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Page 1: Ferreira Júnior; Figueiredo - Artesão de Miriti, Habitué dos sonhos: praxeologia do processo de criação dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba, Pará

ISSN 2359-5353 154

I Seminário Internacional Sociedade e Cultura na Panamazônia

GT 01 – Expressões Culturais e Identidades na Amazônia Contemporânea

Artesão de Miriti, Habitué dos sonhos: Praxeologia do processo de criação dos

Brinquedos de Miriti de Abaetetuba, Pará

Resumo

Este trabalho analisa práticas sociais que permitem o desenvolvimento, a preservação e o

repasse de saberes dos artesãos que criam os chamados Brinquedos de Miriti em Abaetetuba,

e que contribuem para definir o processo criativo por eles adotado. Utiliza-se da abordagem

do Campo Social em conjunto com contribuições do estudo dos ajuntamentos e das

interações, sob restrição de dados coletados durante entrevistas e observações diretas, e

conclui que a definição desse ofício é feita por meio dos esquemas estruturadores que são

próprios a esse grupo de artesãos sem necessidade de realização de cálculos inconscientes ou

de obediência a regras explícitas.

Palavras-chave: Práticas sociais. Brinquedos de Miriti. Processo criativo.

Abstract This study examines social practices that enable the development, preservation and transfer

of the knowledge of the artisans that create the so-called Miriti Toys in Abaetetuba, and that

contribute to defining the creative process adopted by them. Using the approach of Social-

field together with contributions from the study of gatherings and interactions under

restriction data collected during interviews and direct observations, and concludes that the

definition of this craft is made by means of structuring schemas that are proper to this group

of craftsmen without the need to perform calculations or unconscious obedience to explicit

rules.

Keywords: Social practices. Miriti Toys. Creative process.

Introdução

O uso de recursos florestais em atividades socioeconômicas e culturais é

considerado uma das características básicas da humanidade. Entre tais atividades pode-se

citar o artesanato, e dentre os recursos utilizados, a palmeira conhecida popularmente como

miriti (Mauritia flexuosa L.f.) ocupa posição de destaque em diversas localidades, sendo

material de múltiplo uso em que todas suas partes são aproveitadas pelo gênio humano

mediante a aplicação de técnicas variadas, o que permite considerá-la uma palmeira

sociocultural que também possui importância econômica.

Presente em todos os estados da Amazônia Legal e considerada a palmeira mais

abundante do Brasil, destacam-se dentre os usos atuais e potenciais do miriti sua utilização na

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alimentação por meio do fruto in natura ou sob a forma de doces, tortas, bolos, mingau, etc.

(BARROS; SILVA, 2013); a produção de bebidas fermentadas e não fermentadas; o uso

complementar na construção de pontes e de habitações (paredes e telhados); seu

aproveitamento como matéria-prima para produção de papel (FUNDAÇÃO CURRO

VELHO, 2006); a produção de biocombustível a partir de seu fruto (PESCE, 2009); o uso

como planta ornamental próximo a cursos d’água de parques e jardins (HOYOS; BRAUN,

2001); a produção de cestarias regionais (artefatos trançados de fibra); e a produção de

bijuterias, dentre tantos outros.

Em Abaetetuba, município localizado na mesorregião Nordeste do Estado do Pará,

apesar da palmeira também ser aplicada em muitos dos usos citados e de ser forte sua

presença na vida de seus habitantes, sobretudo os que vivem na região composta por cerca de

70 ilhas pertencentes ao município, há uma distinção em relação aos demais casos citados: o

uso da parte interna do pecíolo, conhecida como bucha do miriti, na produção de um tipo de

artesanato próprio do município, os Brinquedos de Miriti de Abaetetuba, não identificado em

nenhuma outra localidade em que a palmeira é amplamente utilizada, o que permite que

Abaetetuba, que já fora chamada de “Terra da Cachaça”, hoje seja denominada como a

“Capital Mundial dos Brinquedos de Miriti”.

Os Brinquedos de Miriti de Abaetetuba são um tipo de artesanato-artístico, ou seja,

um tipo de artesanato que realiza um encontro entre uma técnica e uma intuição, situando-se

na zona fronteiriça entre a arte e a criação extra-artística, no qual a função estética é muito

mais visível e, ipso facto, o que é mais valorizado é sua aparência formal, que é expressa em

sua forma, em suas cores, em seu conjunto expressivo e em sua originalidade (LOUREIRO,

2012).

