fernandes, josé guilherme dos santos; fernandes, daniel dos santos. a experiencia proxima - saber e...

24
Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015. A “EXPERIÊNCIA PRÓXIMA”: SABER E CONHECIMENTO EM POVOS TRADICIONAIS 1 DANIEL DOS SANTOS FERNANDES 2 FAINTIPI JOSÉ GUILHERME DOS SANTOS FERNANDES 3 UFPA RESUMO: Trata-se, aqui, de relacionar os conceitos de saber e conhecimento como formas complementares de organização do pensamento humano, que devem ser priorizados conforme a natureza da pesquisa ou do objeto a ser apreendido, variando o termo conforme a abordagem e a concepção de ciência a ser priorizada. Privilegiando-se o concepto de saber, como parte intrínseca da “experiência próxima” em povos tradicionais, apresentam-se características do modus operandi e da natureza do “saber”, além de se vislumbrar a aplicação dessa conjunção de formas de pensamento para a construção de uma sociedade do Bom Viver. Priorizam-se as teorias de DaMatta (2010), Lévi-Strauss (1997), Geertz (1997 e 2005), Gramsci (1931 e 1991), Escobar (2012) e Foucault (2007) para dar suporte aos conceptos. PALAVRAS-CHAVE: saber; conhecimento; povos tradicionais; interculturalidade; experiência. ABSTRACT: In this paper we connect the concepts of “knowing” and “knowledgeas complementary forms of organization of human thought, which should be prioritized according to the nature of the research or the object to be grasped, varying the word according to the approach and conception of science to be prioritized. Favoring the concept of “knowing”, as an intrinsic part of the "close experience" to traditional peoples, we show characteristics of the modus operandi and the nature of the "knowing", envisaging the application of this combination of thought methods for building a society of “Bom Viver”. Theories of Da Matta (2010), Levi- Strauss (1997), Geertz (1997; 2005)), Gramsci (1931; 1991), Escobar (2012) and Foucault (2007) are used to support the concepts. 1 Este texto não se configura como um trabalho etnográfico estrito. A partir das experiências em campo dos autores, em estudos e investigações em comunidades pesqueiras e ribeirinhas das microrregiões do Baixo Tocantins, Salgado e Bragantina, no Estado do Pará (Brasil), no período de 2000-2014, pretende-se o desenvolvimento de reflexões de caráter mais teórico acerca dos conceptos de saber e conhecimento, sem, no entanto, deter-se em exaustivas descrições e narrações etnográficas, o que não é apanágio da proposta. Vide Fernandes (2007 e 2011) e Fernandes e Silva Júnior (2015). 2 Professor e Coordenador de Pesquisa das Faculdades Ipiranga (PA), Doutor em Antropologia (Universidade Federal do Pará, 2008), Associado Efetivo da Associação Brasileira de Antropologia. E- mail: [email protected] . 3 Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA), Coordenador de Pesquisa do Campus Universitário de Castanhal (UFPA), Doutor em Letras (Universidade Federal da Paraíba, 2004), Pós- Doutorado na Universidad Nacional de Tres de Febrero (Argentina, 2014), Associado Colaborador da Associação Brasileira de Antropologia. E-mail: [email protected] .

Upload: daniel-s-fernandes

Post on 10-Sep-2015

24 views

Category:

Documents


18 download

DESCRIPTION

Trata-se, aqui, de relacionar os conceitos de saber e conhecimento como formas complementares de organização do pensamento humano, que devem ser priorizados conforme a natureza da pesquisa ou do objeto a ser apreendido, variando o termo conforme a abordagem e a concepção de ciência a ser priorizada. Privilegiando-se o concepto de saber, como parte intrínseca da “experiência próxima” em povos tradicionais, apresentam-se características do modus operandi e da natureza do “saber”, além de se vislumbrar a aplicação dessa conjunção de formas de pensamento para a construção de uma sociedade do Bom Viver. Priorizam-se as teorias de DaMatta (2010), Lévi-Strauss (1997), Geertz (1997 e 2005), Gramsci (1931 e 1991), Escobar (2012) e Foucault (2007) para dar suporte aos conceptos.

TRANSCRIPT

  • Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    A EXPERINCIA PRXIMA: SABER E CONHECIMENTO EM POVOS TRADICIONAIS1

    DANIEL DOS SANTOS FERNANDES2

    FAINTIPI

    JOS GUILHERME DOS SANTOS FERNANDES3

    UFPA

    RESUMO: Trata-se, aqui, de relacionar os conceitos de saber e conhecimento como formas

    complementares de organizao do pensamento humano, que devem ser priorizados conforme a

    natureza da pesquisa ou do objeto a ser apreendido, variando o termo conforme a abordagem e

    a concepo de cincia a ser priorizada. Privilegiando-se o concepto de saber, como parte

    intrnseca da experincia prxima em povos tradicionais, apresentam-se caractersticas do modus operandi e da natureza do saber, alm de se vislumbrar a aplicao dessa conjuno de formas de pensamento para a construo de uma sociedade do Bom Viver. Priorizam-se as

    teorias de DaMatta (2010), Lvi-Strauss (1997), Geertz (1997 e 2005), Gramsci (1931 e 1991),

    Escobar (2012) e Foucault (2007) para dar suporte aos conceptos.

    PALAVRAS-CHAVE: saber; conhecimento; povos tradicionais; interculturalidade;

    experincia.

    ABSTRACT: In this paper we connect the concepts of knowing and knowledge as complementary forms of organization of human thought, which should be prioritized according

    to the nature of the research or the object to be grasped, varying the word according to the

    approach and conception of science to be prioritized. Favoring the concept of knowing, as an intrinsic part of the "close experience" to traditional peoples, we show characteristics of the

    modus operandi and the nature of the "knowing", envisaging the application of this combination

    of thought methods for building a society of Bom Viver. Theories of Da Matta (2010), Levi-Strauss (1997), Geertz (1997; 2005)), Gramsci (1931; 1991), Escobar (2012) and Foucault

    (2007) are used to support the concepts.

    1 Este texto no se configura como um trabalho etnogrfico estrito. A partir das experincias em campo

    dos autores, em estudos e investigaes em comunidades pesqueiras e ribeirinhas das microrregies do

    Baixo Tocantins, Salgado e Bragantina, no Estado do Par (Brasil), no perodo de 2000-2014, pretende-se

    o desenvolvimento de reflexes de carter mais terico acerca dos conceptos de saber e conhecimento,

    sem, no entanto, deter-se em exaustivas descries e narraes etnogrficas, o que no apangio da

    proposta. Vide Fernandes (2007 e 2011) e Fernandes e Silva Jnior (2015). 2 Professor e Coordenador de Pesquisa das Faculdades Ipiranga (PA), Doutor em Antropologia

    (Universidade Federal do Par, 2008), Associado Efetivo da Associao Brasileira de Antropologia. E-

    mail: [email protected] . 3 Professor Associado da Universidade Federal do Par (UFPA), Coordenador de Pesquisa do Campus

    Universitrio de Castanhal (UFPA), Doutor em Letras (Universidade Federal da Paraba, 2004), Ps-

    Doutorado na Universidad Nacional de Tres de Febrero (Argentina, 2014), Associado Colaborador da

    Associao Brasileira de Antropologia. E-mail: [email protected] .

  • 128

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    KEYWORDS: knowing; knowledge; traditional peoples; interculturalism; experience.

