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FICHA TÉCNICA Título original: Circling the Sun Autora: Paula McLain Copyright © Paula McLain, 2015 Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015 Tradução: Maria João Freire de Andrade Revisão: Diogo Maria Pessoa/Editorial Presença Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Imagens da capa © Shuerstock Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n. o 409 332/16 1. a edição, Lisboa, junho, 2016 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para Portugal, Angola e Moçambique à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.jacaranda.pt facebook.com/jacarandaeditora Esta é uma obra de ficção histórica, que utiliza figuras históricas e públicas bem conhecidas. Todos os incidentes e diálogos são produto da imaginação da autora e não devem ser vistos como reais. Onde aparecem figuras reais, históricas ou públicas, as situações, os incidentes e os diálogos referentes a essas pessoas são totalmente ficcionados e não têm a intenção de alterar a natureza inteiramente ficcional da obra. Em todos os outros aspetos, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é pura coincidência.

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F ICHA TÉCNICA

Título original: Circling the SunAutora: Paula McLain

Copyright © Paula McLain, 2015

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015

Tradução: Maria João Freire de AndradeRevisão: Diogo Maria Pessoa/Editorial PresençaCapa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial PresençaImagens da capa © Shutterstock

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n.o 409 332/16

1.a edição, Lisboa, junho, 2016

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados todos os direitos para Portugal, Angola e Moçambique àBrilho das LetrasUma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730‑132 [email protected]/jacarandaeditora

Esta é uma obra de ficção histórica, que utiliza figuras históricas e públicas bem conhe‑

cidas. Todos os incidentes e diálogos são produto da imaginação da autora e não devem

ser vistos como reais. Onde aparecem figuras reais, históricas ou públicas, as situações,

os incidentes e os diálogos referentes a essas pessoas são totalmente ficcionados e não

têm a intenção de alterar a natureza inteiramente ficcional da obra. Em todos os outros

aspetos, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é pura coincidência.

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Prólogo

4 de setembro de 1936Abingdon, Inglaterra

O Vega Gull é azul ‑pavão com asas prateadas, mais esplêndido do que qualquer pássaro que eu já tenha visto e de algum

modo meu para o pilotar. Chama ‑se The Messenger, e foi proje‑tado e construído com grande perícia e cuidado para fazer aquilo que devia ser impossível — atravessar um oceano num único voo corajoso, trinta e seis mil milhas aéreas sobre ondas negras e vazio —, levando ‑me com ele.

Embarco ao entardecer. Há dias que as tempestades se abatem sobre o aeródromo, e a pouca luz que se vê agora é insuficiente e fraca. A chuva tamborila nas asas do Gull, o vento sopra em raja‑das laterais, e no entanto disseram ‑me que é o melhor tempo que vou conseguir durante todo o mês. Estou menos preocupada com o vento do que com o peso. O Gull foi desenhado com um trem de aterragem especial, para transportar combustível e óleo adicionais. Soldaram ‑se tanques debaixo das asas e à cabine, onde formam um muro apertado à volta do meu assento com válvulas de descarga, às quais consigo chegar com dois dedos para abrir os tanques a meio do voo. Disseram ‑me que devo deixar um completamente vazio e depois fechá ‑lo antes de abrir o outro, para evitar uma bolsa de ar. O motor é capaz de gelar durante alguns minutos, mas voltará a pegar. Terei de contar com isso. Também terei de contar com muitas outras coisas.

Sobre o alcatrão, estendem ‑se poças do tamanho de pequenos lagos, as suas superfícies pinceladas de branco. Há ventos contrários

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ferozes, incansáveis, e nuvens baixas e agoirentas. Al guns jornalis‑tas e amigos reuniram ‑se para a minha partida, mas o ambiente é indiscutivelmente sombrio. Todos aqueles que conhecem a verda‑deira natureza do que estou prestes a fazer tentam convencer ‑me a não tentar. Não hoje. Não este ano. O recorde ainda estará à espera quando o tempo se tornar mais favorável — mas cheguei demasiado longe para desistir agora. Guardo o meu pequeno cesto de comida, enfio o frasco de brande no bolso da anca do meu fato de voo e comprimo ‑me dentro do cockpit, estreito como um cubículo. Tenho um relógio que me emprestou o Jim Mollison, o único piloto que alguma vez tentou este feito específico e sobreviveu. Tenho um mapa que mostra a minha rota sobre o Atlântico, de Abingdon a Nova Iorque, cada centímetro de água gelada que sobrevoarei, mas não o vazio, a solidão ou o medo que poderei encontrar. No entanto, essas coisas são tão reais quanto quaisquer outras, e terei de voar através delas. Diretamente através dos mergulhos e bolsas de ar nauseantes, porque não se pode traçar um rumo que contorne tudo aquilo que receamos. Não podemos fugir de nenhuma parte de nós mesmos, e ainda bem que não o podemos fazer. Houve alturas em que pensei que são apenas os nossos desafios que nos estimu‑lam e nos alteram — uma pista de descolagem com um quilómetro e meio de comprimento, e mais de oitocentos e sessenta quilos de combustível. Esquadrões negros de nuvens amontoam ‑se em todos os cantos do céu e a luz desvanece ‑se, instante a instante. É ‑me impossível fazer isto e permanecer a mesma.

Firmo a minha posição e inclino ‑me com força contra a ala‑vanca de comando, passando ruidosamente pelos curiosos com as suas máquinas fotográficas e depois por uma série de marca‑dores, em direção à única bandeira vermelha, que representa o ponto sem retorno. Tenho um quilómetro e meio de pista, nem mais um centímetro. E claro: ele pode não conseguir descolar. Depois de todo o planeamento, cuidado, trabalho e coragem reu‑nida, há uma enorme possibilidade de o Gull permanecer agar‑rado à terra, mais elefante do que borboleta, e então terei falhado ainda antes de começar. Mas não antes de dar a este momento tudo o que tenho.

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Após meio quilómetro de pista, a cauda levanta ‑se pesada‑mente. Forço o Gull a ir mais depressa, sentindo a resistência da gravidade, o peso inconcebível do avião, pressentindo mais do que vendo a bandeira vermelha a aproximar ‑se. Depois os lemes, o de direção e o de profundidade, ganham vida, fazendo o nariz erguer ‑se oscilante, e eu levanto voo — direita como uma flecha. No final de contas, uma borboleta. Subimos para a chuva e para o céu que escurece, passando sobre uma Swindon aos quadra dos  verdes e cinzentos. À minha frente encontra ‑se o mar da Irlanda, toda aquela água escura, muito escura, pronta para apertar e parar o meu coração. São as luzes tremeluzentes e desfocadas de Cork. O  volume negro e pesado de Labrador. O soluçar constante do motor a executar o trabalho para o qual foi construído.

Com o meu nariz a balançar, conduzo arduamente por entre os salpi cos molhados, impelindo ‑me para a subida e o estreme‑cimento do clima premente. Os instintos para voar encontram‑‑se nas minhas mãos, e também o trabalho prático para o fazer; depois há aquela coisa mais misteriosa e essencial: o facto de estar destinada a fazer isto e de sempre o ter estado, destinada a bordar o meu nome no céu com esta hélice, estas asas de linho lacrado, trinta e seis horas na escuridão.