Por isso este trabalho apresenta uma análise das práticas sociais dos homens e

mulheres que criam os Brinquedos de Miriti de Abaetetuba – doravante denominados como

artesãos de miriti – que permitem o desenvolvimento, a preservação e o repasse de seus

saberes, e que contribuem para definir o processo criativo que adotam dentro de um campo de

relações estruturado por diferentes agentes sociais (institucionais e individuais) que nele

ocupam posições distintas. Como processo criativo, por sua vez, considera-se aquele que é

mais amplo que a descrição das técnicas empregadas, englobando ademais dessas técnicas

todo o recurso às memórias acumuladas, às experiências vividas e aos sonhos e devaneios

que o artesão de miriti realiza para criar suas peças, e todos os significantes que a atividade

possui enquanto prazer em exercê-la e comercializar seus resultados.

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Procedimentos teórios-metodológicos

Abordagem teórica

Metodologia, enquanto estudo dos caminhos e dos instrumentos utilizados para se

fazer ciência, é o instrumental básico para que o pesquisador racionalize e aperfeiçoe seus

esforços e garanta as melhores posturas críticas e propositivas no momento da realização da

atividade que lhe confere identidade. Assim como Feyerabend (2007) defendera, a ciência

não se constitui como uma entidade única, coerente e uniforme, o que permite a adoção de

múltiplas abordagens para se aproximar de um entendimento da realidade, evitando-se

abordagens totalizantes.

Dessa forma, realiza-se aqui uma intersecção teórico-metodológica que tem como

referência a abordagem do Campo Social em que os conceitos de campo de relações e de

habitus são categorias importantes (BOURDIEU, 2013, 2004), com abordagens empíricas e

metodológicas do estudo das culturas populares e da relação destas com o modo de produção

vigente (GARCÍA CANCLINI, 1983) e, como contraponto, o uso do estudo dos

ajuntamentos e das interações (GOFFMAN, 2010).

Pautada na constatação de que o entendimento dos Brinquedos de Miriti enquanto

artesanato requer mais do que descrições do desenho e das técnicas de produção que os

caracterizam, sendo necessário o estudo das práticas sociais de quem o cria e o vende e de

quem o observa ou o compra (GARCÍA CANCLINI, 1983), evidenciadas pelo processo

contínuo de mudança em que se desenvolvem e que tem sua gênese em um conjunto de

influências diretas de natureza complexa, essa abordagem permite estabelecer como foco a

ação social, e seus princípios geradores, dos produtores desse tipo de cultura popular, que

normalmente são deixados em segundo plano nas abordagens mais frequentes, que enquanto

preferem o destaque ao estudo desses bens simbólicos, preterem seus criadores.

Assim, inicialmente são descritas as bases empíricas do objeto de estudo, partindo-se

de conclusões sobre o problema das relações que as culturas populares possuem com o

desenvolvimento capitalista (GARCÍA CANCLINI, 1983) e restabelecendo-se a importância

de se considerar a existência de indivíduos, de ações e de interações dentro do escopo destas

manifestações culturais, situando-as no atual processo pretensamente denominado de

desenvolvimento sem desmembrá-la do social e do econômico.

A noção de campo social, microcosmo que obedece a leis sociais mais ou menos

específicas e dispõe de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada em relação ao

macrocosmo social (BOURDIEU, 2004), destaca o problema de identificar a natureza das

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pressões externas sobre o campo, enquanto o estudo do conjunto de princípios geradores e

estruturadores de práticas e de representações próprio de um grupo de agentes sociais

(BOURDIEU, 1983), denominado de habitus, permite entender as ações que os agentes

realizam para sua manutenção e reprodução no campo e o grau de capacidade que possuem

de refratar, retraduzir e transfigurar a seu benefício as pressões ou demandas externas de

modo a definir o repasse de seus saberes e seus processos criativos mais em função de suas

determinações internas.

Como contraponto, o uso da análise situacional para o estudo de interações permite a

realização da descrição minuciosa dos momentos de copresença e, ao analisar os lugares de

ajuntamento de atores sociais, propicia o entendimento dos juízos formados pelo grupo social

e a descrição de situações uteis para a compreensão dos processos afetivos, sensíveis e morais

que ressonam durante o desenvolvimento do processo criativo (CEFAÏ; VEIGA; MOTA,

2011; GOFFMAN, 2010).

Coleta e análise dos dados

Após a apresentação da abordagem metodológica adotada, é importante a

apresentação das técnicas de pesquisa utilizadas para a coleta e a análise de dados,

direcionadas de forma descritiva, objetivando identificar características do fenômeno

estudado e estabelecer relações entre variáveis.

Este estudo foi realizado no município de Abaetetuba, pertencente à mesorregião do

Nordeste paraense e à microrregião de Cametá (IDESP, 2012). Com população estimada em

aproximadamente 147.000 habitantes (IBGE, 2014), suas principais atividades econômicas

são a agricultura, o extrativismo (principalmente de frutos de açaí e miriti, e palmito de açaí),

a extração de madeira e a atividade pecuária (IDESP, 2012).

