fhc teoria da dependência

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NOVOS ESTUDOS  94 ❙❙ NOVEMBRO 2012     187 FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: TEORIA DA DEPENDÊNCIA E TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA Fernando Limongi HOMENAGEM: PRêMIO JOHN W. KLUGE 2012 Estamos reunidos hoje para celebrar a obra de Fernan‑ do Henrique Cardoso. Viemos prestar uma homenagem, manifestar publicamente o reconhecimento dos membros do Cebrap à contribui‑ ção feita por Fernando Henrique Cardoso às ciências sociais. Se inte‑ grássemos o comitê do Prêmio Kluge teríamos feito a mesma escolha. Pediram‑me para fazer uma breve apresentação da obra do nosso homenageado. A ênfase foi no breve. Prometo: serei breve. Mas o breve justifica as escolhas arbitrárias que fiz na reconstituição da trajetória intelectual de Fernando Henrique Cardoso. Se omito esta ou aquela obra, se passo ao largo deste ou daquele momento de sua carreira, é simplesmente porque estou sendo obediente. Trata‑se de uma breve reconstituição. Necessariamente idiossincrática. Ainda que estejamos celebrando a obra acadêmica de Fernando Henrique Cardoso, impossível esquecer do político, do político que ocupou a presidência da República. Não há como deixar de refletir sobre as duas carreiras trilhadas e, mais do que isso, sobre o notável sucesso alcançado em ambas. Há de se convir que não é pouca coisa. Poucos receberam o Prêmio Kluge e poucos ocuparam a presidência da República. Recuperando o clima intelectual em que Fernando Henrique Cardoso se formou, a referência aos conhecidos e justamente famo‑ sos ensaios de Max Weber sobre a política e a ciência como voca‑ ções é inescapável. Para todos aqueles que se formaram no interior da tradição das ciências sociais da USP, tradição esta que Fernando Henrique Cardoso tanto ajudou a criar, esses ensaios são, por assim dizer, leitura básica e obrigatória. Todos os lemos. Fernando Henri‑ que, com certeza, os usou como bibliografia em seus cursos. Fernan‑ do Henrique assina a revisão técnica de uma das traduções desses trabalhos publicada no Brasil. São dois ensaios. Para Weber, e não apenas para Weber, seriam duas carreiras distintas, sem comunicação imediata. O cientista e o político teriam ethos próprios, teriam que atender a reclamos de ordem diversa. Seus comprometimentos envolveriam lógicas distintas.

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Algo sobre a teoria dele, daaaa

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    FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: TEORIA DA DEPENDNCIA E TRANSIO DEMOCRTICA

    Fernando Limongi

    homenagem: prmio john w. kluge 2012

    Estamos reunidos hoje para celebrar a obra de Fernando Henrique Cardoso. Viemos prestar uma homenagem, manifestar publicamente o reconhecimento dos membros do Cebrap contribuio feita por Fernando Henrique Cardoso s cincias sociais. Se integrssemos o comit do Prmio Kluge teramos feito a mesma escolha.

    Pediramme para fazer uma breve apresentao da obra do nosso homenageado. A nfase foi no breve. Prometo: serei breve. Mas o breve justifica as escolhas arbitrrias que fiz na reconstituio da trajetria intelectual de Fernando Henrique Cardoso. Se omito esta ou aquela obra, se passo ao largo deste ou daquele momento de sua carreira, simplesmente porque estou sendo obediente. Tratase de uma breve reconstituio. Necessariamente idiossincrtica.

    Ainda que estejamos celebrando a obra acadmica de Fernando Henrique Cardoso, impossvel esquecer do poltico, do poltico que ocupou a presidncia da Repblica. No h como deixar de refletir sobre as duas carreiras trilhadas e, mais do que isso, sobre o notvel sucesso alcanado em ambas. H de se convir que no pouca coisa. Poucos receberam o Prmio Kluge e poucos ocuparam a presidncia da Repblica.