Foi há dois anos que o desafio surgiu pela primeira vez, no bar ruidoso e apainelado a cedro do White Rhino, em Nyeri. No meu prato havia turnedós de bife polvilhados com pimenta, espargos escaldados, cada um da grossura do meu dedo mindinho, e um clarete escuro em todos os nossos copos. Depois o desafio foi‑me lançado pelo JC Carberry, como se fosse um prato final. «Ainda ninguém sobrevoou o Atlântico sozinho a partir deste lado, da Inglaterra à América, nem homem nem mulher. O que é que me dizes, Beryl?»

Dois anos antes, o Mollison fracassara num voo semelhante, e ainda ninguém tinha feito muito mais além de imaginar que se poderia conseguir tal façanha; mas o JC tinha mais dinheiro do que aquele que poderia alguma vez gastar e a fagulha de um

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Magalhães ou de um Peary. E ali estava: o oceano interminável, milhares de milhas de ar gelado e virginal, uma fronteira nítida e nenhum avião. «Queres arriscar?»

Os olhos do JC eram como ágatas. Vi ‑os brilhar e pensei que a Maia, a sua bela mulher, deveria estar ali, vestida de cetim branco e com o seu cabelo perfeitamente ondulado; mas ela morrera havia anos numa simples aula de voo perto de Nairobi, num dia sem vento ou tempo inclemente. Ela fora a primeira tragédia aérea que nos atingira de perto, mas não a última. Muitos outros fan‑tasmas queridos observavam a partir do passado, como piscadelas de luz a brincar ao longo das bordas dos nossos copos de vinho, recordando ‑nos quão temerários e magnificentes tinham sido. Na verdade, eu não precisava de me recordar. Não esquecera aqueles fantasmas nem por um momento — e, de algum modo, quando fixei os olhos do JC, senti ‑me preparada para os aproximar mais de mim. «Sim», disse, e depois repeti ‑o.

Não demora muito até que os últimos resquícios de luz se esvaeçam da orla denteada do céu, ficando depois apenas a chuva e o cheiro a combustível. Estou a voar a dois mil pés acima do nível do mar, e fá ‑lo ‑ei durante dois dias. Nuvens densas engoliram a Lua e as estrelas — a escuridão é tão completa que não tenho outra opção senão voar por instrumentos, pestanejando para evitar a fadiga de ter de olhar para os mostradores fracamente iluminados. Não tenho nenhum rádio, por isso o som e a força do motor, bem como o vento a soprar contra o nariz a quarenta nós, são reconfortantes. O gorgolejar e o balançar do combustível nos tanques também são tranquilizadores, mas, passadas quatro horas de voo, o motor começa a falhar abruptamente. Cospe e assobia, e depois cala ‑se. Silêncio. A agulha do meu altímetro começa a espiralar para baixo a uma velocidade chocante. Aquilo põe ‑me numa espécie de transe, mas as minhas mãos sabem o que fazer, apesar de a minha mente permanecer calada e imóvel. Tenho apenas de chegar à válvula de descarga e ligar o tanque. O motor recomeçará a funcionar. Irá fazê ‑lo. Firmo a mão e faço com que os meus dedos encontrem a alavanca prateada. Quando o faço, ela

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produz um clique reconfortante, mas o motor não se move. O Gull continua a perder altitude, onze mil pés, depois oito mil. Desce ainda mais. As nuvens à minha volta separam ‑se por instantes, e eu consigo ver a cintilação aterrorizadora da água e da espuma. As ondas erguem ‑se e o céu sem fundo abate‑se. Volto a levantar a alavanca, tentando não tremer nem entrar em pânico. Preparei ‑me o melhor possível para tudo o que pudesse acontecer; mas estará alguém verdadeiramente preparado para morrer? Está ‑lo ‑ia  a Maia, quando viu o solo a erguer ‑se ao seu encontro? Está ‑lo ‑ia o Denys, naquele dia terrível sobre o Voi?

Um relâmpago estala perto da minha asa esquerda, brilhante como um enfeite de Natal, eletrificando o ar — e, de repente, tenho a sensação de que tudo isto aconteceu antes, talvez repetidas vezes. Talvez eu tenha estado sempre aqui, a mergulhar de cabeça em direção a mim própria. Abaixo de mim, a água impiedosa agita ‑se, pronta para me receber, mas é no Quénia que estou a pensar. O meu vale do Rift — o monte Longonot e a orla escabrosa do Menengai. O lago Nakuru, com os seus cintilantes e rosados flamingos, as escarpas altas e baixas, Kekopey e Molo, Njoro e o relvado brilhante do Muthaiga Club. É para ali que pareço estar a dirigir ‑me, embora saiba que isso é impossível — como se a hélice estivesse a atravessar os anos, virando ‑me para trás e também interminavelmente para a frente, libertando ‑me.

«Oh!», penso, colidindo com a escuridão, cega a tudo o resto. «De algum modo, virei ‑me em direção a casa.»

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Primeira Parte

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Antes de o Quénia ser o Quénia, quando tinha milhões de anos e ainda era de algum modo jovem, o nome pertencia apenas

à nossa magnífica montanha. Conseguia ‑se vê ‑la a partir da nossa fazenda em Njoro, no Protetorado Britânico do Leste Africano — de contornos severos no fundo de uma extensa planície dourada, o seu cume encimado por gelo que nunca derretia completamente. Atrás de nós, a floresta Mau era azul com fios de neblina. Perante nós, o vale Rongai inclinava ‑se para baixo e afastava ‑se, delimi‑tado de um lado pela estranha e elevada cratera do Menengai, a que os nativos chamavam «Montanha de Deus», e do outro pela distante cordilheira Aberdare, montes arredondados de um azul acinzentado que se tornavam nebulosos e purpúreos ao entarde‑cer, antes de se dissolverem no céu noturno.

Quando chegámos, em 1904, a fazenda não passava de seis‑centos e sete hectares de mato intocado e de três cabanas batidas pelas intempéries.

— Isto? — disse a minha mãe, o ar à sua volta a zumbir e a cintilar como se estivesse vivo. — Vendeste tudo por causa disto?

— Outros fazendeiros estão a tentar a sua sorte em lugares ainda mais difíceis, Clara — respondeu o meu pai.

— Tu não és um fazendeiro, Charles! — respondeu ela furiosa‑mente, antes de desatar a chorar.

De facto, ele era um cavaleiro. Aquilo que ele conhecia eram as corridas de obstáculos, a caça à raposa, as veredas mansas e as sebes de Rutland. Mas vira folhetos que anunciavam a venda de terra imperial barata e uma ideia agarrara ‑se a ele, uma ideia que

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não o queria largar. Deixámos a Westfield House, onde eu nascera, e viajámos mais de onze mil quilómetros, passando por Tunes, Trípoli e o Suez; as ondas, como grandes montanhas cinzentas, engoliam o céu. Depois passámos pelo cais Kilindini, no porto de Mombaça, que cheirava pungentemente a especiarias e a peixe a secar, chegando ao comboio serpenteante com destino a Nairobi; as janelas ferviam e tinham poeira vermelha. Eu olhava para tudo, com um entusiasmo que não me recordava de ter alguma vez sentido. Aquele lugar, fosse o que fosse, era diferente de todos os outros.

