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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE ESCOLA DE ENGENHARIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ENGENHARIA DE PRODUÇÃO DOUTORADO EM ENGENHARIA DE PRODUÇÃO FERNANDA SANTOS ARAUJO GESTÃO DO TRABALHO NA COOPERMINAS: mobilização de competências e coletivos de trabalho na atividade dos operadores de uma mina de carvão em luta pela autogestão NITEROI 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    ESCOLA DE ENGENHARIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM ENGENHARIA DE PRODUO

    DOUTORADO EM ENGENHARIA DE PRODUO

    FERNANDA SANTOS ARAUJO

    GESTO DO TRABALHO NA COOPERMINAS:

    mobilizao de competncias e coletivos de trabalho na atividade dos operadores de uma mina de

    carvo em luta pela autogesto

    NITEROI

    2016

  • FERNANDA SANTOS ARAUJO

    GESTO DO TRABALHO NA COOPERMINAS: mobilizao de competncias e

    coletivos de trabalho na atividade dos operadores de uma mina de carvo em luta pela

    autogesto

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    Stricto Sensu em Engenharia de Produo da

    Universidade Federal Fluminense como requisito

    parcial para obteno do ttulo de Doutora em

    Engenharia de Produo.

    Orientadora:

    Profa. Dra. Denise Alvarez

    Coorientador:

    Prof. Dr. Marcelo Figueiredo

    Niteri, RJ

    2016

  • Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca da Escola de Engenharia e Instituto de Computao da UFF

    A663 Araujo, Fernanda Santos

    Gesto do trabalho na COOPERMINAS : mobilizao de

    competncias e coletivos de trabalho na atividade dos operadores de

    uma mina de carvo em luta pela autogesto / Fernanda Santos

    Araujo. Niteri, RJ : [s.n.], 2016.

    317 f.

    Tese (Doutorado em Engenharia de Produo) - Universidade

    Federal Fluminense, 2016.

    Orientadores: Denise Alvarez, Marcelo Figueiredo.

    1. Administrao do trabalho. 2. Autogesto. 3. Competncia. 4.

    Cooperativa. I. Ttulo.

    CDD 658.54

  • AGRADECIMENTOS

    Difcil nomear as tantas pessoas que contriburam fundamentalmente, com

    diferentes papis, ao longo dessa longa trajetria de trabalho e de vida. A histria que me

    conduziu at aqui no pode ser resumida nessas curtas linhas.

    Agradeo minha professora orientadora Denise Alvarez, que me acolheu com

    carinho e generosidade, me apoiando e se empenhando para a realizao desse trabalho

    cheio de sentido para mim. Igualmente orientador e acolhedor foi o papel desempenhado

    pelo professor Marcelo Figueiredo.

    Vicente Nepomuceno, amigo e companheiro de trabalho de longa data no campo

    da engenharia popular e solidria, foi, mais uma vez, um grande parceiro nessa jornada que

    compartilhamos para a realizao da pesquisa e das teses (minha e dele, produzidas a partir

    da mesma experincia de campo). Que alegria essa companhia!

    A participao dos professores Chico Lima e Helder Muniz, seja na primeira etapa

    da qualificao, seja em outros valiosos momentos de troca em disciplinas, congressos e

    encontros acadmicos tambm foi decisiva.

    O minucioso trabalho de transcrio de mais de 10 horas de gravao em cerca de

    150 pginas de dilogos com os trabalhadores da COOPERMINAS, feito cuidadosamente

    por Camille Periss, teve tambm fundamental importncia.

    Grandes mestres que me inspiraram e apoiaram na trajetria prvia ao doutorado

    merecem ser lembrados com carinho, respeito e admirao. Ainda na graduao, tive a

    oportunidade de aprender muito com Thales Paradela e Flvio Bruno, entre outros mestres.

    Numa segunda etapa da vida acadmica, Sido e Thiollent me mostraram um mundo de

    possibilidades no universo acadmico e na engenharia.

    A turma do SOLTEC/UFRJ, minha casa, meu abrigo, referncia essencial para

    construo da minha carreira profissional e dos meus valores de vida talvez a maior

    responsvel por tudo isso. Alm de Vicente e Sido, j citados, Felipe Addor, Flavio

    Chedid, Celso Alvear, Alan Tygel, Vera Maciel, Marlia Gonalves, Camila Laricchia,

    Ricardo Silveira... e tantos outros que passaram e passam por l a cada ano mantendo

    acessa a chama da solidariedade na engenharia.

  • Igualmente importante nessa luta e construo cotidiana de uma engenharia

    popular e solidria a eterna juventude dos Encontros Nacionais e Regionais de

    Engenharia e Desenvolvimento Social (ENEDS e EREDS) e da Rede de Engenharia

    Popular (REPOS). Alm dos j citados como parte do SOLTEC, Lais Fraga, Bruna

    Vasconcellos, Sandra Ruffino, Thiago Nogueira, Lina Anchieta, Clara Carmago, Rafaela

    S, Victor Marques, Larissa Campos, Cinthia Versianni, Dbora Nascimento, Wagner Curi,

    Clcio Santos, Maria Paula, galera do Par, de Floripa, Santa Maria... impossvel citar

    todas(os). Compartilhar esse espao (e tantos outros) com essas pessoas me renova, me

    inspira, me faz sonhar e trabalhar por um mundo melhor.

    Ao CEFET/RJ-NI, instituio que hoje me acolhe com meus projetos e sonhos,

    que me permite um espao para dialogar sobre eles com a juventude que ingressa na

    engenharia na Baixada Fluminense e que me permitiu dedicar os ltimos 18 meses

    integralmente rdua tarefa de redao dessa tese, muito obrigada! Agradeo, em especial,

    Camila Laricchia, que me substituiu em sala de aula durante esse perodo com qualidade

    inquestionvel.

    A turma da CAPINA, Katia Aguiar, Terezinha, Ricardo, Aida e Rosana, me

    influenciou e influencia permanentemente, para mim um exemplo de militncia e trabalho

    srio, de compromisso com o povo e com um mundo mais humano.

    Os companheiros do Grupo de Pesquisa em Empresas Recuperadas pelos

    Trabalhadores (GPERT) foram tambm fundamentais para o meu mergulho nesse campo e

    para a construo dos compromissos que reafirmo nessa tese. Flavio, Vicente, Sandra e

    Thiago, j citados, e ainda Mariana Giroto, Vanessa Sgolo, Maira Rocha, Alejandra

    Paulucci, Alessandra Azevedo e Maurcio Sard.

    No poderia deixar de lembrar, claro, dos trabalhadores das ERTs brasileiras,

    que nos receberam e se dispuseram a compartilhar conosco suas conquistas e seus desafios

    cotidianos. Em especial, os trabalhadores da COOPERMINAS, essa maravilhosa

    experincia de luta e ousadia da classe trabalhadora mineira de Cricima. Vale nomear

    alguns: Miro, Saulo, Saulo, Nei, Amilton, Tarzan, Fuzil, Bidu, Preto, Chuveirinho, Pedrada

    e Vav. Deise e Lucas, esposa e filho do Miro, que nos acolheram carinhosamente em sua

    casa para realizao da pesquisa tambm merecem esse agradecimento.

  • toda a minha grande famlia, primas, primos, tias, tios, sobrinhas, sobrinhos,

    cunhadas, cunhados, sogro, sogra, agregadas e agregados, muito obrigada pela intensa e

    prazerosa convivncia que me permite seguir na vida tranquila por saber que nunca estarei

    s.

    Aos amigos da juventude, aqueles insubstituveis, que mesmo hoje no to

    presentes quanto a gente gostaria, estaro sempre aqui no corao, aquecendo e acolhendo a

    distncia. Titi, Ana Paula, Mari, Rafa, Bebel, Catata, Irene, Pri, Caju, Talita, Cacau...

    Minha me, Adelina, meu pai, Srgio, minha irm, Fabiana, e meu irmo, Felipe,

    so o alicerce de tudo isso, o porto seguro, o amor incondicional e o exemplo maior de

    vida.

    Por fim, famlia que eu escolhi e constru com Raul e Samuel, meus grandes

    amores, muitssimo obrigada pela companhia dia-a-dia, pela pacincia, pelo carinho, pela

    alegria, por tudo o que vocs representam para mim. E (o) pequena(o) que ainda cresce no

    ventre e em breve se juntar a ns trazendo ainda mais alegria e estmulo para a vida.

  • RESUMO

    Esta tese prope-se a analisar a gesto do trabalho pelo olhar da atividade em uma mina de

    carvo em luta pela autogesto, assim contribuindo com os estudos sobre as Empresas

    Recuperas por Trabalhadores no Brasil. Para elaborar esse ponto de vista recorremos

    ergonomia da atividade, perspectiva ergolgica e psicodinmica do trabalho, nos

    valendo especialmente do que essas disciplinas/abordagens/perspectivas puderam oferecer

    a respeito do tema das competncias e da dimenso coletiva da atividade. Um panorama do

    universo da minerao de carvo e das lutas histricas dos trabalhadores pela autogesto do

    trabalho e da produo tambm compuseram nosso referencial para a anlise. Nossa ida a

    campo se apoiou na metodologia da Anlise Ergonmica do Trabalho, enriquecida por

    outras influncias fundamentais para adapt-la realidade estudada e aos nossos objetivos

    de pesquisa. O resultado dessa experincia mostra que a luta dos trabalhadores da

    COOPERMINAS pela autogesto do trabalho e da produo est longe de cessar. Se por

    um lado podemos afirmar que importantes conquistas foram alcanadas pela resistncia

    cotidiana dos trabalhadores favorecendo o bem estar das pessoas e a eficcia da produo,

    por outro, apontamos uma srie de limitaes que decorrem das contradies impostas por

    um cenrio adverso no qual a luta dos trabalhadores se configura como um projeto

    extremamente conflitivo. O olhar para a atividade, orientado pelos conceitos de

    competncias e coletivos de trabalho, foi fundamental para a elaborao dessa anlise.

    Palavras-chave: autogesto, empresas recuperadas por trabalhadores, gesto do trabalho,

    atividade, competncias, coletivos de trabalho.

