fernando jorge santos farias

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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação Scricto Sensu em Educação/Mestrado Fernando Jorge Santos Farias Representação de Educação na Amazônia em Dalcídio Jurandir: (des) caminhos do personagem Alfredo em busca da educação escolar Belém-PA 2009

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  • Universidade do Estado do Par Centro de Cincias Sociais e Educao Programa de Ps-Graduao Scricto Sensu em Educao/Mestrado

    Fernando Jorge Santos Farias

    Representao de Educao na Amaznia em Dalcdio Jurandir: (des) caminhos do personagem

    Alfredo em busca da educao escolar

    Belm-PA 2009

  • Fernando Jorge Santos Farias

    Representao de Educao na Amaznia em Dalcdio Jurandir: (des) caminhos do personagem

    Alfredo em busca da educao escolar

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao pela Universidade do Estado do Par/Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educao na Amaznia. rea de concentrao: Educao, Identidade e Diversidade Literria na Amaznia. Orientadora: Profa. Dra. Josebel Akel Fares. Co-orientadora: Profa. Dra. Denise Simes Rodrigues.

    Belm-PA 2009

  • Dados internacionais de catalogao e publicao (CIP). Biblioteca do Centro de Cincias Sociais e Educao, UEPA,

    Belm - PA.

    FARIAS, Fernando Jorge Santos . Representao de Educao na Amaznia em Dalcdio Jurandir: (des) caminhos do personagem Alfredo em busca da educao escolar/ Orientadora: Dra. Josebel Akel Fares; Co-orientadora: Dra. Denise Simes Rodrigues. Belm/PA, 2009.

    120f. Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Par/Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Belm/Rio de Janeiro, 2009.

    1. Representao de educao. 2. Dalcdio Jurandir. 3. Educao na Amaznia. 4. Literatura Paraense. I. Farias, Fernando Jorge Santos. ll. Ttulo.

  • Fernando Jorge Santos Farias

    Representao de Educao na Amaznia em Dalcdio Jurandir: (des) caminhos do personagem

    Alfredo em busca da educao escolar

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao pela Universidade do Estado do Par/Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educao na Amaznia. rea de concentrao: Educao, Identidade e Diversidade Literria na Amaznia. Orientadora: Profa. Dra. Josebel Akel Fares. Co-orientadora: Profa. Dra. Denise Simes Rodrigues.

    Data da Defesa: _____/_____/_____

    Banca Examinadora:

    ________________________________ - Orientadora Prof Josebel Akel Fares Dra. em Comunicao e Semitica - PUC/SP Universidade do Estado do Par

    ________________________________ - Co-orientadora Prof Denise de Souza Simes Rodrigues Dra. em Sociologia UFCE/CE Universidade do Estado do Par

    ________________________________

    Examinadora Prof Maria do Perptuo Socorro Gomes de Souza Avelino de Frana Dra. em Educao UNICAMP/SP Universidade do Estado do Par

    ________________________________

    Examinador Prof. Paulo Jorge Martins Nunes Dr. em Literaturas e Lngua Portuguesa - PUC/MG Universidade da Amaznia

  • minha me, que como gente da Aristocracia de p no cho, apresenta-se em meu viver como farinha dgua do meu beiju, e faz, constantemente, minha educalimentao.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradecer exteriorizar contemplao com o outro. A amorosidade me leva a reconhecer Andrea Farias, Messias Farias, Roseane Rabelo, Calixto e Messias Santos como grupo responsvel por minha existncia e sobrevivncia constante. Minhas reverncias se voltam tambm ao povo de minha terra, principalmente, meus parentes de So Domingos do Capim, nordeste do Par, representados por Bernardo Pantoja e Josefa dos Santos.

    Intelectualmente, sou grato a um grupo de professores (as) e amigos (as) do mundo acadmico. Dentre elas, destaco Ivanilde Apoluceno, grande jia de nosso programa por sua sapincia serena. Ana Telma Monteiro e Elizabeth Teixeira, amigas, professoras, tutoras responsveis deu permanecer e crescer na UEPA.

    Josebel Fares e Denise Simes, orientadoras da pesquisa, so mencionadas por serem preciosidades. Bel com suas Poticas Marajoaras, pacincia e preciso, guiou-me, definitivamente, rumo a um mundo encantador, por meio da Literatura: o mundo amaznico. Quando embrenhado na mata de conhecimento, me senti mundiado pela Sociologia Hbrida de Denise. Assim, apenas esbocei transitar por uma Sociologia caminho comum de uma professora impar dado o ecletismo intelectual que suas palavras transpiram, em nossa Amaznia.

    Ainda na qualificao, fui presenteado com as contribuies valiosas de Socorro Frana e Marli Furtado. Respectivamente, as professoras me apontaram um coerente fazer pesquisa em Histria da Educao e uma anlise refinada to quanto o Ciclo dalcidiano. Docentes como Ana Waleska, Maria Ins Marcondes, Karl Erik e Marcelo Andrade s enriqueceram a investigao. A disponibilidade, flexibilidade e sabedoria de Marcelo me revelou, a cada dia, um parente intelectual.

    Agradeo tambm a dialogicidade dos colegas do mestrado/Doutorado em Educao da UEPA, PUC-RIO, CUMA, NEP (minha casa de aprendizagens cotidianas) e GECEC (minha formao intercultural, descontrada e produtiva), Casa de Rui Barbosa (Acervo Dalcdio Jurandir/RJ) Soraia, Leo, Paula, Hugo, Arquivo Nacional/RJ e Arquivo Pblico do Par Stiro, Alan, Maria.

    Meu obrigado se estende ao CNPq e a FAPESPA pela ajuda financeira. Talvez, sem o financiamento, a pesquisa no encontrasse realizao.

  • Para que ento estudara l na Inglaterra? De que valiam seus conhecimentos? Ouvira-o dizer, certa vez, sem entend-lo: Aprendi para ser um proprietrio. Que queria dizer com isso?

    Dalcdio Jurandir, 1994, p.345.

  • RESUMO

    FARIAS, Fernando Jorge Santos. Representao de Educao na Amaznia em Dalcdio Jurandir: (des) caminhos do personagem Alfredo em busca da Educao Escolar. 120f. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Educao PPGed/UEPA. Belm, 2009.

    A pesquisa tem por objetivo analisar as representaes de educao presentes nos romances Chove nos campos de Cachoeira e Trs Casas e um Rio, do escritor amaznida Dalcdio Jurandir. Ao eleger para a anlise as situaes de educao vivenciadas por Alfredo, personagem presente nos dois romances, a investigao segue a proposio descritivo-interpretativa que parte das proximidades com a educao escolar que o personagem tem, e procura dialogar com algumas compreenses tericas acerca do contexto educacional no incio dos sculo XX, mais especificamente, o incio dos anos 20. No intuito de contextualizar/ambientar as situaes de educao observadas nos romances, a anlise leva em considerao a formulao discursiva de Orlandi (1988; 1989; 2003; 2005) e destaca do perodo analisado caractersticas sociais, polticas, econmicas e culturais que embasam o aspecto educacional. Dentre as concluses do estudo, destaca-se a condio em que Dalcdio elabora um quadro de educao escolar muito prximo ao que o Brasil, em especial a Amaznia, no incio do sculo passado, teve: professores desqualificados/mal remunerados, recursos materiais/pedaggicos inadequados e ambientes escolares inapropriados, dentre outras questes. A representao dalcidiana acaba por denunciar uma educao no interior da Amaznia, ainda esquecida pelo poder pblico. Ao constantemente questionar a educao escolar como detentora do saber, o personagem Alfredo refugia-se no sonho de ao menos estudar em Belm ou, utopicamente, no Anglo-Brasileiro, no Rio de Janeiro. Dada impossibilidade, at ento, dos estudos em Belm, to pouco na escola fluminense, o personagem compreende que a vida diria lhe ensina mais do que as escolas do interior da Amaznia, a cada dia mais debilitadas. Assim, para o personagem, a Educao de Vivncia assume um valor de ensinamentos que verdadeiramente educam o indivduo. O cotidiano do garoto possibilita ainda que ele constate que a vida e feita de injustias, de desigualdades. De um lado, uns sonham em estudar em escolas de qualidade no ensino, de outro, crianas arrastam-se rumo a um ensino enfadonho e que no satisfaz as necessidades cotidianas locais. Estudar a educao na Amaznia, na dcada de 20, partindo dos romances de Jurandir, consiste em um retorno histrico-educacional necessrio para (re) pensar a atual situao educacional na Amaznia.

    Palavras-chave: Representao de educao. Dalcdio Jurandir. Educao na Amaznia. Literatura Paraense.

  • ABSTRACT

    FARIAS, Jorge Fernando Santos. Representation of Education in the Amazon in Dalcdio Jurandir: (un) Alfredo character of the paths in search of Elementary Education. 120f. Masters dissertation. The Postgraduate Program in Education - PPGed/UEPA. Belm, 2009.

    The research aims to examine the representations of education in novels rains in the fields of Waterfall and three houses and a writer of the Amazon River Dalcdio Jurandir. By electing to analyze the situation of education experienced by Alfredo, this character in both novels, the research follows the proposition that descritvo-interpretation of the proximity to the school that has the character, and seeks dialogue with some understandings about the theoretical context education in the early twentieth century, particularly in the early 20s. In order to contextualize / fit the situations of education found in novels, the analysis takes into account the discursive formulations of Orlandi (1988; 1989; 2003; 2005) and out of the analysis period features social, political, economic and cultural. Among the findings of this study, if the condition that Dalcdio prepare a framework for school education very close to that Brazil, especially the Amazon at the beginning of the last century, was: teachers unskilled / low-paid, material resources / educational inadequate and inappropriate school environments, among other issues. The representation dalcidiana ultimately terminate an education in the Amazon, yet forgotten by the public. By constantly questioning the school as the holder of knowledge, the role of Alfredo refuge in the dream of studying at the Castle or, idealistically, the Anglo-American in Rio de Janeiro. Given the impossibility, until then, studies in Belm, so little in school Fluminense, the character understands that the daily Amazon teaches you more than the schools within the Amazon, every day, weakened. Thus, for the character, the Education of Experience assumes a value of lessons to truly educate the individual. The daily also allows the boy he finds that life is made of injustice, to inequality. On the one hand, some dream of studying in schools of quality in education, otherwise, children drag themselves towards a teaching boring and it does not meet the local needs daily. Studying education in the Amazon, in the decade, 20, from the novels of Jurandir, is to return a historical and educational need for (re) think the current education situation in the Amazon.

    Key-words: Representation of education. Dalcdio Jurandir. Education in the Amazon. Paraense literature.