    Recuperando o clima intelectual em que Fernando Henrique Cardoso se formou, a referncia aos conhecidos e justamente famosos ensaios de Max Weber sobre a poltica e a cincia como vocaes inescapvel. Para todos aqueles que se formaram no interior da tradio das cincias sociais da usp, tradio esta que Fernando Henrique Cardoso tanto ajudou a criar, esses ensaios so, por assim dizer, leitura bsica e obrigatria. Todos os lemos. Fernando Henrique, com certeza, os usou como bibliografia em seus cursos. Fernando Henrique assina a reviso tcnica de uma das tradues desses trabalhos publicada no Brasil.

    So dois ensaios. Para Weber, e no apenas para Weber, seriam duas carreiras distintas, sem comunicao imediata. O cientista e o poltico teriam ethos prprios, teriam que atender a reclamos de ordem diversa. Seus comprometimentos envolveriam lgicas distintas.

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    No minha inteno ir adiante nessa remisso. Para alm de ser breve, no pretendo chatelos. Essas referncias vagas so suficientes para o que pretendo estabelecer como ponto de partida: Fernando Henrique Cardoso refuta a tese. Trilhou ambas as carreiras e o fez com distino. Mais do que isso, como procurarei mostrar, Fernando Henrique pautou sua atuao nesses dois campos por uma nica convico. A tica de que se valeu, contudo, no foi aprendida com o socilogo alemo ou em qualquer outro livro.

    O certo que no faltam cientistas, sobretudo cientistas sociais, que se lanaram na carreira poltica. Tampouco h escassez de polticos mal sucedidos, em fim de carreira, que aps serem derrotados pelas urnas buscam refgio na academia. H muitos dubls de polticos e acadmicos. A questo est em obter sucesso em ambas as carreiras. Albert O. Hirschman, com toda a sua erudio, em visita ao Cebrap logo aps a eleio de 1994, no foi capaz de citar muitos cientistas convertidos a polticos de sucesso. No passou de um par de casos, contandoos nos dedos da mo.

    Pois bem, como essas duas vocaes puderam ser aliadas? Como foi possvel chegar ao ponto mais alto em ambas?

    O fato que no incio de sua carreira como cientista, seria muito difcil vislumbrar a mais remota possibilidade de que o jovem professor viria a se candidatar ao Senado e, posteriormente, chegar presidncia. Como todos sabem, o uso do avental era mandatrio na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras. A cincia estava no centro. Fazer cincia era o objetivo maior.

    Que era este o objetivo, que o compromisso era com a cincia, algo que afirmado e reafirmado por todos os membros daquela ilustre gerao. No h entrevista ou memria do perodo, das reconstituies mais leves s mais elaboradas, em que se deixe de notar que na Maria Antnia se buscava fazer cincia, cincia com maisculas e em negrito. Aqueles que vieram a ser identificados como os representantes da Escola Paulista de Sociologia, os socilogos reunidos em torno de Florestan Fernandes, buscavam manter uma distncia, digamos, profiltica da poltica.

    Pode ser um exagero, mas, desses depoimentos, a ideia que se faz do grupo a de que seguiam risca os ensinamentos de Weber e tantos outros: a atividade cientfica pede isolamento da poltica militante. A cincia s floresce quando protegida por uma srie de casamatas penosamente construdas e defendidas. De outra forma, estariam negadas as condies para a atividade cientfica, para a definio de uma agenda de pesquisas ditada por sua prpria lgica. S assim o rigor da atividade cientfica suplanta o ensasmo. Por essas razes, como todos sabemos, a Escola Paulista de Sociologia e o Iseb seriam antpodas, opostos pelo vrtice.

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    [1] Cardoso,FernandoHenrique.O presidente segundo o socilogo.SoPaulo:CompanhiadasLetras,1998,p.342.

    No que a cincia que praticavam no fosse engajada ou no estivesse atenta realidade social e poltica brasileira. Antes o contrrio. Tratavase de fazer uma cincia comprometida com entender as transformaes sociais em curso; a formao da sociedade de classes no Brasil. No mximo, no ethos desses cientistas, em uma leitura mannhei-miana das relaes entre cincia e poltica, caberia influenciar e dirigir esse processo.

    Ainda que assim fosse, ainda que buscasse influenciar a mudana, a cincia social almejada era uma que se resguardasse das relaes diretas com o mundo poltico. Ctedra e palanque no se misturavam. No deveriam se misturar. A ctedra pedia o avental branco.