    Saber: ter conhecimentos especficos; estar convencido de; ter certeza de (coisas presentes e

    futuras); prever, pressentir; ter habilidade de; poder explicar, compreender; guardar na memria; indagar, perguntar; julgar, considerar, ter como.

    lat. sapio, ere ter sabor, ter bom paladar, ter cheiro, sentir por meio do gosto, ter inteligncia, ser sensato,

    prudente, conhecer compreender (HOUAISS, 2012, n.p.).

    Conhecimento: o ato ou a atividade de conhecer, realizado por meio da razo; ato ou efeito de apreender

    intelectualmente, de perceber um fato ou uma verdade; fato, estado ou condio de compreender;

    entendimento. lat. cognosco, cognoscere aprender a conhecer, procurar saber, tomar conhecimento de, reconhecer (HOUAISS, 2012, n.p.).

    Em fins dos anos noventa, do sculo XX, registramos, por ocasio

    de pesquisa de campo na cidade de Marapanim4, zona do Salgado

    Paraense, a histria supostamente vivida por dois pescadores da regio

    Azevedo e Saboia que relataremos sucintamente: Azevedo e Saboia

    resolveram pescar e foram tapar um igarap. Quando a mar secou,

    notaram um boto dentro da cerca. Azevedo tentou matar o boto, mas

    foi impedido por Saboia. Saboia o alertou do perigo que era ferir um ser

    mtico. Azevedo desconsiderou o alerta e desdenhou da crena,

    tentando atingir o boto com duas facadas. A primeira acertou o cetceo,

    mas a segunda facada resvalou e atingiu a coxa de Azevedo. Azevedo

    teve paralisia imediatamente. Saboia foi buscar socorro, retornando e

    levando Azevedo. Os pajs foram chamados para salv-lo. Nada deu

    resultado positivo e Azevedo morreu em menos de vinte e quatro horas

    depois do ocorrido.

    4 Narrativa coletada no decorrer do trabalho de campo, em municpio de economia pesqueira, no litoral

    amaznico paraense, sendo constituinte da dissertao de Jos Guilherme dos Santos Fernandes,

    Largueza e lassido: a mitopotica do espao das guas (1998).

  • 129

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    Uma narrativa aparentemente banal, com teor fantstico, pois no

    se sabe bem ao certo o que teria provocado a morte de Azevedo: um

    descuido no manejo da faca ou uma transgresso a uma interdio local

    da cultura cabocla amaznica? Se ficarmos no foco intratextual, do

    estabelecimento de uma pretensa verdade axiomtica a partir da

    narrativa, talvez no cheguemos a lugar nenhum, pois quase sempre

    somos tentados a explicar algo mediante o conhecimento que temos

    desde nossa cultura o que podemos entender como etnocentrismo

    em detrimento de procurar-se entender a lgica da cultura do outro.

    Mas optamos no por fazermos elucubraes de base epistemolgica

    centradas numa possvel verdade que o texto instala, e considerando

    unicamente o foco de que o texto instaura a Verdade universal e

    atemporal; do contrrio, buscamos a compreenso considerando as

    relaes intertextuais e, por que no dizer, interculturais. Assim que,

    para estarmos convencidos de que a aparentemente banal narrativa

    poderia nos dizer muita coisa relativa a um conhecimento especfico,

    guardado na memria local, intentamos comparar, ou melhor,

    estabelecer homologias entre culturas em que a prtica pesqueira

    organizadora da sociabilidade imediata.

    Ora, entre as populaes5 pesqueiras do litoral amaznico, por

    sinal altamente piscoso, em razo da larga faixa costeira de

    manguezais, notria, na observao da paisagem martima pelos

    pescadores, a habilidade de reconhecer de que onde h boto h

    cardumes, pois o golfinho amaznico se desloca atrs de alimento em

    fartura, e, de longe, ao corrermos os olhos pela paisagem, possivel

    enxerg-lo em seus movimentos sinuosos e acentuada velocidade.

    Onde a pesca no dispe de alta tecnologia, como instrumentos de

    localizao, a exemplo de sonares e GPS, o que vale a habilidade para

    julgar o que a viso registra e a memria ratifica pelo acmulo de saber

    de geraes. De modo diferente, em sociedades em que a escolarizao

    para a profissionalizao mais recorrente, as atividades de captura,

    manuseamento e processamento do pescado requerem conhecimentos

    especializados, como o caso de Portugal, em que os conhecimentos da

    pesca devem estar inscritos no Catlogo Nacional de Qualificaes,

    5 Aqui, utiliza-se o termo populaes, pois queremos nos referir a um recorte generalista acerca de um pblico especfico, os indivduos que desenvolvem uma atividade de trabalho determinada, a pesca.

  • 130

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    como atividades de marinheiro/a6, sendo frequente no trabalho destes

    pescadores a intermediao de instrumentos (GPS, sonares, telefonia

    satelital, etc.) e a aplicao de conhecimentos especializados, da que no

    perfil profissional haja a necessidade de conhecimentos sobre ingls

    tcnico, tcnicas de planejamento e organizao do trabalho e gesto de

    recursos pesqueiros, s para termos exemplos das competncias

    exigidas e que so frutos de conhecimentos escolarizados. A

    Classificao Brasileira de Ocupaes, do Ministrio do Trabalho e

    Emprego, em sua Listagem das Profisses Regulamentadas, discrimina o

    Pescador Profissional (n 50), mas extremamente concisa na descrio,

    unicamente referindo-se aos diversos atores na pesca e o tipo de

    pescado que capturam, alm de dizer que so responsveis por

    construirem, manterem e conduzirem as embarcaes, o que torna o

    documento brasileiro bem aqum do parente lusfono.

    No Brasil, em especial, o trabalho da pesca tem implicado em uma

    diviso para alm de discriminao de domnios de conhecimento. A Lei

    11.959/2009, que dispe sobre a Poltica Nacional de Desenvolvimento

    Sustentvel da Aquicultura e da Pesca, em seu artigo 8, discrimina dois

    tipos de pesca: a pesca comercial e a no comercial. No entanto, este

    recorte unicamente econmico tem levado a inconsistncias do ponto de

    vista cultural e, consequentemente, de saberes e prticas. Ora, como

    incluir em grupos distintos a pesca artesanal e a pesca de subsistncia,

    conforme o artigo da lei preconiza? Unicamente porque a primeira visa o

    lucro e a segunda no? Mas as duas so, reconhecidamente, atividades

    familiares e que implicam tambm em consumo domstico, ou seja,

    desconsidera-se a dinmica socioantropolgica das prticas e saberes

    das comunidades pesqueiras tradicionais, exatamente porque a lei

    construda sobre uma base estritamente economicista e de lgica

    citadina, sem observar que a sazonalizade nas atividades pesqueiras

    implica em ocupaes distintas do ribeirinho ou do pescador costeiro

    conforme as estaes da natureza e conforme regimes de mars e

    chuvas. Acreditamos que a melhor compreenso desta condio do

    6 Ver mais em: . O Catlogo Nacional de Qualificaes,

    de Portugal um instrumento de gesto estratgica das qualificaes nacionais de nvel no superior,

    apresentando referenciais de qualificao nicos para a formao de dupla certificao (formao de

    adultos e formao contnua, numa primeira fase) e para processos de reconhecimento, validao e

    certificao de competncias (RVCC).

