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Fenômeno, estrutura e sinthoma: introdução a um programa de pesquisa sobre psicopatologia e psicanálise Am ancio Borges Nosografia e nosologia: redefinições A nosografia se baseia na síndrome, um agrupamento ou conjunto de sinais e sintomas indicadores de adoecimento. Sinais e sintomas se dispõem num aglomerado (cluster), numa síndrome, que pretende circunscrever uma espécie nosológica distinta. Síndromes supõem a enumeração sistemática dos sintomas e sinais que se impõem do exame direto do paciente ou pelo seu relato. Eventualmente o psiquiatra, psicólogo ou mesmo clínico geral, informados sobre saúde mental, tomam o relato de terceiros para complementar ou substituir inteiramente o próprio relato do paciente; e, de fato, tomam o relato de terceiros mais no sentido da observação do que da escuta ---- procedimentos temerários, por motivos a que voltaremos adiante. Já a nosologia se interessa pelas causas prováveis, pelo curso, estados terminais típicos, mecanismos psicológicos e psicopatológicos característicos, antecedentes do sujeito e pela previsibilidade de resposta ao tratamento (DALGALARRONDO, 2008, p. 26). Recorrendo a uma comparação, o nosógrafo trabalha à maneira do fotógrafo: ele registra de maneira sincrônica o estado dos sintomas, tal como se apresentam num momento estático, isolado do contexto e da linha do tempo. Já o nosologista se apresenta como o cineasta, ou como o romancista: ele

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Fenômeno, estrutura e sinthoma: introdução a um programa de pesquisa sobre psicopatologia e psicanálise

Amancio Borges

Nosografia e nosologia: redefinições

A nosografia se baseia na síndrome, um agrupamento ou conjunto de sinais e sintomas indicadores de adoecimento. Sinais e sintomas se dispõem num aglomerado (cluster), numa síndrome, que pretende circunscrever uma espécie nosológica distinta. Síndromes supõem a enumeração sistemática dos sintomas e sinais que se impõem do exame direto do paciente ou pelo seu relato. Eventualmente o psiquiatra, psicólogo ou mesmo clínico geral, informados sobre saúde mental, tomam o relato de terceiros para complementar ou substituir inteiramente o próprio relato do paciente; e, de fato, tomam o relato de terceiros mais no sentido da observação do que da escuta ---- procedimentos temerários, por motivos a que voltaremos adiante.

Já a nosologia se interessa pelas causas prováveis, pelo curso, estados terminais típicos, mecanismos psicológicos e psicopatológicos característicos, antecedentes do sujeito e pela previsibilidade de resposta ao tratamento (DALGALARRONDO, 2008, p. 26).

Recorrendo a uma comparação, o nosógrafo trabalha à maneira do fotógrafo: ele registra de maneira sincrônica o estado dos sintomas, tal como se apresentam num momento estático, isolado do contexto e da linha do tempo. Já o nosologista se apresenta como o cineasta, ou como o romancista: ele trabalha diacronicamente, registrando não somente o estado atual do paciente, como também sua história de vida, suas palavras, sua interpretação acerca de seu sofrimento. Partindo do registro histórico, seria possível elaborar hipóteses etiológicas e prognósticas sobre o caso.

Assim, se a nosografia se interessa especificamente pela descrição dos fenômenos clínicos, a nosologia (do grego, nósos, “doença” e logos, “tratado, razão explicativa”) aborda as enfermidades em geral e as classifica do ponto de vista explicativo, isto é, em sua etiopatogenia.

A validação do método de explicação das associações de fenômenos leva em consideração, portanto, a biografia, no momento da entrevista. Dedica-se a certa interpretação dos dados do sintoma e, a partir daí, duas possibilidades já surgem: 1) considerar o sintoma como signo de doença, sem uma significação subjetiva a ser interpretada, e então resta simplesmente eliminá-lo ou reduzi-lo ---- esta, a perspectiva pragmática; ou 2) considerar que o sintoma é, não signo, mas significante, que ele representa esse sujeito para outros (“Eu sou o deprimido”, “Eu sou bipolar”, etc.) e,

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além disso, ele comporta um saber não-sabido sobre a doença, saber a ser extraído da fala dos sujeitos que sofrem.