  • ABSTRACT

    The purpose of this thesis is analyze the work management from the perspective of the

    activity in a coal mine in a struggle for self-management, thus contributing to the studies

    about workers recovered companies in Brazil. To elaborate this point of view we use the

    activity ergonomics, the ergological perspective and the psychodynamics of the work,

    making use especially of what these disciplines / approaches / perspectives might offer

    about the subject of skills and collective dimension on activity. A panorama of coal mining

    universe and historical workers struggles for self-management also composed our

    benchmark for analysis. Our trip to the field of this study was based on the methodology of

    Ergonomic Work Analysis, enriched by other influences fundamental to adapt it to the

    reality studied and our research objectives. The result of this experiment shows that the

    struggle of COOPERMINAS workers for self-management is far from ceasing. On the one

    hand we can say that significant achievements have been made by the daily resistance of

    workers favoring the well-being of people and the efficiency of production, on the other,

    we point out a number of limitations arising from the contradictions imposed by an adverse

    scenario in which the struggle of workers is configured as a highly conflictive project. The

    look for the activity, guided by the concepts of skills and collective was essential to prepare

    the analysis.

    Keywords: self-management, workers recovered companies, work management, activity,

    skills, collective work.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Produo de carvo bruto em Santa Catarina ..................................................... 56

    Figura 2 Representao das galerias subterrneas nas minas exploradas pelo mtodo de

    cmaras e pilares (elaborada pela autora) ............................................................................. 58

    Figura 3 Fotos da boca da mina e do subsolo percurso de acesso s frentes de servio 62

    Figura 4 Representao simplificada da rvore de problemas ........................................ 146

    Figura 5 Esquema simplificado do processo de extrao de carvo na COOPERMINAS

    ............................................................................................................................................ 149

    Figura 6 Fotos das operaes carregamento, perfurao da frente e limpeza das rafas151

    Figura 7 Organograma simplificado do setor de produo da COOPERMINAS ........... 152

    Figura 8 Foto do operador 3 dentro da mquina ............................................................. 202

    Figura 9 Fotos da MT em operao. ................................................................................ 205

    Figura 10 Representao simplificada de um painel em operao .................................. 222

    Figura 11 Posio dos operadores de correia .................................................................. 231

    Figura 12 Imagens da correia transportadora .................................................................. 232

    Figura 13 Descarregar o material na correia transportadora ........................................... 249

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Vida til estimada dos recursos energticos mundiais ....................................... 53

    Tabela 2 Acidentes de trabalho nas principais atividades da regio de Cricima (1985) . 65

    Tabela 3 Nmero de trabalhadores por setor em Cricima ............................................. 128

    Tabela 4 Faixas de remunerao na COOPERMINAS ................................................... 191

    Tabela 5 Perfil dos operadores de MT ............................................................................ 214

    Tabela 6 Perfil dos cabistas ............................................................................................. 229

    Tabela 7 Perfil dos operadores de correia ....................................................................... 234

    Tabela 8 Proposta de plano de carreira para operadores de produo............................. 241

    Tabela 9 Causas dos acidentes com operadores de MT no perodo de 25/02/2014 a

    05/08/2014 .......................................................................................................................... 246

  • SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................... 1

    PARTE I: Lentes da anlise................................................................................................. 10

    CAPTULO 1: Gesto do trabalho pelo olhar da atividade................................................. 11

    1.1. Trabalhar gerir: contribuies da ergonomia da atividade .................................. 16

    1.1.1. Uma base terica em ergonomia da atividade ................................................ 18

    1.1.2. A questo das competncias para a ergonomia da atividade .......................... 22

    1.1.3. Os coletivos de trabalho para a ergonomia da atividade ................................ 26

    1.2. A gesto pelo corpo-si em um universo de valores: contribuies da perspectiva

    ergolgica ............................................................................................................................. 32

    1.2.1. Um olhar para a atividade pela perspectiva ergolgica .................................. 33

    1.2.2. Os ingredientes da competncia ..................................................................... 37

    1.2.3. Entidades coletivas relativamente pertinentes ................................................ 40

    1.3. Mobilizao psquica e intersubjetiva para a gesto do trabalho: contribuies da

    psicodinmica do trabalho .................................................................................................... 42

    1.3.1. Confiana, reconhecimento e cooperao ...................................................... 43

    CAPTULO 2: Ambiente, processo e organizao do trabalho na minerao de carvo ... 52

    2.1. Carvo mineral no Brasil e no mundo ................................................................... 52

    2.2. O subsolo: ambiente de trabalho na minerao de carvo ..................................... 57

    2.3. O massacre: sade e segurana dos trabalhadores na minerao de carvo .......... 63

    2.4. Experincias na histria: organizao do trabalho na minerao de carvo .......... 68

    2.4.1. Antes das mquinas: sistemas pr-mecanizados de produo ........................... 69

    2.4.2. A chegada das mquinas: sistemas mecanizados de produo .......................... 73

    2.4.3. Para alm das mquinas: a experincia de Chopwell e a abordagem sociotcnica

    80

    CAPTULO 3: Os trabalhadores resistem: luta pela autogesto e empresas recuperadas por

    trabalhadores no Brasil ........................................................................................................ 88

    3.1. Os sentidos da luta ................................................................................................. 88

    3.2. Uma breve histria da luta pela autogesto ........................................................... 97

    3.3. Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores no Brasil ........................................ 112

  • PARTE II: COOPERMINAS, uma luta permanente pela autogesto ............................... 126

    CAPTULO 4: Conhecendo e reconhecendo o campo de estudo e interveno ............... 127

    4.1. O movimento operrio em Cricima e a formao da COOPERMINAS ........... 127

    4.2. A anlise ergonmica do trabalho na COOPERMINAS ..................................... 138

    4.2.1. Anlise da Demanda ..................................................................................... 143

    4.2.2. Anlise do funcionamento global ................................................................. 147

    4.2.3. Anlise da tarefa e primeira aproximao da atividade ................................ 154

    4.2.4. Anlise da atividade e recomendaes ......................................................... 157

    CAPTULO 5: Um olhar sobre a organizao do trabalho na COOPERMINAS ............. 165

    5.1. A formao e a funo das instncias de deciso: assembleia geral, conselho

    administrativo e conselho deliberativo ............................................................................... 166

    5.2. As instncias hierrquicas de planejamento e controle do trabalho .................... 172

    5.3. Convivncia entre cooperados e contratados ....................................................... 180

    5.4. Liberdade, participao e o ponto de vista da sade e segurana ........................ 185

    5.5. Plano de carreira e poltica de remunerao ........................................................ 191

    5.6. Formao de competncias para a autogesto ..................................................... 194

    CAPTULO 6: Um olhar sobre a operao na COOPERMINAS: mobilizao de

    competncias e coletivos de trabalho na limpeza das rafas ............................................... 200

    6.1. Diagnstico parte 1: aspectos materiais ............................................................... 201

    6.2. Diagnstico parte 2: organizao da equipe ........................................................ 212

    6.2.1. Operadores de MT ........................................................................................ 213

    6.2.2. Avaliao dos operadores de MT e a dinmica do reconhecimento ............ 220

    6.2.3. Cabistas ......................................................................................................... 225

    6.2.4. Operadores de correia ................................................................................... 230

    6.2.5. Os coletivos na atividade .............................................................................. 235

    6.2.6. Rodzio de funes ....................................................................................... 239

    6.3. Diagnstico parte 3: etapas da operao .............................................................. 242

    6.3.1. Primeira etapa: encher a concha ................................................................... 243

    6.3.2. Segunda etapa: transportar o material at a correia ...................................... 246

    6.3.3. Terceira etapa: descarregar o material na correia transportadora ................. 248

    6.3.4. Dilogos entre operao e manuteno ........................................................ 254

  • CONCLUSO ................................................................................................................... 259

    Bibliografia ........................................................................................................................ 269

    ANEXO I rvore de problemas ..................................................................................... 279

    ANEXO II Termo de cooperao ................................................................................... 280

    ANEXO III Cadernos de formao ................................................................................ 283

    ANEXO IV Recomendaes finais ................................................................................ 314

    ANEXO V Nomes fictcios dos trabalhadores ............................................................... 317

  • 1

    INTRODUO

    O percurso da pesquisadora e a origem do tema

    Estudar o trabalho na COOPERMINAS foi para mim uma experincia nica e

    especial por diversos motivos. Meu desejo de estudar engenharia de produo nasceu em

    uma fbrica de leos lubrificantes, na minha primeira experincia profissional, ainda como

    tcnica em qumica. O ambiente fabril me instigava e me animava. As questes relativas

    gesto dos processos de produo me interessavam. Ao mesmo tempo, a convivncia com

    os trabalhadores diretos, no cho-de-fbrica, me agradava, tornava aquele espao vivo e

    rico de aprendizagens e vivncias.

    Ao longo do curso de graduao, no entanto, no tive outras oportunidades de

    atuar na indstria. A grande maioria dos estgios oferecidos para os estudantes da

    engenharia de produo era no setor de servios, ou nas sedes das grandes corporaes,

    distantes da produo, da fbrica, dos operrios. Cheguei a fazer alguns desses estgios,

    mas no consegui me encontrar neles. No sei se pela ausncia dos desafios da produo, se

    pelo ambiente de trabalho tpico dos escritrios das grandes corporaes, ou pela falta dos

    trabalhadores que conhecem, de fato, pela prtica, os processos de transformao da

    matria.

    Depois de um tempo perdida, procura de um sentido para aquela formao

    profissional, j no ltimo semestre antes da sua concluso, encontrei, pelo Ncleo de

    Solidariedade Tcnica (SOLTEC/UFRJ), a oportunidade de trabalhar em um projeto de

    extenso voltado para a assessoria a uma cooperativa de produo de parafusos na Baixada

    Fluminense, a COOPARJ. Aquele encontro no me permitiu apenas voltar a pensar a

    produo. Estudar a produo numa cooperativa, uma empresa gerida pelos trabalhadores,

    na companhia de estudantes, professores e pesquisadores militantes, me levou a refletir

    sobre a engenharia de produo com um olhar crtico.

    Pouco a pouco fui me dando conta que os conhecimentos acumulados ao longo do

    curso de graduao, que eu estava ansiosa para colocar em prtica, nem sempre resolviam

    os problemas da produo e, principalmente, dos trabalhadores. Talvez aquela sensao de

    bem estar no ambiente da fbrica advinha, entre outros fatores, do reconhecimento de que

    os trabalhadores diretos tinham (e tm) muito a nos ensinar. A convivncia com eles se

  • 2

    tornava um espao de aprendizado riqussimo, alm de um espao de trocas culturais que

    alimentam a mente, a alma e o corao.

    Sem negar o valor do conhecimento adquirido pela formao curricular, encontrei

    no dilogo com os trabalhadores a oportunidade de refletir sobre as tcnicas de gesto do

    trabalho e da produo de uma maneira crtica. Pensar dessa forma no serve para rejeitar o

    conhecimento acumulado nos livros. Pelo contrrio, eu voltei a ver a beleza das tcnicas e

    dos saberes quando pude situ-los de volta num contexto, num espao, num tempo, em

    relaes que deram sentido ao conhecimento. Isso me permitiu (e me permite, sempre)

    reelabor-lo e recri-lo buscando coloc-lo a servio das necessidades (e desejos) dos

    trabalhadores e da produo. Essa perspectiva de atuao me fez valorizar a minha

    formao. Finalmente me senti fazendo engenharia.