  • SUMRIO INTRODUO ............................................................................................... 10

    CAPTULO 1 PRESENA DE DALCDIO JURANDIR NOS ESTUDOS LITERRIOS AMAZNICOS.................................................. 15

    1.1 Dalcdio em Teses de doutoramento.............................. 17

    1.2 Dalcdio em Dissertaes de Mestrado.......................... 20

    1.3 Dalcdio em outros campos e a discusso da educao.................................................................................. 28

    CAPTULO 2 (DES) CAMINHOS DE EDUCAO DO GAROTO AMAZNIDA........................................................................... 31

    2.1 - Educao cachoeirense no contexto amaznico: uma semente perdida no remanso.................................................. 33

    2.1.1 A Escola de seu Proena e o ensino da tabuada, do argumento e outras formas de opresso................................. 35

    2.1.2 Professora vinda de Portugal: um ensino trabalhado e vazio...................................................................................... 38

    2.1.3 O professor Valrio, a educao penosa e os trabalhinhos para sustentar-se.............................................. 40

    2.2 A Escola Anglo-Brasileiro: contraponto a escola real do jovem amaznida ............................................................... 42

    2.3 Outras experincias educativas de Alfredo..................... 46

    CAPITULO 3 DA REALIDADE BUIARAM FLORES DE ROMANCES OU UMA FICO ENSOPADA DE REALIDADE......................... 57

    3.1 O incio da dcada de 20: algumas questes................. 58

    3.2 Dalcdio Jurandir, artista da fico.................................. 68

    3.3 Representao de Educao na Amaznia.................... 77

  • 3.3.1 Prticas de ensino e recursos pedaggicos deformados ............................................................................. 81

    3.3.2 A escola: extenso da casa e do contexto maior......... 90

    3.3.3 A educao enquanto sacerdcio................................ 93

    3.4 A escola que liberta do dissabor educacional.............. 97

    3.5 O cotidiano amaznico como professor....................... 106

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 109

    REFERNCIAS ................................................................................................... 113

  • INTRODUO

  • 11

    A pesquisa tem por objetivo analisar as representaes de educao presentes em duas obras do Romancista da Amaznia, Dalcdio Jurandir. Filho de Alfredo Pereira e Margarida Ramos, Dalcdio Jurandir nasce no dia 10 de janeiro de 1909 em Ponta de Pedras, Maraj, e morre em 1979, no Rio de Janeiro, deixando grande produo intelectual.

    Em meio ao legado do escritor, encontrei produes voltadas crtica literria, a crtica de arte, ao jornalismo, a poesia e ao romance. Sobre a arte da fico, merece destaque o fato de o escritor elaborar o Ciclo Extremo Norte, conjunto de dez romances que retrata a vida comum na Amaznia.

    Ao considerar a primeira e a ltima obra publicada, os romances representam quase quarenta anos de luta com as palavras. So eles: Chove nos campos de Cachoeira (1941); Maraj (1947); Trs Casas e um Rio (1958); Belm do Gro-Par (1960); Passagem dos Inocentes (1963); Primeira Manh (1968); Ponte do Galo (1971); Os Habitantes (1976); Cho dos Lobos (1976); Ribanceira (1978). Alm dos dez, o escritor nortista escreve por encomenda do partido comunista o livro Linha do Parque (1961), que retrata a vida do operariado gacho.

    Diante da expressiva obra dalcidiana que reapresenta, em sua maioria, o povo amaznida, me vi atrado em efetivar uma investigao acerca do legado do escritor marajoara. Algumas questes contriburam para isso. Dentre elas destaco a insero na Especializao em Estudos Lingusticos e Anlise Literria (2006) e o ingresso no Mestrado em Educao (2006) da UEPA, o qual me proporcionou, por meio de Josebel Fares e Denise Simes, conhecer um pouco mais o conjunto da obra de Dalcdio.

    Inicialmente, procurei (junto a Josebel Fares e Denise Simes) ler quase todas as obras do Ciclo e, somente depois, selecionei para a pesquisa Scricto Sensu as obras Chove nos campos de Cachoeira e Trs Casas e um Rio, nas verses que me foram acessveis: 1991 e 1994, respectivamente.

    Fiz a escolha por observar que tais obras apresentam o contexto cachoeirense, ao passo que, nas demais, o personagem Alfredo transita pelo cenrio belenense (e estuda no Grupo Escolar Baro do Rio Branco e no Ginsio Paes de Carvalho). Alm disso, so obras que, dada a sua extenso, exigem grande flego em suas leituras e posterior anlise. A pesquisa acadmica, de forma sensata, orienta a necessidade de recortes, delimitaes.

  • 12

    Chove nos campos de Cachoeira narra o cotidiano do povo humilde da Vila de Cachoeira, mesorregio do Maraj e microrregio do Arari, no estado do Par. Considerada como romance-embrio pelo prprio autor, a obra apresenta as questes posteriormente trabalhadas nos subseqentes romances. Em Chove, Alfredo, personagem do romance, frequenta a escola de seu Proena e sonha com os estudos em Belm e no Anglo-Brasileiro, no Rio de Janeiro. A vida simples e o drama do povo amaznida so tecidos na obra que, em 1940, obtm o prmio Dom Casmurro promovido pela Editora Vecchi.

    Trs Casas e um Rio, terceiro romance do Ciclo, dentre outras questes, acentua os assuntos sciopoltico-culturais no Maraj do segundo decnio do sculo XX. O livro imprime densidade e tenso, fundamentalmente, no deslocamento de Alfredo rumo cidade de Belm em um rio-rua que ameaa barrar o sonho do garoto que, ao trmino da narrativa, avista a cidade equatorial. A obra pontua ainda o contato de Alfredo com a professora vinda de Portugal e com o normalista, professor Valrio.

    Para uma primeira investigao, iniciei balizado na trajetria do personagem Alfredo. No priorizei por trabalhar Maraj (1947), obra subsequente a Chove nos campos de Cachoeira (1941), por entender que nela, apesar de apresentar o contexto marajoara, o escritor desloca Alfredo e imprime um zoom no ambiente e nas aes da oligarquia local, a fim de, fundamentalmente, denunciar as desigualdades no contexto amaznico.

    Delimitando a pesquisa em apenas duas obras, efetivei algumas leituras no intuito de compreend-las com intensidade. Posteriormente, parti para leitura de alguns estudos que se voltam obra dalcidiana. Em conversa com as orientadoras, tinha a pressuposio de que caberia uma pesquisa sobre a educao, representada nas obras de Dalcdio. Cogitava que, at ento, nenhum estudo dissertativo em torno do Ciclo do escritor dgua1 havia sido feito.

    Tive confirmada a hiptese quando, aps alguns meses de levantamento, constatei a lacuna entre os no extensos (em quantidade), estudos sobre a produo do escritor nortista. Residia a uma investigao. Assim, estruturei a pesquisa em torno da seguinte questo: Como representada a educao nas

    1 Alcunha alusiva ao pseudnimo caboclo dgua utilizado pelo escritor nortista ao participar do concurso

    literrio Dom Casmurro, da Editora Vecchi, em 1940.

  • 13

    obras Chove nos campos de Cachoeira e Trs Casas e um Rio, de Dalcdio Jurandir?

    Realizadas novas leituras das obras, agora somente duas, delimitei o corpus de investigao. Esses se apresentaram como as possveis situaes de educao vivenciadas pelo personagem Alfredo. Foram elas: os ensinamentos com seu Proena, as aulas com a professora vinda de Portugal, os breves estudos com o professor Valrio e o sonho com o Anglo-Brasileiro.

    Esbocei ainda a possibilidade de que Alfredo teve, alm da educao escolar precria, uma Educao de Vivncia semelhante formulada por Gohn (1999) que observa a possibilidade de processos educacionais se realizarem fora do espao escolar: na famlia, na rua, nas relaes que o sujeito constri e reconstri em sua interao no/com o mundo.

    Somado as obras de Dalcdio, selecionei algumas informaes documentais no intuito de proporcionar um dilogo entre o corpus de pesquisa e o material disponvel. Esclareo apenas que informao documental, na perspectiva de Arstegui (2006, p. 325),

    corresponde a todo e qualquer tipo de material, instrumento ou ferramenta, smbolo ou discurso intelectual que procede da criatividade humana, atravs do qual se pode inferir algo acerca de uma determinada situao social no tempo.

    Assim, me debrucei em informaes presentes no Arquivo Nacional (RJ), Arquivo Pblico do Par, Casa de Rui Barbosa/Instituto Dalcdio Jurandir (RJ), Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Par, Universidade do Estado do Par e Universidade da Amaznia.2

    Analiticamente, busquei me aproximar das formulaes de Orlandi (1988; 1989; 2003; 2005) quando discute a anlise de discurso na perspectiva de que os discursos so produzidos pelo meio e retornam a este com possibilidades de transform-lo.

    Pontuada, sinteticamente, a trajetria que percorri com a pesquisa, apresento a estrutura da investigao. No primeiro captulo, destaco a presena de Dalcdio Jurandir nos estudos literrios amaznicos, dividindo-os em Teses de doutoramento, Dissertaes de mestrado e presena de Dalcdio em outros campos do conhecimento. Problematizo ao trmino do captulo que, lacunarmente, as questes

    2 A delimitao do material na introduo pode representar extenso desnecessria. Assim, a

    consulta s referncias assume validade.

  • 14

    relacionadas educao ainda no compuseram a centralidade de nenhum estudo sobre a obra de Jurandir.

    No segundo captulo, procuro transitar em meio s representaes de educao (situaes de educao) nas duas obras selecionadas para a pesquisa. Os (des)caminhos do personagem Alfredo rumo educao escolar me servem como baliza. Dado o (in)sucesso educativo do personagem, apenas sinalizo para outras formas de educao vivenciadas pelo personagem, sobretudo, o que ventilo ser Educao de Vivncia, dado um contexto marajoara que marcado pelas relaes sociais.

    No terceiro captulo procuro ressaltar as duas vertentes que se entrelaam na obra de Dalcdio Jurandir: o documental e o fictcio. Assim, busco remontar algumas questes do incio da dcada de 20, apresento a compreenso de representao trabalhada por Henry James (uma das provveis, dentre outras, influncias de Dalcdio), e, somado a idia do crtico ingls, adiciono o entendimento de Jurandir enquanto crtico literrio, crtico este capaz de problematizar questes referentes representao literria.

    O captulo se encerra com a discusso sobre a representao de educao na Amaznia, partindo das situaes de educao, vividas por Alfredo e relacionando-as ao contexto e configuraes locais e nacionais que a educao do incio do sculo XX apresentou.

    A compreenso maior, que a pesquisa emerge, aponta para a considerao de uma representao marcadamente avizinhada do contexto real. Na fico, o personagem Alfredo constantemente problematiza a escola e seus procedimentos. Os ensinamentos do cotidiano, nas duas obras analisadas, parecem, segundo as reflexes do menino, ensinar mais que os professores das escolas empobrecidas que no ensinam nada na Vila de Cachoeira, interior da Amaznia.

  • 15

    CAPTULO 1 PRESENA DE DALCDIO JURANDIR NOS ESTUDOS

    LITERRIOS AMAZNICOS

  • 16

    Dalcdio Jurandir escritor singular, escreve como poucos. Na linha do regionalismo, mesmo a despeito de toda polmica que esta expresso pode provocar, ao lado de Graciliano Ramos, Jurandir destaca-se como poeta de estilo encharcado, autor daquilo que chamei de aquonarrativa. A literatura de Dalcdio Jurandir finca os ps na vastido da floresta e nas guas amaznicas para desenvolver uma obra que necessita, por certo, recuperar novamente o espao perdido no cenrio cultural brasileiro. Eis o nosso desafio: escavar (este verbo nos persegue?) o entre-lugar da voz ficcional amaznica no cenrio dos romances brasileiros e latino-americano. Dalcdio um dos grandes ficcionistas latino-americanos. E o futuro ir confirmar este fato.