Na primeira perspectiva, o sintoma é uma excrescência inútil ou nociva, que em nada depende ou se refere a uma subjetividade. No outro ponto de vista, o sintoma já constitui uma resposta adaptativa à eclosão da doença, ele é o recurso que aquele sujeito conseguiu para aquele momento de sua vida; aqui, o sintoma não é vazio de saber: o aparelho psíquico não conseguiria se sustentar de outra forma, até esse momento, senão nesse sintoma.

A perspectiva pragmática é aquela adotada em grande parte dos manuais contemporâneos, e ela é diretamente inspirada no DSM-IV, que rejeita qualquer menção a aspectos etiológicos e ontológicos na descrição dos quadros nosográficos.

A adoção pelos modernos manuais de diagnóstico psiquiátrico da expressão “transtorno mental” visa colocar em suspenso a questão ontológica do objeto da psiquiatria. Tratam-se, portanto, de categorias convencionais e não de tipos naturais (natural kinds).

(PEREIRA, ... p. 10)

Mas uma nosologia atenta aos produtos do inconsciente reintegra os dados ontológicos e etiológicos, porém, de outra maneira: não se trata de dotar o sujeito e a doença de um ser específico (ontologia), nem de supor as causas da doença a partir de mecanismos igualmente específicos. Sujeito e doença, em nosso caso, correspondem a apresentações do sintoma. Mas se o sintoma possui um dado interpretável, redutível às cadeias significantes que o determinam, indica também uma forma de representação do sujeito no mundo, para o Outro, e assim comporta um dado irredutível à interpretação: aqui ele já não se agrega á experiência do sujeito, mas, de certa forma, ele é o sujeito. Falaremos, então, não de causa da doença, mas de causação do sujeito: de sua estruturação segundo determinado modo de amarração dos registros do simbólico, real e imaginário. Essa estrutura, que é causação do sujeito, se projeta na transferência e determina, portanto, a nosologia psicanalítica. Pois esse sujeito não é apenas aquele que sofre, o doente, mas ele encontra, em seu sintoma, uma posição de discurso. Por exemplo, é comum a pessoa se apresentar de saída com um “Eu sou bipolar” “Eu tenho depressão”, “Eu sou hiperativo”, antes mesmo de dizer seu próprio nome. São categorias democratizadas devido a vários interesses. Menos naturalizadas são as categorias “Eu sou crackeiro” ou “Eu sou anoréxica”, que ainda estão fortemente marcadas por um componente que a ciência precisa eliminar para funcionar a contento: a moral e os costumes.

Os nomes próprios alternativos que coletivizam uma experiência individual, como deprimido, bipolar, esquizofrênico, hiperativo, etc., são fornecidos pelas entidades

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nosológicas que sofreram lenta mutação durante três ou quatro séculos, até a unificação de critérios proposta pelo DSM IV-R e pela CID-10.

Assim, nosso ponto de vista pode ser melhor entendido se recorremos às concepções de doença mental ao longo da história.

Concepções sobre o adoecimento mental

Com base no trabalho de Tenenbaum (2011), “Psicopatologia geral e psicopatologia psicanalítica”, podemos acompanhar os passos mais importantes da evolução histórica do conceito de adoecimento mental, até o surgimento da obra freudiana.

Assim, entre os séculos XV e XVI, no Renascimento, tem início a busca por uma localização orgânica das doenças mentais.

Paracelso (1493-1541) foi o primeiro a sugerir que deveria haver um fator responsável pela afetação de uma mente por outra. Acreditava ele que seria uma espécie de fluído magnético. Em seguida, Mesmer (1734-1815), após cursar medicina em Viena, desenvolveu a teoria do Magnetismo Animal, também conhecida por Mesmerismo: haveria uma “força vital” de que são dotados certos indivíduos, e essa força vital propicia uma série de fenômenos chamados então de “paranormais”.

No século XVIII, sob o predomínio da Escola Francesa de Pinel, Esquirol e seus seguidores, conhecemos a consolidação da concepção de que o sofrimento mental é uma doença, tendo início a observação sistemática dos fenômenos mentais para a elaboração de uma nosologia.