    Nessa experincia de assessoria a uma cooperativa de produo, em 2006, tive o

    meu primeiro contato com uma Empresa Recuperada por Trabalhadores (ERT). A

    formao da COOPARJ foi resultado do processo de falncia da Parafusos guia, na

    dcada de 90. Os trabalhadores que ficaram desempregados com o fechamento da empresa

    se organizaram para continuar a produzir em forma de cooperativa, herdando uma parte dos

    equipamentos da massa falida, como parte de um acordo para quitar as dividas trabalhistas

    decorrentes do processo de encerramento da empresa. O acordo no se deu sem conflitos.

    Os trabalhadores tiveram que fazer viglia na porta da fbrica durante seis meses para

    impedir que o patro retirasse o patrimnio sem pagar a dvida.

    A experincia da COOPARJ no foi um caso isolado. Nos anos 90 o pas passou

    por uma virada neoliberal. A abertura dos mercados e a flexibilizao das relaes

    trabalhistas levaram ao fechamento de muitas indstrias. Os trabalhadores organizados em

    sindicatos ou outras agremiaes reagiram aos desmontes do capital ocupando empresas e

    lutando pela propriedade dos meios de produo para seguir trabalhando e gerando renda.

    Estima-se que cerca de 200 empresas foram ocupadas e recuperadas pelos trabalhadores

    nessa virada de sculo (NOVAES, 2005). Parecia uma das poucas sadas diante do

    desemprego estrutural. Mas ela foi construda pelos trabalhadores organizados com muita

    luta. Por isso, Nascimento (2004) afirma que a recuperao de empresas mais um captulo

    da histrica luta pela autogesto.

  • 3

    Diversos autores que se debruaram sobre o tema das ERTs no Brasil

    (HENRIQUES, 2014; NOVAES, 2005; FARIA, 2011; SGOLO, 2015; entre outros)

    afirmam que a recuperao das empresas manifesta uma luta pela manuteno dos postos

    de trabalho e no uma luta poltica conduzida pelo iderio anticapitalista. No entanto,

    Rebon (2007) sugere que pela recuperao de empresas os trabalhadores elaboram

    cotidianamente uma crtica prtica ao modelo capitalista de produo, experimentando

    pequenas, mas valiosas, alteraes na lgica de reproduo do capital.

    Nascimento (2004, 2010) chamou essa lenta e diria transio de revoluo

    cultural do cotidiano. A revoluo cultural do cotidiano um processo de longo prazo,

    pelo qual se confrontam normas e valores historicamente construdos e consolidados pelo

    modo de produo capitalista com novos valores emanados da experincia do trabalho

    associado. Sem os patres e os dirigentes, os trabalhadores tm a oportunidade de tomar os

    rumos da produo. Gramsci dizia que as experincias nas quais os trabalhadores tm o

    controle sobre a produo representam uma escola maravilhosa de formao de

    experincia poltica e administrativa (apud FISCHER e TIRIBA, 2009, p. 3).

    A histria mostra, no entanto, que as ausncias do patro e do dirigente podem no

    ser suficientes para garantir o controle dos trabalhadores sobre a produo. Afinal, os

    patres e dirigentes no esto mais na fbrica recuperada, mas ainda esto silenciosamente

    presentes em todos os espaos da sociedade. A luta pela autogesto extrapola os limites da

    fbrica e da produo e perpassa todas as esferas da vida.

    Transitando e dialogando com variadas forma de luta pela autogesto fui me dando

    conta disso e fui buscando maneiras de atuar como engenheira militante olhando para a

    produo, sem dar as costas para a vida. Lembrava, dos meus estudos de graduanda, que a

    ergonomia se propunha a transformar o trabalho buscando adapt-lo ao homem, assim

    contribuindo para o bem-estar das pessoas e o desempenho global dos sistemas. Mas,

    descolado de um contexto, no momento em que esse enunciado me foi apresentado, ele no

    teve sentido algum. Era s mais uma frmula que eu tinha que decorar para passar na

    prova.

    Quando me tornei professora na Universidade Federal de Ouro Preto, em 2010, fui

    incumbida de ministrar ergonomia e psicologia de trabalho. Era a oportunidade que eu

    precisava para retomar aquele estudo. Mergulhei fundo. Descobri a ergonomia da atividade,

  • 4

    a ergologia e a psicodinmica do trabalho. Descobri que h sempre uma distncia entre o

    trabalho prescrito e o trabalho real, e que essa distncia s pode ser preenchida pela ao

    humana, singular, situada, nica e enigmtica. Para realizar essa ao o sujeito mobiliza

    corpo, mente e sensaes numa dinmica complexa, que no se realiza fora de um contexto

    marcado por relaes com o mundo material e com o mundo dos homens e mulheres.

    Descobri que o que eu entendia por gesto, um jargo frequentemente utilizado na

    engenharia de produo, era s uma pequena parte da questo. Gesto da produo, gesto

    financeira, gesto de estoques, gesto da cadeia de suprimentos e at gesto do trabalho so

    disciplinas do curso de engenharia que se limitam s prescries. A gesto muito mais do

    que isso. No se trata de uma atividade especfica e exclusiva dos especialistas em gesto.

    Os gestores planejam e administram o uso dos recursos, definem as prescries e as

    entregam para os operadores executarem. Mas o trabalho nunca pura execuo. Quando

    se deparam com as lacunas entre o prescrito e o real os operadores precisam gerir. A gesto

    do trabalho o prprio trabalhar, faz parte da atividade de todo operador, supe escolhas,

    arbitragens e uma hierarquizao de objetivos e valores (SCHWARTZ, 1994).

    Na gesto cotidiana do trabalho, ou simplesmente na atividade de trabalho, os

    trabalhadores experimentam o fracasso (DEJOURS, 2012). Eles sofrem ao se dar conta que

    os saberes acumulados no so suficientes para responder s demandas imprevisveis do

    real. preciso reelaborar, recriar, e s possvel fazer isso pela prtica, experimentando,

    errando e acertando.

    Quando experimentam criar o novo os trabalhadores fazem escolhas. Eles so,

    certamente, influenciados pelo contexto e as relaes que o circundam, mas sempre h um

    espao para a tomada de posio. Se impossvel desvendar tudo o que est por trs dessas

    tomadas de posies, isso no significa que elas so irracionais, sem lgica. Nenhuma

    escolha produto do aleatrio. Elas se produzem no infinitamente pequeno, mas

    manifestam valores de vida em nada insignificantes (SCHWARTZ, 2011 b). Por isso,

    Schwartz (2007) diz que a atividade de trabalho um debate de normas e valores.

    Ento voltamos a falar da revoluo cultural do cotidiano. Se na atividade os

    trabalhadores se deparam com normas e valores enrijecidos pela histria e recriam para dar

    conta do real, pela atividade eles podem realizar a revoluo cultural do cotidiano. Os

    estudos da ergonomia da atividade, da ergologia e da psicodinmica do trabalho, me

  • 5

    fizeram perceber que os valores se constroem nas relaes cotidianas entre as pessoas, entre

    os trabalhadores, em qualquer situao de trabalho ou de vida.

    As interfaces entre o estudo da autogesto e o estudo do trabalho, pelo ponto de

    vista da atividade, foram se tornando cada vez mais explcitas no decorrer do meu percurso

    de formao. A percepo dessa interface e a minha vontade de ser uma engenheira

    engajada, militante, se fortaleciam mutuamente. Eu queria pensar as tcnicas e os saberes

    da gesto do trabalho sem descolar essa reflexo da dimenso dos valores, da luta poltica

    por um mundo mais humano e solidrio.

    Em paralelo a esse amadurecimento terico, aumentava vagarosamente minha

    aproximao com o universo das ERTs brasileiras. Em 2010, em parceria com

    pesquisadores de diversas universidades, criamos o Grupo de Pesquisa em Empresas

    Recuperadas por Trabalhadores (GPERT). Juntos, pelo GPERT, realizamos uma pesquisa

    nacional que buscou mapear a totalidade das ERTs no pas.

    Verificamos que aquele movimento fervoroso do final dos anos 90 tinha esfriado.

    Encontramos apenas 67 ERTs em funcionamento. Apesar da reduo no nmero de casos,

    surpreendia a sobrevida das ERTs formadas nas dcadas passadas. Mesmo fragilizadas, elas

    resistiam, encarando batalhas cotidianas para sobreviver nas brechas do sistema dominante.

    O desafio no era s a sustentabilidade econmica (diante do qual a empresa capitalista

    anterior sucumbiu), mas tambm a preservao dos valores da luta que uniu os

    trabalhadores para recuperar as empresas, em especial o valor do trabalho.

    A estrada sinuosa e cheia de percalos. As empresas recuperadas se configuram

    como um projeto extremamente conflitivo. Elas manifestam uma natureza hibrida,

    revelando contradies que no podem ser superadas pelo carter coletivo da propriedade

    ou pela maior participao dos trabalhadores na gesto (FARIA, 2011).

    Diversos estudos1 apontaram para essas contradies. Eles mostraram, por

    exemplo, que nas ERTs as formas de controle do trabalho podem se alterar, numa

    perspectiva de substituir o controle pela regulao. Tambm mostraram que nessas

    empresas as desigualdades na distribuio dos resultados financeiros do trabalho so

    reduzidas e que muitos trabalhadores envolvidos nesse processo consideram que trabalham

    1 VIEITEZ e DAL RI, 2001; VALLE, 2002; IBASE/ANTEAG, 2003; TAUILLE, 2005; NOVAES, 2005,

    2007 e 2011; FARIAS, 2011; HENRIQUES, 2014; HENRIQUES et. al., 2013.

  • 6

    de uma maneira diferente da que existia na empresa tradicional anterior. As mudanas na

    organizao do trabalho, segundo relatos dos trabalhadores, trazem maior democracia ao

    espao produtivo, permitindo maior autonomia e liberdade para os trabalhadores. Por outro

    lado, essas pesquisas tambm mostraram uma tendncia de criao de uma "elite poltica e

    administrativa" que, com o tempo, acumula poder e concentra decises e informaes,

    desfavorecendo as conquistas no sentido da democracia. As dificuldades de insero no

    mercado so comuns a muitas empresas e podem ser um elemento que pressiona para que

    elas retornem s formas tradicionais de gesto do trabalho e da produo.