Instalámo ‑nos e trabalhámos para podermos viver ali, enfren‑tando aquele lugar selvagem enquanto o lugar nos enfrentava a nós com tudo quanto tinha. A nossa terra não tinha limites ou vedações visíveis, e as nossas cabanas não tinham portas pro‑priamente ditas. Macacos cólobos, sedosos e em bando, trepavam por cima das sacas de serapilheira que cobriam as nossas janelas. A canalização era algo de inaudito. Quando a natureza chamava, passeávamos durante a noite com todas as coisas que se queriam lançar a nós e sentávamos o traseiro sobre um buraco, assobiando para manter o medo afastado.

A Lady e o Lorde Delamere eram os nossos vizinhos brancos mais próximos, morando a uma distância de onze quilómetros atra vés do mato. Eram um barão e uma baronesa, mas os seus títulos não evitavam que dormissem em rondavels 1 típicos de barro e colmo. A Lady D mantinha um revólver carregado debaixo da almofada e aconselhou a minha mãe a fazer o mesmo — mas ela não o quis fazer. Não queria matar cobras ou o seu jantar. Não que‑ria ter de carregar água durante quilómetros para poder tomar algo que se assemelhasse a um banho decente, ou viver sem companhia durante meses a fio. Não havia sociedade. Não havia maneira de manter as mãos limpas. A vida era simplesmente demasiado dura.

Passados dois anos, a minha mãe reservou uma passagem de regresso a Inglaterra. O meu irmão Dickie também iria, já que

1 Versão ocidentalizada das cabanas de estilo africano. Em africânder, no original. (NT)

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sempre fora frágil e não aguentaria permanecer em África durante muito mais tempo. Eu ainda não fizera cinco anos quando eles subiram a bordo do comboio para Nairobi — que passava duas vezes por semana —, com malas de porão, lenços e sapatos de viagem. A pena branca no chapéu da minha mãe tremeu quando ela me beijou e me disse que eu devia manter o queixo erguido. Ela sabia que eu iria ficar bem, já que era uma menina grande e forte. Como recompensa, iria enviar ‑me uma caixa de rolos de alcaçuz e rebuçados de pera de uma loja em Piccadilly, que eu não teria de partilhar com ninguém.

Vi o comboio a desaparecer pela linha negra e imóvel dos carris, sem querer acreditar que ela seria capaz de partir. Mesmo quando a última carruagem oscilante foi engolida pelos montes amarelos e distantes, e o meu pai se virou para mim, pronto para regressar à fazenda e ao seu trabalho; mesmo então eu achava que tudo aquilo era um erro, algum engano terrível que seria resol‑vido a qualquer momento. A minha mãe e o Dickie iriam sair na estação seguinte, ou ficariam em Nairobi e regressariam no dia seguinte. Apesar de isso não ter acontecido, continuei à espera, à escuta do ruído distante do comboio, olhando para o horizonte com o coração cheio de expetativa.

Durante meses não houve notícias da minha mãe, nem sequer um telegrama apressado, mas depois os doces chegaram. A caixa era pesada e tinha apenas o meu nome — Beryl Clutterbuck —, escrito com a caligrafia arrebicada da minha mãe. Até o formato da sua caligrafia, com aquelas descidas e voltas familiares, fez com que eu começasse logo a chorar. Eu sabia o que o presente signifi‑cava e não podia continuar a enganar ‑me. Apertando a caixa nos braços, corri até a um canto escondido onde, a tremer, comi todas as guloseimas polvilhadas de açúcar que consegui aguentar, antes de vomitar para um balde do estábulo.

Mais tarde, incapaz de beber o chá que o meu pai fizera, acabei por me atrever a perguntar aquilo que mais receava.

— A mãe e o Dickie não vão voltar, pois não?Ele lançou ‑me um olhar dorido.— Não sei.

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— Talvez a mamã esteja à espera de que vamos ter com ela.Seguiu ‑se um silêncio prolongado, e depois ele acabou por dizer

que era possível.— Esta é agora a nossa casa — disse ele. — E eu ainda não estou

preparado para desistir dela. Tu estás?O meu pai estava a oferecer ‑me uma escolha, mas não era uma

escolha fácil. A sua pergunta não era «Vais ficar aqui comigo?». Essa decisão fora tomada meses antes. Aquilo que ele queria saber era se eu conseguiria amar aquela vida tanto quanto ele. Se eu conseguiria entregar o meu coração àquele lugar, mesmo que a minha mãe jamais regressasse.

Como é que eu poderia começar a responder? À nossa volta, armários meio vazios recordavam ‑me as coisas que costumavam ali estar mas já não estavam — quatro chávenas de porcelana, com bordas pintadas de dourado; um baralho de cartas; contas de âmbar a baterem umas contra as outras, num colar que a minha mãe adorava. A sua ausência ainda era tão ruidosa e pesada que me magoava, fazendo ‑me sentir vazia e perdida. Eu não sabia como esquecer a minha mãe, tal como o meu pai não sabia como me reconfortar. Ele puxou ‑me — eu tinha membros longos e estava um pouco suja, como parecia estar sempre — para o seu colo, e ficá‑mos assim sentados, em silêncio, durante um bocado. Na extremi‑dade da floresta, um grupo de híraxes ecoava guinchos alarmados. Um dos nossos galgos levantou uma orelha esguia e depois vol tou a adormecer confortavelmente junto à lareira. Por fim, o meu pai suspirou. Pegou ‑me por baixo dos braços, roçou com um beijo rápido as minhas lágrimas que secavam e pousou ‑me no chão.

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Mwanzo é a palavra suaíli para «inícios». Mas às vezes é pre‑ ciso que primeiro tudo acabe e o fundo caia, toda a luz

sibile e morra antes que possa surgir um verdadeiro início. A partida da minha mãe foi assim para mim, embora eu não me tivesse apercebido disso de imediato. Durante muito tempo, só me consegui sentir desorientada, magoada e terrivelmente triste. Os meus pais ainda estavam casados? A minha mãe amava ‑nos ou sentia a nossa falta? Como é que ela me podia ter deixado? Eu não estava preparada para fazer estas perguntas ao meu pai. Ele não era meigo como os pais costumam ser, e eu não sabia como partilhar sentimentos tão privados e dolorosos.

Depois aconteceu algo. Na nossa terra, no interior e para lá da floresta Mau, viviam várias tribos kipsigis em cabanas de lama e vime, cercadas por bomas2 de espinhos altos. De algum modo, elas perceberam aquilo de que eu precisava sem que eu o tivesse pedido. Um dos anciãos pegou ‑me ao colo, murmurando uma fiada de palavras encantatórias e atando cerimoniosamente uma concha de caurim à minha cintura. Aquela oscilava de uma tanga de couro, e pretendia‑se que fosse semelhante à concha de caurim fechada entre as minhas pernas e que afastasse os maus espíri tos. Quando uma rapariga kip nascia, eles faziam aquilo. Eu era a filha branca do seu bwana3 branco, mas acontecera algo antinatural e que tinha de ser corrigido. Nenhuma mãe africana pensaria em abandonar

2 Caniçadas, em suaíli no original. (NT)3 Deus, em suaíli no original. (NT)

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um filho. Eu era saudável, não era aleijada nem fraca. Por isso, eles rejeitaram aquele primeiro início e deram ‑me outro como Lakwet, que significa «menina muito pequena».