    Se assim foi no princpio, se essa era a ambio original do cientista social, como entender a entrada na poltica? Na realidade, h uma questo prvia, anterior, que pede resposta. Por que um grupo de cientistas sociais to confessadamente apoltico acaba sendo afastado da universidade? Por que afinal foram cassados?

    Quando das comemoraes de quarenta anos de fundao do Cebrap, em meio aos inmeros depoimentos que colhemos naquela oportunidade, eu coloquei essa questo ao Giannotti. Por que vocs foram cassados se no estavam metidos na poltica? A resposta, e talvez no tenha sido bem isto que o Giannotti me disse, mas foi assim que eu entendi, foi que a cassao teria se dado em funo da atuao no Conselho Universitrio da usp. A poltica universitria, e no a partidria, teria sido a causa do afastamento da universidade e da punio poltica. Mas o que realmente me chamou a ateno foi o complemento resposta, um comentrio sem maiores pretenses, jogado ao ar: Na verdade, quem de fato fazia poltica era o Fernando. Ele era o nico a conversar com a direita, entender o que eles queriam. A gente no conseguia entender as razes por trs das posies da direita. O Fernando Henrique conversava com todo mundo, negociava. Por isso, estava fazendo um baita estrago.

    J faz algum tempo que tivemos essa conversa. No sei se a reproduo fiel. No importa. Mas para quem leu O presidente segundo o socilogo no h como no se lembrar da passagem em que o ento presidente relembra os ensinamentos de seu pai: O meu pai dizia era que nunca se devia deixar de falar com o carcereiro. Nas diversas vezes em que ele foi preso nunca deixou. [] Mesmo preso, voc tem que falar, no deixar o adversrio longe. Tem que falar o tempo todo. E com o guarda, no com o capito1.

    Essas reflexes, que bem poderiam ter sido feitas por Riobaldo, ou outro personagem qualquer de Guimares Rosa, para fazer referncia a um autor que Fernando Henrique Cardoso reverencia, so cruciais para entender as duas carreiras, a ponte que liga uma a outra. Devese conversar com todo mundo, sobretudo com o carcereiro. Ele, o guarda,

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    central para trazer as notcias do mundo. E isto que distingue os grandes intelectuais e os grandes polticos: a capacidade de receber e processar as notcias do mundo.

    Ouvir e compreender as diferentes opinies argumentos e razes , incluindo a dos adversrios, algo sempre saudado entre os polticos. uma caracterstica citada com frequncia para explicar carreiras polticas bemsucedidas. Um bom poltico precisa ser capaz de ouvir. Digamos, esse ponto consensual e podemos dlo como estabelecido. Que essas sejam qualidades necessrias para um bom intelectual, contudo, creio eu, nem sempre notado. Por vezes, pareceme, apontase na direo contrria, criandose um ideal de intelectual que se aferra a suas ideias de forma intransigente, como se o intelectual precisasse acreditar em suas ideias com o fervor de um sacerdote.

    A abertura para receber notcias do mundo crucial para o cientista social, equivale recusa de se acomodar, a se contentar com as explicaes dogmticas, prontas e acabadas. Para tanto, preciso que oua e entenda os argumentos, independentemente de quem os enuncia.

    Pois muito bem, tendo feito esta longa introduo, tendo estabelecido este ponto de partida, posso passar breve apresentao da obra que me foi solicitada. Contando com esse pano de fundo, possvel identificar o fio condutor das diversas contribuies de Fernando Henrique s cincias sociais. A sua caracterstica maior o questionamento constante, a recusa resposta fcil, negar a explicao convencional, negar o dogmatismo.

    Serei especfico. Vou citar exemplos. Escolhi duas contribuies para ilustrar a caracterizao que acabei de fazer. Nessas duas oportunidades, nessas duas contribuies, Fernando Henrique Cardoso chacoalhou paradigmas estabelecidos, desafiou a explicao convencional, dispsse a pensar livremente, escapando do conforto que a reproduo do j conhecido oferece. E, como mostrarei, no segundo caso, voltouse contra as suas prprias ideias. Isto , Fernando Henrique Cardoso contribuiu para revisar as contribuies que fizera no passado e que, perigosamente, comearam a ser tratadas como dogmas. Difcil, ao meu ver, encontrar exemplo maior de grandeza intelectual.