    Algumas pistas estavam dadas. Mas eu queria me aproximar mais da atividade em

    uma experincia singular de recuperao de empresa pelos trabalhadores para tentar

    perceber os debates de normas e valores se manifestando no cotidiano. Uma oportunidade

    foi aberta na COOPERMINAS.

    Sob o comando dos trabalhadores desde 1987, a COOPERMINAS uma das

    primeiras empresas recuperadas no Brasil. A formao da cooperativa foi resultado de

    intensas lutas da classe trabalhadora mineira em Cricima/SC. Eu e Vicente Nepomuceno

    (companheiro ao longo de toda essa jornada, desde minha chegada ao SOLTEC/UFRJ)

    conhecemos a COOPERMINAS em 2011, na ocasio da realizao do mapeamento

    nacional das ERTs. Nos encantamos com a experincia dessa categoria to importante na

    histria do movimento operrio mundial. O universo da minerao de carvo , ao mesmo

    tempo, fascinante e arrepiante.

    Nossa vontade de mergulhar nesse estudo s crescia. Em 2013, convidamos o

    engenheiro eltrico da mina, que tnhamos entrevistado em 2011, para um evento

    organizado na UFRJ. Encontramos muitas afinidades com ele, que depois se tornou um

    interlocutor privilegiado.

    Em 2014, a COOPERMINAS tinha cerca de 600 trabalhadores e produzia

    aproximadamente 4.000 toneladas de carvo bruto por dia, equivalendo a um faturamento

    mensal da ordem de sete milhes de reais. A gente queria entender os dilemas que os

    trabalhadores da empresa enfrentavam para produzir o carvo dentro dos requisitos

    impostos pelo mercado, carregando, por sua histria, as marcas da luta pela autogesto.

    Estudar a COOPERMINAS no contexto atual nos parece relevante para

    compreender os rumos que o movimento de recuperao de empresas por trabalhadores

  • 7

    tomou nos ltimos anos. O cenrio no o mesmo das dcadas de 1990 e 2000. As

    experincias hoje esto mais isoladas. A memria das lutas de uma gerao anterior vai se

    apagando lentamente. Certamente o estudo desse caso no suficiente para revelar a grande

    complexidade do fenmeno, no entanto, acreditamos que sua histria expressa bem

    algumas dificuldades e possibilidades compartilhadas por um conjunto amplo de

    experincias.

    Aportes metodolgicos

    Como engenheiros e pesquisadores militantes, propomos uma pesquisa-ao que

    se concretizou na forma do Projeto META (Mineiros para o Estudo do Trabalho na

    Autogesto). Buscamos alcanar o nvel da atividade nos inspirando na Anlise

    Ergonmica do Trabalho (AET) (GUERIN et. al., 2001) e no Dispositivo Dinmico de Trs

    Polos (DD3P) (SCHWARTZ, 2004) para elaborar uma metodologia de investigao e

    interveno que satisfizesse ao nosso desejo de compreender-transformando a realidade. A

    elaborao metodolgica foi influenciada ainda pelos estudos de Lacomblez, Teiger e

    Vasconcelos, que propem a utilizao da AET combinada com a perspectiva de formao

    de trabalhadores num campo que os autores definiram como Formao de atores em e

    pela anlise do trabalho, para e pela ao (LACOMBLEZ, TEIGER E

    VASCONCELOS, 2014).

    O projeto se realizou a partir de cinco visitas Cricima, cada uma com uma

    semana de durao, cada semana recheada de muitas entrevistas, conversas, reunies e

    observaes na empresa, mas tambm de muitos espaos de vivncia e interao com os

    trabalhadores e seus familiares fora do local de trabalho.

    Seguindo os preceitos da teoria fundamentada (grounded theory) (STRAUSS e

    CORBIN, 2008), deixamos emergir do campo os conceitos que nos ajudariam a analisar a

    realidade estudada. Ganharam destaque ao longo da interveno a questo das

    competncias dos operadores para realizar uma determinada atividade e a mobilizao dos

    coletivos de trabalho que interagiam naquela situao.

    Esses conceitos (coletivos e competncias) so caros s abordagens (disciplinas e

    perspectivas) de estudo do trabalho em que nos apoiamos. Os principais autores da

    ergonomia da atividade, da ergologia e da psicodinmica oferecem diferentes olhares sobre

  • 8

    o tema. Essa sintonia entre as possibilidades abertas pela pesquisa-ao e nossa base

    terico-metodolgica permitiu formular os objetivos e as questes de pesquisa orientadoras

    para essa tese.

    Objetivo da tese

    Analisar a gesto do trabalho pelo olhar da atividade na COOPERMINAS,

    buscando compreender como os trabalhadores constroem e mobilizam competncias e

    como os coletivos participam dessa gesto para dar conta da distncia entre o prescrito e o

    real. Tambm buscaremos revelar os valores que esto por trs da gesto do trabalho e

    refletir sobre como esses valores influenciam e so influenciados na/pela luta pela

    autogesto.

    Questes de pesquisa

    O que restringe e o que favorece a mobilizao das competncias dos

    operadores na COOPERMINAS?

    O que restringe e o que favorece a dimenso coletiva da atividade na

    COOPERMINAS?

    Como as competncias e os coletivos influenciam e so influenciados na/pela

    luta pela autogesto?

    Nossa hiptese que a luta pela autogesto se manifesta em diferentes esferas e

    que um olhar para a atividade ajuda a compreender os valores em disputa nas relaes

    cotidianas de trabalho e de produo.

    Estrutura da tese

    Esta tese est estruturada em duas partes, totalizando seis captulos.

    Na primeira parte apresentamos ao leitor nossas lentes de anlise, ou a

    fundamentao terica para elaborao de um olhar sobre a gesto do trabalho na

    COOPERMINAS.

    O captulo um traz as contribuies da ergonomia da atividade, da perspectiva

    ergolgica e da psicodinmica do trabalho, com especial nfase no que essas abordagens

  • 9

    oferecem a respeito do tema das competncias e dos coletivos de trabalho.

    No segundo captulo introduzimos o universo da minerao de carvo, situando a

    produo no cenrio nacional e global e caracterizando o ambiente e as condies de

    trabalho nesse contexto. Ainda nesse captulo resgatamos algumas experincias histricas

    de organizao do trabalho para a extrao do minrio, que sero teis para refletir sobre o

    caso da COOPERMINAS.

    Para concluir nossa fundamentao, apresentamos, no captulo trs, uma reviso

    bibliogrfica sobre o tema da autogesto. Esclarecemos o que para ns representa o sentido

    dessa luta, traamos um histrico dos embates entre os trabalhadores organizados e o

    sistema do capital e mostramos um panorama das resistncias que recentemente resultaram

    na formao das ERTs no Brasil.

    Na segunda parte da tese nos debruamos sobre a experincia da

    COOPERMINAS. Iniciamos apresentando, no captulo quatro, o movimento operrio em

    Cricima e sua culminncia na recuperao da empresa em 1987. Ainda no quarto captulo

    discorremos sobre o percurso metodolgico trilhado pelos pesquisadores que permitiu um

    olhar sobre a gesto do trabalho na empresa.

    No quinto captulo comeamos a mostrar os resultados do estudo. A anlise da

    gesto do trabalho pelo olhar da atividade na COOPERMINAS revela sinais de ruptura e

    continuidade com relao s formas anteriores de organizao do trabalho na produo de

    carvo. o que pretendemos mostrar e analisar nessa primeira parte dos resultados.

    No sexto capitulo, por fim, o foco da anlise a operao de um trator num

    determinado posto de trabalho na empresa. Focar o olhar na operao oportunizou

    aprofundar a reflexo sobre a mobilizao das competncias e dos coletivos de trabalho na

    atividade nesse conflituoso terreno de luta pela autogesto.

    Conclumos nossa tese respondendo s questes propostas nesta introduo e

    apontando os avanos conquistados nesse percurso que permitiram dar continuidade

    produo e sistematizao de conhecimentos sobre a gesto do trabalho nas ERTs no

    Brasil.

  • 10

    PARTE I: Lentes da anlise

    !

    A gente quer valer o nosso amor

    A gente quer valer nosso suor

    A gente quer valer o nosso humor

    A gente quer do bom e do melhor...

    A gente quer carinho e ateno

    A gente quer calor no corao

    A gente quer suar, mas de prazer

    A gente quer ter muita sade

    A gente quer viver a liberdade

    A gente quer viver felicidade...

    !

    A gente no tem cara de panaca

    A gente no tem jeito de babaca

    A gente no est

    Com a bunda exposta na janela

    Pr passar a mo nela...

    !

    A gente quer viver pleno direito

    A gente quer viver todo respeito

    A gente quer viver uma nao

    A gente quer ser um cidado

    Gonzaguinha

  • 11

    CAPTULO 1: Gesto do trabalho pelo olhar da atividade

    O trabalho sempre atravessado por uma dimenso enigmtica e uma definio

    clara e precisa do que vem a ser o trabalho ser sempre um problema. Por mais difcil e

    arriscada que seja essa tarefa, se queremos tratar da gesto do trabalho, no podemos nos

    furtar de esclarecer o que entendemos por trabalho. Certamente no pretendemos trazer

    aqui uma discusso aprofundada sobre o conceito, mas algumas consideraes iniciais.

    A situao natural do ser homano no mundo requer uma relao de mediao entre

    ele e a natureza, pois o mundo, tal como o homem (ou a mulher) o encontra dado, no

    oferece as condies para a satisfao de suas necessidades, sendo necessrias realizaes

    permanentes para ele/ela poder viver nesse mundo. Netto e Braz (2008) dizem que o

    trabalho o processo pelo qual o ser humano transforma a natureza para dela extrair os

    meios para satisfao de suas necessidades vitais. Marx (1982) define o trabalho como o

    processo de interao do homem com a natureza que impulsiona, regula e controla seus

    recursos materiais, imprimindo-lhes forma til vida humana2.

    Mas o homem no est s, isolado, diante de uma natureza objetiva. Marcuse

    (1998) lembra que a existncia do homem acontece em um espao configurado por outros e

    em um tempo maturado por outros. O homem um ser social e histrico. Ento, para alm

    da mediao entre indivduo e natureza, o trabalho tambm tem o papel de mediao entre

    os homens, e entre sociedade e natureza.

    No livro "O Fator Humano", Dejours (2005) elabora uma definio de trabalho

    onde essa tripla mediao operada pelo/no trabalho denotada. O autor diz que o trabalho

    uma atividade til e coordenada. O sentido de utilidade conecta a atividade com uma

    realidade material e um contexto econmico, no qual o resultado do trabalho deve ser til

    satisfao das necessidades humanas. A ideia de coordenao explicita a participao dos

    outros, da sociedade, nessa mediao do homem com o mundo material e econmico.