Eu era magra, tinha joelhos metidos para dentro e cabelo loiro esbranquiçado e indomável, mas passado pouco tempo os meus novos nome e lugar ajudaram ‑me a enrijecer. Correndo para cima e para baixo do nosso monte até à aldeia kip, os meus pés transformaram ‑se rapidamente em couro. Partes da nossa terra que antes me tinham assustado ou intimidado tornaram ‑se tão familiares quanto as peles de zebra que cobriam a minha cama. Quando a luz do dia desaparecia, eu enfiava ‑me debaixo das peles e observava o criado da casa a entrar de pés descalços no meu quarto, para acender o candeeiro a petróleo. Por vezes, o clarão e o silvo repentinos faziam com que as lagartixas nas paredes da cabana se apressassem a esconder; o som que emitiam era seme‑lhante a paus contra palha. Depois chegava a mudança da guarda, o momento em que os insetos diurnos — as vespas e as abelhas azuis — se enfiavam em ninhos de lama situados nas paredes arre‑dondadas do meu quarto, e em que os grilos acordavam, zumbindo num ritmo que só eles conheciam. Eu esperava durante uma hora ou mais, observando sombras a contorcerem ‑se sobre o mobiliário do  quarto, todo feito de caixas de parafina, permanecendo todo igual até as sombras se reunirem e o alterarem. Eu ficava à escuta até deixar de ouvir a voz do meu pai; depois esgueirava ‑me por uma janela aberta para a escuridão absoluta, a fim de juntar‑me ao meu amigo Kibii na sua cabana, à volta de uma fogueira baixa e fumegante.

A mãe do Kibii e as outras mulheres bebiam um chá escuro feito de urtigas e casca de árvore e teciam as suas histórias, con‑tando como fora o início das coisas. Foi ali que aprendi grande parte do meu suaíli, cada vez mais ávida de histórias... como a hiena obtivera o seu coxear, e o camaleão a sua paciência. Como a chuva e o vento tinham sido outrora homens, antes de falha‑rem uma tarefa importante e de terem sido banidos dos céus. As mulheres eram enrugadas e desdentadas, ou robustas como ébano polido, e tinham membros fortemente musculados debaixo

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de shukas4 claras. Eu adorava ‑as e às suas histórias, mas preferia juntar ‑me ao Kibii e aos outros totos5 que se estavam a tornar guerreiros, jovens morani 6.

O papel das raparigas na aldeia era totalmente doméstico. Eu tinha uma posição diferente — uma posição rara, livre dos papéis tradicionais que governavam a família do Kibii e também a minha. Pelo menos naquela altura, os anciãos kip permitiam ‑me treinar com o Kibii: atirar uma lança e caçar javalis, praticando ataques furtivos, como o Kibii fazia com o arap7 Maina, o seu pai, que era chefe dos guerreiros da sua aldeia e também o meu ideal de força e temeridade. Ensinaram ‑me a fazer um arco, a abater pombos, ampélis e estorninhos de um azul vivo, a brandir um chicote de pele de rinoceronte e a lançar uma clava de madeira nodosa com uma precisão mortal. Tornei ‑me tão alta quanto o Kibii e depois mais alta, correndo com a mesma rapidez por entre as ervas altas e douradas, os nossos pés cobertos de poeira.

Era frequente eu e o Kibii darmos passeios na escuridão, atra‑vessando a erva recentemente cortada que marcava a extremidade da nossa fazenda, e as ervas mais altas e húmidas que nos deixa‑vam molhados até às ancas quando as roçávamos, passando pelo Green Hill e pelo limite da floresta, que nos atraía mais para o interior. À noite, havia leopardos naquela região. Eu vira o meu pai a preparar ‑lhes armadilhas com uma cabra, enquanto nos agachávamos em segurança no cimo do tanque da água, a cabra começando a tremer ao sentir o cheiro do felino, o meu pai apon‑tando a sua espingarda e desejando não falhar. Havia perigos por toda a parte, mas nós conhecíamos todos os sons noturnos e as suas mensagens: cigarras e sapos das árvores, os híraxes gordos e semelhantes a ratos que, na verdade, eram parentes distantes dos elefantes. Por vezes, ouvíamos os elefantes a irromperem largo, por entre o mato, embora temessem o cheiro dos cavalos e fosse raro

4 Tangas, em suaíli no original. (NT) 5 Rapazes, em banto no original. (NT) 6 Nome de guerreiro da tribo masai, no Quénia. (NT)7 Chefe, em banto no original. (NT)

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aproximarem ‑se. Cobras agitavam ‑se dentro de buracos. Cobras em cima de árvores atiravam ‑se para o chão, cortando o ar como cordas ou emitindo apenas o mais ligeiro dos roçares, com as suas barrigas macias sobre ramos de mogno de veios lisos.

Durante anos houve estas noites perfeitas com o Kibii, bem como tardes longas e demoradas feitas para caçar ou cavalgar, e de algum modo — com machetes, cordas, pés e suor humano — o mato deu lugar a verdadeiros campos. O meu pai plantou milho e trigo, e estes floresceram. Com o dinheiro que fez, encontrou e comprou dois motores a vapor abandonados. Depois de arranjados, tornaram ‑se o coração latejante do nosso moinho, e Green Hills a artéria mais vital de Njoro. Passado pouco tempo, se alguém parasse no nosso monte e olhasse para lá dos campos em socalcos e do milho que nos chegava à cabeça, conseguiria ver uma linha de carroças planas puxadas por bois que traziam o cereal para o nosso moinho. O moinho funcionava sem parar e o número dos nossos trabalhadores duplicou e depois triplicou: homens kikuyu, kavirondo, nandi e kipsigis, e também holandeses, que faziam esta‑lar os seus chicotes para conduzir os bois. Demoliram ‑se os bar‑racões de ferro e construiu ‑se um estábulo, e depois mais alguns; as baias recentemente construídas encheram ‑se de feno cortado e dos melhores puros ‑sangues de África ou de qualquer outro lugar no mundo, como me disse o meu pai.

Às vezes, antes de adormecer, quando estava deitada na cama a escutar os sons noturnos a irromperem de todas as direções — um som constante e fervilhante —, eu ainda pensava na minha mãe e no Dickie. Eles nunca escreviam, pelo menos a mim, por isso era difícil tentar imaginar as suas vidas. A nossa antiga casa tinha sido vendida. Onde quer que eles tivessem acabado por se instalar, as estrelas e as árvores seriam muito diferentes daquelas que tínha‑mos em Njoro. A chuva também o seria, bem como a sensação e a cor do sol da tarde. Estávamos separados durante todas as tardes de todos os meses.

A pouco e pouco, tornou ‑se mais difícil recordar ‑me do rosto da minha mãe, lembrar ‑me de coisas que ela me tinha dito, de dias que tínhamos partilhado. Mas havia muitos dias à minha

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frente. Eles estendiam ‑se até tão longe quanto eu conseguia ver ou desejar, tal como a planície se estendia até à bacia quebrada do Menengai, ou até ao cume duro e azul do Quénia. Era mais seguro continuar a olhar para a frente — afastar a minha mãe para o canto mais afastado da minha mente, onde já não me podia magoar; ou então imaginar, quando pensava nela, que a sua partida fora necessária. Foi uma espécie de falsificação ou afinação, o meu primeiro teste essencial como Lakwet.