    Paulo Nunes, 2006, p. 51.

    Os estudos literrios acerca da obra de Dalcdio Jurandir manifestam, em sua maioria, grande indignao por observarem o desprestgio a uma obra de grande valor, como a elaborada pelo escritor do norte. As palavras de Paulo Nunes, na epgrafe que abre a seo, lanam-se na tentativa de no somente registrar a magnitude da produo romanesca de Dalcdio, mas, sobretudo, apostam em um futuro capaz de reconhecer o grande painel encharcado, verdadeira aquonarrativa construda pelo caboclo dgua.

    Como registrou Assmar (2003), Nunes (2001; 2006; 2007) e Fares (2004), h, sobretudo na Amaznia, um movimento crescente em torno da obra de Dalcdio. Com isso, pensam os autores, a regio amaznica ganha acentuadamente em visibilidade e conceito de expresso literria.

    A presena de estudos literrios amaznicos em torno da vida e, sobretudo, da obra de Dalcdio Jurandir foi alvo de levantamento realizado por Llia Melo, mencionado no artigo de Pressler (2004) e reiterados/atualizados na biografia organizada por Nunes; Pereira; Pereira (2006).

    A seo que inicio, pretende, unicamente, apresentar (mesmo que de forma sinttica), alguns dos estudos voltados principalmente a obra do escritor nortista. Observado o material, penso ser interessante, em meio a minha gapuiagem,3 anunciar que o aspecto da educao encontra-se submerso nas discusses e estudos dalcidianos. Por esta discusso pretendo caminhar e, assim, contribuir para o futuro justo apontado por Paulo Nunes.

    3 Conforme Assis & Cerqueira (2004), gapuiagem consiste em pescar. Aqui, utilizo o termo

    metaforicamente.

  • 17

    1.1 Dalcdio em Teses de Doutoramento Universo derrudo e a corroso do heri

    A investigao de Furtado (2002) anuncia, logo em seu ttulo, a condio do contexto amaznico representado no Ciclo elaborado por Dalcdio Jurandir: um universo derrudo que, progressivamente, contribui para a corroso dos personagens, principalmente Alfredo.

    As palavras da pesquisadora enfatizam a produo dalcidiana como representao capaz de quebrar com a tradio literria amaznica ao no mostrar um contexto marcado pela grandiloquncia de imagens, espaos naturais, opulentos e majestosos. Em suas incurses, a autora analisa a proposta dalcidiana de apresentar uma outra Amaznia.

    Geralmente, a Amaznia apresentada esbanja um ciclo econmico caracterizado pela construo de palcios, teatros, palacetes, etc., que deram s altas temperaturas locais um ar europeu. Posteriormente a este ciclo, e aqui se tem o grande foco de Dalcdio, segundo a autora, visualiza-se uma Amaznia derruda, sem perspectivas, atnita.

    Ao seguir os passos do personagem Alfredo, na compreenso de Furtado (2002), o autor monta uma Amaznia no opulenta, ps-auge da borracha. E no trajeto, sobressai o menino do interior que desenvolve o rapaz da cidade, s lembranas da poca urea no Par, o governo do Senador Antnio Lemos.

    Furtado (2002) considera, para sua pesquisa, o Ciclo romanesco sob a perspectiva dos personagens e de seu ambiente de atuao. Posteriormente, localiza o escritor na Literatura Brasileira. Dentre as concluses da autora, destaco o entendimento de que inegvel na escriturao do Ciclo, o compromisso do autor com a denncia da sobreposio de uma elite, causadora de injustias sociais:

    Graas deglutio das dicotomias local x universal, popular x erudito, urbano x rural, Dalcdio conseguiu reconstruir de maneira intimista e potica o processo de decadncia (mas tambm de resistncia) de uma regio e de seus habitantes, causado pela ganncia do capitalismo aliado a uma estrutura arcaica de relaes sociais (FURTADO, 2002, p. 253).

    Em linhas gerais, destaca a autora que Dalcdio apresenta um aprimoramento das tcnicas narrativas a cada romance. Com inegvel inovao, o romancista tonifica sua produo no esfacelamento como trao de composio, somado, substancialmente, ao distanciamento das produes enraizadas no naturalismo.

  • 18

    Um olhar sobre a Amaznia4 A pesquisa de Assmar (2003) procura discutir uma tenuidade bastante

    delicada na obra do escritor da Amaznia. Trata-se na polmica acerca da literatura ancorada mais para o documental ou para o literrio.

    Alm da questo causadora de controvrsia, a autora procura verificar se possvel delimitar valores para ambos os campos, levando em considerao relevncias extrnsecas e intrnsecas a obra.

    Ao analisar a crtica literria frente obra de Dalcdio Jurandir, pressupe Assmar (2003) que o no reconhecimento do escritor como um dos grandes, esbarra na superficialidade de comentrios infundados de determinados intelectuais, somado ao preconceito, ainda em voga, quanto inteligncia dos filhos da Amaznia.

    A figura do indivduo amaznida apresentada por Dalcdio, na compreenso da autora, em uma antitica reveladora do ser bom e mau, pacfico e violento, medroso e corajoso, diferente do narrador, quase que constantemente, um ser coerente, que consegue ver mais longe, tecer crticas, esboar planos.

    Para a autora, a sociedade amaznica, na representao de Dalcdio assume um estgio quase que natural, fundamentalmente, tanto pelo processo de desconstruo quanto pela decadncia das instituies sociais,

    Famlia, Escola, Estado e Igreja seja pela construo , gnese da classe dominada ou pobre. Esse processo de formao desmistifica os bens da sociedade capitalista e da Nova Repblica, razo por que o autor pode ser considerado o cronista da lavadeira, do sapateiro, do pescador, do vaqueiro, etc. ele um pesquisador do amaznida, colhendo dados ou documentos histricos, oriundos de sua vivncia ou da cultura popular dessa regio (ASSMAR, 2003, p. 220).

    As palavras da pesquisadora se voltam a chamar a ateno para o fato de que em Dalcdio Jurandir transita o literrio e o ficcional, geralmente, entrelaados e com um fim escancarado: desmascarar a burguesia afundada em runas. Para a autora, portanto,

    o regionalismo amaznico representado pela maior parte da produo de Dalcdio Jurandir, constituindo, com os demais regionalismos, a paisagem literria do pas. Alm disso, une as pontas dos extremos Norte e Sul, mostrando a diversidade, tanto na unidade e identidade quanto na diferena (ASSMAR, 2003, p. 221).

    4 Por questes de acesso, utilizei aqui a pesquisa de Enilda Assmar na verso de livro. Em sua

    verso de tese, a investigao tem como ttulo: Dalcdio Jurandir: da re-velao da Amaznia de Norte ao Sul.

  • 19

    tero de areia O estudo de Nunes (2007) enfoca o quarto romance do Ciclo: Belm do Gro-

    Par. Sob a perspectiva do romance urbano, o autor procura discutir a cidade de Belm, cidade equatorial em runas no incio do sculo XX, como tero de areia, metfora a filha da famlia Alcntara, a jovem Emilinha.

    A anlise do autor se volta, inicialmente, s artimanhas de criao da narrativa que representa a cidade equatorial em suas diversas faces. Entretanto, o drama vivido pela classe mdia belenense, representado pelos Alcntaras, no incio do sculo XX, escancara, segundo o autor, os resultados da decadente comercializao da borracha no mercado internacional.

    Nunes (2007) procura enfatizar na construo do escritor amaznida as astcias de linguagem por ele utilizada que, somadas ao contedo central da obra (expresso dos dilemas humanos da Amaznia), modelam a narrativa em tons instigantes.

    Ler os romances do escritor marajoara, em especial Belm do Gro-Par, consiste em apreciar uma construo lingustica que lembra um labirinto a envolver o leitor do rural ao urbano. As impresses do pesquisador, em sua anlise do romance, o impulsionaram ao ato de aproximao com as formulaes de Walter Benjamim quando se volta a escutar o sculo XIX:

    Ao ler Belm do Gro-Par, sinto-me impelido a parafrasear Walter Benjamim que auscultou a concha na iluso de ouvir as vozes do sculo XIX, sculo que, estava oco dentro de si. Assim eu, que neste incio de sculo XXI, volto ao passado: o incio do sculo XX, tempo da diegese e Belm do Gro-Par. Ao repassar os sentimentos advindos dos sentidos exalados pela escrita dalcidiana, retorno ao presente. Coloco a concha no ouvido; no ouo e poderia? o atrito faiscante dos bondes; no escuto mais o prego dos leiteiros porta das casas, as vozes de Alfredos, Libnias, Antnios... (NUNES, 2007, p. 172).

    Dentre as investidas do autor, compreendo a acentuada iniciativa de instigar uma crtica literria que subestimou durante muito tempo a amplitude e qualidade da produo romanesca de Dalcdio Jurandir. Ao perceber uma lacuna, o pesquisador aponta para a necessidade de (re) avaliar a recepo da obra dalcidiana, que, at ento, s tem recebido valor menor pela crtica literria:

    Estou certo de que a revalorizao do romance de Dalcdio Jurandir depender de se criar uma nova recepo de certo modo, j em curso , composta de leitores eficientes, coisa que est sendo gestada em algumas universidades, sobretudo as amaznicas. Alm do mais, dos anos 90 para c, a evoluo dos estudos literrios, sobretudo da Literatura Comparada, faz pensar que a historicidade esttica pode e deve ser olhada com desconfiana (NUNES, 2007, p. 17).

  • 20

    1.2 Dalcdio em Dissertaes de Mestrado Marinatambalo

    No celeiro de investigaes acerca da obra de Dalcdio Jurandir, merece destaque a pesquisa de Alves (1984) por seu contedo e pioneirismo na academia. A autora analisa a obra Trs Casas e um Rio sob o entendimento de que o romance consiste em uma espcie de deflagrador da temtica tratada no conjunto da obra do escritor, quase toda ambientada no mundo amaznico.

    As bases de anlise da autora apresentam-se nas observaes de cunho literrio, antropolgico e psicanaltico. Embasada nos valores que os trs campos cientficos apresentam, a autora tece o texto dissertativo, guiada pela trajetria do personagem Alfredo em suas locomoes, quer sejam materiais (no romance), quer sejam imaginrias, capaz de desloc-lo pela cidade de Cachoeira, Belm e pela ilha do Maraj.

    A vertente imaginria quase sempre acionada em Alfredo representa, na compreenso da autora, a possibilidade de fuga de uma vida sem muitas perspectivas, de um relacionamento conturbado com a me e com major Alberto.

    Alm da possibilidade evasiva, o imaginrio do garoto assume os custos de acesso realizao de seus desejos, de sua busca constante por um amadurecimento interior. O mesmo imaginrio que veicula a promoo, na compreenso da autora, ganha relevo na construo romanesca de dalcdio dada limpidez com que expem os elementos do mundo cultural do caboclo amaznico. Os planos presentes na obra, contrastam desejos do menino marajoara:

    Partimos do pressuposto de que a narrativa de Trs Casas e um Rio tem dois planos. O que denominamos de imaginrio decorrente do que imaginado pelo personagem Alfredo. Neste plano s acontecem coisas boas e os desejos do menino podem ser realizados. E o plano do real que a experincia vivida por Alfredo onde acontecem as coisas adversas como a falta de dinheiro para ir estudar em Belm (ALVES, 1984, p. 121).