    Aos exemplos. O primeiro, como no poderia deixar de ser, a teoria da dependncia. Sem dvida alguma, se h um trabalho ou obra que se associa imediatamente a Fernando Henrique, esta obra De-pendncia e desenvolvimento na Amrica Latina, escrita em 1966, no exlio, no Chile, em coautoria com Enzo Faletto.

    Para as geraes atuais, e mesmo para a minha, difcil explicar a ruptura contida nessa obra. Difcil porque todos somos, por assim dizer, aspas, dependentistas. Ns pensamos dentro desse modelo. Queiramos ou no. Fomos educados para os mais velhos, reeducados dentro desse paradigma. Respiramos teoria da dependn

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    [2] Cardoso,FernandoHenrique,Faletto,Enzo.Dependncia e desen-volvimento na Amrica Latina.RiodeJaneiro:Zahar,1970,p.34.

    cia. Seu sucesso foi tamanho que as teses que a obra rejeitou foram relegadas ao completo esquecimento. As que no foram inteiramente esquecidas so lidas de outra forma, so, hoje, compatibilizadas com a teoria da dependncia. O contraste e a ruptura foram esmaecidos, e tudo se passa como se uma leitura marxista da histria da Amrica Latina fosse automaticamente cunhada nos termos postos pela teoria da dependncia.

    Para mostrar o que h de novo em Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina e, obviamente, na produo de Fernando Henrique Cardoso que a antecede e a sucede, preciso abrir gavetas, ir s estantes e consultar livros empoeirados, ler o que ningum mais l. A proposio forte da obra bastante simples. O ponto de partida a rejeio de que eu cito nos pases em desenvolvimento se esteja repetindo a histria dos pases desenvolvidos2. Reconhecer hoje, para usar a linguagem corrente, a diversidade das rotas de desenvolvimento , por assim dizer, trivial. Bem, o ovo teve que ser posto em p pela primeira vez

    Contudo, no era trivial poca. Naquela quadra, essa afirmao colidia com os dogmas vigentes; questionava a suposio de uma histria linear, evolucionista, nica, na qual os pases subdesenvolvidos estariam para os desenvolvidos como o macaco estaria para o homem, para fazer aluso a uma formulao clebre e que hoje no soa bem.

    A teoria da dependncia faz mais do que desafiar os dogmas caros ao marxismo e a sua verso burguesa, a teoria da modernizao. No se contentou apenas com estilhaar o estabelecido, fez mais que isso, mostrouse capaz de recolher os cacos que produzira e reordenlos.

    No h uma rota nica para o desenvolvimento. H diferentes caminhos ou sequncias. Opes, no entanto, so limitadas. Ou seja, h uns tantos caminhos possveis e estes so determinados historicamente. Alternativas seguidas ontem limitam o conjunto de alternativas disponveis hoje. E essas escolhas incluem os regimes polticos.

    A forma como estou reconstituindo a teoria da dependncia mostra sua atualidade. Se usarmos o jargo corrente, se nos curvarmos aos modismos acadmicos, se falarmos em path dependence, critical junctures, punctuated equlibrium e correlatos possvel perceber como a matriz contida em Dependncia e desenvolvimento se mantm, como resistiu ao tempo. A obra continua influente quase meio sculo aps a sua publicao. Reconheamos ou no, somos todos dependentistas.

    E so dependentistas autores insuspeitos. A influncia de Cardoso e Faletto substancial em autores como Douglass North, misto de historiador e economista laureado com o Prmio Nobel. Em boa medida, partes considerveis da contribuio de North podem ser lidas como tradues e adaptaes da teoria da dependncia ao jargo neoclssico. Em uma de suas primeiras obras, uma histria dos Estados Unidos, North cita repetidamente a verso inglesa de Cardoso e

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    Faletto. A matriz explicativa permanece atual. Continua sendo a referncia para scholars que buscam explicar a divergncia das experincias histricas em que desenvolvimento e regime poltico so tratados em conjunto. No faltam exemplos dessa influncia e de sua persistncia. Tomese o livro de Daron Acemoglu e James Robinson, Economic origins of dictatorship and democracy. Em que pesem as frmulas matemticas que pululam a cada pgina, a matriz, o cerne do modelo explicativo, no outro seno aquele proposto por Fernando Henrique Cardoso, ainda que seu nome no conste da bibliografia.