Ainda nesse período, James Braid (1795-1860) e Bertrand (1730-1840) argumentaram que o Mesmerismo seria um estado subjetivo que poderia ser induzido por sugestão, e denomiram esse tipo de influência de uma mente sobre outra de Hipnotismo (onde “sugestão” significa propor, insinuar, fazer com que uma ideia se apresente à mente). Berheim (1840-1919) e Liébault (1823-1904) desenvolveram o hipnotismo no que ficou conhecido como Escola de Nancy.

Simultaneamente, Jean-Martin Charcot (1823-1904), em Paris, demonstrou o efeito da sugestão hipnótica na histeria, em aulas onde se davam apresentações de pacientes. Estabeleceu ainda a primeira distinção entre histeria e epilepsia.

Em seguida, Joseph François-Felix Babinski (1857-1932) e Froment, também em Paris, esclareceram o efeito do sugestão hipnótica como sendo a implantação de uma idéia que inibiria idéias opostas a esta. O efeito inibidor da idéia implantada dependeria da “força da relação entre o médico e o paciente”.

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Já no século XIX, acontece a elaboração do primeiro manual de nosologia clínico-etiológica das psicoses (o termo “psicose” surge em Viena, em 1844). Esse período é marcado pelo predomínio da Escola Alemã de Psiquiatria. Assim, Edmund Husserl (1859-1938) desenvolve um método filosófico novo: a Fenomenologia, que se caracteriza pela realização de uma série de “reduções” fenomelógicas que descrevem os traços essenciais, as intenções da consciência concebidas como universais e necessárias. O maior expoente da Fenomenologia no campo da psiquiatria foi Karl Jaspers.

Ainda por essa época, na oitava edição do seu Tratado sobre as doenças mentais, Emil Kraepelin deixa seu nome na história como o primeiro grande sistematizador das principais entidades nosológicas conhecidas.

Demência Precoce

Psicoses endógenas Psicose Maníaco-depressiva (PMD)

(funcionais) Paranóia

Emil Kraepelin

(1856-1926) Psicoses exógenas

Psicoses orgânicas

A classificação final de Kraepelin incorpora a distinção proposta por Moebius, em 1875, entre as psicoses “exógenas”, que se desencadeiam como a partir de fatores ambientais, orgânicos ou psíquicos, externos ao sujeito, e as psicoses “endógenas”, em que não é possível determinar uma etiologia ambiental orgânica ou psíquica, devendo-se então falar de causas psicogênicas primárias, internas ao indivíduo e relacionadas à história de vida de cada um. Tem-se aí também uma primeira tentativa de distinção entre Quadros Neuroorgânicos de Base (QNB) e Quadros Psíquicos Primários (QPP), repartição que ainda hoje está sujeita a controvérsias, mas coincide com importantes achados da clínica cotidiana.

Finalmente, antecipando a noção de inconsciente freudiano, Pierre Marie Felix Janet (1859-1947), em Paris, registra a presença de idéias fixas na origem da histeria, as quais provocariam uma restrição ou uma “dissociação da consciência”. E Josef Breuer (1842-1925), amigo e colaborador de Freud, em Viena, confirma a presença de reminiscências na origem da histeria, levando à dissociação da consciência.

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Com Freud

Uma pesquisa elaborada pelo Professor Luís Flávio Couto (2006), para o curso de graduação de Psicologia da UFMG, destaca a evolução da nosografia das posições de discurso (“doenças mentais”, “anormalidades”), de acordo com o pensamento freudiano.

Temos, assim, uma “Nosografia de Freud” cujos resultados já se encontrariam estabelecidos em 1925.

Perversão

Neurastenia

Neuroses atuais Neurose de angústia

Neurose Hipocondria

Psiconeuroses

Histeria de conversão

Neuroses de transferência Histeria de angústia

Neurose obsessiva

Parafrenia

Neuroses narcísicas Paranóia

Melancolia e mania (PMD)

Observe-se a notável semelhança entre a classificação de Kraepelin para as psicoses endógenas e a de Freud para as neuroses narcísicas. Isso não impediu que o modelo de psicoses como entidades específicas de Kraepelin fosse combatido, terminando com a concepção supostamente ateórica que se instalou após a hegemonia classificatória do DSM-IV e com a perspectiva dimensional de separação das síndromes impondo uma

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flexibilidade cuja culminação é a abolição de critérios de demarcação das estruturas, ou, pelo menos, dos grandes quadros nosológicos.