    Dalcdio Jurandir mestre em evidenciar/aproveitar os elementos culturais amaznicos e criar uma narrativa, na qual o mito um elo essencial para a compreenso do universo de emoes e sentimentos humanos.

    A obra de Dalcdio Jurandir se distingue justamente pela maneira como esses elementos so complexificados e transformados. O mito, e de forma mais geral, o mundo amaznico, com seus personagens reais ou imaginrios, no existem na obra como algo de fora que lhe simplesmente incorporado. Surgem naturalmente na medida em que os personagens esto profundamente relacionados a esse universo de seres e coisas, de crenas e sentimentos, de revolta e acomodao, de mudana e permanncia (ALVES, 1984, p. 126).

  • 21

    Regionalismo, relaes raciais e de poder Os caminhos trilhados por Amador de Deus (2001) encontram, em proposta

    dissertativa, grandes possibilidades de discutir em Maraj e Trs Casas e um Rio, questes relacionadas ao regionalismo e a relao centro-periferia, tencionadas pelo poder.

    Um aspecto marcante construdo pela pesquisadora consiste na articulao das vozes negras presentes nas tramas dos romances, com as outras vozes fora da fico que discutem questes raciais.

    Outra caracterstica evidente na pesquisa, consiste na comunicao com as vozes do poder as quais, por sua vez, tambm dialogam com outras vozes fora das narrativas; conforme a pesquisadora, o autor d visibilidade Amaznia, denuncia o poder arbitrrio e tira do silncio os muitos silenciados rompendo com a histria oficial. Entre as concluses ventiladas, aponta a autora para a importncia da obra de Dalcdio como instrumento capaz de colocar em visibilidade a regio norte, fecundada no seio da sociedade brasileira que a desconhece:

    Jurandir aborda questes locais sem perder de vista as mudanas que se processam na vida contempornea: primeira e segunda guerras mundiais, Revoluo Bolchevista, Existencialismo de Sartre, enfim, mudanas que ampliaram e aprofundam diferentes perspectivas de mundo (AMADOR DE DEUS, 2001, p. 50).

    O estudo acerca do regionalismo, das relaes raciais e de poder destaca tambm o fato de os dois romances denunciarem o modelo de desenvolvimento econmico experimentado pela regio norte que, quanto explorao do trabalho, imita os mtodos do colonizador ingls na frica e na sia (AMADOR DE DEUS, 2001, p. 50).

    Conclui a pesquisadora sublinhando que a represso, injustia, explorao, preconceito racial e as relaes de poder, impregnam como tnica as duas obras analisadas, sobressaindo-se o brilhantismo dalcidiano em ressaltar a voz dos pequenos:

    No tocante aos personagens responsveis pela dinmica que caracteriza o campo das relaes raciais, eles se destacam tanto pelo papel que desempenham na trama dos romances, quanto pelos questionamentos que instauram. O autor denuncia um poder fundado na violncia e na injustia. Um poder que, para se manter, depende da represso (AMADOR DE DEUS, 2001, p. 51).

  • 22

    Aquonarrativa5

    A pesquisa de Nunes (2001) centra-se, dentre outros aspectos, na possibilidade de problematizar a crtica histrico-literria que, por alguns motivos, segundo o pesquisador, ou arremessa a produo dalcidiana ao esquecimento ou lhe atribui valor menor do que o correto.

    A constatao de uma atribuio equivocada ao quadro romanesco elaborado pelo escritor marajoara, mobiliza o pesquisador rumo possibilidade de colaborar para uma nova recepo da obra de Jurandir, e assim, instigar novas leituras, novos leitores. O movimento necessrio, segundo o autor, para que se revalide a hoje pouco conhecida obra de Dalcdio Jurandir.

    Convicto, o autor se lana, em um primeiro momento, a fazer um estudo sobre a recepo da obra Chove nos campos de Cachoeira a partir da crtica especializada e de intelectuais que se debruam sobre o texto do escritor nortista. Posteriormente, apresenta o tecer palavras de Jurandir, e assim, estabelece contato do leitor com o enredamento da primeira obra do Ciclo dalcidiano.

    Subsequente ao contato, o pesquisador analisa algumas tcnicas de narrativa utilizadas por Jurandir que, de certa forma, validam uma dentre outras pressuposies suas: Jurandir autor capaz de afinar-se a tcnicas/parmetros do romance contemporneo, capazes de romper com a idia de uma Amaznia Hilia ou Inferno Verde.

    O ganho crtico e historiogrfico a obra de Dalcdio, conforme o autor, alargado com as observaes de poucos crticos. No geral, o desprestgio instiga questionamentos, afinal, o Brasil um pas de memria curta, ou a responsabilidade desse esquecimento do cnone literrio que exclui, num certo sentido, a regio Norte? (NUNES, 2001, p. 31).

    O esquecimento dos romances de Jurandir no se justifica por ausncia de qualidade. A aquonarrativa do escritor nortista, para Nunes (2001, p. 41) nada deixa a desejar aos escritos canonizados:

    Jurandir autor dos encharcados amaznicos (contraposio sedenarrativa graciliana), da abundncia narrativa, assinalada por perodos longos, por uma pontuao, por vezes, frouxa, que enfatiza a poetizao da linguagem; uma tal exuberncia de estilo que me faz pensar em uma aquonarrativa, em que as palavras, de bubuia, afloram e se apresentam mansamente ao leitor que mergulha ansioso no texto.

    5 Tambm por questes de acesso, a verso aqui comentada no corresponde dissertao

    defendida em 1998, mas ao livro Pedras de Encantaria, lanado pela EDUNAMA em 2001.

  • 23

    Tempo e espao em Belm do Gro-Par A anlise da construo do tempo e espao na obra Belm do Gro-Par foi o

    foco de pesquisa para Ornela (2003). Segundo o pesquisador, o projeto do escritor tem um momento destacado neste romance uma vez que o personagem Alfredo deixa o seu ambiente marajoara para desvendar a cidade de Belm, poca em que comea a adolescer.

    As percepes do autor sinalizam para a confirmao de que Dalcdio atua a partir de uma linguagem literria de qualidade. Os recursos trabalhados pelo escritor, conferem tessitura de seu texto, segundo o pesquisador, uma elasticidade capaz de apresentar a cidade de Belm com espaos e pocas distintas.

    De um lado, o passado fausto, fruto da economia da borracha. De outro, o presente decadente, marcado pelas runas. Diante de uma variao constante entre os dois espaos, Dalcdio Jurandir, na compreenso de Ornela (2003), utiliza-se de apurados recursos na construo do tempo no romance, capazes de criar um movimento narrativo que, alm de descrever os espaos, aprofunda a densidade psicolgica das personagens.

    Dentre outras concluses do pesquisador, destaca-se a conscincia do romancista da Amaznia. Inquestionavelmente, Dalcdio era conhecedor de cada detalhe que narrava. Sua habilidade narrativa movimentava-se em uma necessidade de transfigurar uma realidade sofrida, construindo um universo ficcional que adentra s profundas questes pertinentes ao homem e ao seu meio.

    Para Ornela (2003), trata-se de um ambiente carregado de dramas e sofrimentos no somente dos personagens, mas do prprio escritor, uma vez que, soube, como ningum, o que foi a crtica situao econmica e literria na Amaznia.

    Ainda sobre a questo, o pesquisador afirma que, certamente, Dalcdio empresta a Alfredo algumas idiossincrasias, assim como consegue deixar o mundo marajoara no romance se desenvolver com vida prpria. Em Belm do Gro-Par e nas demais obras do escritor cachoeirense, completa o autor,

    Atravs de um universo diversificado, verifica-se a construo de questes ligadas ao cenrio poltico paraense, s demandas econmicas e aos problemas sociais, que do conta das vrias nuances trabalhada no Extremo Norte (ORNELA, 2003, p. 109).

  • 24

    O Bildungsromam na Amaznia A pesquisa de Branco (2004) estabelece dilogo entre as obras de Dalcdio

    Jurandir e Wolfgang Goethe, com destaque para o aspecto da formao e abordagem centrada no romance de formao (Bildungsromam).

    A autora destaca a relevncia e a inter-relao dos processos de transformao poltico, econmico e social, constantes na Alemanha do sculo XIX de Goethe e na Amaznia do sculo XX de Dalcdio Jurandir, que contribuem na caracterizao da formao e na origem da literatura de formao.

    Em um primeiro momento, a pesquisadora se volta questo e a importncia da formao no emergir de uma nova classe social e econmica e seus desdobramentos nos sculos XVIII e XIX.

    Por conseguinte, interessa-lhe evidenciar o gnero Bildungsromam (romance de formao) alemo e a experincia esttica provocada por ele, cuja anlise se concretiza com a fundamentao terica na hermenutica de Gardemer, completada na esttica da recepo de Jauss e Iser.

    A sequncia de sua anlise aponta para aspectos que envolvem o modelo da narrativa de Goethe, os anos de aprendizagem do Wilelm Meiser e seus desdobramentos frente constituio de paradigma do Bildungsromam.

    Em um meio tempo, enfatiza a autora a abordagem relativa aos efeitos dos pressupostos histricos e literrios no desenvolvimento da formao e educao no Brasil e na Amaznia, alm de suas consequncias no aspecto social brasileiro.

    No percurso analtico, a autora chega s obras brasileiras destacando aquelas cujas anlises apontam para caracteres relativos ao Bildungsromam. Somente depois dessa investida, Branco (2004) situa a obra do escritor amaznida.

    Por conseguinte, apresenta o estudo de quatro obras de Dalcdio Jurandir,6 com o objetivo de identificar o carter dialgico do amaznida e Goethe, ambos, percebidos em seus contextos histricos e sociais. Para Branco (2004), a amplitude que o autor d trajetria do crescimento do desejo de formao caracterizado no protagonista Alfredo, consolida-se, no momento de superao e transcendncia, ante as dificuldades que se apresentam no seu percurso.7

    6 Trata-se de Chove nos campos de Cachoeira, Belm do Gro-Par, Passagem dos Inocentes e

    Primeira Manh. 7 Dentre os estudos dissertativos sobre a obra de Dalcdio, menciono ainda o de Ruy Pereira titulado

    Singularidade e Excluso: o romance Chove nos campos de Cachoeira,de Dalcdio Jurandir, Rio de Janeiro: UERJ, 2004. Infelizmente, a pesquisa no aparece comentada por questes de acesso.

  • 25

    Entre a madeleine e o caroo de tucum O estudo de Nascimento (2005) consiste em analisar o romance Os

    Habitantes, com o objetivo de situar a obra entre os outros romances, dada a porosidade da narrativa e relacionar os assuntos comuns entre a obra analisada e as demais do Ciclo Extremo Norte.

    Necessariamente, a pesquisa da autora procura levar em considerao a orientao de tericos e crticos literrios de grande alcance nos estudos da narrativa de fico, com o intuito de verificar o quanto possvel a correlao entre os romances do ciclo, mediados pela memria.

    Ao adentrar no Ciclo dalcidiano, em especial, em Os Habitantes, a pesquisadora conclui que a escriturao romanesca dalcidiana foge dos padres tradicionais ao trazer grande parte da narrativa por meio da memria. Por isso, afirma Nascimento (2005), que as anotaes temporais so esgaradas, pois ao narrador no interessa o tempo linear (p. 91).