Uma coisa era certa: eu pertencia à fazenda e ao mato. Fazia parte dos espinheiros e das escarpas altas e salientes, das colinas de aparência amolgada e densas de vegetação; das pregas fundas entre os montes e da relva alta como o milho. Fora ali que eu começara a viver, como se tivesse voltado a nascer, e voltado a nas‑cer de um modo mais verdadeiro. Aquele era o meu lar e, embora um dia se fosse esvair por entre os meus dedos como poeira ver‑melha, durante o tempo que a minha infância durou foi um céu feito exatamente à minha medida. Um lugar que eu conhecia de cor. O único lugar no mundo para o qual eu nascera.

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A sineta do estábulo retiniu, quebrando o silêncio. Os galos preguiçosos acordaram, tal como os gansos empoeirados, os

criados da casa e os moços de estrebaria, os jardineiros e os pasto‑res. Eu tinha a minha própria cabana de lama e barro — um pouco afastada da do meu pai —, que partilhava com o Buller, o meu cão feio e leal, de raça mista. Ele gemeu ao som da sineta, esticando ‑se do seu abrigo aos pés da minha cama, e depois enfiou a cabeça quadrada debaixo do meu braço e contra o meu flanco, de modo que senti o seu focinho frio e as cicatrizes enrugadas em forma de meia ‑lua no cimo da sua cabeça. Tinha um alto grosso e granuloso no lugar onde a sua orelha estivera outrora, antes de um leopardo se ter esgueirado até ao interior da minha cabana e o ter tentado arrastar para a noite. O Buller rasgara a garganta do leopardo e regressara a casa a coxear, coberto com uma mistura do  sangue de ambos, parecendo ‑se com um herói mas também quase morto. Eu e o meu pai tratámos dele até ficar bom e, embora antes nunca tivesse sido particularmente bonito, agora estava grisalho e meio surdo. Amávamo ‑lo mais por isso, porque o leopardo não conse‑guira quebrar ‑lhe o ânimo.

No pátio da fazenda, sob o ar fresco da manhã, o Kibii estava à minha espera. Eu tinha onze anos e ele era um pouco mais novo, e tínhamo ‑nos ambos tornado parte da maquinaria oleada da fazenda. Havia outras crianças brancas nas proximidades, que iam à escola a Nairobi ou às vezes regressavam a Inglaterra, mas o meu pai nunca dissera que eu podia fazer algo assim. O estábulo era a minha sala de aulas. Os galopes matutinos começavam pouco depois

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do amanhecer. Tal como o Kibii, eu estava ali sem falhar um dia. Naquele momento, ao aproximar ‑me do estábulo, ele atirou ‑se ao ar como se as suas pernas fossem molas enroladas. Eu praticara aquela espécie de salto durante anos e conseguia saltar tão alto quanto o Kibii, mas, para ter vantagem na competição, sabia que devia fazer o mínimo possível. O Kibii saltava uma e outra vez, excedendo ‑se, e ficava cansado. Depois, era a minha vez de o ultrapassar.

— Quando me tornar um moran — disse o Kibii —, beberei leite coalhado e sangue de boi em vez de urtigas como uma mulher, e depois terei a velocidade de um antílope.

— Eu podia ser uma grande guerreira — disse ‑lhe.O Kibii tinha um rosto aberto e atraente, e os seus dentes fais‑

caram quando se riu, como se aquilo fosse a coisa mais cómica que ele tinha ouvido até então. Quando éramos muito pequenos, ele sentira ‑se feliz por me deixar juntar ao seu mundo, talvez porque achasse que era tudo uma brincadeira. Eu era uma rapariga e, afi‑nal de contas, uma rapariga branca. Mas, nos últimos tempos, eu começara a sentir que ele se tornava cada vez mais cético e desapro‑vador da minha pessoa, como se estivesse à espera de que eu desis‑tisse de tentar competir com ele e aceitasse que os nossos caminhos em breve seriam muito diferentes. Não era essa a minha intenção.

— Se tivesse o treino certo, podia sê ‑lo — insisti. — Podia fazê ‑lo em segredo.

— Qual é a glória disso? Quem é que saberia que os teus feitos te pertenciam?

— Eu sabê ‑lo ‑ia.Ele voltou a rir ‑se e virou ‑se para a porta do estábulo.— Quem é que vamos montar hoje?— Eu e o meu pai vamos até ao Delamere ver uma égua parideira.— Eu vou caçar — respondeu ele. — Depois veremos quem volta

com uma história melhor.

Quando o Wee MacGregor e o Balmy, o cavalo do meu pai, esta vam selados e prontos, partimos em direção ao sol da manhã. Durante algum tempo, o desafio do Kibii enublou ‑me os pensa‑mentos, mas depois a distância e o dia levaram a melhor. A poeira

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rodopiava à nossa volta, enfiando ‑se por baixo dos nossos lenços pouco apertados e entrando nas nossas bocas e nos nossos narizes. Era fina e sedimentosa, vermelha como o ocre ou a raposa ‑do ‑mato, e estava sempre connosco. Tal como os ácaros que se pareciam com grãos de pimenta rosa, agarrando ‑se a tudo e mantendo ‑se agarra‑dos. Não se podia pensar nos ácaros porque não se podia fazer nada a seu respeito. Não se podia pensar nas formigas ‑brancas que nos mordiam e se moviam em faixas ameaçadoras sobre as planícies, nem nas víboras, nem no Sol, que por vezes pulsava tão brilhante que parecia querer achatar ‑nos ou comer ‑nos vivos. Não o podía‑mos fazer, porque aquelas coisas faziam parte do próprio país e tornavam ‑no aquilo que ele era.

Quatro quilómetros depois, chegámos a uma pequena ravina onde a lama vermelha secara e gretara, formando um sistema de veias ressequidas. Uma ponte de argila encontrava ‑se no seu centro, parecendo inútil sem água a correr de ambos os lados; também se assemelhava à espinha de algum animal gigantesco que tivesse morrido ali. Estávamos a contar com a água para os nossos cavalos. Talvez houvesse água mais à frente, ou talvez não. Para nos distrair a ambos, o meu pai começou a falar da égua do Dela‑mere. Ainda não a vira, mas isso não o impedia de a incluir nas suas esperanças para os nossos puros ‑sangues. Ele estava sempre a pensar no próximo potro e em como poderia mudar as nossas vidas — e como ele pensava assim, eu também pensava.

— Ela é abissínia, mas o Delamere diz que é rápida e tem bom senso.

O meu pai estava sobretudo interessado em puros ‑sangues, mas por vezes conseguia encontrar ‑se uma joia em sítios mais vulgares, e ele sabia disso.

— Qual é a sua cor? — quis eu saber. Aquela era sempre a minha primeira pergunta.

— É dourada ‑clara, com uma crina e uma cauda brancas. Chama ‑se Coquette.

— Coquette — repeti, gostando do som aguçado da palavra, sem saber o que significava. — Soa bem.