    O ttulo da obra de Acemoglu e Robinson contm uma remisso imediata ao clssico de Barrington Moore, Social origins of dictator-ship and democracy, obra publicada no mesmo ano que Dependncia e desenvolvimento. A aproximao entre as duas obras, sobretudo nos termos em que estou a reconstituir a contribuio de Fernando Henrique Cardoso, imediata e direta. Ainda assim, distines devem ser feitas, e a novidade contida em Dependncia e desenvolvimento deve ser sublinhada. Para ser sinttico, eu diria que Cardoso e Faletto tm as respostas que Moore buscava, a saber, distinguir a rota a ser seguida pelos pases em desenvolvimento. A ndia ocupa parte importante do livro de Moore. Fundamentalmente, o que ele quer saber qual a rota do desenvolvimento a ser trilhado pela ndia e outros la-tecomers. Moore no chega, propriamente, a concluses sobre o destino da ndia. Dependncia e desenvolvimento, nesses termos, oferece uma resposta ao problema da combinao entre desenvolvimento e regime poltico que mais abrangente e atual. Mais abrangente porque engloba a Amrica Latina, cuja experincia no discutida em Social origins. Mais atual porque atrela desenvolvimento capitalista a regimes autoritrios em pases de desenvolvimento tardio. H desenvolvimento mesmo onde no h revolues burguesas e/ou camponesas. E h desenvolvimento capitalista. Por isso mesmo, a teoria da dependncia pode ser transposta a outros contextos e regies geogrficas.

    A linguagem mudou. O marxismo e a teoria da modernizao cederam lugar economia neoclssica, ao neoinstitucionalismo histrico. A matriz explicativa, o modelo, este permanece o mesmo. Podemos no perceber, no reconhecer, no mais citar Cardoso e Faletto como fazamos no passado. Podemos, seguindo os modismos, preferir North, Acemoglu e Robinson, mas Dependncia e desenvolvimento continua atual. As perguntas permanecem: por que alguns pases se desenvolvem e outros no? O que explica a ocorrncia de regimes democrticos e autoritrios ao longo do tempo e do espao? Como e por que desenvolvimento capitalista e democracia se combinam? Qual a relao entre subdesenvolvimento e autoritarismo? Como dar conta do atraso da Amrica Latina? Quem quiser responder a essas perguntas hoje

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    no ter escapatria. Comece por ler Dependncia e desenvolvimento ou ento estar fadado a inventar a roda.

    Se nos concentrarmos no Brasil, na aplicao da teoria da dependncia a nossa experincia histrica, temos que esta ofereceu a primeira explicao convincente para a instaurao de um regime autoritrio em 1964. A explicao oferecida permitiu conciliar os fatos teoria. Isso porque, e isto pode soar totalmente absurdo hoje, as primeiras interpretaes sobre o golpe enfatizavam seu lado reacionrio, reacionrio do ponto de vista econmico. Estaramos diante de uma ditadura tradicional, comandada por foras tradicionais, pelo atraso. O latifndio estaria por detrs do golpe. O latifndio aliado ao imperialismo. Isso porque a industrializao do pas ameaaria ou iria contra o imperialismo.

    No o caso de chatelos com essa reconstituio. Tampouco cabe citar os inmeros intelectuais que se aferraram a essa explicao convencional. No pretendo arranhar imagens to arduamente construdas. O fato que no foram poucos os que no notaram o que a realidade mostrava de forma to clara e incontrastvel. O mundo mandava suas notcias e muitos recusavam a receblas. Por vezes, o problema no a recusa conversa com os adversrios. Muitas vezes, o problema de ordem inversa, a insistncia em ouvir apenas os que confirmam nossas ideias, conversar apenas com os amigos. Quem assim procede acaba por recitar mantras.

    Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro a notar o carter desenvolvimentista do regime, ligando o regime, usando seus prprios termos, s necessidades da nova fase de acumulao do capital no pas. O ponto conhecido e foi explicitado e desenvolvido por Fernando Henrique Cardoso em diversos artigos. Eu tenho que honrar meus compromissos e preciso ser breve. Estabelecido que a explicao do modelo poltico brasileiro comporta uma ruptura com a viso dogmtica at ento reinante, que a explicao oferecida concilia desenvolvimento econmico e industrializao nos marcos da diviso internacional do trabalho ento reinante, que a derrocada da democracia populista se relaciona com essas transformaes, tendo estabelecido esses pontos, ou melhor, tendo estabelecido que coube a Fernando Henrique apontar os nexos entre esses termos, eu passo para o prximo ponto ou momento da carreira intelectual de Fernando Henrique Cardoso: o confronto com sua prpria teoria.

    Se possvel dizer que a teoria da dependncia e sua aplicao ao caso concreto da experincia poltica brasileira implicaram o desafio a dogmas estabelecidos, no ser menos verdade reconhecer que essa mesma teoria poderia vir a se constituir em um novo dogma. Fernando Henrique foi o primeiro a tomar conscincia e enfrentar as limitaes da sua prpria explicao. Os ttulos de alguns de seus artigos falam

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    por si: O consumo da teoria da dependncia nos Estados Unidos, As novas teses equivocadas, As desventuras da dialtica da dependncia. H muitos outros.

    O principal confronto, contudo, foi se desenvolvendo aos poucos. Um confronto com suas prprias ideias. Fernando Henrique, paulatinamente, se deu conta das consequncias polticas contidas na sua explicao para a emergncia e sustentao do novo modelo poltico. Porque h uma leitura possvel da teoria da dependncia que nos condena ao imobilismo poltico. Se o regime poltico determinado pela estrutura econmica, se esta ltima definida pelo carter dependente do capitalismo, segue que a negao da dependncia uma condio necessria para a alterao da forma do regime. O autoritarismo seria a forma poltica necessria da dominao em sociedades dependentes.

    De fato, no menu das opes histricas contempladas em Depen-dncia e desenvolvimento na Amrica Latina, no consta capitalismo dependente com democracia. O socialismo popular, representado por Allende, a nica alternativa vislumbrada. As experincias histricas elencadas, na ausncia de uma ruptura revolucionria, implicam a associao entre subdesenvolvimento e autoritarismo. H assim um duplo enclausuramento no processo de desenvolvimento da Amrica Latina, duplo porque econmico e poltico; o subdesenvolvimento e o autoritarismo persistem, resistem s transformaes. Para escapar de ambos s uma ruptura. E a ruptura parece ser antes econmica que poltica. O capitalismo dependente e associado porque a reproduo do capital no se d internamente.

    No importa quo sofisticado fosse o marxismo praticado por Fernando Henrique Cardoso e seus pares. A relao causal entre capitalismo dependente e o regime poltico tinha que ser enfrentada. O risco do determinismo continuava espreita, pronto para dar o bote, reduzindo o requinte analtico da leitura estrutural do Capital a seus termos mais bsicos. Nos texto que publica no perodo, Fernando Henrique Cardoso evita de forma hbil e cuidadosa uma interpretao economicista da emergncia da ditadura militar. Os termos empregados para dar conta da relao entre desenvolvimento capitalista associado e regime poltico so escolhidos com um cuidado artesanal. Mas esse zelo no resolve o problema de fundo, pois deixa em aberto qual precisamente a natureza da relao causal entre estrutura e superestrutura. A recusa a uma afirmao taxativa pode ser lida como um reconhecimento implcito das consequncias envolvidas.