No registro do Manual de Psiquiatria de Henri Ey, contemporâneo e até certo ponto estimulador do ensino lacaniano, já se nota a chegada da onda de Saint-Louis: deve-se não confundir a classificação clínica com fatores ou processos etiológicos associados à doença. Não obstante, H. Ey recorre à “organização do aparelho psíquico” de Freud para estabelecer o que denomina sua idéia diretriz1, que funcionaria como critério norteador da classificação em psicopatologia: são as modalidades de desorganização do ser consciente que constituem “o quadro nosográfico das espécies de doença mental”. (EY, [1960] 1978, p. 224). Ora, podemos argumentar que as ideias de Freud sobre a demarcação entre fenômenos psíquicos e doença mental partem dos pressupostos de que: i) as entidades da neurose, psicose e perversão estão diretamente referidas a certos mecanismos psíquicos etiológicos que atuam como “formas de negação da castração”, e ii) esses mecanismos determinam não apenas a formação de sintomas, mas, igualmente, a posição do sujeito frente ao desejo do Outro, entendido como lugar do simbólico, ao qual se dirigem as grandes questões do sexo, vida, morte, parentalidade. A posição do Outro, não podendo ser modificada pelo sujeito, salvo em alguns casos, se mantém independentemente do desejo do sujeito, mas a posição do sujeito em relação a esse Outro determina o desencadeamento de certos quadros psicopatológicos. Mas, além de inscrever cada sujeito em certa ordem complexa de organização em relação ao Outro, algo ocorre que fixa esse sujeito numa identificação aos sintomas, há um núcleo em que sintoma e ser se unem, e modificações no sintoma implicam em rompimentos no nível do ser. Sendo assim, a organização do aparelho psíquico excede em muito a classificação nosológica: de um modo ainda sujeito a investigação, viver é sofrer e o inverso não é menos verdadeiro, o sofrimento do sintoma comporta uma satisfação vívida, inaudita, talvez não inteiramente alheia, mas em alguma medida indiferente à racionalidade comum. Esse estado da pulsão que busca um apaziguamento ao preço de arriscar a morte, não coincide por completo com uma doença: Freud a descobre na formação de mitos e heróis, de instituições, de leis e ideais, por meio do conceito de supereu. E toda uma parte de “O Mal Estar na Civilização”, assim como de “A pulsão e suas vicissitudes” é dedicada à tentativa de entender o momento e as condições em que uma ruptura dessa “organização psíquica” resvala para o caos.

Mas vejamos agora como se apresenta a questão nosológica para e a partir de Lacan.

1 “Não saberíamos classificar, sem idéia diretriz, o gênero e as espécies”. (EY, [1960] 1978, p. 224).

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Com Lacan

Já em pleno século XX, retomando os trabalhos de Freud, bem como o conhecimento de nosografia psiquiátrica disponível à época (principalmente as pesquisas de Kraepelin e De Clérambault), Lacan elabora a noção de “estruturas clínicas” ou “estruturas subjetivas”. Essa noção explicita os mecanismos que estruturam o sujeito em determinada posição de discurso, mostrando assim de que forma cada sujeito, determinado pela estrutura, lida com a negação da castração. A noção de “estrutura clínica” indica não apenas uma tentativa de classificação psicanalítica dos fenômenos e síndromes mentais, como também a incorporação de mecanismos etiológicos daqueles fenômenos, realizando assim o deslocamento da nosografia em direção a uma nosologia freudiana: é o que Lacan mostra ao resgatar da obra de Freud os termos Verdrängung, Verwerfung e Verleugnung.