O universo considerado na pesquisa foi composto pelos artesãos do município de

Abaetetuba e das aproximadamente 70 ilhas pertencentes ao município, que trabalham com a

fibra de miriti. A amostra foi composta pelos artesãos que, dentro do universo considerado,

criam como principal artefato os Brinquedos de Miriti, utilizando, para isso, a polpa retirada

do pecíolo da folha ainda verde, e foi selecionada mediante critérios de expressividade e

representatividade no interior da população foco do estudo (GIL, 2011; THIOLLENT, 1987).

Precedidos por uma pesquisa bibliográfica, foram realizados trabalhos de campo em

que se aplicou inicialmente a técnica de entrevista não-diretiva ou aprofundada, que consistiu

na definição de um tema-chave a partir do qual os interlocutores selecionados falaram sem

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responderem a perguntas predeterminadas, seguida da realização de entrevistas diretivas –

tipo de entrevista em que o pesquisador comunica oralmente a cada interlocutor as mesmas

perguntas, que podem ser fechadas, livres ou de múltipla escolha, e anota as respostas dadas

imediatamente (THIOLLENT, 1987) –, com um grupo maior de indivíduos selecionados com

base no critério de amostragem anteriormente apresentado, e da observação direta de

variáveis determinadas como importantes de serem acompanhadas.

Discussão

As relações sociais que ocorrem no interior de uma atividade artístico-cultural

específica e que contribuem para defini-la são importantes de serem estudadas por permitirem

o entendimento de que a cultura também se movimenta no que é visto somente como

socioeconômico e que práticas consideradas culturais também exercem funções econômicas e

sociais. A discussão desenvolvida neste trabalho descreve os artesãos de miriti, suas práticas,

pensamentos e maneira de encarar a realidade para, a partir de então, consolidar análises

sobre a dinâmica de seus saberes, sobre a reprodução do capital cultural específico à

atividade que desenvolvem, sobre o processo de assimilação do habitus do grupo e sobre a

definição do processo criativo que adotam.

Os artesãos de miriti ocupam a centralidade do modelo teórico-metodológico

desenvolvido e a discussão travada está relacionada ao seu modo de vida e o ethos que o

permeia, e aos seus saberes e fazeres, objetivando apreender quem são, como vivem e o que

fazem, para, a partir desse entendimento, alcançar as relações que contribuem para ditar quem

eles devem ser e, em última instância, a forma pela qual devem criar e se associar e organizar

como grupo. Estes agentes criam geralmente integrados com a família e pessoas da

vizinhança, esculpindo no miriti formas simples que recriam suas experiências vividas, o

mundo que lhes cerca e seus sonhos, com ciência e destreza no manuseio das ferramentas

cortantes que utilizam e íntimo conhecimento da matéria frágil que é o miriti (LOUREIRO,

2012; SILVEIRA, 2012; LEITE, 2009).

No início do processo criativo, o artesão aciona memórias acumuladas e

experiências vividas para traduzir, a partir do seu olhar, o universo amazônico que vivencia

(SILVEIRA, 2012), recriando sua realidade sem buscar uma cópia fiel, mas produzindo

objetos e figuras que resultam de uma simplificação de traços, com manutenção dos

essenciais significantes, e que intermedeiam relações entre uma subjetividade e outra

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(LOUREIRO, 2012). Referenciada na vida cotidiana e laboral da população da qual os

artesãos de miriti fazem parte, toda inspiração provém do que se compartilha com os demais.

Apesar de estarem inseridos no processo de urbanização e globalização em curso,

que faz com que, por conta das tensões e conflitos inerentes ao próprio campo social, oscilem

entre uma lógica e outra, os artesãos de miriti são caracterizados por pensamentos,

percepções e ações próprios dos esquemas interiorizados pelo ribeirinho amazônida, o que

lhes permite, por exemplo, uma maneira distinta de tratar a criança, que é integrada na vida e

nas atividades que exercem por meio de um processo próprio de aprendizagem do mundo.

Por meio desse processo as crianças auxiliam seus pais-artesãos na separação do

material adequado e acompanham com o olhar a realização dos cortes, entalhes e pintura, às

vezes ajudando na arrumação das peças ou elaborando suas primeiras peças para serem

utilizadas em seus jogos, iniciando-se na aprendizagem desse ofício e na reprodução cultural,

moral e intelectual dos arbítrios próprios do grupo. Neste contexto, o trabalho infantil não

possui o caráter aviltante que comumente se lhe associa, sendo mecanismo de inserção das

crianças nos costumes e tradições da comunidade da qual fazem parte e uma forma de

assimilação de habitus e de reprodução de um capital cultural específico.