    2 Daqui por diante utilizamos muitas vezes a expresso homem como sinnimo de ser humano ou

    humanidade, sem fazer distines de gnero, assim reproduzindo a linguagem (e o que est por traz dela)

    androcntrica arraigada nos estudos histricos sobre o trabalho. O mesmo ocorre quando nos referimos aos

    trabalhadores, quase sempre no masculino. Cientes dos limites dessa opo, no conseguimos, por ora, dar

    conta de realizar as crticas feministas que se fazem necessrias a esses estudos e, lamentavelmente, seguimos

    a toada androcntrica de produo do conhecimento.

  • 12

    Dejours (2005) acrescenta um elemento a essa definio recorrendo ergonomia

    da atividade. A ergonomia da atividade tem o cuidado de precisar o significado do real

    no/do trabalho. O real "aquilo que no mundo se faz conhecer por sua resistncia ao

    domnio tcnico e ao conhecimento cientfico". O real est ligado ao fracasso, ele se faz

    conhecer por tentativas de ao fracassadas. " aquilo que no mundo nos escapa e se torna,

    por sua vez, um enigma a decifrar" (DEJOURS, 2005, p. 40). Portanto, enriquecendo a

    definio anterior de trabalho: "o trabalho a atividade coordenada desenvolvida por

    homens e mulheres para enfrentar aquilo que, em uma tarefa utilitria, no pode ser

    obtido pela execuo estrita da organizao prescrita" (DEJOURS, 2005, p. 43).

    Em outras palavras, trabalho o trabalhar, e trabalhar preencher a lacuna entre o

    prescrito e o real. um certo modo de engajamento da personalidade para responder a uma

    tarefa delimitada por presses (materiais e sociais3), oriundas das condies e da

    organizao do trabalho (DEJOURS, 2004). Trabalhar inclui os gestos, os saber-fazer, o

    engajamento do corpo, a mobilizao da inteligncia, o poder de sentir, de pensar, de

    inventar (DEJOURS, 2012).

    Nesse engajamento o trabalhador encara o sofrimento. Uma vez que o real resiste

    ao conhecimento prvio, ele se apresenta ao sujeito por meio de um efeito surpresa

    desagradvel, ou seja, de um modo afetivo. Trabalhar experimentar o fracasso e o

    sofrimento (DEJOURS, 2004).

    Quando observamos Marcuse (1998) tratar do carter penoso do trabalho, somos

    remetidos ao que acabamos de dizer a partir de Dejours. Para Marcuse o trabalho existe

    como pena, na medida em que subordina o fazer humano a uma lei alheia, imposta: a lei

    da coisa (Sache) que preciso fazer (p. 18). Lei esta que precisa ser apreendida e

    dominada pelo homem que trabalha. Segundo Netto e Braz (2008), a apreenso e o domnio

    dessas leis exigem dos homens habilidades e conhecimentos que so adquiridos no

    processo de trabalho por repetio e experimentao.

    Assim, numa relao primordial de sofrimento no trabalho que o corpo faz,

    simultaneamente, a experincia do mundo e de si mesmo. O sofrimento ao mesmo tempo

    3 O real do trabalho no somente o real da tarefa. tambm a realidade do mundo social. Trabalhar

    tambm fazer resistncia ao mundo social, dominao social (DEJOURS, 2004).

  • 13

    impresso subjetiva do mundo e a origem do movimento de conquista do mundo

    (DEJOURS, 2004).

    Trabalhar no s produzir, tambm transformar a si mesmo. O conceito de

    atividade subjetivante, em Dejours (2005), denota justamente essa dimenso da

    transformao do sujeito pela atividade de trabalho, sem a qual nenhuma eficcia seria

    possvel. Apreender a atividade passa no s pela observao dos atos, mas tambm pela

    identificao das marcas que ela deixa na transformao dos sujeitos.

    Por outra via, Schwartz (2011a) diz que pelo trabalho os homens e mulheres

    "envolvem seus corpos em uma atividade socialmente programada que visa a produzir os

    meios materiais de suas existncias" (p. 20). O autor lembra, pertinentemente, que ele no

    um parmetro do processo histrico, mas a prpria base do que faz a histria. O trabalho

    uma forma especfica de algo mais geral: a atividade humana, pela qual o homem constri

    sua histria, a histria da humanidade.

    Ento qual seria sua especificidade em relao s demais formas de atividade

    humana? Ser socialmente programado? Estar orientado para a produo dos meios

    materiais necessrios a existncia humana?4 Parece insuficiente. Como vimos, apesar de

    socialmente programado, ele d espao singularizao de acordo com o contexto, sendo

    sempre necessria uma reprogramao, uma vez que o real nunca corresponde prescrio.

    Ele se orienta para o atendimento das necessidades humanas, mas ele no se move sem os

    desejos.

    Nol, Revuz e Durrive (2007) situam o trabalho como um objeto por meio do qual

    o homem busca um equilbrio, sempre precrio, em sua vida psquica. E como o homem

    um ser de necessidades, mas tambm de desejos, o trabalho um objeto duplo.

    Por um lado ele pertence realidade, ou seja, constitudo por um certo

    nmero de exigncias econmicas, tcnicas, fsicas, jurdicas; possui uma

    dimenso coletiva, existe enquanto objeto social. Isso uma coisa.

    4 Nas situaes mercantis, que hoje subordinam (mesmo que parcialmente) quase todas as relaes de

    trabalho, ele assume outra especificidade. Ele passa a ser uma atividade que se troca por dinheiro. em torno

    dessa troca amplamente desigual que vo se organizar as classes sociais, os movimentos sociais, a experincia

    da explorao. O trabalho passa a ser ento, o lugar do desenvolvimento das contradies entre as relaes

    sociais de produo e as foras produtivas (SCHWARTZ, 2011). por isso que para superar essas

    contradies preciso colocar o trabalho como centro da anlise das situaes e suas mudanas.

  • 14

    Mas, ao mesmo tempo, ele existe enquanto objeto do desejo, com esta

    dimenso imaginria. Enquanto objeto do desejo, ele portador de

    investimentos que podem ser perfeitamente inconscientes para a pessoa,

    [...] uma espcie de funcionamento completamente enigmtico... (NOL,

    REVUZ e DURRIVE, 2007, p. 229)

    Os autores insistem que somente na medida em que rena os dois - necessidade e

    desejo - que se torna possvel sobreviver no trabalho. Ento como planejar, programar,

    um trabalho de maneira a satisfazer simultaneamente necessidades e desejos de uma

    pessoa? No h resposta pronta. Dada essa face enigmtica do trabalho enquanto objeto de

    desejo, no possvel antecipar o que o homem ou a mulher buscam no/pelo trabalho. As

    pessoas s vo compreender o que elas buscam no trabalho quando elas encontrarem um

    trabalho que lhes agrade. Ou melhor, enquanto elas estiverem encontrando isso

    permanentemente.

    Marcuse (1998), que definiu o trabalho orientado para a satisfao das

    necessidades vitais humanas, ao discorrer mais sobre o carter de tais necessidades, se

    aproxima dessa viso que contempla o desejo como um de seus objetivos. Ele diz que para

    entender o carter dessas necessidades no basta a teoria que parte da compreenso do

    homem apenas como ser orgnico, como vida biolgica. Assim no se distinguiriam as

    necessidades humanas das necessidades animais, que se resumem a demanda de bens.

    Marcuse diz que preciso consider-lo como ser histrico, que tem como necessidade vital

    uma demanda jamais satisfeita: a auto-realizao continua e permanente.

    Por isso o autor diz que o trabalho marcado pela continuidade e permanncia. O

    trabalho continuo, pois a auto-realizao no fruto de um processo de trabalho singular,

    ou de vrios deles. Ela corresponde a um contnuo estar-trabalhando. J o sentido de

    permanncia deriva do entendimento de que o resultado do trabalho passa a fazer parte do

    mundo e da histria, seja como um objeto, seja conferindo ao prprio trabalhador uma

    posio no mundo.

    Para Marcuse

    a necessidade vital aponta para uma situao fatual ontolgica: ela se

    funda na prpria estrutura do ser humano, que nunca pode deixar-se

    acontecer imediatamente em sua plenitude, mas que permanente e

    continuamente precisa se efetivar a si prpria, fazer-se a si prpria.

    (MARCUSE, 1998, p.25)

  • 15

    Em sntese, o que dissemos at aqui que o trabalho uma atividade que atua na

    mediao entre trs esferas: o indivduo, a natureza objetiva e a sociedade. Ele se vale de

    algo que programado, planejado, prescrito tanto socialmente quanto pelo prprio

    indivduo, mas essa antecipao nunca suficiente. As formas de mediao entre essas

    esferas precisam ser sempre renovadas e reelaboradas para dar conta do que h de singular

    e enigmtico no real. Uma permanente frustrao com a insuficincia do prescrito se revela

    para o sujeito como sofrimento, mas tambm como oportunidade de um novo movimento

    de conquista do mundo (nova aprendizagem, desenvolvimento). Assim o sujeito transforma

    o mundo e a si mesmo no/pelo trabalho. Por fim, essa transformao orientada pelas

    necessidades humanas, mas tambm pelos desejos dos indivduos, jamais plenamente

    satisfeitos.

    Certamente isso no foi suficiente para revelar tudo o que est por trs dessa

    importante e histrica discusso sobre o que o trabalho. Mas um comeo que deve nos

    permitir avanar para a compreenso da gesto do trabalho na COOPERMINAS.

    Encontramos algumas abordagens de estudo do trabalho que compartilham (pelo menos em

    parte) dessa viso que acabamos de apresentar. Abordagens que falam do trabalho como o

    trabalhar, a partir da atividade, e no como o emprego, a relao formal (prescrita) ou

    salarial.

    A ergonomia da atividade, a perspectiva ergolgica e a psicodinmica do trabalho,

    cada uma com sua particularidade, tm convergncias nesse sentido. Essas abordagens so

    compostas por um conjunto amplo e complexo de conceitos, ou por maneiras particulares

    de articular os conceitos com as prticas, que permitem um entendimento da atividade. No

    nosso objetivo apresentar a vasta contribuio de cada uma dessas correntes.

    Elegemos dois conceitos que consideramos fundamentais para analisar a gesto do

    trabalho na COOPERMINAS e buscamos resgatar os olhares dessas abordagens sobre eles.

    Procuramos compreender como os trabalhadores constroem e mobilizam competncias

    para preencher as lacunas entre o prescrito e o real, e como os coletivos de trabalho

    participam da atividade facilitando (ou dificultando) essa construo e mobilizao.