    O fato que em O modelo poltico brasileiro, coletnea de artigos publicada em 1973, em que o artigottulo oferece a verso acabada oferecida por Fernando Henrique Cardoso para dar conta da emergncia do regime militar, j nesse livro consta um artigo intitulado a A questo democrtica. No propriamente uma questo, mas sim uma pos

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    sibilidade. E desta possibilidade que Fernando Henrique Cardoso vai se ocupar nos anos seguintes. O tema ocupa o centro de seu prximo livro. O seu ttulo diz tudo: Autoritarismo e democratizao. O ttulo anuncia um programa de pesquisa, um compromisso, um engajamento poltico. O engajamento com o segundo termo, a democratizao, leva progressivamente ao questionamento e abandono das categorias analticas mobilizadas para dar conta do primeiro, da emergncia do autoritarismo. A explicao para o primeiro termo, contudo, colide com a possibilidade do segundo.

    Um pequeno detalhe na introduo desse livro no pode passar sem meno. Fernando Henrique apresenta seus artigos como ensaios e os justifica fazendo referncia s longnquas razes lusitanas da nossa tradio cultural e legitimidade para os nossos esforos de sntese entre o analisar e o querer. Os ensastas brasileiros Antonil, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, so mencionados como exemplos seguidos. A pretendida ruptura entre a cincia e o ensasmo que fornecera o ethos no qual a escola sociolgica paulista buscou se legitimar , portanto, reconsiderada, posta em xeque. O momento outro.

    A possibilidade, a mera possibilidade, da democratizao pede uma ruptura no plano das ideias. Como dar conta da possibilidade da emergncia de uma ordem poltica democrtica, por minimamente democrtica que seja esta ordem, em uma sociedade perifrica? A partir desse livro, os artigos acadmicos de Fernando Henrique Cardoso, muitos deles publicados na revista do Cebrap, ganham um carter que, na falta de melhor termo, chamarei de exploratrios. Talvez fosse mais apropriado dizer investigativos. Isso porque os artigos revelam uma abertura s mais diferentes perspectivas analticas disponveis, uma disposio a testar o alcance de explicaes emergentes e alternativas. Em diversas passagens desses textos, Fernando Henrique Cardoso afirma a necessidade imperiosa de se construir um novo paradigma, uma nova teoria que seja capaz de oferecer as balizas necessrias para a construo poltica com que a sociedade brasileira se defronta. Quero ressaltar essa inquietao intelectual, o movimento incessante ditado pelas notcias que so dadas pela realidade, a necessidade de ter respostas para as questes e opes concretas.

    To logo nos apresenta uma explicao convincente para a emergncia do autoritarismo, Fernando Henrique Cardoso se pe em campo para examinar a possibilidade de sua derrocada. E ao fazlo, ao estudar e buscar entender os rumos possveis de, naquele momento, um remoto e incerto processo de democratizao, afastase progressivamente da teoria da dependncia. O mundo voltara a mandar notcias. A realidade mudou, se moveu, e se moveu de forma incompatvel com a teoria.

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    Neste ponto, cabe mencionar a importncia que o Cebrap desempenhou na converso terica que a realidade poltica imps. E aqui se revela outro aspecto importante da contribuio intelectual de Fernando Henrique Cardoso. O Cebrap, sob sua liderana, esteve sempre aberto a se reciclar, a abrir suas portas, acolhendo cientistas sociais com as mais diversas formaes. O Cebrap no foi uma extenso da Maria Antnia. Tampouco a verso institucionalizada do grupo de leitura do Capital. O Cebrap foi muito mais que isso. Seu papel para a renovao das cincias sociais ainda est por ser escrito. Mas o que eu queria ressaltar no momento um fato bem palmar e pedestre. Muita gente formada fora da usp veio a trabalhar no Cebrap. Alm de multidisciplinar, o Cebrap sempre esteve aberto a receber intelectuais com formaes diversas. No fiz pesquisa, mas vm minha memria os nomes de Francisco de Oliveira, Carlos Estevo Martins, Vilmar Faria, Bolvar Lamounier. Sei que posso estar cometendo injustias, esquecendo nomes que no poderiam deixar de ser mencionados. Cito os que trabalharam com os temas afins reconstituio que ofereo. As injustias que certamente cometi, essas omisses injustificveis, contudo, s reforam o meu ponto: o Cebrap no se fechou. Como me disse certa vez a Elza Berqu, a marca maior do Cebrap sempre foi seu ecumenismo analtico.

