vivemos, nos lembram nossa famlia e os amigos que vemos com frequncia nesse contexto.p. 159 Quando inserido numa parte do espao, um grupo molda sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. O grupo se fecha no contexto que construiu. A imagem do meio exterior e das relaes estveis que mantm com este passa ao primeiro plano da idia que tem de si mesmo.p. 160 Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que s inteligvel para os membros do grupo, porque todas as partes do espao que ele ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida e da sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estvel.p. 161 No momento em que estamos sob o golpe de uma abalo desse tipo, quando samos, quando percorremos as ruas nos espantamos porque a vida a nosso redor continua como se nada houvesse acontecido, rostos alegres aparecem nas janelas, as pessoas paradas numa esquina trocam comentrios, os compradores e os negociantes no limiar da porta das lojas, enquanto ns, nossa famlia e nossos amigos sentimos passar um vento de catstrofe. porque ns e os que nos so mais chegados representamos algumas unidades nessa multido. Certamente, cada um dos que eu encontrava, tomado parte, situado em sua famlia e no grupinho de seus amigos, simpatizaria (p.162) comigo se lhes expusesse minha tristeza ou minhas preocupaes.Comment by dantas: A crnica dos vestido, que na verdade era uma camisola e Marina valsa com ele.