— Soa? — Ele riu ‑se. — Veremos.

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* * *

Para mim e para qualquer pessoa que o conhecesse bem, o lorde Delamere era apenas o D. Ele fora um dos primeiros povoadores importantes da colónia e sabia instintivamente qual seria o pedaço de terra mais fértil. Parecia querer apoderar ‑se de todo o continente e conseguir que todo ele se pusesse ao seu serviço. Não havia nin‑guém mais ambicioso do que o D, ou mais teimoso e duro acerca das coisas que amava (a terra, o povo masai, a liberdade, o dinheiro). Sentia ‑se determinado a converter qualquer coisa em que tocasse, ou qualquer coisa que tentasse, num êxito. Quando os riscos eram grandes e as hipóteses pequenas, ainda melhor.

Contava boas histórias, enquanto as suas mãos e os seus ombros se moviam de um modo tão selvagem que o seu cabelo ruivo e comprido lhe batia constantemente na testa. Quando era jovem, atravessara três mil e duzentos quilómetros do deserto da Somália, com um camelo mal disposto por companhia, e dera por si nas terras altas. Apaixonara ‑se imediatamente pelo lugar. Quando regressou a Inglaterra tendo em vista reunir os fundos necessários para a sua instalação ali, conhecera e casara com a Florence, a filha de espírito livre do conde de Enniskillen.

— Ela não fazia a mínima ideia de que, um dia, eu a arrastaria até aqui pelo cabelo — gostava de dizer.

— Como se me pudesses arrastar — respondia a Lady D com fre‑quência, com um olhar brincalhão. — Ambos sabemos que, regra geral, acontece o contrário.

Depois de as nossas montadas cansadas terem conseguido a água que mereciam, os Delamere levaram ‑nos até à pequena pastagem, onde a Coquette estava a pastar com outras éguas e com um punhado de potros. Até àquele momento era a mais bonita, compacta e clara, com um pescoço inclinado e um peito bem feito. As suas patas estreitavam ‑se em topetes e quartelas bem moldadas. Enquanto a olhávamos, ela ergueu a cabeça e virou ‑se para olhar diretamente para nós, como que a desafiar ‑nos a achá ‑la menos do que perfeita.

— É belíssima — exalei.— Sim, e sabe que o é — disse o D, alegremente.

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Ele tinha um corpo denso e parecia estar sempre a transpirar, embora geralmente também se mostrasse animado com isso. Lim‑pou o riacho salgado que lhe corria ao longo da têmpora com um lenço azul de algodão, enquanto o meu pai se debruçava sobre as tábuas da vedação para ver mais de perto.

Eu raramente via um cavalo assustar ‑se ou fugir do meu pai, e a Coquette não foi uma exceção. O animal pareceu sentir imediatamente que ele controlava a situação e também a controlava a ela, embora ainda não lhe pertencesse. Sacudiu uma vez as orelhas e soprou ‑lhe com as suas narinas aveludadas, mas manteve ‑se imóvel enquanto ele a examinava, passando ‑lhe a mão ao longo do crânio e do foci‑nho, e depois tocando ‑lhe mais devagar nos flancos e na espinha, procurando qualquer alto ou desvio. Ao chegar ao lombo e à garupa, voltou a abrandar, os seus dedos fazendo o trabalho por ele. Era como um homem cego, a tatear cada uma das adoráveis patas traseiras: os músculos fortes e as rótulas, os jarretes e os codilhos. Continuei à espera de que ele se endireitasse ou de que o seu rosto entriste‑cesse, mas o exame continuou silenciosamente e eu fiquei cada vez mais esperançosa. Na altura em que acabou e se endireitou a olhar para ela, as suas mãos a passarem sobre a crina, eu mal conseguia aguentar a incerteza. Se ele não a amasse naquele momento, depois de ela ter passado todos os seus testes, aquilo partir ‑me ‑ia o coração.

— Então, porque é que te queres separar dela? — perguntou ao D, sem desviar os olhos da Coquette.

— Por dinheiro, é claro — disse o D, com um pequeno resfolgar.— Sabes como é — disse a Lady D. — A nova obsessão afasta

sempre a antiga. Agora anda obcecado com trigo, e a maior parte dos cavalos tem de ser vendida.

«Por favor, por favor, diz que sim», pensei, com um desespero feroz.

— Trigo? Agora é isso? — perguntou o meu pai. Afastou ‑se da Coquette e regressou para junto da vedação, dizendo à Lady D:

— Pre sumo que tenhas alguma coisa fresca para beber?Quis atirar ‑me aos joelhos da égua, agarrar um punhado da

crina cor de manteiga, saltar para as suas costas e cavalgar sozinha para as colinas — ou ir para casa com ela, prendê ‑la numa baia

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escon dida e guardá ‑la com a própria vida. Ela já conquistara o meu coração, e também conquistara o do meu pai — eu sabia —, mas ele nunca fora muito espontâneo. Escondia as suas emoções atrás de um muro, o que fazia dele um negociador maravilhoso. Ele e o D passariam o resto do dia naquilo, elaborando os termos sem afirma‑rem nada diretamente, cada um deles ocultando com cuidado o que significaria ganhar ou perder. Eu achava tudo aquilo enlouquecedor, mas não havia nada a fazer senão dirigirmo ‑nos para a casa onde os homens se sentaram a uma mesa a beber bourbon e limonada, e começaram a falar sem falar e a negociar sem negociar. Atirei ‑me para o tapete em frente à lareira e amuei.

Embora os Delamere tivessem mais terra e mais trabalhadores no Equator Ranch do que nós tínhamos em Green Hills, o D não fizera muitas melhorias nos seus alojamentos: dois rondavels grandes de lama e com chão de terra batida, janelas grosseiras e cortinados de serapilheira em vez de portas. Apesar disso, a Lady D enchera o lugar com coisas bonitas que pertenciam à sua família havia cente‑nas de anos, segundo me dissera — uma pesada cama com quatro colunas de mogno e uma colcha ricamente bordada, fotografias em molduras douradas, uma mesa de mogno comprida com oito cadei‑ras a condizer, e um atlas forrado à mão, sobre o qual eu adorava debruçar ‑me sempre que os visitava. Eu estava demasiado ansiosa naquele dia para ver mapas, e só me consegui manter deitada no tapete a bater os calcanhares, mordendo repetidas vezes o lábio e desejando que os homens se despachassem com aquilo.

Por fim, a Lady D aproximou ‑se e sentou ‑se perto de mim, esten‑dendo a sua saia de algodão branco à sua frente e apoiando ‑se nas mãos. Não era muito complicada ou empertigada, e eu gostava disso.

— Se quiseres, tenho uns biscoitos muito bons.— Não tenho fome — disse. Estava faminta.— O teu cabelo está mais selvagem do que da última vez que o

vi. — Empurrou gentilmente o prato de biscoitos na minha direção. — No entanto, tem uma cor maravilhosa. Na verdade, é um pouco parecido com o da Coquette.

Aquilo apanhou ‑me.— Acha?