    Alm do recurso circundante a memria, a estrutura porosa do texto dalcidiano permite o trnsito das personagens de um romance para outro, estabelecendo-se um dilogo. Com a circulao de personagens em tempos presente e passado, ao observar o conjunto da obra, torna-se fecundo o ttulo, segundo a autora, por abarcar vrios grupos sociais da Amaznia. Assim o ttulo remete o leitor,

    Aos habitantes da cidade de Belm, ou a famlia problemtica dos Boaventuras a que se agregou Alfredo, ou ainda os habitantes de um bairro da periferia de Belm com seus conflitos, dramas existenciais, alegrias e tristezas (NASCIMENTO, 2005, p. 92).

    A narrativa de Jurandir em Os habitantes no apresenta uma diegese de princpio, mas, grupos de histrias, as quais, reunidas, levam ao entendimento de busca incessante, uma errncia sem fim, tanto de Alfredo, quanto de Luciana, a exemplo de personagens criadas por Clarice Lispector em seu universo ficcional" (NASCIMENTO, 2005, p. 90).

    A escrita dalcidiana, conclui ainda a autora, prenhe de liricizao que, somada cultura popular lapidada em sua formalizao, conferem ao texto do romancista da Amaznia um status potico avizinhado produo de Mrio de Andrade.

  • 26

    Cidades e Antteses A nfase da pesquisa de Almeida (2005) orienta-se em apresentar como

    proposta de leitura do romance Passagem dos Inocentes, quinto romance do Ciclo, a perspectiva do materialismo histrico-dialtico.

    Os contornos iniciais da anlise do autor consistem em aproximar, semanticamente, o ttulo do romance (Passagem dos Inocentes) ao processo de emancipao crtica verificado em seu protagonista, o jovem Alfredo.

    As fases dialticas da tese, anttese e sntese, no processo de autorrealizao verificado no garoto, segundo Almeida (2005), processam-se em uma cadeia contnua a partir dos estgios de iluso ideolgica, decepo com a urbe e a autorrealizao com a construo de um percurso contrrio cidade.

    Na argumentao do autor, algumas definies sobre o ato de ler a obra devem ser consideradas no intuito de registrar o brilhantismo lingustico-literrio do escritor marajoara. Dentre suas ponderaes, acentua que Passagem dos inocentes,

    buscar o prazer do confronto entre a realidade e a iluso, amalgamados numa trama que se realiza, primorosamente, num todo ficcional nas obras do romancista marajoara. Ler Passagem dos Inocentes entregar-se a tentao do extraordinrio esforo em reconciliar imagens que parecem saltar das pginas; imagens que crescem prontas para brotar como sementes de significao; sementes de palavras plantadas por um narrador-semeador, to seguro ao seu labor literrio, quanto ldico no que fazer-potico. Escrever romances, para Dalcdio Jurandir, iguala-se ao trabalho de semear e Passagem dos Inocentes , sem sombra de dvida, um celeiro de imagens, ritmos, idias e poesia (ALMEIDA, 2005, p. 10).

    A proposta do autor intensifica a cada momento em uma investida propositada a fazer uma pequena passagem pelo enredo com o objetivo de situar o leitor ao longo dos nove captulos do romance.

    Assim, constri um resumo transcritivo da obra de Dalcdio; mais a frente, concentra-se na experincia da urbe construda gradativamente pelo protagonista durante sua estada em Belm, seja na perifrica Passagem dos Inocentes seja pelos aburguesados logradouros da Estrada de Nazar.

    Conclusivamente, Almeida (2005) entende que a partir da compreenso do processo de emancipao processada em Alfredo, possvel reconstruir a prpria macroestrutura do romance. Portanto, em uma perspectiva histrico-dialtica a obra se estrutura em trs partes distintas: Tese (vinda de Alfredo proveniente do Maraj); Anttese (encontro de Alfredo com as contradies de Belm) e Sntese (desejo manifesto do protagonista em retornar ao Maraj).

  • 27

    Morte, Desamparo, Niilismo e Liberdade A Vila de Cachoeira como representante de uma Amaznia em caos, no incio

    do sculo XX, interesse de pesquisa de Pantoja (2006). Na compreenso do autor, Chove nos campos de Cachoeira obra singular no s pela beleza estilstica com que Dalcdio recria ficcionalmente a vida marajoara, mas porque se agrega segunda fase da prosa modernista como instrumento de pesquisa social e denncia de uma realidade brasileira.

    Na compreenso do autor, o momento histrico de produo da obra confere a Dalcdio Jurandir a possibilidade de radicalizar a exigncia da nova postura do homem frente ao mundo e a si prprio. Em Chove, compreende o autor, h fortes influncias de pensamentos oriundos do sculo XIX, representados na obra pelo pessimismo de Schopenhauer e Dostoievski, marcas identificveis no romance.

    O autor entende que, a partir do recorte analtico estabelecido, o escritor marajoara focaliza a existncia humana em um mundo notabilizado por valores transcendentes que j no amparam, o que o leva a uma radicalizao do pessimismo que o influenciou. O romance embrio, para Pantoja (2006), registra a morte como ser onipresente:

    Assim, desamparado e entregue iminncia da morte, o homem dalcidiano depara-se com a completa ausncia de sentido caracterstico do novo tempo em que a obra se insere. Todavia, embora a morte constitua sua temtica fundamental e faa o chamado romance-embrio desaguar em temas como o desamparo e o niilismo, no se lhe pode atribuir gratuito pessimismo (PANTOJA, 2006, p. 13).

    Ao mesmo tempo em que fundam a estrutura dramtica do romance, os trs conceitos (morte, desamparo e niilismo) se articulam a um outro, o de liberdade, pensada por Pantoja (2006) como possibilidade de o homem transcender as circunstncias e a si prprio, projetando-se rumo s suas possibilidades.

    Tal caracterstica lana o autor a observar que o peculiar poder de comunicao de Dalcdio Jurandir reside em (des)articular extremos. Outrossim, a originalidade com que se antecipa, de certa forma, s grandes questes que o sculo XX apresentou, principalmente atravs do existencialismo ateu de Sartre.

    Os destaques de Pantoja (2006) enfatizam ainda as ressonncias do desamparo e do niilismo como ressonncias semnticas do tema da morte, assim como, acentuadamente, na compreenso do autor, no bastam para conter a habilidade e autonomia do escritor nortista frente influncias de seu tempo.

  • 28

    1.3 Dalcdio em outros campos e a discusso da educao Todas as pesquisas at aqui referendadas, segundo Fares (2004), alm de

    publicaes e eventos institucionais,8 trazem tona a possibilidade de incluir Dalcdio Jurandir na cartografia literria nacional dado seu valor amaznico-internacional.

    Para Pressler (2007), trata-se de um escritor universal em que autor e obra se encontram em meio sculo de produo literria. A produo literria do escritor paraense merece destaque, sobretudo, enfatizam Furtado (2006) e Nunes (2007), por se presenciar no autor um rompimento com a maneira de recriar a Amaznia, se comparada produo de alguns expressivos autores anteriores a ele.

    Ao retratar um vazio deixado pelo ciclo econmico, Dalcdio procura ampliar as vozes dos massacrados por uma economia desigual. Tal questo pode ser entendida quando se observa nos romances a forte ligao das personagens com as classes inferiorizadas, as classes oprimidas.

    Furtado (2006) compreende que, acentuadamente, as obra de Dalcdio pem em relevo o drama do homem, nem maior nem menor que a natureza, como faziam os escritores que o antecederam, principalmente aqueles que, didaticamente, so enquadrados nos parmetros do naturalismo. Aps a realizao de levantamento bibliogrfico, uma percepo me foi confirmada: o aspecto educacional, em torno da obra dalcidiana, ainda no constitui em foco central de pesquisa. Salvo qualquer injustia, menciono dois trabalhos que pincelam a educao nos romances do escritor amaznida.

    O estudo de Branco (2004) mencionado de forma breve, anteriormente, traz, dois itens voltados educao em que a autora, discretamente, perpassa pela educao, haja vista que tal questo no corresponde ao centro de sua pesquisa, de sua anlise.

    Primeiramente, a autora, no item A histria da Educao e da Formao discute a base da formao no sculo XIX sobressaindo o positivismo como excelncia no processo educacional, capaz de conturbar o campo literrio. No item

    8 Como por exemplo, a revista Asas da Palavra (v.3, n.4, 1996; v.8, n.17, 2004; v.8.18, 2004); artigos

    na revista Moara (n.17, 2007); a coletnea Leituras Dalcidianas, organizada por Marcus Vincius Leite (2006), a obra Maraj, 60 anos (estudos comemorativos), organizado por Rosa Assis (2008), a promoo do Seminrio Dalcdio Jurandir (Final da dcada 90 / UNAMA); o Colquio Dalcdio Jurandir (Mestrado em Letras/ UFPA e da Graduao em Letras/UNAMA, 2001); a criao do Instituto Dalcdio Jurandir, junto Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 2003 (fechado em 2008) e tantos outros que se encontram atualizados na ltima seo da biografia de Dalcdio, organizada por Nunes, Pereira e Pereira (2006).

  • 29

    A iniciao na escola elementar, a pesquisadora transita basicamente por fragmentos da obra Belm do Gro-Par para afirmar que a concretizao da formao e educao do personagem assume poder de frustrao.

    Alm dos itens no estudo sobre o romance de formao na Amaznia da autora supracitada, encontrei um texto monogrfico de Oliveira (2004), voltado a Histria da Amaznia.

    A argumentao da autora se refere discusso dos ensinamentos trabalhados nas escolas brasileiras na atualidade, basicamente a Pedagogia das Competncias, servindo assim a obra dalcidiana (Passagem dos Inocentes), apenas como simples exemplo. A autora compara o procedimento de ensino-aprendizagem na Escola Baro do Rio Branco, representada por Dalcdio, e a Baro atual, desafiada por novos paradigmas educacionais.

    Em relao ao estudo de Oliveira (2004), uma observao necessria. Ao analisar tal material, entendo que a autora no leva em considerao que a obra dalcidiana fico. No texto da autora, paira a idia de que a escola era assim e agora a escola assim. Longe de desprezar alguma produo no encontrada, afirmo que um estudo sobre as situaes educacionais, experienciadas por Alfredo, merece ser feito. Aqui reside a investida desta pesquisa.

    Ao pensar em contribuir com as pesquisas do mestrado em Educao da UEPA, lancei-me na tentativa de fazer uma anlise descritivo-interpretativa, principalmente, da educao na Amaznia no perodo do ps-auge da borracha, incio dos anos 20. O movimento consiste em sair da obra e dialogar com o real da poca.

    A relevncia da pesquisa consiste, fundamentalmente, na contribuio que poder trazer a discusso e anlise do legado romanesco deixado por Dalcdio Jurandir, reforando a constatao de Fares (2004), ao comunicar que hoje, especialmente no Par, h um movimento acadmico crescente, a partir do final dos anos 90 e incio do sculo XXI, em torno da leitura e anlise da obra do escritor marajoara. Escrevem-se teses, dissertaes, monografias, artigos e ensaios relacionados produo dalcidiana.9

    9 Neste celeiro merece destaque o(s) estudo(s) de Benedito Nunes, Paulo Nunes, Marli Furtado, Rosa

    Assis, Gunther Pressler, Josse Fares, Artur Boga, Audemaro Goulart, Marcus Leite, Pedro Maligo, Wille Bolle, Ernani Chaves, Zlia Amador, Elizabeth Vidal, Silvio Holanda dentre outros.