Além de todas as experiências passadas que integram o habitus dos artesãos de

miriti, empregado como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações, ainda se

destaca neles uma forte Fé, que se expressa no dia a dia e tem como ponto alto a chegada a

Belém, capital do Pará, durante a festa do Círio de Nazaré. O Brinquedo de Miriti é elaborado

manualmente para o público restrito e não orientado, mas sua produção recebe motivações

específicas na época do Círio de Nazaré (LOUREIRO, 2012), estando integrado na estrutura

extralitúrgica dessa festa, compartindo com a Santa na berlinda, símbolo da Fé, e a Corda

atada à berlinda, símbolo da Devoção, a condição de um de seus signos fundamentais, sendo

o símbolo artístico-cultural da festa.

No entanto, os artesãos de miriti não vivem desprendidos dos processos de

transformação acelerada que a própria região vivencia. E talvez como resposta às pressões

exercidas por turistas e outros tipos de consumidores, por lojas de artesanato, por produtores

culturais, por instituições de fomento ao empreendedorismo e por órgãos culturais e de gestão

e planejamento turístico, por exemplo, ampliam as formas de artesanato que criam e

modificam suas maneiras de criar e comercializar sem mudarem, contudo, o princípio gerador

de suas práticas e, por isso, conseguem manter-se e reproduzir-se no campo em que se

relacionam.

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Considerações finais

As discussões desenvolvidas neste trabalho estão voltadas para o fomento de uma

narrativa que parte da valorização e do reconhecimento das práticas que surgem dentro de

uma cultura de saberes sobre recursos da natureza que, apesar de acionar em alguns

momentos uma linguagem técnica, busca direcionar-se para uma linguagem de saberes e de

princípios que regem estas práticas sociais e culturais desenvolvidas pelos artesãos que criam

os Brinquedos de Miriti de Abaetetuba. Há, dessa forma, um movimento de deslocamento da

análise prioritária dos bens culturais criados para os agentes que os criam, uma vez que tais

bens só são possíveis por intermédio destes. As considerações desenvolvidas permitem

afirmar que a dinâmica de transmissão e manutenção de saberes e o processo criativo dos

artesãos de miriti, que varia de acordo com a peça a ser criada e de acordo com o artesão,

com as demais pessoas que comporão esse núcleo criativo e com as relações sociais que

ocorrerão nesse ajuntamento que invariavelmente a criação dos Brinquedos de Miriti

constitui, é definida mais em função das práticas próprias do modo de vida e dos saberes e

fazeres destes agentes do que pelas intervenções e imposições dos agentes responsáveis pelo

controle mercadológico e pelas políticas públicas nesse campo social que se opta por

denominar de Campo de Relações no Artesanato de Miriti em Abaetetuba.

Não há possibilidade de desvincular esse processo criativo desenvolvido pelos

artesãos de miriti que permite a existência desse tipo singular de artesanato em Abaetetuba da

categoria trabalho, e, não obstante, tal processo é a demonstração de que o trabalho, enquanto

categoria-base para o estudo da sociedade e das expressões culturais panamazônicas, é

perfeitamente passível de ter dimensões que não somente aquela dimensão desvirtuada que o

vincula a emprego, a renda e a salário, maneira pela qual essa prática tão própria dos homens

e das mulheres entrou no sistema de mercado como venda de força de trabalho e que

transforma o trabalhador em avatar da própria mentalidade racionalista capitalista. Assim, a

feitura dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba é um processo criativo que envolve um labor

físico, intelectual, sensitivo e criativo de entalhamento dos instantes vividos por seus

realizadores. É uma faina diária que possui uma maneira particular de tratar a beleza e que se

expressa numa atitude de contemplação estética permanente e numa temporalidade lúdica

preenchida pelo deleite do talento, da alegria e da brincadeira, na qual o trabalho também

pode ser liberdade de imaginação e prazer de criar.

Isto significa que na definição do seu ofício, feita por meio dos esquemas

estruturadores que lhe são próprios, os artesãos de miriti conseguem resistir de forma não

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deliberada às imposições do sistema social e econômico em que estão inseridos por meio de

práticas que lhes são próprias e que não estão pautadas no cumprimento de regras que não

aquelas que são originárias do encontro, a partir de posições específicas, de seu habitus com

uma determinada situação vivida no campo de relações do qual fazem parte sem a

necessidade de realização de uma espécie de cálculo inconsciente ou de obediência a uma

regra explícita, ou seja, como resultado da orientação de suas práticas a determinados fins

(econômicos, sociais e culturais) sem ser conscientemente dirigidas a esses ou por esses fins.

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