ESTRUTURAS CLÍNICAS

Estrutura

Clínica

Forma

de

negação

Local

de

retorno

Fenômeno

Neurose

RECALCAMENTO

(Verdrängung) Simbólico Sintoma

Perversão DESMENTIDO

(Verleugnung)

Simbólico Fetiche

Psicose

FORACLUSÃO

(Verwerfung)

Real Alucinação

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A segunda metade da década de 1960 marca uma mudança importante no ensino de Lacan, no que diz respeito à relação entre fenômeno, sintoma e estrutura subjetiva. Ele começa a conceber algo para além da estrutura. A data de partida da reorientação de seu ensino quanto à estrutura coincide com o seminário intitulado “A lógica da fantasia”, ministrado entre 1966 e 1967. Também o escrito “A posição do inconsciente”, de 1966, registra essa inflexão de seu ensino, que vai se realizar cabalmente quando, no seminário de 1975-1976, intitulado “O sinthoma”, já não mais se trata de pensar o sintoma como metáfora legível e plenamente articulável aos significantes do inconsciente, mas sim como um “nódulo de real” que atrai sobre si ---- vertente do objeto a ---- a realidade psíquica.

Hoje se considera que a obra lacaniana divide-se, portanto, entre um “primeiro ensino” (ou primeira clínica) e um “segundo ensino” (segunda clínica) ---- e um dos critérios de distinção reside no lugar e no destaque, primeiro, do simbólico e posteriormente do real, na estruturação subjetiva. No primeiro ensino, o simbólico tem primazia sobre os registros do real e do imaginário: é o conhecido “inconsciente estruturado como uma linguagem”

Nesse período, Lacan concebia o simbólico como o registro que organizava a estruturação psíquica, na captura da cadeia significante, produzindo um furo no real (...). Mas, na mesma medida em que abre um furo no real, tem o poder de reconstitui-lo pela palavra.

(FIGUEIREDO & MACHADO, 2011, p. 7)

O “padrão-ouro” da estrutura seria representado pelo sintoma neurótico, entendido como uma mensagem em forma de metáfora, pronta para ser decifrada. “Pois é por esses fenômenos se ordenarem nas figuras desse discurso que eles têm fixidez de sintomas, que são legíveis e se resolvem ao serem decifrados.” (LACAN, 1958/1998, p.556). Sendo assim, a psicose surge nessa época como um “acidente” ou “déficit” do simbólico, possibilitado pela foraclusão do Nome do Pai como operador da estrutura, resultando no fracasso da metáfora paterna em significar o desejo da mãe. A retirada do Nome do Pai do circuito Mãe-Criança-Falo desorganiza a estruturação subjetiva, tendo por efeito a irrupção de um imaginário “em cascata”, sem detenção, acompanhado de fenômenos em que o significante se apresenta, para o sujeito, no real, como nas vozes alucinatórias e no delírio. Pode-se dizer, então, que nessa época, até meados de 1960, a questão das estruturas evidenciava o envolvimento do real e do imaginário por um simbólico “organizador”, que os englobava ---- e, se não os englobava e organizava, tínhamos os fenômenos de alteração do juízo, da sensopercepção, enfim, os fenômenos do automatismo mental2.

2 Por automatismo mental entendo os fenômenos clássicos: pensamentos precedido, enunciação de atos, impulso verbais, tendência aos fenômenos psicomotores... [...] Creio, com freqüência, ao isolar o grupo de fenômenos mencionados acima, ter inovado alguns aspectos ao afirmar: 1) seu caráter essencialmente

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Assim, na primeira clínica lacaniana, temos:

Simbólico

Imaginário

Real

Na segunda clínica lacaniana, também conhecida como clínica borromeana (pois utiliza a topologia dos anéis de Borromeo para “mostrar” aspectos da teoria), temos, por outro lado, a conjunção de alguns argumentos teóricos que põem em questão a primazia do simbólico, característica da primeira clínica:

i) o simbólico é, ele próprio, “não-todo”: comporta um vazio central irredutível3, como mostra o fato de que um significante não é capaz de significar a si mesmo, ele depende de outros significantes;

ii) sendo a falta, o “não-todo”, um dado de estrutura do simbólico, ele não poderia recobrir inteiramente os outros registros;

iii) esse vazio central do simbólico pode ser entendido como a aplicação da castração para todos, independentemente de se tratar de uma neurose, psicose ou perversão. A castração seria então inerente à entrada do sujeito na linguagem, de maneira trans-estrutural;

iv) se a castração opera na linguagem e vale para todos, também a foraclusão encontra-se generalizada. Não haveria um Nome do Pai específico para as neuroses, mas sim Nomes do Pai que funcionam distintamente em cada estrutura (o Nome do Pai corresponde ao Édipo nas neuroses, às alucinações e delírios nas psicoses e ao fetiche nas perversões), como tentativas do aparelho psíquico lidar com o insuportável da castração;