  • 131

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    pescador pode ser mais evidenciada tambm quando da discusso do

    que seja saber e conhecimento. Alm do que, associando-se o saber

    tradicional das comunidades com o conhecimento escolarizado, poder-

    se-ia promover mais adequadamente o que a lei distingue como

    desenvolvimento sustentvel da atividade pesqueira (artigo 7), que

    implica, dentre outros fatores, em educao ambiental e capacitao da

    mo de obra do setor pesqueiro. Por sinal, as questes de preservao

    ambiental e sobrexplorao dos espaos de pesca so bem recorrentes

    nas comunidades pesqueiras, uma vez que, com a instituio de

    reservas extrativistas marinhas pelo governo federal, existe grande

    temor no meio destas comunidades em relao a proibies apontadas

    pelos planos de manejo. Acreditamos que se houver a interao entre os

    saberes tradicionais e os conhecimentos escolarizados ocorrer melhor

    compreenso da situao. Mas para tanto, necessrio minimamente

    acercar-se destes conceitos.

    E acercar-se dos conceitos implica em termos compreenso da

    natureza do saber, que se d luz tambm pela construo da narrativa

    mtica. Portanto, o que a narrativa mtica do Boto, acima, pode nos

    conferir, para alm de sua verdade mtica localizada, a verdade de

    que carrega um saber pragmtico e adaptado realidade que o

    circunscreve: saber narrativo que se impe pela Interdio7, trazendo

    em seu discurso a marca da proibio ancestral que impe o que se

    deve ou no fazer naquela sociedade costeira da Amaznia; por tal

    efeito, organiza-a. A proibio, assim, consiste no impedimento de os

    profanos se relacionarem com seres animados, objetos ou lugares

    determinados, ou mesmo, daqueles se aproximarem destes, pelo

    carter sagrado dos ltimos, do contrrio os profanos podem sofrer

    consequncias, os castigos divinos. No entanto, transgredir um interdito

    revela a relao entre transgresso e tabu uma vez que

    transgredir, longe de ser uma provocao ao sagrado, serve para reforar o poder poltico do mito. As

    7 Dundes, em Morfologia e estrutura do conto folclrico (1996), lembra-nos que a interdio o leit

    motive das narrativas mticas folclricas, pois exatamente servem de freio aos desejos individuais que, por

    vezes, desestabilizam os valores em uma sociedade tradicional. As narrativas principiam exatamente em

    razo do Desejo do indivduo provocar uma Carncia, e ao procurar-se Reparar a Carncia o sujeito faz a

    Violao de uma Interdio, concorrem para a narratividade que passa a existir e que gera as vrias

    narrativas mticas.

  • 132

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    narrativas tm o compromisso de lembrar ao seu usurio esse poder: balizando os limites do permitido e

    do proibido, os desejos podem ser policiados (FERNANDES, 1998, p. 103).

    Por isso, o saber narrativo talvez a principal forma de

    objetividade de saberes locais.

    Sendo relativo a uma localidade, de outro modo nada impede que

    este saber possa e deva estar em dilogo com o conhecimento mais

    universal e cientfico: algumas vezes estruturando homologias, em

    possveis tradues; outras vezes sendo unicamente aplicvel

    realidade que o produz, pois nem sempre possvel traduzir-se, j que

    existem limites para a traduo entre culturas e a interculturalidade

    requer que saibamos que h elemento intracultural em cada saber

    isolado e posto em contato, que parte da estrutura do pensamento do

    grupo social, e isso, muitas vezes, intraduzvel para outro grupo

    social.

    A narrativa de Azevedo e Saboia nos ajuda a refletir sobre saber e

    conhecimento, em perspectiva intercultural e dilogo profcuo entre

    cincias distintas, mas no intangveis: uma cincia da tradio, de

    inscrio mais mtica e local, e uma cincia do moderno, de inscrio

    mais abstrata e universal. Mas o que poderia ser uma complementao

    entre estas formas do saber acaba por marcar distines e, por vezes,

    desigualdades, refletidas em discursos valorativos, em que a

    universalidade da cincia pretere qualquer outra forma de

    conhecimento localizado. Para Mato,

    podemos observar que las prcticas y discursos de una

    gran cantidad de investigadores, instituciones de investigacin y formacin acadmica, y organismos de formulacin de polticas de ciencia se asientan cuando menos implcitamente en la idea de que la ciencia (como modo de produccin de conocimientos) y el

    conocimiento cientfico (como acumulacin de conocimientos producidos cientficamente) tendran validez universal. Es decir, resultaran verdaderos y aplicables en cualquier tiempo y lugar () En el marco de esa visin del mundo, la otra clase abarcara a una

    amplia variedad de tipos de saber, de modos de produccin de conocimiento y sus resultados, a los cuales, en contraposicin con el saber universal de la ciencia, suele caracterizarse segn los casos como

  • 133

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    tnicos o locales, siempre como saberes particulares y por lo tanto no universales (MATO, 2008, p. 102).

    No se pode negar a necessidade de aplicao de epistemologias

    comuns no mundo contemporneo, em razo de que todas as

    sociedades, em maior ou menor grau, partilham de interesses comuns

    em relao a segmentos da vida, que devem estar minimamente

    equalizados para que no haja discriminao e marginalizao sociais;

    interesses tais como cuidados mdicos bsicos, condies de

    habitabilidade, acesso informao e comunicao, sustentabilidade

    dos ecossistemas, direitos individuais, tolerncia e incluso, dentre

    outros. De outro lado, o atendimento a esses interesses comuns pode

    variar de sociedade para sociedade, gerando formas de saber distintas,

    pois

    de distintas formas, todos los conocimientos, el

    cientfico, lo mismo que cualquier otro, estn marcados por los contextos sociales e institucionales en que son

    producidos. Por eso, la valoracin y evaluacin de los resultados de cualquier forma de produccin de conocimiento debe hacerse tomando en cuenta esas

    condiciones de produccin (MATO, 2008, p. 106).

    Ilustrativos desse tensionamento e complementao entre grupos

    tnicos e sociais, os conceitos de saber e de conhecimento implicam

    vises e prticas distintas na relao sujeito e objeto de apreenso.

    notvel que a palavra conhecimento implica em distanciamento maior

    entre sujeito e objeto, relao esta que tambm no considera, mais

    precisamente, o contexto de uso e habilidade especfica de aplicao do

    saber/conhecimento. Saber, de outro modo, exige maior participao

    do sujeito na apreenso do objeto, da envolver propriamente o corpo e

    seus sentidos: sabor, paladar, cheiro, gosto. Conhecimento est mais

    ligado capacidade de cognio (pensamento e reflexo abstrata),

    enquanto o saber envolve, alm desta capacidade, o afeto e a volio:

    em particular, esta capacidade implica em escolher e decidir, em

    conduta consciente, por certa orientao e prtica (ou pragmatismo?).

    Evidentemente, ao se tratar de escolha consciente, queremos atentar

    no para uma conscincia positivista (estritamente cognoscente), mas

  • 134

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    sim escolha por aquilo que se considera senso comum em dada

    realidade, ou comunidade. Ou, como diria Gramsci (1931),

    espontaneidade e direo consciente, isto , sentimentos formados

    mediante a experincia cotidiana de sentido comum, sem o carter de

    atividade educadora sistemtica, por um grupo dirigente e de

    intelectuais especializados, no entanto sem ser mero instinto, pois

    espontaneidade e direo consciente so aquisies histricas, mesmo

    que elementares.