  • 30

    Penso ser vlido acrescentar s produes j finalizadas e as em andamento, um estudo acerca da educao, ainda no interior do Estado, vivido pelo personagem Alfredo. Dada a importncia da construo romanesca do escritor marajoara, analisada por vrios pesquisadores (as), compreendo que o estudo necessrio no s porque ir ajudar no movimento crescente, observado por Fares (2004), mas por entender que a Amaznia tem particularidades que so desconsideradas. A educao nas pequenas localidades, por exemplo, precisa ser observada, haja vista que retrata um quadro de esquecimento quase que total em solo amaznico.

    Necessariamente, as contribuies enfraquecida (penso que inexistente) discusso acerca da educao no celeiro de estudos dalcidianos, me instiga a enveredar para um caminho cujo rumo aponta para uma interpretao da representao de educao na Amaznia, possvel de ser apreendida em duas obras do escritor do Norte. A seguir, mergulho nas obras selecionadas para a pesquisa.

  • 31

    CAPTULO 2 (DES) CAMINHOS DE EDUCAO DO GAROTO AMAZNIDA

  • 32

    Tudo era por no ser mesmo o Colgio? Aquele colgio de faz-de-conta, visto atravs do carocinho de tucum, ao p da montanha? Para Alfredo o estudo era ento algo exclusivo do Colgio, em que os verbos e os nmeros entrassem em sua cabea, como passarinhos na Folha Mida, aquela rvore da beira do rio, defronte do chal.

    Dalcdio Jurandir, 2004, p.110.

    A educao escolar almejada pelo garoto amaznida o levar a caminhos ou descaminhos do saber formal? A resposta questo observada, unicamente, por meio de uma travessia nas obras do escritor da Amaznia. Os romances, sobretudo o interior dos personagens criados por Dalcdio, colocam, constantemente, os estudos no colgio como a excelncia do saber. Entretanto, Alfredo, na Vila de Cachoeira, ao mesmo tempo em que concorda com tal compreenso, em outros momentos, questiona esse saber legitimado.

    O captulo que inicio procurar percorrer as trilhas do menino do Maraj, e assim, levantar possibilidades de respostas(s) a questo acima veiculada. As situaes de educao vividas por Alfredo em Chove nos campos de Cachoeira (1991) e Trs Casas e Um Rio (1994), acontecem na Vila de Cachoeira do Arari. Assim, inicialmente, caracterizo este local da Amaznia, representado na fico dalcidiana, e, posteriormente, discuto a constituio da personagem Alfredo e sua caminhada em busca do sonho de educar-se.

    As obras em si apresentam/revelam longos caminhos, discusses e realidades amaznicas. Observada tal questo, limito-me a discutir o aspecto educacional do menino Alfredo, ainda estudante do Maraj. Qualquer outro aspecto a surgir na anlise, ganhar passagens breves, uma vez que o objetivo aqui caminhar pelas situaes educativas, vividas pelo personagem dalcidiano.

    Os momentos educativos aparecem, basicamente, em quatro situaes experienciadas pelo garoto: a aprendizagem com seu Proena; os ensinamentos com a professora vinda de Portugal; os breves estudos com o professor Valrio e, em sua imaginao, por meio da bolinha de tucum, os estudos na escola Anglo-Brasileiro, no Rio de Janeiro. Cogito ainda o entendimento de que, alm do espao escolar, Alfredo ensinado por um contexto marajoara rico em saberes, todavia, desvalorizados por uma ideologia que legitima, unicamente, os conhecimentos vazios de muitos professores daquele contexto ficcional.

  • 33

    2.1 Educao cachoeirense no contexto amaznico: uma semente perdida no remanso10

    Alfredo tem como cenrio de atuao a Vila de Cachoeira do Arari. De forma sucinta possvel dizer que tal localidade pode ser apresentada com ambientao corroda e a estampar um painel de misria, tristeza e insatisfaes impregnadas na relutante vida dos moradores da oprimida Vila:

    Os campos no voltaram com ele, nem as nuvens nem os passarinhos e os desejos de Alfredo caram pelo campo como borboletas mortas. Mais para longe j eram os campos queimados, a terra preta do fogo e os gavies caavam no ar os passarinhos tontos. E a tarde parecia inocente, diluda num sossego humilde e descia sobre os campos queimados como se os consolasse. Voltava donde comeavam os campos escuros. Indagava por que os campos de Cachoeira no eram campos cheios de flores, como aqueles campos de uma fotografia de revista que seu pai guardava. Ouvira Major Alberto dizer D. Amlia: campos da Holanda. Chama-se a isso prados (JURANDIR, 1991, p.15).11

    Descritivamente, o excerto possibilita a visualizao de um espao que sofre com queimadas, falta de infraestrutura, saneamento bsico, alm de ser loteado por casas e pessoas sofridas, simples. O quadro geral de penria. Entretanto, a narrativa veicula frestas de momentos bons: Eutansio, irmo de Alfredo, talvez ironicamente, afirma observar a Vila revestida de placidez, semelhante a um carto postal.

    A Cachoeira de Alfredo tem, em sua parte central, o chal do Major Alberto Coimbra, pai do menino. A residncia da famlia Coimbra caracterizada como uma construo de madeira, assoalho alto, quatro janelas e clima de angstia, principalmente, nas enchentes ao aparentar compartimentos fechados. Com a crescente das chuvas em determinado perodo do ano na localidade, a nica ligao com o mundo passa a ser a pontezinha12 de madeira construda todos os anos. Na estante, um quadro com a imagem de Augusto Conte parece impor certa ordem no recinto familiar. Alm do chal, moradia de Alfredo, na parte central da Vila existe um outro chal, o da famlia de seu Cristvo e D. Dejanira, a casa da costureira Duduca e a casa dos herdeiros(as) de Si Roslia. Na parte perifrica, correspondente Rua

    10 Conforme Assis & Cerqueira (2004), remanso corresponde correnteza na margem oposta do

    canal do rio, formando um verdadeiro funil. tambm chamado de redemoinho. 11

    Ao citar Jurandir, 1991, remeto-me a obra Chove nos campos de Cachoeira, publicada pela editora da UNAMA (edio crtica organizada pela professora Rosa Assis). Entretanto, vale grifar que a primeira edio do romance aponta para o ano de 1941, editora Vecchi, Rio de Janeiro. 12

    O sufixo inho/inha, para o amaznida simboliza apreo, afeto ou contrariamente, desvalor, pouco caso.

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    das Palhas, dois barracos existem: um da prostituta Felcia, que ostenta em sua parede um crucifixo e uma estampa de Nova York, e o outro casebre, extremamente miservel, habitado por Mundiquinha.

    Passado algum tempo, Dr. Casemiro Lustosa, um outro personagem, torna-se novo proprietrio dos campos de Cachoeira e, possivelmente, escamoteado na proposta de interesses pessoais, o doutor eleva a Vila condio de cidade e delimita, territorialmente, o espao cachoeirense sem considerar, principalmente, os impactos socioeconmicos que aqueles moradores iriam sofrer. Descritos alguns espaos e caractersticas da Vila de Cachoeira do Arari, engendro com mais intensidade na anlise da constituio da personagem Alfredo. A infncia do menino apresenta-o como garoto de ps calados e morador do chal de assoalho alto, de condio financeira um pouco superior aos demais garotos da Vila. Necessariamente, o menino no precisa balar passarinhos como a grande maioria dos garotos.13

    Alfredo mestio e confuso quanto a sua definio racial/tnica (a me negra e o pai branco). inegvel, e valido reforar, que Alfredo se sente envergonhado por ter o pai branco e a me negra, no se compreendendo nem moreno, tampouco branco. Algo que sobressai dentro de si o ar de branco que geralmente o impulsiona a uma superioridade em relao aos moleques pedintes e fedorentos de peixe.

    Somada a conturbada autodefinio, o filho de D. Amlia apresenta grande debilidades na sade. Constantemente, o menino acometido com o paludismo que o deixa injuriado, incomodado tambm pelas desconfortveis feridas que surgem nas pernas.

    O menino entende que, apesar de saradas, as enfermidades deixam marcas, e assim, difcil ter as pernas limpas como Tales, Jamilo e outros meninos felizes, que, com tais caractersticas, proporcionam a Alfredo o sentimento de inferioridade, no s por no terem feridas nas pernas, mas por apresentarem certas vantagens, diferente do pequeno Alfredo.

    13 O fato do personagem usar sapatos e morar em casa de assoalho alto representa uma condio

    um pouco melhor que a dos outros garotos da Vila. O ato de balar passarinho, para grande maioria dos meninos, ganha alguns significados possveis: ou corresponde a pura malvadeza /divertimento (em muitos casos o nico), ou ento, corresponde a uma forma de sobrevivncia, uma busca de saciar a fome, alimentando-se da ave. Na narrativa, dada a misria local, fica implcita a segunda significao.

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    Ao flagrar Alfredo em pensamentos, concebo uma criana melanclica, sonhadora, e indagadora quanto impossibilidade de verdadeiramente estudar em Belm, por exemplo. Definitivamente, a infncia do garoto apresenta um ser mestio, pobre, com as pernas molestadas e a cabea encharcada de sonhos por uma vida melhor.

    Alfredo, em seu interior, observa a necessidade sair da Vila que chora, piedosamente, ao sentir seus campos queimados. Uma das fugas do sofrimento presente em Cachoeira e, por extenso, no corao do garoto, talvez a nica, consiste na realizao dos estudos em Belm, uma vez que Cachoeira apresenta-se, na viso do garoto, repleta de meninos diferentes do padro de garotos que deviam frequentar a escola. O sonho do jovem cachoeirense parece fugir, a cada momento, da possibilidade de realizao:

    E por mais que as mos de D. Amlia fossem leves e pacientes sentia que aquelas feridas nunca deixariam de doer o desejo muito seu de partir daqueles campos, de parecer menino diferente do que era (JURANDIR, 1991, p. 16).

    O desejo do menino de estudar em Belm grande e urgente. Frequentemente, algumas questes assolam o querer do jovem marajoara. Surgem em meio as suas indagaes, questes como Porque sua me no resolvia logo o caso do colgio? (JURANDIR, 1991, p. 17), alm dos constantes pedidos sua me, em que o menino anseia estudar na capital: Mame, me mande para Belm. Eu morro aqui, mame. Creso aqui e no estudo. Quero estudar, quero sair daqui! (JURANDIR, 1991, p. 185).

    Terminantemente, na compreenso de Alfredo, a Vila de Cachoeira assim como a educao na localidade, seguem, como sementes marajoaras, singelas, esquecidas, perdidas no remanso.

    2.1.1 A Escola de seu Proena e o ensino da tabuada, do argumento e outras formas de opresso

    A Vila como um todo representada por Dalcdio Jurandir com um painel de desencanto, muito prximo ao contexto amaznico daquele perodo. A educao no interior da Amaznia, necessariamente, caminhava afinada ao contexto maior, marcado, fundamentalmente, por alteraes sociais.