    Acreditamos que as competncias e os coletivos so elementos essenciais para o trabalho,

    para a transformao do mundo e dos sujeitos que trabalham.

  • 16

    Esses dois conceitos ancoram nossa anlise da gesto do trabalho na

    COOPERMINAS e por isso vamos, a seguir, resgatar o que a ergonomia da atividade, a

    perspectiva ergolgica e a psicodinmica do trabalho tm a dizer sobre eles.

    1.1. Trabalhar gerir: contribuies da ergonomia da atividade

    O termo "ergonomia" foi usado oficialmente no final dos anos 40, quando

    engenheiros, com a colaborao de fisiologistas e psiclogos, inauguravam uma forma de

    cooperao multidisciplinar que visava compreender, no contexto da II Guerra Mundial,

    por que equipamentos extremamente modernos no eram operados com a eficincia e

    eficcia esperada (WISNER, 1994, 2004)5.

    Segundo a definio mais atual da Internation Ergonomics Association (IEA)

    A ergonomia (ou Human Factors) a disciplina que visa a compreenso

    fundamental das interaes entre os seres humanos e os outros

    componentes de um sistema, e a profisso que aplica princpios tericos,

    dados e mtodos com o objetivo de otimizar o bem-estar das pessoas e o

    desempenho global dos sistemas. (FALZON, 2007, p. 5)

    Falzon (2007) destaca que uma especificidade da ergonomia reside em sua tenso

    entre esses dois objetivos.

    De um lado, um objetivo centrado nas organizaes e no seu desempenho.

    Esse desempenho pode ser apreendido sob diferentes aspectos: eficincia,

    produtividade, confiabilidade, qualidade, durabilidade etc. De outro, um

    objetivo centrado nas pessoas, este tambm se desdobrando em diferentes

    dimenses: segurana, sade, conforto, facilidade de uso, satisfao,

    interesse do trabalho, prazer etc. (FALZON, 2000, p. 8)

    bastante conhecida pelos resgates da histria da sade e segurana do trabalho

    (BISSO, 1990), bem como pela histria da prpria ergonomia da atividade (LAVILLE,

    2007), a resistncia do patronato com relao ao avano desses campos de estudo e

    interveno.

    5 Vidal (2001) atribui a Wojciech Jastrzebowski a primeira definio de ergonomia, em um artigo intitulado

    "Ensaios de Ergonomia, ou cincia do trabalho, baseada nas leis objetivas da cincia sobre a natureza",

    publicado em 1857. Como nos interessamos nessa tese particularmente pela ergonomia da atividade, adotamos a perspectiva histrica apresentada por Wisner (1994, 2004).

  • 17

    Laville (2007), ao retomar alguns problemas com os quais os ergonomistas

    franceses tiveram que se deparar ao longo da construo desse campo, lembra-se de um

    questionamento frequente na dcada de 70:

    [...] como sair do laboratrio para conduzir esses estudos em campo? Por

    um lado, a comunidade cientfica se pergunta sobre a validade dos

    resultados de pesquisa, onde no se pode manipular nem controlar todas

    as variveis; por outro, as direes das empresas temem que os estudos

    favoream conflitos sociais. (LAVILLE, 2007, p. 29)

    Simone Weil (1937, p. 114) dizia que "o que preciso para extrair o maior

    nmero possvel de produtos, no necessariamente o que pode satisfazer aos homens que

    trabalham na fbrica". Ela afirmava que "as necessidades da produo e as necessidades

    dos produtores no coincidem forosamente". Para a autora, o desafio pensar num

    mtodo de organizao do trabalho "meio-termo", que nem sacrifique demais um lado (a

    produo), nem o outro (os trabalhadores).

    No sentido oposto, Duc, Duraffourg e Durrive (2007, p. 73) afirmam que "opor

    eficcia sade no razovel". Eles entendem que "a eficcia participa do sentido do

    trabalho: trabalhar para encher lixeiras insuportvel!". Portanto, no haveria conflito

    entre interesses opostos, pois no h oposio entre os interesses da produo e os dos

    produtores.

    A nosso ver, aqui temos que fazer um esclarecimento e uma distino. Uma parte

    desse impasse pode ser explicada pelo conflito Capital X Trabalho, e se d porque estamos

    nos marcos de uma sociedade e um mercado capitalistas, onde os meios de produo e os

    produtos foram tirados dos produtores. Acreditamos que nesse marco, esse conflito no tem

    mesmo soluo e, nesse caso, concordamos com Weil.

    No entanto, esse conflito tambm pode ser caracterizado como um conflito entre

    os interesses e necessidades individuais e os interesses e necessidades de um coletivo.

    Mesmo considerando a possibilidade de construo de uma sociedade de homens e

    mulheres livres e iguais, esse conflito no poderia ser desfeito. A contradio entre

    indivduo e sociedade est para alm dos dilemas do capitalismo e prpria do ser humano

    enquanto ser social. Todavia, acreditamos que nessa suposta sociedade sem classes esse

    conflito assumiria outros contornos, uma vez que os resultados da produo no seriam

  • 18

    usurpados por uma classe dominante. Dessa forma, encontramos sentido na afirmao de

    Duc, Duraffourg e Durrive.

    Diversos outros autores (Tocqueville, Putnam entre outros) poderiam contribuir

    com esse debate. A discusso sobre a possibilidade de conciliar a esfera individual com

    uma instncia coletiva, comunitria ou societria remonta grandes debates no campo das

    cincias sociais, polticas e humanas. Nesta tese essa questo tambm est posta, porm

    ser elaborada a partir do micro da atividade, da poltica entendida como prtica cotidiana.

    Para a pergunta " possvel pensar uma forma de gesto do trabalho que favorea

    igualmente a sade e a eficcia?", no h resposta fcil. A ergonomia encara esse desafio e

    aposta nessa possibilidade. Ns acreditamos que encarar esse desafio se engajar num

    processo de transformao social. Acreditamos tambm que mais importante do que

    afirmar se ou no possvel conciliar esses objetivos, assumir que eles sempre estaro em

    debate e que uma soluo s ser possvel se for construda pela experimentao. Vamos

    ver na experincia concreta da COOPERMINAS como esses objetivos so disputados na

    atividade.

    Ao longo dessa pequena introduo sobre o que a ergonomia da atividade,

    falamos que ela uma disciplina cientfica, mas tambm uma prtica profissional, que

    pretende atuar para a transformao das situaes de trabalho visando contribuir com o

    desempenho das organizaes e com o bem estar dos trabalhadores. Nos tpicos que se

    seguem vamos tratar da ergonomia da atividade como disciplina. Reservamos para o

    captulo 4 desta tese a apresentao da ergonomia como uma prtica, como uma

    metodologia para compreender-transformar o trabalho.

    1.1.1. Uma base terica em ergonomia da atividade

    Toda disciplina se define por um objeto, uma teoria e um mtodo. Para a

    ergonomia da atividade, o objeto a atividade de trabalho. Ela busca resolver e tratar os

    problemas das condies e da organizao do trabalho a partir da compreenso das

    atividades dos trabalhadores, isto , do seu trabalhar.

    Daniellou usa a imagem da trama e da urdidura para descrever a atividade de

    trabalho.

  • 19

    Em suas atividades, os homens ou as mulheres, no trabalho, tecem. A

    trama seriam os fios que os ligam a um processo tcnico, a propriedade da

    matria, a ferramentas ou a clientes, a polticas econmicas [...], a regras

    formais, ao controle de outras pessoas... No caso da urdidura, ei-la ligada

    sua prpria histria, a seu corpo que aprende e envelhece; a uma

    multido de experincias de trabalho e de vida; a diversos grupos sociais

    que lhes ofereceram saberes, valores, regras com os quais compem dia

    aps dia; aos prximos tambm, fontes de energia e de preocupaes; a

    projetos, desejos, angstias, sonhos... (DANIELLOU, 2004, p. 2)

    O autor diz ainda, que se o trabalho parte dessas duas origens, ele tambm

    desemboca nessas duas mesmas. De um lado so elaboradas produes que pertencem

    histria da humanidade. Por outro lado, o trabalho tambm produz para os indivduos novos

    laos, novas experincias, transformaes do corpo, que estaro disponveis para serem

    tecidos na obra de uma vida. A ergonomia6 avalia as consequncias externas e internas do

    trabalho - o que ele gera para a produo, para a sociedade, para o ambiente, e o que fica

    para o trabalhador em termos de aprendizado, satisfao, transformaes do corpo etc.

    A teoria da ergonomia parte de trs proposies ou princpios unificadores

    (ABRAHO, 2008):

    variabilidade dos contextos e dos indivduos: no existe um homem mdio e a

    situao de trabalho nunca igual a outra;

    diferenciao entre tarefa e atividade: o qu faz e como faz o trabalhador;

    regulao na atividade: o trabalhador mobiliza competncias para dar conta do

    que a situao de trabalho demanda.

    A partir desses princpios, nascem os principais conceitos em ergonomia da

    atividade.

    Trabalho prescrito e Trabalho real

    Tarefa e Atividade

    Variabilidade e Regulao

    O trabalho prescrito remete aos resultados a serem obtidos (em termos de

    produtividade, qualidade, prazo), a partir da aplicao de mtodos e procedimentos

    previstos, dentro de condies previamente determinadas. Ele inclui as ordens emitidas pela

    6 A partir daqui sempre que usarmos a expresso "ergonomia" estamos nos referindo ergonomia da

    atividade.

  • 20

    hierarquia e as instru es de trabalho, os protocolos, as normas tcnicas e de segurana, os

    meios tcnicos colocados disposio, a forma de diviso do trabalho e as condi es

    temporais e socioeconmicas (qualificao, salrio) pr-estabelecidas.

    No mbito do trabalho prescrito, se define a tarefa - o que se espera do

    trabalhador, o que deve ser feito, a ao que foi planejada para ele realizar, em funo da

    qual ele foi treinado e ser provavelmente avaliado.

    O trabalho real, no entanto, nunca corresponde ao que foi prescrito. O trabalho real

    determinado pelas caractersticas dos trabalhadores, pelas regras de funcionamento da

    organizao e pelo contexto da ao. No contexto da ao, as condies reais nunca sero

    iguais s previamente determinadas. Isso porque as condies de produo, assim como as

    condies fsicas e psquicas dos trabalhadores, nunca so perfeitamente estveis.