    A tarefa a ser enfrentada pedia a mobilizao de um novo arsenal. A leitura estrutural do Capital, a exegese de Marx, no traria as respostas para as perguntas que se colocavam. E isto reconhecido, implcita e explicitamente, nos artigos de Fernando Henrique Cardoso do perodo. Era preciso se abrir para o dilogo intelectual. Era preciso beber em novas fontes se havia pretenso de contribuir para a construo de uma democracia.

    Uma vez mais, o mundo mandava notcias demandando respostas que implicavam romper com dogmas. E a demanda tinha carter urgente. Era para hoje. O processo poltico ganhou uma celeridade inesperada, surpreendente. O incio do processo de distenso, posteriormente rebatizado de abertura, e os resultados surpreendentes da eleio de 1974 no figuravam no radar de qualquer analista. A resposta do Cebrap imediata, no ato, de batepronto. A anlise estrutural do capitalismo cede lugar pesquisa de opinio. Mas no o mtodo que importa destacar aqui. O que merece nfase a capacidade de se pr em campo, de responder e processar as notcias que vinham do mundo. E no se tratou de dar uma resposta qualquer. Os artigos de Vilmar Faria, Bolvar Lamounier e Fernando Henrique Cardoso publicados em Os partidos e as eleies no Brasil no explicam apenas a surpresa das urnas, eles vo muito alm, eles so prospectivos, indicam rumos. Por assim dizer, est tudo ali. Para os interessados em estudar o processo de redemocratizao, esta a obra, a referncia. Repito: est tudo ali. A

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    redemocratizao poderia e iria caminhar pela via eleitoral. No mdio prazo, o regime seria derrotado eleitoralmente.

    A superestrutura se vingara da estrutura. E essa vingana tinha sabor amargo para os que no acreditavam que esse descolamento seria possvel. A realidade se imps. O Cebrap, como todos sabemos, engajouse de forma direta na luta pela democracia desde seu incio. Antes mesmo da eleio de 1974, se no me engano, lderes do ento mdb, procuram o Cebrap para que este colaborasse na elaborao do programa do partido. A participao no se resumiu poltica partidria. No h como deixar de mencionar So Paulo: crescimento e pobreza e seu impacto sobre a desconstruo da imagem que o regime autoritrio buscara construir. O milagre econmico gerara pobreza. O santo tinha ps de barro. O rei foi apresentado em sua nudez descarada. Mas essa uma longa histria. No outra histria, posto que a histria que Fernando Henrique ajudou a construir. Mas longa demais para que eu seja breve.

    Fernando Henrique Cardoso criou uma instituio que soube se renovar e que sob sua liderana ofereceu respostas aos problemas postos na agenda do dia. As contribuies que estou destacando apontam em uma nica direo, a da abertura intelectual, a da disposio para se renovar recusando o pensamento dogmtico. Caractersticas, vale lembrar, que Fernando Henrique Cardoso j havia demonstrado no Conselho Universitrio da usp nos anos 1960. Ouvir argumentos, entender a natureza das ideias para, ento, fazer um estrago, para usar a expresso do Giannotti.

    Creio poder concluir notando que esta a marca maior da obra intelectual construda por Fernando Henrique Cardoso, a fuga resposta convencional. Por isto mesmo, porque capaz de ouvir, porque capaz de distinguir as ideias da sua autoria, por isto mesmo, Fernando Henrique foi capaz de construir uma obra. Uma obra construda em tempos difceis, em tempos de golpes, de violncia e intolerncia. Tempos adversos.

    Fernando Henrique Cardoso nunca deixou de aceitar e enfrentar os desafios. Esteve sempre aberto a ouvir as notcias do mundo, permaneceu fiel aos ensinamentos recebidos de seu pai. preciso conversar com todos, at com o carcereiro. Fernando Henrique Cardoso, porque sempre se mostrou disposto ao debate intelectual e poltico, soube onde estava o novo. Antes dos demais. Sorte nossa.

    Fernando Limongi professor titular do departamento de Cincia Poltica da fflchusp e

    pesquisador do Cebrap.

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