    Devemos entender, entretanto, que as distintas percepes e

    prticas entre estes atos do aprendizado no devem ter carter

    valorativo, como se um fosse superior ou excludente em relao ao

    outro. Antes de tudo, devemos compreender que so formas de

    apreenso e construo de realidades em perspectivas distintas e, por

    isso, tm diferentes situaes de aplicabilidade. Nessa perspectiva, h

    de se considerar que o conhecimento est mais vinculado ao concepto

    de cincia natural:

    A matria-prima da cincia natural, portanto, todo o conjunto de fatos que se repetem e tm uma

    constncia verdadeiramente sistmica, j que podem ser vistos, isolados e, assim, reproduzidos dentro de condies de controle razoveis, num laboratrio

    (DAMATTA, 2010, p. 19).

    Testar as teorias indefinidamente requer que haja o

    distanciamento necessrio entre sujeito e objeto, mesmo porque a

    repetitividade garante que o teste seja realizado por dois ou mais

    sujeitos, em contextos diversos e perspectivas opostas. Do mesmo

    modo, isso no ocorre com a natureza do saber, mais ligado s cincias

    humanas e sociais, uma vez que estas requerem a compreenso da

    (inter)subjetividade do participante, em circunstncias de causalidade e

    determinao especficas:

    A matria-prima das cincias sociais, assim, so eventos com determinaes complicadas e que podem ocorrer em ambientes diferenciados tendo, por causa

    disso, a possibilidade de mudar seu significado de acordo com o ator, as relaes existentes num dado

    momento e, ainda, com sua posio numa cadeia de eventos anteriores e posteriores (DAMATTA, 2010, p.

  • 135

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    20-21).

    Portanto, o termo saber est mais afinado com as prticas das

    cincias humanas e sociais, marcadamente em contexto de pesquisas

    etnogrficas e socioambientais, enquanto que conhecimento se

    adequa mais ao conhecimento dito das cincias naturais,

    particularmente na perspectiva laboratorial. Ademais, o primeiro termo

    envolve mais amplamente a palavra conhecimento:

    algumas lnguas, tais como, portugus, espanhol, francs e alemo, a mesma ser utilizada num sentido

    muito mais amplo que a palavra conhecimento. A palavra conhecimento refere-se a situaes objetivas e

    tericas que, sistematizadas, do lugar cincia, o que de certa forma, nos confunde, porque cincia procede do verbo scire que significa saber. Enquanto que a

    palavra saber pode referir-se a situaes tanto objetivas como subjetivas, tanto tericas quanto

    prticas. como se a palavra conhecimento coubesse dentro da palavra saber e no o contrrio (MOTA,

    PRADO e PINA, 2008, p. 112-113).

    O certo que o uso de um termo ou de outro tem a ver

    visceralmente com a natureza da pesquisa ou do objeto a ser

    apreendido, variando o termo conforme a abordagem e a concepo de

    cincia a ser priorizada. Em nosso particular, estas notas tm a ver mais

    precisamente com pesquisas de campo viabilizadas junto aos povos

    tradicionais, a ser visto no prximo tpico.

    1. Povos tradicionais e saberes

    O termo populaes tradicionais notabilizou o saber de grupos

    at ento no reconhecidos como portadores de acmulo de

    informaes especializadas, e transmitidas mediante a experincia

    ancestral. Diegues, em 1994, frente do Ncleo de Apoio Pesquisa

    sobre Populaes Humanas e reas midas do Brasil (NUPAUB), foi um

    dos primeiros investigadores que caracterizou, no pas, as populaes

    tradicionais, em seu livro O mito moderno da natureza intocada (2002),

    sendo as caractersticas referenciadas, inclusive, pelo Instituto Brasileiro

  • 136

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis (Ibama) em sua

    pgina acerca de reservas extrativistas

    (http://www.ibama.gov.br/resex/pop.htm), que ainda se mantinha em

    2009. Naquele momento, dentre as caractersticas elencadas pelo

    pesquisador para as culturas tradicionais, cabe destacar a referncia ao

    que poderemos indiciar como saber: conhecimento aprofundado da

    natureza e de seus ciclos que se reflete na elaborao de estratgias de

    uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento transferido

    de gerao em gerao por via oral (DIEGUES, 2002, p. 89). Mas desde

    o Decreto 6.040/2007, que institui a Poltica Nacional de

    Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais

    (PNPCT), o termo que passou a se firmar foi povos e comunidades

    tradicionais, ao invs de populaes tradicionais. Assim o Decreto os

    discrimina, em seu artigo 3, inciso I:

    Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas prprias de organizao

    social, que ocupam e usam territrios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural,

    social, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados e transmitidos pela tradio.

    Para alm de uma escolha legal, optamos pelo termo povos e

    comunidades tradicionais pelo seguinte:

    a) o termo populao tem um recorte de teor mais

    socioeconmico, pois se aplica em situaes de relevncia numrica (o

    quantitativo da populao de um pas). Por essa natureza mais genrica,

    o termo utilizado com mais adequao ao conjunto de indivduos de

    uma mesma espcie que ocupa uma rea especfica, o que denota a

    no qualificao da espcie ou mesmo a desconsiderao da diversidade

    que possa haver nesse grupo. Por ter um apelo mais estatstico,

    populao se vincula mais a uma ordem jurdica, por isso mais utilizado

    em investigao sociolgica e na cincia poltica. Alm de tudo, o termo

    tem origem mais recente, proveniente do latim medieval (populato,nis

    'populao, povo', de poplus,i 'povo'), quando se inicia a preocupao

    com a organizao do Estado moderno, ou seja, advm do termo povo;

    b) o termo povo tem origem mais remota, do lat. poplus,i

  • 137

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    'povo, multido, conjunto de indivduos que ocupa uma rea territorial',

    o que denota o vnculo de coletivo a uma certa territorialidade, marcada

    por lngua, histria, costumes, interesses e tradies comuns, em uma

    palavra, uma identificao mais localizada, caracterizao esta mais

    adequada ao conceito de povo tradicional. No demais dizer que o

    termo povo mais adequado para o uso antropolgico, visto seu teor de

    grupo tnico ou cultural, por mais que se deva ter o cuidado de

    distinguir camponeses (mestios de toda ordem do campo e

    trabalhadores rurais) de indgenas, pelo fato de os primeiros manterem

    maior dependncia com as cidades para sua reproduo social,

    econmica e cultural. Mas h de se perguntar: alm de indgenas no

    contatados, como evitar um total isolamento em mundo globalizado? E

    ser esta a grande questo? Essa questo tem apresentado nuanas

    variadas, mas para este trabalho optamos em reconhecer que os povos

    tradicionais incluem tambm os indgenas e afrodescendentes, pois para

    efeito de nosso estudo no utilizamos parmetros de conservao

    ambiental e sim de construes epistemolgicas de saberes. Em relao

    ao termo comunidade, consideraremos que a unidade no conjunto

    maior que povo, ou seja, comunidade ser considerada como a

    organizao social adstrita a um determinado territrio (vila, aldeia, ou

    seja, ambientes antrpicos) em que o coletivo de indivduos se relaciona

    por parentesco ou compadrio, respondendo pela forma mais

    embrionria na escala social mais complexa. Mantm certa

    homogeneidade nas atividades econmicas e nos estados de

    pensamento (senso comum), e ao mesmo tempo apresenta relativa

    autossuficincia de amplo lastro para suas necessidades, alm de

    conscincia distintiva, que lhe garante uma identidade em grande parte

    coesa (RAPPORT e OVERING, 2000).