    Cercado por incertezas e dificuldades, Alfredo frequenta escolas em Cachoeira, afinal, seu sonho obter os verdadeiros ensinamentos. A escola, na

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    figura do docente, para Alfredo, em um primeiro momento, pode possibilitar isso. A primeira situao educacional14 vivenciada pelo menino corresponde escola de seu Proena. Trata-se de uma escola opressora e extremamente precria na maioria de seus aspectos.

    O espao utilizado para os ensinamentos, corporifica uma educao marcada pela imposio de contedos e processo educativos fixos, de memorizao e castigos em que a figura da palmatria simboliza uma educao de punies:

    Ele precisa sair daquela escola do seu Proena, da tabuada, do argumento aos sbados, da eterna ameaa da palmatria embora nunca tenha apanhado, daqueles bancos duros e daqueles colegas vadios que todo dia apanham e ficam de joelhos, daquela D. Flor. O que diverte na sua ida para a escola so os cajus que seu Roberto apanha de seu quintal e lhe d quase todas as tardes (JURANDIR, 1991, p. 87).

    E Alfredo enquanto morador e estudante de Cachoeira continua a caminhar pelos campos rumo escola de seu Proena. Com o auxlio de sua bolinha de tucum,15 dada a no atratividade daquele processo educativo, mergulha em sonhos, no desejando chegar escola enfadonha. Assim, Alfredo retarda o seu caminho. Que bom no ir aula! Um passeio nos campos seria uma viagem pelo mundo com a bolinha de tucum pulando na palma da mo (JURANDIR, 1991, p.148).

    A Escola de seu Proena parece, ao menino, caracterizar-se como contrria escola carioca (Anglo-Brasileiro) e a maioria dos estudos supostamente praticados em Belm, instigando-lhe, constantemente, o desejo de refugiar-se rumo a escola verdadeira. Auxiliado pela bolinha de tucum, Alfredo transita por sonhos e imaginaes que o remetem at a escola dos meninos que, certamente, no devaneio do garoto, adquirem o verdadeiro saber:

    Alfredo se achava doido para sair de Cachoeira, ir para o colgio. O Anglo-Brasileiro [...] Existia na bolinha. Queria fugir daquela perseguio de encher sacos sujos com a farinha do armrio que D. Amlia mandava. Dar pratos cheios de resto de comida, sua roupa velha, acompanhar sua me pra tratar de alguma criana de barriga dura e com febre naquelas barracas fedorentas. Ouvir Major Alberto reclamar os gastos de casa, falar sempre que no era Casa da Moeda (JURANDIR, 1991, p. 198).

    14 Ressalto que a idia de situaes educacionais justifica-se pelo fato dos romances no tratarem

    unicamente de educao, mas apresentam situaes em que o personagem tem contato com escolas e professores. 15

    O tucum o fruto de uma palmeira da regio amaznica (Astrocarym tucum). Depois de retirada sua polpa, sobra ao amaznida o carocinho, muito utilizado nas brincadeiras infantis.

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    Ao observar o distanciamento da escola Anglo-Brasileiro (o Anglo j era um sonho perdido), o menino deseja o mnimo possvel, porm, que diferente seja do professor que contribui menos que os cajueiros.

    Alfredo apresenta pouco apreo aos conhecimentos transmitidos pelo Sr. Proena. Deseja at mesmo uma escola que no fosse o Anglo, porm, que veicule conhecimentos necessrios a sua vida e, notoriamente, que contextualize ambientes diferentes do vivido por ele:

    Que desnimo para Alfredo aquela escola do Proena. O seu Anglo-Brasileiro ia se desfazendo aos poucos, ou pelo menos, se esfumando. J queria ficar ao menos em Belm, nalgum grupo escolar. Mas a escola de Proena com a Flor, D. Rosa, o recreio tarde, o Balt sempre apanhando sries e sries de dzias de bolos, Euzbia jogando a cantiga para D. Rosa, a quantidade de chamadas (JURANDIR, 1991, p. 140).

    Inferioridade, angstia e desnimo so sentimentos que se avoluma no corao do garoto. A escola de seu Proena reflete, uma vez representada como sem atrativos e procedimentos opressores, a pequenez do ensino primrio acinzentado da Vila de Cachoeira. O sentimento de humilhao s no maior para Alfredo, pelo fato de, em alguns momentos, sentir-se superior aos meninos de Cachoeira: Tinha uma certa vaidade quando os moleques olhavam, com olhar comprido, seu quilinho. Passava por eles com superioridade (JURANDIR, 1991, p. 253). A no atratividade da escola, somada principalmente s atitudes do professor, marcava a vida do marajoara sonhador, que avista no Anglo-Brasileiro e em Belm a verdadeira educao, a educao escolarizada.

    Como se premeditasse a impossibilidade de chegar at a escola carioca (o Anglo-Brasileiro possvel somente no e por meio do carocinho de tucum), Alfredo refugia-se nos sonhos que o lanam como estudante da instituio, diferente dos meninos pobres da sofrida Cachoeira do Arari.

    O modelo de escola ideal ferido, na imaginao do garoto, quando ele vivencia substancialmente a escola de seu Proena. Nas retinas e no corao do menino, trata-se de um ambiente escolar marcado pelo marasmo, seguido de atitudes de seu Proena, prximas s maneiras lunticas.

    Em linhas gerais, a escola de seu Proena, para o menino, no proporciona requisitos capazes de envolv-lo em ensinamentos de valor. Como se, de forma irrisria, o narrador informa que a escola do professor apresenta algum aspecto interessante, capaz tambm de debilitar os alunos: Alfredo saiu do Trplice, no

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    nico divertimento da escola do seu Proena, sentindo frio (JURANDIR, 1991, p. 229).

    2.1.2 Professora vinda de Portugal: um ensino trabalhado e vazio

    A outra representao de educao criada por Dalcdio Jurandir corresponde escola da professora vinda de Portugal. Ao continuar embrenhado na busca incessante por uma educao escolar, o menino do Maraj sente uma gama de sentimentos inferiorizantes invadirem seus sonhos, que, de algum modo, escoam para bem longe tanto a escola/estudos em Belm como a conquista do mundo. Mesmo assim, Alfredo, cheio de incertezas e apreenses, tinha que voltar escola da professora chegada de Portugal (JURANDIR, 1994, p. 87).16 Com ela, o menino experimenta momentos parecidos com os vividos na escola de seu Proena. Basicamente, na percepo de Alfredo, tratava-se de uma professora sem contedos, detentora de um ensino trabalhado e vazio.

    A professora, logo de incio e em advertncia, solicita que o garoto no mais comente sobre possveis sadas de Cachoeira. A docente aconselha ao menino que no mais deseje viajar para Belm, muito menos cogite efetivao dos estudos em alguma escola na cidade equatorial.

    No contente com o pito, o filho de D. Amlia cria certa animosidade pela professora. Alfredo, aps o episdio, atenta no mais para os possveis conhecimentos trabalhados na escola. O que interessante para o menino, aps o acontecido, focalizar o tom caricatural da docente.

    Na viso de Alfredo, a figura da docente perde lugar para um ser que se traja como se preparado para um casamento, alm de uma fala trabalhada, semelhante encenao de um artista de teatro. Os ouvidos do garoto, muito relutantes, colhem efes e erres da professora, recebendo-os com menosprezo.

    Para o menino, o palco da encenao da professora decorado por pobreza e cheiro de escola que no ensina nada, e, substancialmente, contribui para o afastamento dos alunos do espao, ao visualizarem/sentirem infelicidades e pobrezas por toda a parte.

    16 Ao citar Jurandir, 1994, remeto-me a obra Trs Casas e um Rio, publicada pela editora Cejup (PA).

    Entretanto, vale reafirmar que a primeira edio do romance aponta para o ano de 1958, editora Martins, Rio de Janeiro.

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    A escola, a professora recm chegada de Portugal e os procedimentos/recursos por ela adotados, colaboram decisivamente para o sentimento e a constatao de inferioridade, acentuadamente educacional, dos meninos da Vila de Cachoeira:

    A escola era instalada na prpria casa da professora. Sala de paredes descascadas, cobertas de fumaa; o teto sem forro, de telhas sombrias, arqueava-se sobre as carteiras gastas e aleijadas. Com a impresso da recente morte de Juca, o aluno mais velho, havia tambm um ar de luto em todas as meninas e meninos. Cadernos tarjados, professora vestida de mortalha, quadro negro como um atade, torres negros na parede do corredor. As portas escuras mostravam o fundo esfumaado da cozinha de cho batido de onde a cria de casa, a Colo, gil e astuta, fazia sinais e caretas (JURANDIR, 1994, p. 88).

    A moradia e o espao educativo representados figuram uma educao beira do caos, em runas. As tarjas nos cadernos dos alunos caracterizam mais que o luto pela morte do colega de classe; representam, sobremaneira, a conteno de uma educao capaz de oferecer conscincia crtica aos jovens cachoeirenses. Necessariamente, infere Alfredo, falta vida, realismo, no ato educativo da professora. A narrativa possibilita ainda que seja somada a estrutura, aos recursos e a proposta educativa da escola, uma professora que, em relao s meninas que ali estudam, esbanjava roupas e penteados elaborados, capazes de deixar as estudantes da Vila, quando comparadas mestra, com aparncia de mendigas. De educao finssima, a professora exterioriza efes e erres que, at certo ponto, somado a um sotaque portugus, divertia o chal, recinto estudantil e residencial. Muito mal remunerada, constantemente, a professora indaga quando ir aumentar o ordenado to escasso que recebe. Frente a um processo educacional fraco, em que um velho papagaio da vizinhana solta palavres e assim parece ensinar ou realizar a verdadeira educao dos alunos, Alfredo se lana a mais uma imaginao caricatural e pejorativa da professora:

    Para Alfredo, que se rendia a sonolncia e ao tdio, a professora virava um ser de giz, esponja e lpis, rosto de palmatria, orelhas de borracha, unhas de mata-borro. E toda essa combinao de materiais escolares, p de arroz e cabelo vestia-se, movia-se, falava! (JURANDIR, 1994, p. 89).

    Os contedos transmitidos pela professora, necessariamente, destoam da realidade dos meninos da Vila, que buiavam17 em ensinamentos vlidos somente

    17 Variante de boiar utilizada em grande parte da Amaznia.

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    para a prpria professora. Paira na professora certo ar de superioridade por ter estudado/vivido em Portugal.

    O fato de ser bem letrada, tal como Edmundo Menezes, proprietrio da fazenda Marinatambalo, faz da docente um ser que aprecia e supervaloriza valores, sobretudo europeus. Para a professora melhor fazer ouvidos de borracha frente aos valores, problemas e saberes locais.

    Tanto a docente como os contatos com Edmundo Menezes aguam em Alfredo pensamentos do tipo: a educao e o saber escolar no servem apenas para mascarar as pessoas? E seguido por outras indagaes e mergulhado em um mundo em runas, Alfredo se sente mais fragilizado ainda com a morte de sua irm e de Lucola, alm da triste percepo de que sua me consumia lcool. Ser possvel um dia verdadeiramente estudar?