v) as categorias clínicas não seriam, portanto, orientadas pelo fato de se “ter” ou “não ter” o Nome do Pai, mas sim pelas diversas maneiras de se realizar uma equivalência entre Nome do Pai e sinthoma (ou seja, de se realizar uma “suplência” da falta estrutural relativa ao plano da linguagem) ---- vide ANEXO 1;

neutro (pelo menos no início); 2) seu caráter não-sensorial; 3) seu papel inicial no princípio da psicose.(de CLÉRAMBAULT, apud QUINET, 2006, p. 73)

3 “O simbólico distingue-se por ser especializado, digamos, como furo. Mas o impressionante é que o verdadeiro furo está aqui, onde se revela que não há Outro do Outro” (LACAN, 1975-1976/2007).

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vi) ao fim e ao cabo, o Nome do Pai cede a vez ao sinthoma4, entendido, não como um artifício do significante, capaz de recobrir o imaginário e o real, mas sim como um “artifício de escrita” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 148) capaz de atar o real ao simbólico e ao imaginário, mantendo assim a sustentação da realidade psíquica;

vii) as estruturas clínicas permanecem determinantes, mas apresentam, a partir de agora, uma gradação mais continuísta que descontinuísta, correspondente às várias maneiras e diferentes estilos que cada sujeito encontra para, imerso na estrutura, chegar a um ponto de basta sinthomático no deslizamento incessante do sentido, sob a cadeia de significantes;

viii) o deslocamento do sintoma ao sinthoma reproduz o deslocamento de uma ênfase no simbólico para a precedência do real, do significante para a escrita, do desejo inconsciente para o gozo inconsciente e da resposta neurótica típica para as soluções psicóticas singulares.

A orientação borromeana em Lacan marca a passagem de uma clínica do inconsciente estruturado como uma linguagem para um inconsciente real, em que, mais que o sentido, é o fora-do-sentido que ganha destaque. Como dissemos, os três registros sofre uma desierarquização, eles se apresentam topologicamente equivalentes e sua o fato de se manterem unidos se deve agora a um quarto elemento, distinto dos outros três: o sinthoma.

Então, na clínica borromeana, não apenas o real não se subordina ao simbólico como as psicoses estão em nível equivalente às neuroses, no que diz respeito à sustentação da realidade psíquica pelo sujeito. Trata-se de artifícios variados, gambiarras sinthomáticas, para dar conta de um erro de amarração, seja nas psicoses, seja nas neuroses. Vemos na figura abaixo, por exemplo, como o pequeno nó em preto do sinthoma (à direita) corrige o erro do nó simples (à esquerda) que rompera com a amarração dos três registros, precipitando um desencadeamento do imaginário.

4 Sintoma e sinthoma distinguem-se porque, quanto ao primeiro, pode-se interpretá-lo e reduzi-lo de acordo com as leis do significante (metáfora, metonímia, condensação e deslocamento); quanto ao sinthoma, trata-se, antes, de uma forma de resposta do sujeito no real, que não admite interpretação ou leitura pela via do significante, i.e., uma gambiarra (o tradicional jeitinho brasileiro, expressão que valoriza a resposta contingente e imediata a um problema). A gambiarra sinthomática, no sentido de uma prótese ou suplência, mantém unidos o real, o simbólico e o imaginário, como solução singular inapreensível pelos recursos da linguagem comunitária. O sinthoma é da ordem da singularidade em ato, dedutível, porém, ininterpretável. Ele constitui um “ponto de amarração” ou “ponto de basta” pelo qual o sujeito se situa na estrutura.

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Onde R = Real, I = Imaginário e S = Simbólico.

Podemos, agora, esboçar alguns resultados preliminares.

Conclusão

No intuito de propor um programa de pesquisa em psicopatologia e psicanálise, examinamos primeiramente a pertinência do termo nosologia, por entender que ele aborda os fenômenos psíquicos levando em consideração certos mecanismos inconscientes e considerações etiológicas. Esses fundamentos, colhidos na construção do caso clinico, orientam não apenas o diagnóstico mas a própria direção do tratamento. Na nosologia psicanalítica, causa da doença e causação do sujeito coincidem, de certo modo, no ponto em que o sintoma é uma resposta ao encontro com o real: o sintoma pressupõe uma estrutura de discurso que determina a posição de gozo do sujeito, no mundo.