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Ela assentiu.— Presumo que não me deixes escová ‑lo um pouco...Eu estava demasiado enervada para me querer sentar imóvel

enquanto me penteavam o cabelo, mas deixei que ela o fizesse. Ela tinha uma escova com um cabo de prata e com cerdas brancas, belas e macias, pela qual eu gostava sempre de passar os dedos. Já não havia nada de feminino na nossa casa, nem seda, nem cetim, nem per‑fume, nem joias, nem berloques de pó de arroz. A escova era exótica. Enquanto a Lady D me penteava, trauteando baixinho, atirei ‑me aos biscoi tos. Passados instantes, só havia migalhas amanteiga das no prato.

— Onde é que arranjaste essa cicatriz de aparência feroz? — per‑guntou ela.

Baixei os olhos para a parte pior da cicatriz, que espreitava sob a bai nha esfarrapada dos meus calções curtos — era um ferimento longo e ondulado que me chegava a meio da coxa. Parecia bastante grosseira.

— A lutar com totos.— Com totos, ou com porcos selvagens?— Derrotei um dos rapazes kip e atirei ‑o por cima do ombro

para o chão. Ele ficou tão envergonhado que esperou por mim na floresta e lançou ‑se a mim com a faca do pai.

— O quê? — Ela soltou um som alarmado.— Tinha de ir atrás dele, não é verdade? — Não consegui evitar

um tom de orgulho na voz. — Agora ele está bem pior do que eu.A Lady D suspirou para o meu cabelo. Eu sabia que ela estava

preocupada mas, como ela não disse nada naquele momento, entreguei ‑me ao movimento da escova e à maneira como esfre‑gava o meu couro cabeludo. Sabia ‑me tão bem que já estava meio adormecida quando os homens se levantaram e apertaram as mãos. Ergui ‑me de um salto, quase aterrando no colo da Lady D.

— Ela é nossa? — perguntei, apressando ‑os.— O Clutt negoceia como uma hiena — disse o D —, agarra ‑se

às coisas e não as larga. Quase me roubou a égua.Como ele se riu, o meu pai riu ‑se também e deu ‑lhe uma pal‑

mada no ombro.— A Beryl não está bonita? — perguntou a Lady D. Aproximou‑

‑se por trás de mim e pousou uma mão em cima da minha cabeça.

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— Estava a perguntar ‑me se iria encontrar um ninho de chapins atrás de uma das suas orelhas.

Corando, o meu pai pigarreou.— Receio não ser uma ama lá muito boa.— Nem devias ser — vociferou o D em sua defesa. — A miúda

está ótima. Olha para ela, Florence. É forte como uma mula.— Ah, sim. Todos queremos mulas como filhas, não queremos?Toda aquela troca de palavras era bem ‑disposta e dava ‑me uma

sensação estranha e confusa. Quando, uma hora depois, nos pre‑parámos para regressar a casa, depois de o dinheiro e os porme‑nores da entrega da Coquette estarem tratados, percebi que o meu pai também estava inquieto. Cavalgámos em silêncio, enquanto o sol vermelho descia cada vez mais no céu plano. À distância, um remoinho de poeira girava como um dervixe, rodopiando numa faixa de mimosas africanas e desalojando um bando enorme de abutres. Um dos pássaros sobrevoou ‑nos, e a sua sombra cobriu‑‑nos tão lentamente que me fez tremer.

— Confesso que às vezes perco o controlo das coisas — disse o meu pai, depois de o abutre ter passado.

Percebi o que ele queria dizer por causa da maneira como a Lady D tinha falado da minha cicatriz pálida e da minha aparência em geral. Eu sabia que com «coisas» ele estava a referir ‑se a mim, a sua filha.

— Acho que estamos muito bem — respondi, e dobrei ‑me para dar uma palmadinha no pescoço do Wee MacGregor. — Não quero que nada seja diferente.

Ele não disse nada enquanto o Sol continuava a descer. Como estávamos muito perto do equador, quase não tínhamos crepús‑culos. O dia transformava ‑se em noite em poucos minutos, mas aqueles eram instantes encantadores. A toda a nossa volta, ervas amarelas estendiam ‑se e moviam ‑se como o mar, umas vezes mer gulhando em formigueiros e covas de javalis africanos, outras vezes erguendo ‑se em direção aos pináculos retorcidos das termi‑teiras, mas nunca parando por completo. Havia a ilusão intensa de que o mato não acabava — de que poderíamos cavalgar durante anos daquela maneira, transportados pelas ervas e pela sensação de distância, avançando sem parar para sempre.

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Quando a Coquette chegou, transformou ‑se na querida da fazenda. Como não tínhamos nenhum cavalo com a sua tona‑

lidade dourada, todos os totos queriam aproximar ‑se dela e tocar‑‑lhe. Ela parecia brilhar e trazer boa sorte, e durante vários meses correu tudo bem, enquanto ela se instalava e o meu pai começava a pensar no cavalo que a devia montar para obter o melhor resultado possível. A reprodução é um assunto muito sério para um cavaleiro. Ainda antes de saber ler, eu já sabia que a linhagem de cada puro‑‑sangue poderia ser seguida até três garanhões árabes e orientais dos séculos xvii e xviii, que tinham acasalado com um punhado de éguas reprodutoras inglesas muito específicas. Aquela longa árvore genealógica fora cuidadosa e meticulosamente descrita no General Stud Book. Durante o jantar, abríamos o livro e consultávamo ‑lo, bem como o livro ‑mestre grosso e preto onde mantínhamos os registos dos nossos cavalos — o antigo e o novo testamento da nossa bíblia.

Depois de semanas a falar sobre o assunto, ficou decidido que seria o Referee a montar a Coquette, quando ela estivesse no cio. Ele era um cavalo árabe castanho ‑claro e tinha uma constitui‑ção compacta e quinze palmos de altura, cascos bons, ombros de ângulos abertos e pernas perfeitamente retas. Tinha uma passada tão regu lar  que parecia comer o chão à sua frente sem qualquer esforço. Falávamos muito acerca do novo potro — aquele que nas‑ceria após  onze meses da data desde a reprodução bem ‑sucedida e que teria a velocidade do pai, bem como a pelagem cintilante e os movimentos graciosos da mãe. Aquilo não me parecia nada de imaginário. A nossa conversa já o fizera nascer.

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* * *

Durante uma tarde longa e abafada, eu e o Kibii ficámos sen‑tados sob a acácia, junto à extremidade do pátio largo; eu tentava encontrar nomes para o potro e dizia alguns em voz alta ao Kibii. Para lá do círculo azulado de sombra, a terra era como metal martelado e tão perversa quanto metal ou brasas, se nos atrevês‑semos a caminhar sobre ela. Tínhamos passado a manhã a galopar e depois a ajudar a olear dezenas de freios, até ficarmos com os dedos magoados. Agora estávamos exaustos mas também agitados, espicaçados pelo calor.

— E que tal Júpiter, ou Apollo? — sugeri.— Devia ser Chacal. É um nome melhor para um potro.— Os chacais são tão vulgares.— Os chacais são inteligentes.Antes de lhe poder responder, vimos uma torre de fumo.Era o comboio ruidoso que vinha de Nairobi, uma dúzia de car‑

ruagens grosseiras que saltavam tão fortemente pelos carris que estávamos sempre à espera de ver uma a voar ou a desfazer‑se em pedaços. O Kibii torceu ‑se para olhar sobre a encosta.