    Porque, em estudo e investigao que se queiram vinculados com

    os povos e saberes tradicionais, nada mais vivel do que a utilizao do

    termo saberes na consecuo da prtica e da reflexo acerca do agir e

    pensar destes povos, algo prximo ao que Lvi-Strauss considerou

    como a cincia do concreto, relativa aos mitos e ritos:

    Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra

    de uma funo fabuladora que volta as costas realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor

  • 138

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    principal a ser preservado at hoje, de forma residual, modos de observao e de reflexo que foram (e sem

    dvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organizao e da explorao

    especulativa do mundo sensvel em termos de sensvel. Essa cincia do concreto devia ser, por essncia,

    limitada a outros resultados alm dos prometidos s cincias exatas e naturais, mas ela no foi menos cientfica, e seus resultados no foram menos reais

    (LVI-STRAUS, 1997, p. 31).

    Uma das caractersticas marcantes do que podemos compreender

    como povos tradicionais a importncia de mitos e rituais associados

    caa, pesca e a atividades extrativistas (vide a narrativa de Azevedo e

    Saboia, que abre este texto), ou mesmo atividades estritamente

    agrcolas, ou seja, s condies materiais de existncia e sobrevivncia

    de dado grupo social, sem se descuidar do entendimento de

    dependncia e simbiose com a natureza, com os ciclos naturais e os

    recursos naturais renovveis a partir do qual se constri um "modo de

    vida". Este caracterizado pelo saber aprofundado da natureza e de

    seus ciclos, o que se reflete na elaborao de estratgias de uso e de

    manejo dos recursos naturais (DIEGUES, 2002), o que caracterizaria uma

    experincia prxima:

    experincia prxima , mais ou menos, o que algum um paciente, um sujeito, em nosso caso um informante usaria naturalmente e sem esforo para definir aquilo que seus semelhantes veem, sentem,

    pensam, imaginam etc. e ele prprio entenderia facilmente, se os outros utilizassem da mesma maneira

    (GEERTZ, 1997, p. 87).

    esta experincia prxima que fornece o amlgama de um saber,

    que transferido de gerao a gerao privilegiadamente por via oral, a

    partir da construo imaginria de cartografia (espacialidade das

    experincias adquiridas), que fortalece a noo de territrio ou espao

    onde o grupo se reproduz econmica e socialmente, alm de ocupar

    esse territrio por vrias geraes, ainda que alguns membros

    individuais possam ter se deslocado para os centros urbanos e voltado

    para a terra dos seus antepassados.

    A experincia prxima obriga, na prtica investigativa do saber,

  • 139

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    a uma aproximao entre o intelectual-pesquisador e o praticante-

    usurio, em dada cultura, uma vez que, para considerarmos o saber

    enquanto envolvimento sujeito e objeto, h de se ter em conta que o

    investigador tambm parte de seu prprio objeto de pesquisa,

    mediante a construo de uma dialtica intelectuais-massa. Por isso a

    instituio, na etnografia moderna, do concepto de observao

    participante, em que, por mais que se queira a ocluso do pesquisador,

    a presena do Outro, reciprocamente reconhecida na interatividade

    pesquisador-nativo, impossvel de ser obscurecida. Assim que o

    prprio constructo de pesquisa etnografia, monografia, histria oral,

    documentrios, etc. se vale da considerao de que um texto da

    intersubjetividade e da interculturalidade: entre sujeitos em campo;

    entre espaos e imaginrios distintos. Vale lembrar Clifford, quando

    afirma que a autoridade experiencial est baseada numa sensibilidade

    para o contexto estrangeiro, uma espcie de conhecimento tcito

    acumulado, e um sentido agudo em relao ao estilo de um povo ou de

    um lugar (CLIFFORD, 2011, p. 33).

    2. Modus operandi do saber em povos tradicionais

    Por tudo isso, no se pode entender que o saber desses povos

    seja moldado pelo distanciamento entre sujeito e objeto, mas antes uma

    conformao que os aproxime. Em nossas observaes participantes em

    trabalhos de campo, pudemos perceber algumas caractersticas da

    natureza do saber, que foram indiciadas a partir da observao do

    modus operandi em comunidades praticantes de saberes de povos

    tradicionais:

    a) fuso entre sujeito e objeto;

    b) uso de captaes sensoriais: qualidades sensveis e propriedades dos

    objetos;

    c) base instrumental no corpo, na performance e na oralidade;

    d) vnculo com o local, o territrio e a paisagem, com observao

    exaustiva e construo de inventrio sistmico;

    e) organizao mimtica do mundo, ou seja, a narrativa, que funciona

    como base do pensamento, estabelecendo propriedades comuns entre

  • 140

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    seres e coisas (homologia de formas, matrias e funes), em princpio

    de nomeao metafrico;

    f) uso pragmtico e espao-temporal especfico, ou seja, dado sistema

    de problematizao especfico de uma realidade e de determinado

    cotidiano;

    g) conhecimento compartilhado, com coeso social e solidariedade,

    alm de propriedade e memria coletivas;

    h) carter ritual/cclico do saber, no sendo este especializado e

    profissionalizado, formulado mediante o processo de construo do

    mito (cotidianorito) em conformidade com os ciclos naturais e as

    manifestaes da expresso humana (visualidade/plasticidade, msica,

    dana, adereos/adornos, pinturas, comidas, etc.); tambm, parte-se do

    princpio conjuntivo do saber, pois se estabelece relao orgnica entre

    dois grupos de elementos dissociados em princpio, e relativos a dada

    realidade que se quer apreender.

    A partir das caractersticas acima, que circunscrevem o saber,

    possvel observar a reiterao do ver e agir, reforando-se a consecuo

    corpo/ao, sentir/agir, operao em que a memria determinante

    para a efetivao de habilidades por parte dos usurios da cultura,

    memria que traz em si a espontaneidade, o pressentimento e a

    previsibilidade, caractersticas estas ativadas pela experincia prxima,

    entre sujeito e objeto, e que implicam em conceituaes subliminares e

    do senso comum:

    As pessoas usam conceitos de experincia prxima espontaneamente, naturalmente, por assim dizer, coloquialmente; no reconhecem, a no ser de forma

    passageira e ocasional, que o que disserem envolve conceitos... (GEERTZ, 1997, p. 89).

    Savoir-faire uma boa palavra francesa que retoma esse

    complexo que o saber, significando a habilidade para resolver os

    problemas prticos; a competncia e a experincia no exerccio de uma

    atividade artstica ou intelectual (LE ROBERT, 1998, p. 1210). Saber-

    fazer mais que um binmio; a natureza do trabalho do homem ativo

    das massas8, que atua praticamente, mas no tem uma clara

    8 Na compreenso deste trabalho, consideramos que o que Gramsci intitula homem ativo das massas correlativo ao praticante da cultura popular em comunidades tradicionais, entendendo-se o conceito de

  • 141

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    conscincia terica desta sua ao, que, no obstante, um

    conhecimento do mundo na medida em que o transforma (GRAMSCI,

    1991, p. 20). Por mais que esse homem ativo no pense teoricamente,

    envolvendo conceitos, antes de executar o trabalho, pode-se, sim, dizer

    que h sistematizao no saber-fazer dos povos tradicionais, mas que

    se constri em uma conscincia prtica, implcita na sua ao, e que

    realmente o une a todos os seus colaboradores na transformao

    prtica da realidade (GRAMSCI, 1991, p. 20). Isto implica na fuso do

    pensar no agir, e no no recorrente exerccio do pensamento antes do

    fazer, em trabalho cognitivo.