Em seguida, vimos que nem Freud, nem Lacan, rejeitaram as categorias diagnósticas psiquiátricas, mas o uso que delas fizeram foi norteado pelas noções centrais da psicanálise. Freud e Lacan tentam, primeiramente, extrair dos tipos descritivos a estrutura do sujeito, discernindo no discurso de cada paciente aquilo que organiza o modo de cada um lidar com a castração. Em segundo lugar, a psicopatologia e o diagnóstico psicanalíticos levam em consideração a transferência e a realidade psíquica, entendida como a realidade do inconsciente. Este último ponto significa que o diagnóstico não se faz a partir de oposições convencionais como o objetivo e o subjetivo, o mundo externo e o mundo interno, o observador e o observado, a realidade e a fantasia, etc.

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Os fenômenos não nos dão acesso direto à realidade empírica ou à verdade. O psicanalista, nesta perspectiva, não trabalha como um observador de fenômenos”, mas como “nomeador de um modo de incidência do sujeito na linguagem”, ou seja, o diagnóstico se dá “a partir da fala dirigida ao analista, logo, sob transferência, onde os fenômenos vão se orientar com referência ao analista como um operador e não como pessoa” (FIGUEIREDO & MACHADO, 2011, p. 3). Com isso evitamos, seja a intersubjetividade colateral à relação médico-paciente5, eu-outro, seja a ilusão de objetividade que orienta o empirista para a observação sistemática do comportamento e para a análise dos discursos.

Finalmente, pode-se dizer que, se por um lado a informação da clínica borromeana traz uma desierarquização dos modos de operação da estrutura, ela comporta o risco de sugerir certo continuísmo empirista que supõe um trânsito sem limites entre as estruturas subjetivas: é o que se verifica na noção de “espectros sindrômicos”, pela qual um deprimido se torna, ora bipolar, ora esquizofrênico, ora ansioso, e assim vice-versa, indefinidamente. A segunda clínica pode derivar, ainda, para uma tendência a encontrar nos sinais mínimos a evidência de uma psicose, ou de psicose não-desencadeada, o que pode deixar os neuróticos gravemente sintomáticos ainda mais confusos.

Isso, porém, nos remete a outro problema: se o que permanece é que há suplências, isto é, respostas sinthomáticas equivalentes entre si, que refletem o modo como cada sujeito se constitui de maneira singular, então, o que marca os limites entre as estruturas? Do fenômeno à estrutura, e para além da estrutura, que critério permaneceria como operador de mínimas distinções, operador de separação, demarcando um limite entre as estruturas? Em meio à aparente continuidade, o que viria a funcionar como um “divisor de águas”? Prospectivamente, certos autores mencionam que esse critério poderia residir na “diferença em relação a uma variação de maior ou menor consistência do Outro, como pontos-limite” (FIGUEIREDO & MACHADO, 2011, p. 20).

Essa última questão merecerá melhor desenvolvimento em nossas futuras pesquisas.

Referências Bibliográficas

5 “O sujeito não tem uma relação dual com um objeto que está na sua frente, é em relação a um outro sujeito que suas relações com este objeto tomam sentido e, da mesma feita, valor. Inversamente, se ele mantém relações com este objeto, é porque um outro sujeito que não ele tem também relações com este objeto e porque ambos podem nomeá-lo numa ordem diferente da do real. A partir do momento em que pode ser nomeado, sua presença pode ser evocada como sendo uma dimensão original, distinta da realidade. A nominação é evocação da presença e conservação da presença na ausência. [...] A mola dinâmica da análise é ele [o sujeito] falar de si mesmo. Os rasgões que aparecem, graças aos quais vocês podem ir para além daquilo que ele lhes fala, não constituem um extra do discurso, produzem-se no texto do discurso. É na medida em algo de irracional aparece no discurso que vocês podem fazer intervir as imagens em seu valor simbólico” (LACAN, 1954-1955/1987, p. 321).

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COUTO, Luis Flavio. Nosografia de Freud. Power Point. Belo Horizonte (MG), 2006. Inédito.