— O teu pai está à espera de um cavalo?Eu pensava que o meu pai não estava à espera de nada, mas

observámo ‑lo a sair apressado do estábulo, a alisar o cabelo e a enfiar a fralda da camisa dentro das calças. Semicerrando os olhos contra o Sol, ele olhou para o fundo da colina; de seguida, dirigiu ‑se rapida‑mente para a nossa nova carrinha Ford e começou a dar à manivela, tentando pôr em funcionamento o seu temperamental motor. Eu e o Kibii não lhe perguntámos se nos podíamos juntar a ele; limitámo‑‑nos a correr atrás dele e começámos a subir para as traseiras.

— Desta vez, não — disse o meu pai, mal levantando os olhos do que estava a fazer. — Não haverá espaço para todos.

Todos? — Então, estamos à espera de convidados?Sem responder, ele sentou ‑se atrás do volante e afastou ‑se,

mergulhando ‑nos em nuvens de poeira rosada. Passada uma hora, ouvimos a carrinha a sacolejar colina acima e vislumbrámos

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pedaços de branco. Um vestido. Um chapéu com fitas e luvas até ao cotovelo. Era uma mulher que se encontrava no carro, uma mulher bela com um monte de cabelo brilhante da cor de penas de corvo, e uma sombrinha elegante guarnecida a renda, que não parecia ter visto um único dia no mato.

— Beryl, esta é a senhora Orchardson — disse o meu pai, ao saí‑rem da carrinha.

Duas malas de porão erguiam ‑se nas traseiras do veículo. Ela não estava ali para tomar chá.

— Estou muito feliz por finalmente te conhecer — disse a Sra. Orchardson, olhando ‑me rapidamente de cima a baixo.

Finalmente? Acho que a minha boca se abriu e se manteve assim durante um longo momento.

Quando entrámos na casa principal, a Sra. Orchardson olhou em volta, com as mãos ligeiramente pousadas nas ancas. Embora o meu pai o tivesse projetado de um modo simples, o lugar era sólido e muito melhor do que a cabana que fora outrora. Mas a Sra.  Orchardson nunca vira nada daquilo. Calcorreou a divisão. Havia teias de aranha em todas as janelas, e as pedras da lareira estavam cobertas por camadas de fuligem densa. Desde que a minha mãe partira, o oleado da mesa não tinha sido mudado. O refrigerador estreito a carvão, no qual guardávamos man‑teiga e natas, cheirava a ranço, como lodo no fundo de um lago. Habituáramo ‑nos a ele, como a tudo o resto. As paredes contavam histórias de aventuras de caça — peles de leopardo e de leão, chi‑fres de antílopes cudos, longos e retorcidos como saca ‑rolhas, um ovo de avestruz, com o tamanho e o peso de um crânio humano. Não havia nada de elegante ou de muito sofisticado à vista — mas tínhamo ‑nos dado bem sem essas coisas.

— A senhora Orchardson aceitou ser nossa governanta — expli‑cou o meu pai enquanto ela descalçava as luvas. — Viverá aqui, na casa principal. Há muito espaço.

— Oh! — disse eu, sentindo ‑me esmurrada na traqueia. Havia uma divisão que podia ser usada como quarto para dormir,

mas estava cheia de freios, parafina, latas de comida e muitas outras coisas que não queríamos ver, nem com as quais nos queríamos

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ralar. Essa divisão significava que não precisávamos mesmo de uma governanta. E onde ficariam os convidados, já que aquela mulher, que não era uma convidada, aparecera para alterar tudo?

— Porque é que não vais até aos estábulos enquanto nós trata‑mos das coisas? — perguntou o meu pai, num tom de voz que não deixava margem para discussões.

— É uma boa ideia — disse a Sra. Orchardson. — Vou fazer chá.Atravessei o pátio, a fumegar. O mundo estava a comprimir ‑se

sobre mim, tornando ‑se mais estreito devido ao aparecimento repen‑tino da Sra. Orchardson e àquilo que ela tinha a intenção de fazer ou ser. Quando voltei, ela mudara de roupa; vestira uma saia simples e uma camisa até à cintura e pusera um avental branco e limpo em cima da roupa. Tinha as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Um caracol do seu cabelo sedoso caía ‑lhe sobre a testa, enquanto voltava a encher a chávena do meu pai, com a chaleira a fumegar ‑lhe nas mãos. O meu pai estava sentado na nossa única poltrona, com os pés pousados numa mesa baixa. Olhava ‑a com familiaridade.

Pestanejei ao vê ‑los. Eu não estivera fora de casa nem uma hora e ela já reclamara a sala como sua. A chaleira era sua. Esfregara o oleado. As teias de aranha tinham desaparecido e até podiam nunca ter existido. Nada precisara de grande persuasão ou de ser muito domesticado. Nada parecia resistir ‑lhe.

Segundo o meu pai, eu devia chamar ‑lhe «senhora O». Durante os dias que se seguiram, ela tirou as suas coisas das malas de porão e encheu ‑as com as coisas da casa — troféus de caça empoeirados, diversas bugigangas ou peças de roupa que a minha mãe deixara. Fazia tudo parte do seu plano para comandar um «navio discipli‑nado» — duas das suas palavras favoritas. Ela gostava de ordem, sabão e do dia dividido em partes manobráveis. As manhãs eram para se aprender coisas através dos livros.

— Tenho de ir galopar — disse ‑lhe logo no início, sentindo ‑me totalmente confiante de que o meu pai me apoiaria.

— Por enquanto podem passar sem ti, não podem? — disse ela num tom neutro, enquanto o meu pai emitia um som seco, gutural, vindo do fundo da garganta, e saía rapidamente de casa.

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Passada uma semana, ela convencera o meu pai de que eu pre cisava de usar sapatos. Passadas mais algumas semanas, fui enfiada dentro de um vestido inglês, com fitas no cabelo em vez de uma shuka, e avisada para não comer com as mãos. Não devia matar cobras, toupeiras ou pássaros com o meu rungu8, nem pas‑sar todas as minhas refeições com o Kibii e a sua família. Não devia caçar javalis nem leopardos com o arap Maina, mas sim ter uma educação adequada e aprender o King's English.

— Deixei ‑te correr selvagem, e tu sabe ‑lo — disse o meu pai quando fui ter com ele para lhe pedir que me deixassem em paz. — É para o teu próprio bem.

Ele deixara ‑me correr, mas isso fora maravilhoso. Aquelas novas restrições assemelhavam ‑se a uma vida convencional, e nós nunca tivéramos nada assim.

— Por favor... — ouvi ‑me a começar a lamentar, mas depois calei ‑me.

Nunca fora uma criança que se lamentasse ou queixasse, e de qualquer maneira o meu pai não ia ceder. Se eu podia realmente fazer algo a respeito da Sra. O, teria de o fazer sozinha. Iria mostrar ‑lhe que não era um pedaço de teia de aranha num canto, algo para ser limpo ou endireitado, mas sim uma rival à sua altura. Iria aprender os seus modos e hábitos e segui ‑la de perto até saber aquilo que ela era, como a vencer, e o que seria exatamente neces‑sário para recuperar a minha boa vida.

8 Clava, em suaíli no original. (NT)

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