    No possvel controlar ou prever todos os fatores intervenientes na produo. No

    contexto da ao, a nica certeza a variabilidade. As variabilidades podem ser

    relacionadas com os aspectos da produo, como matrias-primas com qualidades

    diferentes, variaes de temperatura do ambiente de trabalho, estado geral das ferramentas

    e equipamentos, incidentes que ocorrem em um dispositivo tcnico etc. As variabilidades

    podem estar relacionadas tambm aos trabalhadores. No existe populao padro, normal,

    mdia. Um trabalhador no igual ao outro. Eles se diferenciam pelas suas caractersticas

    fsicas, culturais e socioeconmicas. O mesmo trabalhador tambm nunca igual. Um dia

    ele est mais cansado ou mais disposto, mais alegre ou mais abatido, mais rpido ou mais

    lento etc. O funcionamento do homem no pode ser reduzido a um modelo. O homem

    vivo, est perpetuamente em desenvolvimento, em transformao. As variabilidades podem

    ser ainda organizacionais, como acontece quando um trabalhador falta e no substitui o

    outro no turno seguinte, quando os tempos planejados no conseguem ser realizados,

    quando a qualificao esperada para a realizao de uma funo no garantida etc.

    Guerin et. al. (1991, p. 23) diziam: J que as variabilidades persistem,

    importante conhec-las, tentar prev-las e considerar sempre a possibilidade de que novas

    venham a existir. Se os meios de que dispomos para trabalhar e a maneira como eles

    funcionam esto longe de ser estveis, Wisner (1994) adverte que o controle das variaes

    de funcionamento do sistema tcnico constitui o essencial do trabalho.

  • 21

    Diante das variabilidades, a tarefa no suficiente. O trabalhador nunca poder ser

    um mero executante. Se pelo trabalho prescrito possvel definir a tarefa, pelo trabalho real

    pode-se definir a atividade. A atividade a mobilizao efetiva do trabalhador. o

    resultado do acoplamento entre o sujeito e a situao de trabalho. o que a tarefa e a

    situao convocam e exigem do trabalhador para que ele alcance os objetivos estabelecidos.

    A atividade a gesto das variabilidades. Trabalhar gerir o imprevisto e elaborar o novo,

    as novas formas de pensar e agir.

    A atividade no apenas o comportamento. A atividade, para a ergonomia, indica

    o que se faz e o que se deixa de fazer. O comportamento uma face da atividade, sua parte

    observvel, manifesta. A atividade inclui ainda o inobservvel, o que se pensa, o que se

    julga, o que se hesita no momento da ao. Para os ergonomistas importa compreender a

    interao entre percepo, cognio e ao.

    Duas correntes da ergonomia da atividade interpretam de maneira diferente essa

    interao. Para os cognitivistas, a mente determina a ao do corpo. De acordo com essa

    corrente, o sujeito age guiado por suas representaes do mundo contidas em seus mapas

    cognitivos. O trabalhador elabora um modelo mental a partir da seleo, captao e

    interpretao das informaes disponveis para compreender a situao. A partir dessa

    representao, ele define um conjunto ordenado de passos, chamado de estratgias

    operatrias, que envolvem o raciocnio e a resoluo de problemas, possibilitando a tomada

    de deciso e a ao (ABRAHO et. al., 2009). As representaes do mundo, na forma de

    ideias, conceitos e imagens, comandam as aes do corpo. O sucesso da ao depende da

    representao dos aspectos relevantes da situao. Por essa perspectiva, a regulao se

    opera na mente, que comanda a ao do corpo, como instncias separadas e hierarquizadas.

    Se contrapondo a essa corrente, a perspectiva da ao situada (THEUREAU,

    2014) redefine a relao entre a representao e a ao7. Ela substituiu a ideia de uma

    representao para a ao, pela ideia de uma representao na ao. Antipoff (2014) diz que

    a distino entre as duas abordagens no a presena ou ausncia de representao, mas

    sim o lugar ocupado por ela. Seguindo essa abordagem, a autora afirma que as

    7 Para apresentar essa abordagem Antipoff (2014) tambm se referencia em Lave (1988) e Suchman (1987)

    respectivamente Cognition in practice e Plans and situated actions: the problem of human/machine

    communication.

  • 22

    representaes emergem na ao de maneira irrefletida. Elas esto incorporadas na ao.

    Portanto, a representao no antecede ou determina a ao, mas parte dela, como um

    recurso a mais. Dessa forma, a regulao no se restringe a uma operao mental, passando

    pelo corpo todo, que inclui a mente (a cognio), mas tambm as sensaes (percepo).

    A regulao na atividade permite o desenvolvimento de uma ao eficaz e

    compatvel com a sade do trabalhador, respondendo s variabilidades da produo, sem

    deixar de considerar as variabilidades internas de quem trabalha. O resultado disso uma

    atividade que tem componentes imprevisveis, enigmticos, singulares e contextualizados.

    A ideia de regulao est intimamente relacionada com os dois conceitos centrais

    dessa tese: competncias e coletivos de trabalho. So as competncias dos trabalhadores e a

    cooperao dos coletivos que permitem a regulao na atividade.

    1.1.2. A questo das competncias para a ergonomia da atividade

    Compreender a atividade passa por compreender o que o trabalhador mobiliza para

    realiz-la. A identificao das competncias ajuda a desvelar o enigma da ao humana. A

    ns no interessa uma anlise de aptides e capacidades descoladas do contexto. Buscamos

    estudar as competncias no contexto da situao de trabalho concreta.

    A ideia de competncia est ligada s possibilidades de ao. Ela operacionaliza

    conhecimentos e habilidades do trabalhador que se concretizam no seu fazer. na ao que

    se constitui a competncia (ABRAHO et. al., 2009).

    Weil-Fassina e Pastr (2007) partiram da perspectiva cognitivista para tentar

    explicar a organizao da atividade na situao real de trabalho. Assim os autores

    apresentaram a ideia de que as competncias fundamentam a representao para a ao e a

    construo das estratgias operatrias para enfrent-las. A competncia seria ento a

    capacidade de elaborar representaes mentais que espelhem a situao de maneira mais ou

    menos verdadeira e planejar estratgias operatrias adequadas para a situao conforme

    interpretada. De acordo com essa abordagem, essa a base para a regulao na atividade.

    Pela perspectiva da ao situada, no entanto, vimos que a regulao no se

    restringe a uma operao mental e que a ao no resultado somente da representao.

    Portanto, o agir em competncia no depende somente da capacidade de elaborar

  • 23

    representaes adequadas para a ao. A ao inteligente tambm passa pela articulao de

    um conjunto da saberes incorporados, demandando mais do que capacidades cognitivas.

    Antipoff (2014), baseando-se na perspectiva da ao situada de Suchman, ressalta

    que a inteligncia est na ao e na capacidade de usar o corpo em situao e em tempo

    real. A efetividade dos planos e procedimentos previamente elaborados depende do

    engajamento corporal do sujeito no momento aqui e agora, ou seja, a inteligncia da ao

    depende da disposio corporal, perceptual e gestual em situao, para mobilizar

    representaes pertinentes no momento presente. Esse engajamento o ponto crucial da

    competncia. A autora afirma que o papel das previses e antecipaes passa a ser o de

    criar condies para o corpo usar suas habilidades incorporadas da melhor forma

    possvel, dependendo dessas habilidades o sucesso da ao (p. 24).

    Mas uma teoria no nega a outra. A nosso ver, elas se complementam. Ento

    vamos por partes. Primeiro tentando resgatar as contribuies da abordagem cognitivista,

    para depois trazer as ponderaes da perspectiva da ao situada.

    A ao dotada de saberes que muitas vezes so implcitos e no conscientes,

    emergindo em situao. o que Vergnaud (2003) chamou de conhecimentos em ato. Piaget

    j havia mostrado que muitas vezes o sucesso da ao precede a sua compreenso. Na

    origem de numerosas competncias, os trabalhadores sabem fazer, sem realmente

    compreender o que eles fazem. Weil-Fassina e Pastr explicam sinteticamente essa ideia de

    Piaget:

    H duas etapas na coordenao da ao: a coordenao prtica da ao,

    em que a ao conseguida sem ser compreendida; e a coordenao

    conceitual, em que a compreenso da ao acaba alcanando seu sucesso,

    constituindo assim um progresso decisivo na organizao da ao.

    (WEIL-FASSINA e PASTR, 2007, p. 178)

    Para Piaget (1978) a distncia entre fazer algo e compreender o realizado

    explicada pela ausncia da reflexo sobre as representaes. Na coordenao prtica

    prevalece o que ele chama de representao de primeira ordem, que apenas reflete a

    realidade sem elabor-la, signific-la, conscientemente. O autor diz que preciso um

    retorno reflexivo sobre a ao aps a sua realizao para reconstituir as operaes (mentais

    e corporais) realizadas e ai sim produzir uma explicao para ao (sua compreenso). Essa

    reflexo sobre a ao no estava presente no momento da ao. Ela uma representao de

  • 24

    segunda ordem, posterior ao, que pode levar o sujeito a tomar conscincia dos

    processos engendrados na ao, permitindo a transformao da ao em operaes mentais

    generalizveis, que acumuladas estaro disponveis para serem utilizadas em situaes

    futuras.

    a representao aps a ao que leva coordenao conceitual. Mas vale

    lembrar que nem sempre essa representao acontece e que mesmo ocorrendo ela ser

    sempre parcial. Afinal, a experincia do corpo nunca pode ser inteiramente reproduzida

    pelos smbolos. Wisner (2004) resgata a fala de um operador da Central Nuclear de Three

    Mille Island, que disse:

    a razo da eventual perda de pacincia dos operadores quando explicam

    para um engenheiro o que se passou durante um 'transitrio' (incidente)

    que ele est decepcionado por no poder descrever as centenas de

    pensamentos, de decises e de aes que se produziram durante o

    'transitrio', pois no h um gravador para tanto [...] (FREDERICK, 1988,

    apud WISNER, 2004, p. 45)

    A coordenao conceitual, de acordo com Weil-Fassina e Pastr (2007), resulta na

    aquisio de modelos cognitivos e modelos operativos, que so produzidos pelo acmulo

    de operaes mentais elaboradas a partir da reflexo sobre a prtica. Os modelos cognitivos

    so um conjunto de conhecimentos cientficos e tcnicos que permitem a compreenso do

    funcionamento de um dispositivo ou sistema tcnico. J os modelos operativos, ou regras

    de ao, esto orientados para a operao. Para os autores, importa menos saber como o

    dispositivo tcnico funciona (regras declarativas, lgica de funcionamento), e mais saber

    como oper-lo para chegar ao resultado esperado (regras operativas, lgica operatria). A

    abordagem cognitivista sugere que o domnio dos modelos operativos decisivo para o

    sucesso da ao.