    2.1.3 O professor Valrio, a educao penosa e os trabalhinhos para sustentar-se

    Enquanto no possvel estudar em Belm, como medida paliativa, D. Amlia pensa em matricular seu filho em outra escola, a do professor Valrio. Na verdade, atenta ela para a ausncia de dinheiro que, de certa forma, impossibilita a transferncia do filho para Belm, e, assim, impede o menino de interagir com uma escola possivelmente melhor, pelo menos diferente das frequentadas pelo garoto. A debilitada condio financeira da famlia Coimbra cogita o entendimento de que Alfredo estudar por longo perodo com o professor Valrio, o novo docente na trajetria rumo aos verdadeiros estudos do garoto. O docente, com um ordenado parco, luta para se manter na funo. Chega a realizar ensinamentos com pena de seus alunos fiquem sem aulas, abandonados, margem de uma educao to sonhada pela grande maioria dos pequenos de Cachoeira. Comparativamente, poucas caractersticas diferenciavam o Prof. Valrio dos dois outros professores que ensinaram Alfredo, dado o padro escolar implementado no interior do Estado, em especial na Vila de Cachoeira. Indignado com a inacessibilidade de um estudo como sempre sonhou, o menino realiza nova fuga rumo capital paraense.

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    A tentativa fracassa. Ao retornar, reconcilia-se com a me, porm, questiona a temporalidade de seus estudos com o professor, afinal, seu desejo estudar em Belm. No muito contente, Alfredo aceita a posio da me em matricul-lo na escola, no perodo da tarde, por um valor de dez mil ris por ms:

    - Voc, meu filho, no vai freqentar a escola de manh. Seu pai paga suas aulas da tarde. Com voc, ele no ser rspido. E voc sabe que o professor Valrio, coitado, no liga ao ensino por que o governo no paga o pobre h mais de trs anos. Foi obrigado a pescar, a aceitar trabalhinhos de guarda-livros nas tabernas. A escola estadual no fechou, por que ele se compadeceu das crianas. Estudou na Escola Normal. Sua famlia teve. Aquela casa velha onde ele mora com a me foi um casaro. O que ficou s uma parte da casa (JURANDIR, 1994, p. 287).

    A fala de D. Amlia no apenas tonifica o passado esplendoroso para muitas famlias no auge econmico, como situa a decadncia de muitos lares abastados. Valrio smbolo de decadncia. Os estudos na Escola Normal retomam um passado de acesso ao saber oriundo das cidades.

    O desejo de D. Amlia repousava na vontade de que o docente trabalhe algum ensinamento capaz de desenvolver o pequeno Alfredo. Talvez a rispidez a que se refere a mulher de major Alberto consista nos valores recusados, at ento, por Alfredo. Os estudos com o professor Valrio duram muito pouco. Cerca de uma semana. Na outra, o jovem marajoara parte para Belm. Assim, a narrativa apresenta D.Amlia decidida a conseguir um local para o filho morar na capital paraense e l estudar. Com a entrada do ano novo, Alfredo sente a alma, sempre agitada pela vontade de estudar em Belm, acalmar um pouco. E com o corao e a alma transbordantes de esperana, o pequeno menino de Cachoeira parte rumo a Belm decidido a honrar-se e a honrar a me. Os estudos na cidade equatorial tornariam possvel um novo Alfredo. O deslocar-se rumo cidade de Belm, em busca de um saber e ambientes sonhados, transpiram, sobremaneira, anseios do garoto e da me analfabeta e sonhadora com dias melhores para o filho. O rio rua que desgua em Belm. O mesmo rio que oferece sada das runas educativas, ganha outras simbologias para a vida-trajeto de Alfredo. Serve, fundamentalmente, para o sustento dos moradores de Cachoeira dada a imagem de Alfredo pescando entre as frestas do assoalho, assim como representa as guas

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    que afastam o menino do mundo, ao isolar e ofertar ao marajoara, a impossibilidade de encontrar-se com Belm, e, consequentemente, com a escola almejada.

    Alm dos estudos efetivados em Belm, Alfredo chega a se imaginar aluno do Anglo-Brasileiro, no Rio de Janeiro. Complementar as situaes de educao vividas pelo menino, cabe as perguntas: ser um dia Alfredo aluno do Anglo? Como se apresenta a instituio carioca ao ponto do menino almejar efetivao dos estudos na escola fluminense?

    As respostas, a tais perguntas podem ser observadas a seguir. Entretanto, vale adiantar que a Anglo Brasilian School, carregada de valores ingleses, aparece como contraponto s possibilidades e experincias educacionais vivenciadas por Alfredo. Em sntese, a Anglo inacessvel ao menino.

    2.2 A escola Anglo-Brasileiro: contraponto a escola real do jovem amaznida

    A realidade educativa no incio dos anos 20, na Vila de Cachoeira, apresenta calamidades. Possivelmente, em Belm, infere Alfredo, a educao escolar realizada. Alm de sonhar com os estudos praticados, ao menos em Belm, em alguns momentos no escrito dalcidiano, possvel imaginar o personagem Alfredo, por meio da bolinha de tucum, em desejo constante de admisso na escola Anglo-Brasileiro, no Rio de Janeiro.

    O pertencimento ao Anglo materializado pelo caroinho mgico, realizador dos sonhos do menino. Alfredo ilustra a mente com a possibilidade de estudar na escola dirigida pelo professor Sr. Charles W. Armstrong, localizada na chcara Paraso, So Gonalo, Niteri.

    Viu numa revista o retrato do colgio Anglo-Brasileiro do Rio de Janeiro. nele que quer estudar. Os meninos ali devem ser bonitos e fortes. A vista da praia e das montanhas levam Alfredo para uma viagem ao Rio onde estudar no Anglo-Brasileiro [...] Depois o Anglo-Brasileiro o libertaria das feridas que D. Amlia, sentada no cho, lavava com gua boricada sob o olhar da Minu, curiosa. De vez em quando aparecem. A febre faz Alfredo mais agarrado rede, s revistas, aos caroos de tucum que jogava na palma da mo. Com um carocinho daqueles imagina tudo, desde o Crio de Nazar at o Colgio Anglo-Brasileiro (JURANDIR, 1991, p. 87).

    O que o personagem talvez no imagine, o perfil dos alunos exigido pela The Anglo Brasilian School, no Rio de Janeiro. A escola, de propriedade e direo

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    do professor de lgica, Sr. Charles, traz logo no incio de seu estatuto, publicado no Dirio Oficial, uma sntese de sua concepo acerca da educao:

    A Succursal Fluminense do Gymnasio Anglo-Brasileiro The Anglo-Brasilian School, como estabelecimento matriz, tem por fim: proporcionar aos alumnos uma educao completa e segura, procurando a sua directoria cumprir rigorosamente o programma de ensino do Gymnasio Nacional. A fiel execuo deste programma exige tanto os processos prticos como os theoricos (GYMNASIO ANGLO-BRASILEIRO, 1910, p. 2355).

    Talvez, diante da informao inicial, Alfredo perguntasse: o que so esses processos? O que aprendi com Proena, Valrio e a professora vinda de Portugal vale, nem que seja um pouquinho, como processos prticos e tericos? Ao observar o enunciado da escola carioca, compreendo que Alfredo ao falar da Anglo, se refere a um estabelecimento disciplinado, que segue o programa do Ginsio Nacional,18 referncia em termos de educao de qualidade.

    A escola carioca, dentro dos parmetros mais gabaritados em educao primria da poca, apresenta o regime de internato e externato. Algumas caractersticas da instituio, como em uma rolagem do carocinho pelo cho, demarcam a impossibilidade dos estudos do jovem Alfredo na escola fluminense.

    O internato

    Condies de hygienicas O edifcio do collegio, completamente reformado para o fim a que serve, de accrdo com a planta preparada pelo director, e todas as exigncias da hygiene moderna, acha-se situado no meio da belissima Chcara do Paraso, que pertencia antigamente a Mr. H. de Lisle, que foi gerente do London and River Plate Bank. A Chcara compreende oito alqueres de terreno, contendo bellos jardins, recreios arborizados, muitas alamedas de bambus e de mangueiras, tanque de natao, logar para jogo de laion-tennis etc. O menino que trouxer bicycleta ter amplo espao para este exerccio. No prdio, as janellas, tanto das salas de aulas como dos dormitorios, so numerosas, altas, largas, e todas providas de venezianas, para facilitar a perfeita ventilao de noite e de dia. O collegio possue campos para o jogo de foo ball, e outros exerccios athleticos, com que os meninos possam, segundo o systema inglez de educao physica, desenvolver o corpo, entretendo-se ao ar livre em diverses viris e salubres, nas horas frescas de manh e de tarde. Sendo MENS SANA IN CORPORE SANO a legenda do collegio, todos os esforos da sua directoria miram perfeita harmonizao da educao pysica, intellectual e moral, pois a primeira necessidade da creana a robustez do corpo, da qual resulta o seu contentamento geral e a sua predisposio para a cultura intellectual e moral (GYMNASIO ANGLO-BRASILEIRO, 1910, p. 2355).

    18 O tempo histrico vivido por Alfredo, tanto em Chove nos campos de Cachoeira como em Trs

    Casas e um Rio, sinaliza para o incio da dcada de 20. A Anglo-Brasileiro (matriz paulista), por sua qualidade em ensino, ganha equiparao ao Ginsio Nacional, por meio do decreto n. 6206 em 5 de novembro de 1906. A filial carioca localizada na fazenda parazo equiparada ao Ginsio Nacional em 22 de setembro de 1910 (EGAS, 1907).

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    Robustez do corpo, predisposio para a cultura intelectual e moral. Aqui j se observa inadequao/excluso do amaznida Alfredo. A escola carioca idealizada em viril harmonia fsica, intelectual e moral, parece afogar o sonho do menino dos campos de Cachoeira.

    A instituio assentada em valores de educao inglesa, apregoa atividades fsicas, utilizao de aparelhos para exerccios atlticos, e sobremaneira, que os alunos da instituio apresentem, antecipadamente a admisso, uma sade no comprometida com molstias ou qualquer outra debilidade fsica, chocando-se tais aspectos vida do empaludado Alfredo:

    O collegio um sanatorio, e faz estudo especial das leis da hygiene. No aceita, porm, como alumnos, meninos fracos e anmicos ou com molstias contagiosas ou hereditrias. Estes so excludos a bem dos outros. Outros pontos de hygiene, etc. Os alumnos internos acham-se sob os cuidados immediatos do director e do sub-director que residem no collegio. Uma enfermeira ingleza reside com a famlia do sub-director e cuida inteiramente dos meninos que estiverem doentes. O collegio regularmente visitado por um mdico competente, o qual, em caso de necessidade, tambm chamado a qualquer hora, pelo telephone (GYMNASIO ANGLO-BRASILEIRO, 1910, p. 2355).

    Ao mestio empaludado, pobre e feridento, resta apenas sonhar. Nitidamente, h uma gritante diferena entre as duas realidades educativas (Cachoeira x Anglo), alm de alunos, principalmente pelo padro exigido, totalmente diferentes.

    Assim, Alfredo, atordoado pela irrealizao de seus estudos em plano real na escola dos meninos saudveis, aparenta conformidade com as sobras de educao escolar ofertadas na Vila de Cachoeira: O Anglo-Brasileiro era j um sonho perdido. Existia na bolinha (JURANDIR, 1991, p. 198).

    Alm das caractersticas menci