    Exemplo de que existe uma sistematizao implcita no saber-

    fazer do praticante do saber tradicional a tendncia que este

    apresenta de construir textos explicativos, de sua realidade e

    expectativas, mediante o uso de gneros narrativos, tais como os

    relatos de experincia, os contos e causos e os mitos, que conferem

    relao mimtica e verossmil entre o sujeito-narrador e a realidade

    focada. No demais dizer que a etimologia da palavra narrativa -

    gno-, elemento de composio que significa conhecer, contar, expor

    narrando, narrar, dar a saber. A narrativa confere maior aproximao

    entre sujeito e objeto, pois que mesmo sendo um narrador distanciado

    (heterodiegtico) no deixa de se impor como partcipe do evento

    narrado, uma vez que ativa a memria na narrao, e a memria

    faculdade do lembrar, do recordar: re-cordis, ou seja, trazer de volta ao

    corao, ao corpo, ao sentimento.

    Tambm no se pode dizer que exista indistino entre narrar o

    efetivamente j transcorrido (pica) ou narrar em media res, quando os

    acontecimentos ainda esto em curso (drama), pois so diferentes os

    sentidos e sentimentos entre sujeito e objeto quando o conflito est

    distante no tempo ou quando o conflito se avizinha na narrao. Diz

    Lukcs que a localizao da ao pica no passado (...) permite

    escolher o que essencial no grande oceano da vida e representar o

    popular relativo ao pblico no plenamente escolarizado, detentor de uma formao no especializada

    para o trabalho, situado nas camadas subalternas da populao de um pas, e que apresenta prticas e

    concepo de mundo arraigadas em uma tradio localizada em determinado espao e tempo histrico,

    concepo esta por vezes interativa com o mundo tecnologizado da modernidade ocidental, mas possuidora de um senso comum prprio e parcialmente em conflito com a urbanidade e a cidadania

    modernas.

  • 142

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    essencial de modo a suscitar a iluso de que a integralidade da vida

    esteja representada em toda a sua extenso (LUKCS, 2010, p. 165). E

    essa escolha tem a ver diretamente com a natureza da narrativa, se

    acentuadamente uma narrao ou uma descrio: a narrao

    distingue e ordena. A descrio nivela todas as coisas (LUKCS, 2010,

    p. 165). O que nos leva a compreender que o narrador, ao escolher por

    narrar ou descrever, implicitamente est construindo seu texto em

    conformidade com sua atitude no momento: participar ou observar.

    Quando de posse do primeiro ato narrativo, relata a experincia humana

    ou srie de experincias humanas, retrospectivamente segundo seu foco

    narrativo e seletivo, disposio hierarquizada de sujeitos, espaos e

    aes; quando prioritariamente descreve, detm a narratividade e o

    narrador vislumbra todos os elementos em um mesmo tempo

    duradouro e equivalente.

    Ao observarmos a natureza privilegiada da narrativa como modus

    operandi de repasse do saber, pode-se concluir que o uso da linguagem

    entre os povos tradicionais, alm de sistmica, contm elementos da

    concepo de mundo destas na mesma proporo que nos diz muito

    acerca da complexidade dessa concepo.

    Por fim, devemos reconhecer que a condio de maior

    proximidade entre seres e coisas e entre os prprios seres no

    garantia de harmonia plena de convivncia e de conscincia ambiental.

    Muitas vezes, o nativo de determinado povo tradicional, ademais tenha

    uma histria de baixo impacto ambiental, pretende manter o territrio

    unicamente como garantia familiar e parental, sem ter uma conscincia

    de coletivo. Nossas experincias com populaes tradicionais, na regio

    insular do Par, mais especificamente Ilha de Mosqueiro e na

    microrregio do Salgado Paraense, So Caetano de Odivelas,

    demonstraram que a modificao do comportamento cultural dos

    residentes tambm resultado da falta de capacitao necessria para

    discusses, envolvendo representatividade e coletividade, o que

    oportuniza a manipulao por grupos de interesse no autctones, sem

    sintonia com as demandas populares locais. Com essa vulnerabilidade,

    as prticas locais entram em choque com pensamentos exgenos,

    possibilitando uma cooptao, pela fragilidade local, entre o residente e

    o "estrangeiro" em funo de um bem-estar ilusrio. Assim, as

  • 143

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    populaes tradicionais ficam sujeitas presso de grupos polticos

    partidrios e econmicos, que utilizam seus territrios como curral

    eleitoral e para empreendimentos imobilirios que levam a uma espcie

    de desequilbrio socioambiental, podendo causar a destruio de seus

    espaos, componentes de alimentao, renda e outros traos da cultura

    local, provocando inclusive incoerncia do pensamento local como, Um bom exemplo do resultado deste confronto o

    contraste entre a opinio que um jovem recm-casado revela ter sobre a diviso conjugal do trabalho domstico (a de que tudo feito de maneira equnime

    por ambos os membros do casal) e as informaes concretas que ele prprio fornece sobre quem faz o que

    na relao: quem dirige, quem leva o carro para o conserto, quem cozinha, quem arruma a casa, quem vai ao supermercado, etc. (FERNANDES e SOUZA,

    2011, p. 89).

    Em sntese, o saber que detm, em vez de ser marca identitria de

    seu povo e comunidade, servir para ter em troca as inovaes da

    cidade, implicando, consequentemente, na paulatina transformao de

    seu grupo social. No que haja um grave problema na assimilao do

    Outro, mas acreditamos que o modo de assimilao que determina

    uma valorao social em que este Outro considerado superior ao

    Local. E poderamos apontar uma meia-dzia de exemplos, mas basta-

    nos dizer que no Brasil existem cerca de 200 lnguas indgenas faladas,

    e, claro, culturas locais praticadas, mas pela Constituio Federal a

    lngua portuguesa a nica oficial no territrio brasileiro, o que vai na

    contramo, inclusive, de outros pases sul-americanos, herdeiros do

    colonialismo, mas que superaram esta condio, pelo menos em parte.

    O Peru bom exemplo, visto que o artigo 2, inciso 19, da constituio

    do pas reconhece a pluralidade tnica e cultural da nao, inclusive

    garantindo como oficial as lnguas quchua, aimara e outras aborgenes

    nos territrios em que predominem (artigo 48). Acreditamos que,

    minimamente, essa a garantia de, se no a manuteno, pelo menos a

    convivncia, mesmo que conflitiva, de lnguas e, consequentemente,

    culturas, que vislumbrem o saber local.