EY, Henri. Manual de Psiquiatria. São Paulo: Masson/Atheneu, 1978.

FIGUEIREDO, Ana C. & MACHADO, Ondina M. R. O diagnóstico em psicanálise: do fenòmeno à estrutura. Disponível em: www.scielo.br/pdf/agora/v3n2/v3n2a04.pdf.

Acesso em: 17/02/2011.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro II: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.

_____. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In:_____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1958/1998.

_____. O Seminário, Livro XXIII: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

PEREIRA, Mário E. C. A genética psiquiátrica e o projeto contemporâneo de uma psicopatologia científica. Disponível em: www.estadosgerais.org/encontro/iv/.../mario_eduardo_costa.ppt. Acesso em: 17/02/2011.

QUINET, Antonio. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

TENENBAUM, Decio. Psicopatologia geral e psicopatologia psicanalítica. Disponível em: www.tenenbaum.med.br/psicanalise/transparencias.pdf. Acesso em: 15/01/2011.

Ipatinga, MG, 28 de Julho de 2011.

ANEXOS

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ANEXO 1

Pequeno Cláudio: extrato clínico

M. reaparece no CAPS para consulta psiquiátrica e a assistente social pede “socorro”, pois ele esteve conversando com ela durante uma hora e “não fala uma palavra que tenha relação com outra”. Ela é a referência de M. no CAPS porque coordena um projeto de geração de renda com plantio de mudas, do qual M. deveria participar ativamente, mas o faz de modo inconstante (“É para quem está começando, mulheres principalmente, são novas, iniciantes. Não tem lugar para um administrador experiente...”). A assistente social pede que eu o atenda, aproveitando que ele compareceu para uma consulta quatro horas mais tarde, com uma psiquiatra do serviço.

“A vida está boa, eu estou bem. Mas o senhor dirá: Meu pequeno Cláudio ---- era assim que o filho de Pinochet me chamava, quando veio morar na minha casa, ele dizia ‘Meu pequeno Cláudio!’... mas, então, você pergunta, o que o Pequeno Cláudio está fazendo aqui? Eu estava falando com a Rosana que preciso resolver um problema com a minha conta corrente (mostra um recorte de papel onde estão impressos números de conta corrente e poupança, sem data), o Banco do Brasil me bloqueou, bloqueou a senha, dizem que esse CPF foi cancelado”. Indagado se não sentiria necessidade de um lugar onde se possa conversar com sigilo e respeito, diz que já tem essa pessoa, seu pai. “Alguns problemas tentaram me atrapalhar, depois do atentado contra a torre Eiffel, oh, não, as torres gêmeas... disseram que dei abrigo para Osama... eu sei, ele morreu, estou falando de após a morte, mas não foi bem assim... também fui perseguido depois do Tsunami no Japão, mas, na verdade, eu sou dono de sete REPRESÕES6 naquele lugar, são REPRESÕES que recebi de meu pai... tem também mais três sendo construídos no Rio Grande do Sul”.

“Eu ganhei a cidade de Ipatinga, fiz uma troca, dei Belo Horizonte e fiquei com a região de Monlevade até Teófilo Otoni. Quando eu morava em Coronel Fabriciano, foi preciso muito exorcismo para levantar os prédios necessários. Aquela ponte da divisa de Fabriciano e Timóteo, sabe aquelas FERRAGENS DE CONTENÇÃO dela, fui eu que construí com um exorcismo, foi preciso fazer muitos, a Assembléia de Deus de Fabriciano só se sustentou por causa das centenas de exorcismos que fiz. Aqui onde moro sofro de insegurança porque não sei que tipo de exorcismo eles fazem”.

6 Ele explica que REPRESÃO é um “muro alto de contenção”.

Page 15: Fenômeno estrutura e sinthoma

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Parece-nos inevitável associar os “represões” do pequeno Cláudio a uma corruptela, um derivado da “repressão” ou “recalcamento” (Verdrangung) freudianos, principalmente se relacionamos o “represão” à figura do pai (ele “recebeu” os represões do pai). Do mesmo modo, as “ferragens de contenção” poderiam configurar uma tentativa de equivalência entre sinthoma e Nome do Pai, numa “construção” de suplência, um nó protético, no delírio.