    Pela perspectiva da ao situada, no entanto, esses modelos no so suficientes

    para fornecer aos operadores todos os elementos necessrios para ao. As regras de ao

    so muitas, muito diversas, indeterminadas e por vezes at contraditrias. Somente um

    diagnstico do estado presente do sistema e de sua evoluo, o que depende do

    engajamento corporal na situao dinmica, far emergir as regras pertinentes quela

    situao singular.

  • 25

    Pastr (2011, apud Antipoff 2014) diz que preciso um julgamento pragmtico,

    que equivale a uma meta-regra, para embasar as regras de ao em dado momento. Mas no

    se trata de fornecer mais regras para orientar o uso das j existentes, pois isso levaria

    regresso ao infinito. Nenhum esquema de representaes pode prever de antemo o que

    ser demandado no curso da ao. Sempre haver um abismo entre a regra e sua aplicao,

    ou entre representao e ao.

    Saber como agir em cada situao particular exige exerccio, prtica,

    percepo situada, julgamentos tcitos e sociais, no sendo as

    representaes suficientes, j que estas no contm as regras de sua

    aplicao. E a aplicao, o uso, o saber como agir em cada situao que

    definem uma prtica competente e, no, um corpus ou um esquema

    desprendido do tempo e do espao, como um conjunto de procedimentos e

    normas a serem seguidas. (ANTIPOFF, 2014, p. 62)

    A prtica no se resume aplicao de teorias. A primeira situada no tempo e no

    espao, enquanto a segunda universal e atemporal. Antipoff (2014), partindo de Theureau,

    Ingold, Collins e Winch8, afirma que os julgamentos tcitos corporais e sociais necessrios

    para o uso das regras dependem do engajamento do sujeito numa forma de vida (e de

    trabalho) compartilhada com outros e tambm da educao do corpo, da percepo, dos

    gestos, adquiridos pela prtica em situao.

    O ponto-chave e decisivo para o agir em competncia ento o acoplamento entre

    o sujeito e a situao real de trabalho. Esse acoplamento, segundo Theureau (2014),

    constitutivo de toda forma de conhecer e intervir sobre o mundo, uma vez que o sujeito a

    sua relao com o meio, no podendo se separar dele. E toda forma de conhecer e intervir

    no se resume a processos cognitivos, demandando a mobilizao dinmica de percepo,

    cognio e ao no momento nico e singular de cada atividade.

    8 THEUREAU, J. Le cours d'action: Mthode lmentaire. Toulouse: Octars, 2004; WINCH, P. A ideia de

    uma cincia social e sua relao com a Filosofia. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970; INGOLD,

    T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000;

    COLLINS, H. M. Experts artificiels. Paris: ditions du Seuil, 1992.

  • 26

    1.1.3. Os coletivos de trabalho para a ergonomia da atividade

    A ideia de coletivos de trabalho, como dissemos anteriormente, nos parece

    fundamental para a ergonomia da atividade. Sua importncia emerge dos estudos sobre a

    atividade de regulao, que revelaram que essa instncia decisiva para o sucesso da ao.

    Apesar disso, a preocupao de definir esse conceito surgiu tardiamente entre os

    ergonomistas. Em 1996, Milton Athayde alertou:

    Tem sido atravs da investigao acerca das modalidades de comunicao

    que a Ergonomia aproximou-se da dimenso coletiva de trabalho. [...] se

    quisermos avanar na dmarche ergonmica da dimenso coletiva da

    atividade de trabalho, parece mais fecundo partir da constatao de

    fragilidade terica e metodolgica com relao a esta dimenso (logo,

    com relao ao entendimento mesmo da vida no trabalho). consensual o

    fato de que a Ergonomia, tem se dedicado essencialmente ao estudo dos

    aspectos individuais do trabalho (LEPLAT, 1992). (p. 61/62)9

    Apesar do alerta, pertinente, Athayde (1996) conseguiu pinar entre os estudos

    da ergonomia desenvolvidos at ento, apontamentos que, mesmo sem definir um conceito

    de coletivos de trabalho, representavam avanos na compreenso dessa dimenso. Outros

    autores se somaram a esse esforo de sistematizar um olhar da ergonomia para a dimenso

    coletiva, permitindo alcanar um patamar onde hoje dificilmente um estudo em ergonomia

    da atividade deixa de contemplar essa questo.

    Trazemos a seguir um conjunto de ideias sobre o tema, agrupadas em trs tpicos:

    uma definio de coletivos de trabalho, requisitos para a atividade coletiva e resultados da

    atividade coletiva.

    a) Uma definio de coletivos de trabalho

    Todos ns pertencemos a vrios grupos sociais, de diferentes dimenses e formas

    de relao. A famlia um grupo, a comunidade do prdio, da rua, do bairro ou da cidade

    pode ser outro, as pessoas que frequentam um mesmo clube, frequentam ou frequentaram a

    9 Quando diz que "tem sido atravs da investigao acerca das modalidades de comunicao que a

    Ergonomia aproximou-se da dimenso coletiva de trabalho" o autor est fazendo referncia a uma srie de

    estudos (Daniellou, 1986; Chabaud, 1987; Leplat, 1991, entre outros) fortemente influenciados pela

    perspectiva cognitivista, que, apesar de relevantes, no sero priorizados nessa tese. Tampouco nos ateremos

    aos aspectos da comunicao que so tratados pelos estudos da lingustica, sem tambm deixar de reconhecer

    sua importante contribuio para o estudo do trabalho.

  • 27

    mesma escola, participam de uma associao cultural ou poltica etc. Chamamos de

    coletivos de trabalho um grupo de pessoas que trabalham juntas para realizao de uma

    tarefa ou para alcance de um objetivo comum10

    (DANIELLOU et. al., 2010).

    Um coletivo no uma soma de pessoas, mas sim um conjugado. Ele carrega os

    benefcios do efeito da sinergia. Ou seja, o todo irredutvel soma das partes. Montmollin

    (1997) diz que o coletivo ultrapassa o interindividual. Num coletivo possvel integrar as

    diferenas e articular os talentos especficos.

    Daniellou et. al. (2010) dizem que os coletivos podem ter formas muito variadas:

    Seus membros podem ou no se encontrar no mesmo lugar;

    Eles podem ter ou no as mesmas funes;

    Eles podem compartilhar as mesmas tarefas imediatas ou somente objetivos

    de mdio prazo.

    Assim como participamos de vrios grupos sociais, podemos tambm integrar

    mais de um coletivo de trabalho. O setor de produo de uma empresa um coletivo amplo

    que compartilha um objetivo de mdio prazo. Uma equipe de um turno um coletivo mais

    restrito. Mais restrito ainda pode ser o coletivo formado pelos operadores de um

    determinado posto de trabalho. Ou ainda, uma dupla de operador e ajudante de operao.

    Podem se formar coletivos para realizao de uma tarefa especfica, como um

    grupo de projeto ou uma fora-tarefa para limpar e organizar um galpo, assim como

    podem existir coletivos mais permanentes.

    Figueiredo e Athayde (2004), ancorados em Dejours, dizem que a cooperao o

    que funda o coletivo (veremos mais sobre as contribuies de Dejours no tpico 1.3). Pela

    atividade coletiva, os trabalhadores cooperam tendo como resultado da cooperao a

    coordenao coletiva do trabalho e o alcance dos objetivos partilhados. Vejamos adiante

    alguns requisitos para a atividade coletiva

    10 Diferente dos coletivos de trabalho, so os coletivos de ofcio: pessoas que tm o mesmo ofcio, sem

    necessariamente trabalharem juntas. No vamos tratar dessa forma de coletivo aqui.

  • 28

    b) Requisitos para a atividade coletiva

    Uma condio inicial para o bom funcionamento de qualquer atividade coletiva

    que cada um que dela participa tenha uma compreenso suficiente do trabalho dos outros.

    preciso conhecer a organizao geral do trabalho dos colegas, as diferentes fases da sua

    ao e os constrangimentos aos quais se submetem (GURIN et. al., 2001).

    Uma segunda condio, inteiramente em harmonia com a primeira, a

    comunicao entre os membros do coletivo. A comunicao, para alm de um requisito,

    tambm um indicador da atividade coletiva. A comunicao pode se revelar por palavras,

    mas tambm por gestos, relatrios, bilhetes; ou ainda pela postura, pelo posicionamento

    com relao s instalaes, pelos rudos etc. (GURIN et. al., 2001).

    A terceira condio remete ao que Terssac e Chabaud (1990, apud ATHAYDE,

    1996) chamaram de um "referencial [operativo] comum" que se constri entre os

    trabalhadores de uma equipe. Os autores falavam de uma "dependncia cognitiva" para

    designar a permeabilidade de saberes no seio de uma equipe, que daria origem a esse

    referencial comum. No entanto, indo alm da abordagem cognitivista, acreditamos que essa

    dependncia pode ser algo mais do que cognitiva, atravessando a esfera do corpo e das

    sensaes. Daniellou et. al. (2010) dizem que os grupos so portadores de um patrimnio

    coletivo que influencia na conduta dos seus membros: "At mesmo a percepo

    influenciada pelo pertencimento a um grupo: este portador de uma sensibilidade

    particular para certas informaes e de classes de interpretaes j prontas" (p. 51).

    A quarta condio para a atividade coletiva que consideramos aqui tem a ver com

    os objetivos mltiplos que concorrem na atividade. Dissemos que o coletivo de trabalho

    um grupo de pessoas que trabalham juntas para o alcance de um objetivo comum.

    Entretanto, preciso alertar que, para alm desses objetivos comuns, cada sujeito que se

    coloca na atividade carrega outros objetivos prprios.

    Montmollin (1997) ressalta que dificilmente possvel determinar a priori todos

    os objetivos projetados na/pela atividade. Ao se colocar em ao, o trabalhador redefine a

    tarefa prescrita, incluindo nela objetivos pessoais e sociais: sua carreira, sua sade fsica e

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    mental, sua integrao no grupo, a construo da sua identidade (SILVA, 2006)11

    . A

    situao de trabalho tambm alimenta a tarefa inicialmente prescrita de novos objetivos,

    necessrios para dar conta de constrangimentos que se apresentam a cada momento. Esses

    objetivos mltiplos podem ser complementares e facilmente conciliveis, como podem ser

    contraditrios e difceis de conciliar12

    .

    Os objetivos so orientados por diferentes lgicas que coexistem em qualquer

    organizao: a qualidade, o custo, o prazo, a sade e segurana etc.; alm das lgicas

    internas e valores prprios dos sujeitos da ao. A atividade pode ser expressa como o

    dilogo entre essas diferentes lgicas, que leva a uma gesto