  • 144

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    3. De como saber e conhecimento so complementares

    Foucault, em Arqueologia do saber, lembra-nos que o saber

    uma prtica discursiva, ou seja, o domnio constitudo pelos diferentes

    objetos que iro adquirir ou no um status cientfico (FOUCAULT, 2007,

    p. 204). Porque, para o pensador francs, inexiste a histria de um

    ponto de vista totalizante, como progresso de perodos longos e

    independentes da vontade humana; entendendo, assim, que na histria

    das ideias, do pensamento e da cincia existe a descontinuidade, e o

    historiador deve estabelecer relao entre as sries em um sistema de

    relaes homogneas em espao de descontinuidades ininterruptas,

    pois

    a histria contnua o correlato indispensvel funo

    fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poder ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersar sem reconstitu-lo em uma

    unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poder, um dia sob a forma de conscincia histrica se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantida a distncia pela diferena, restaurar seu domnio sobre elas e encontrar o que se pode chamar

    sua morada (FOUCAULT, 2007, p. 14).

    Observa-se, assim, que o saber um espao construdo pelo

    sujeito, face ao seu objeto, em que aquele toma certa posio para falar

    deste, estabelecendo campo de coordenao e subordinao de

    enunciados (linguagem), que definem as possibilidades de utilizao e

    apropriao oferecidas pelo discurso. Dessa feita, no podemos

    acreditar na imparcialidade do saber; talvez enquanto metodologia para

    alcanar certo efeito isso seja possvel. Mas desde a abordagem de um

    problema, inevitvel a formulao de perguntas de pesquisa e

    perspectivas de anlise, em que se vislumbra a relao entre pessoas e

    objetos, o que nos leva a crer na eleio de pontos de vista mediante as

    escolhas do pesquisador, o que pode ser desvelado a partir das

    seguintes perguntas: qual o lugar a partir do qual se investiga? Para que

    e para quem se realiza a investigao? O que se pretende fazer com os

    resultados? Da que sejam observados com mais aprofundamento, na

    pesquisa em Humanidades, a construo de linguagens e discursos por

  • 145

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    ocasio do contato entre pesquisador e nativo, pois a representao

    do saber desenhada pelo primeiro deve considerar as idiossincrasias de

    cada sujeito envolvido, assim como a mtua compreenso que possa

    exisitr, decorrente do contato interlingustico e intercultural, uma vez

    que a sistematizao do saber feita em conjunto, provocada pela

    organicidade decorrente da relao oral-escrito, pesquisador-

    pesquisado.

    Levando em considerao que os povos tradicionais entendem,

    mas nem sempre compreendem, e da mesma forma os pesquisadores

    compreendem, mas nem sempre entendem, inicia-se um descompasso

    que leva a situaes de desrespeito diversidade e do estado de bom

    viver, o que dificulta uma adeso orgnica necessria s relaes entre

    pesquisadores e comunidades tradicionais, o que impossibilita uma

    espcie de sentimento-paixo (GRAMSCI, 1991). No entanto, se a

    compreenso caminhar em direo ao entendimento e o entendimento

    em direo compreenso, poder-se-ia diminuir cada vez mais o

    distanciamento entre sujeito e objeto, em certa convergncia de

    intelectualidades orgnicas reciprocamente vivenciais, em prtica

    cultural de convergncia. Para lembrar mais uma vez o filsofo italiano,

    A organicidade de pensamento e a solidez cultural s poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os

    simplrios se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prtica, isto , se os intelectuais fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa,

    se tivessem elaborado e tornado coerentes os princpios e os problemas que aquelas massas colocavam com a

    sua atividade prtica, constituindo assim um bloco cultural e social (GRAMSCI, 1991, p.18).

    Por isso que perquirir o saber e o conhecimento estar frente a

    uma questo de traduo, face a culturas e sujeitos postos em contato,

    o que, segundo Escobar,

    Es el proceso mediante el cual experiencias histrico-

    culturales diferentes, y a menudo contrastantes, se hacen mutuamente inteligibles y conmensurables; esto ha sucedido en la historia reciente a travs de la

    imposicin de los cdigos culturales de la modernidad capitalista en una escala cada vez ms global

    (ESCOBAR, 2012, p. 26).

  • 146

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    O que se infere que traduzir um apangio do mundo moderno

    e globalizante, mesmo a despeito de que nesse processo se privilegie

    uma nica lngua de recepo, em autntica traduo etnocntrica: a

    lngua da cincia universalizante. Para que se evite o etnocentrismo,

    nesse processo, devemos considerar as relaes interculturais.

    Consideraremos o sentido de interculturalidade conforme o que dispe

    o Centro Virtual Cervantes, em seu dicionrio:

    La interculturalidad es un tipo de relacin que se establece intencionalmente entre culturas y que

    propugna el dilogo y el encuentro entre ellas a partir del reconocimiento mutuo de sus respectivos valores y formas de vida. No se propone fundir las identidades de

    las culturas involucradas en una identidad nica sino que pretende reforzarlas y enriquecerlas creativa y

    solidariamente. El concepto incluye tambin las relaciones que se establecen entre personas pertenecientes a diferentes grupos tnicos, sociales,

    profesionales, de gnero, etc. dentro de las fronteras de una misma comunidad (CENTRO VIRTUAL

    CERVANTES, n.d., n.p.).

    Por isso que a traduo/transio, no caso das Humanidades, no

    pode ser estabelecida por uma teoria geral, como professa a cincia

    positivista. A traduo sempre se refere a complexos processos

    epistemolgicos, em que as disposies interculturais e interepistmicas

    so necessrias para que haja ontologias mltiplas, e a garantia da

    transio de uma compreenso moderna do mundo compreenso do

    mundo como um pluriverso e no um universo. O que refora que,

    Talvez a objeo mais vigorosa, no entanto,

    proveniente de toda parte e, a rigor, bastante generalizada na vida intelectual dos ltimos tempos, seja a de que concentrar nosso olhar nas maneiras

    como so enunciadas as afirmaes de um saber (grifo nosso) solapa nossa capacidade de levar a srio

    qualquer dessas afirmaes (GEERTZ, 2005, p. 12).

    Poderemos ser inclusivos se dirigirmos nossos olhares para as

    maneiras como so enunciadas as afirmaes de um determinado saber.

    oportuno lembrar que o decreto 6.040/2007, da Presidncia da

    Repblica do Brasil, institui a Poltica Nacional de Desenvolvimento

  • 147

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais, assegurando a

    estes, no artigo 3, incisos V e XV, a garantia e valorizao de formas

    tradicionais de educao, alm do reconhecimento, proteo e

    promoo dos direitos dos povos e comunidades tradicionais sobre seus

    conhecimentos, prticas e usos tradicionais. Isto implica na convivncia

    e reconhecimento mtuo dos saberes e conhecimentos, com seus

    valores e formas de vida para que haja a tolerncia necessria na

    interculturalidade. Talvez um termo adequado para sintetizar essa

    prtica e produo seja Etnossaberes. Compreende-se como tanto a

    epistemologia hbrida que est calcada na relao entre seres

    humanos, natureza e sociedade, mediante a construo de narrativas

    que projetam as percepes sensoriais espao-temporais dos sujeitos

    nos objetos objectus, ao de por diante, interposio, obstculo, o

    que se apresenta aos olhos, tudo aquilo que se antepe diante do

    sujeito. Essa atitude de apreenso do objeto pelo sujeito distinta da

    epistemologia tradicional, que estabelece a polaridade entre sujeito e

    objeto, considerando o primeiro como o polo indagativo e reflexivo e o

    segundo como o polo inerte e passivo. Evidentemente que o sujeito

    agente, mas no devemos considerar que exista uma ontologia dos

    agentes (sujeitos) e dos pacientes (objetos): estes o so moventes e so

    relativos a cada saber localizado, por isso entender os etnossaberes

    deslindar a histria sociocultural dos objetos e de suas percepes e

    representaes em cada cultura, e entre as culturas postas em contato.

    Deve-se entender que cada episteme um paradigma de saber

    estruturado conforme a poca e o grupo social, mesmo a despeito de

    haver caractersticas (formas e matrias) universais nos objetos. Desde

    esta compreenso poderemos observar que existem o ponto de vista

    dos nativos e o ponto de vista dos estrangeiros, da toda categoria do

    saber ser dependente do contexto cultural, evitando-se, assim, os

    universais que deslegitimam o nativo e sua forma de saber, mediante a

    imposio tecnolgica e o desenvolvimentismo, uma vez que na

    concepo de etnossaberes qualquer modernizao, que impacte a

    tradio, controlada desde o nativo, pois o novo examinado em

    relao s prticas e representaes simblicas relativas aos

    ecossistemas socioeconmicos e culturais em que ocorre. Por isso

    evitamos os conceitos de etnocincia e etnodesenvolvimento, que

  • 148

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    vislumbram o outro a partir de conceptos amplamente instalados desde

    o modelo de sociedade capitalista e consumista, em uma traduo de

    via de mo nica. Talvez para minimizar o impacto dessa desigualdade

    tenhamos que estabelecer parmetros para uma etnotraduo.

    Enquanto no temos objetivamente estes parmetros,

    necessrio que miremos pelo menos nossa utopia, que da construo

    do Bom Viver; pois a possvel construo da sociedade do Bom Viver

    poder possibilitar:

    una tica del desarrollo que subordina los objetivos econmicos a criterios ecolgicos, a la dignidad humana y a la justicia social. El desarrollo como Buen Vivir

    busca articular la economa, el medio ambiente, la sociedad y la cultura en nuevas formas, llamando a las

    economas sociales y solidarias mixtas; introduce temas de justicia social e intergeneracional en los espacios de los principios de desarrollo; reconoce las diferencias

    culturales y de gnero, posicionando la interculturalidad como principio rector; y permite los nuevos nfasis

    poltico-econmicos (ESCOBAR, 2012, p. 35).

    Acreditamos que essa sociedade do Bom Viver, em que saberes e

    conhecimentos possam interatuar indefinidamente, s ser efetivada

    plenamente, inclusive pela academia, quando houver o reconhecimento

    de que a desigualdade e a excluso prprias do colonialismo, europeu

    ou no, foram partcipes da construo da sociedade moderna. E gora

    devemos destacar e assumir a condio do saber dos nativos como

    gentipo da cultura do colonizador, assim como a beleza de castelos e

    igrejas, e as contas em bancos suos, mais reluz pelo ouro arrancado

    das minas distantes das Amricas. Talvez assim possamos iniciar uma

    nova hegemonia, a das diferenas, que opere transformaes no

    apenas na estrutura econmica e poltica, mas tambm sobre o modo

    de pensar, sobre as orientaes ideolgicas e inclusive sobre o modo de

    conhecer (GRUPPI, 1978, p. 3).

    Referncias bibliogrficas

  • 149

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    CENTRO VIRTUAL CERVANTES. Diccionario de trminos clave de ELE. Madrid:

    Instituto Cervantes, n.d.

    CLIFFORD, James. A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo XX.

    Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.

    DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introduo antropologia social. Rio de

    Janeiro: Rocco, 2010.

    DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. So

    Paulo: Annablume/Hucitec/NUPAUB/USP, 2002.

    DUNDES, Alan. Morfologia e estrutura no conto folclrico. So Paulo: Perspectiva,

    1996.

    ESCOBAR, Arturo. La invencin del desarrollo. Popayn: Editorial Universidad de

    Cauca, 2012.

    FERNANDES, Daniel dos Santos; SOUZA, Jorge Alex A. Entre trapiches, trilhas e

    vilas; organizao comunitria e prticas sustentveis no Distrito de Mosqueiro, PA,

    Brasil. Revista Pasos, Santa Cruz de Tenerife, v. 9, n. 3, p. 83-94, 2011. Disponvel em:

    http://www.pasosonline.org/Publicados/9311special/PS0311_08.pdf . Acesso em: 20

    maio 2015.

    FERNANDES, Jos Guilherme dos Santos Fernandes. Largueza e lassido: a

    mitopotica do espao das guas. 1998. 187 f. Dissertao (Mestrado em Letras) -

    Universidade Federal do Par, [1998].

    ______. O boi de mscaras: festa, trabalho e memria na cultura popular do Boi Tinga

    de So Caetano de Odivelas, Par. Belm: EDUFPA, 2007.

    ______. Ps que andam, ps que danam: memria, identidade e regio cultural na

    esmolao e marujada de So Benedito em Bragana, PA. Belm: EDUEPA, 2011.

    FERNANDES, Jos Guilherme dos Santos; SILVA JUNIOR, Fernando Alves da

    (Org.). Interculturalidade e saberes: os diversos na contemporaneidade da Amaznia.

    Belm: Ed. Paka-Tatu, 2015.

    FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria,

    2007.

    GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa.

    Petrpolis, RJ: Vozes, 1997.

    ______. Obras e vidas: o antroplogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.

    GRAMSCI, Antonio. Espontaneidad y direccin consciente. In: ______. Escritos

  • 150

    Daniel dos Santos Fernandes e Jos Guilherme dos Santos Fernandes - A experincia prxima

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 127-150, jan./jun. 2015.

    Polticos, 1931. Disponvel em: www.forocomunista.com . Acesso: 05 fev. 2015.

    ______. Concepo dialtica da histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1991.

    GRUPPI, Luciano. Conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Edies

    Graal, 1978.

    HOUAISS, Antnio. Grande Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de

    Janeiro: Instituto Antnio Houaiss, 2012. Disponvel em: http://houaiss.uol.com.br/.

    Acesso em: 27 jan. 2015.

    LE ROBERT. Dicionrio Le Robert Micro. Montral: Dictionnaires Le Robert, 1998.

    LVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1997.

    LUKCS, Gyrgy. Marxismo e teoria da literatura. So Paulo: Ed. Expresso

    Popular, 2010.

    MATO, Daniel. No hay saber universal, la colaboracin intercultural es imprescindible. Alteridades, Cidade do Mxico, v. 18, n. 35, p. 101-116, 2008.

    MOTA, Ednacel Abreu; PRADO, Guilherme do Val Toledo do; PINA, Tamara Abro.

    Buscando possveis sentidos de saber e conhecimento na docncia. Cadernos de

    Educao, Pelotas, v. 30, p. 109-134, 2008.

    PRESIDNCIA DA REPBLICA. Decreto 6040/2007. Institui a Poltica Nacional de

    Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponvel em:

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso

    em: 22 maio 2015.

    PRESIDNCIA DA REPBLICA. Lei 11959/2009. Dispe sobre a Poltica Nacional

    de Desenvolvimento Sustentvel de Aquicultura e Pesca. Disponvel em:

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/Lei/L11959.htm. Acesso em:

    22 maio 2015.

    RAPPORT, Nigel; OVERING, Joanna. Social and cultural anthropology: the key

    concepts. London: Routledge, 2000.

    Recebido em: 19/02/2015 * Aprovado em: 23/05/2015 * Publicado em: 30/06/2015