fechamento da avenida rio branco: a retomada do espaÇo pÚblico pelo cidadÃo
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TCC DO CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO EM PENSAMENTO POLÍTICO (UERJ)TRANSCRIPT
ESCOLA DO LEGISLATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (ELERJ)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ)
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
FECHAMENTO DA AVENIDA RIO BRANCO:
A DEVOLUÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO AO CIDADÃO
BRUNO COIMBRA MONTENEGRO
RIO DE JANEIRO
2010
2
BRUNO COIMBRA MONTENEGRO
FECHAMENTO DA AVENIDA RIO BRANCO:
A DEVOLUÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO AO CIDADÃO
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Escola do Legislativo do Estado do Rio de Janeiro (ELERJ) e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) como requisito para obtenção do título de Pós-graduação em História do Pensamento Político e Práticas Legislativas.
Orientador: Prof. Dr. Dário Silva
RIO DE JANEIRO
2010
3
Resumo
Recentemente, a prefeitura do Rio causou enorme polêmica na cidade ao
anunciar a execução do Projeto Rio Verde, o qual prevê, entre outras medidas,
o fechamento da Avenida Rio Branco e a transformação da via em um parque
urbano. Neste trabalho, proponho uma reflexão sobre a análise do contexto
histórico, além dos conceitos, desafios e possibilidades do projeto apresentado.
4
Introdução
A Avenida Rio Branco é a principal via de circulação de veículos no
centro do Rio de Janeiro. Calcula-se que cerca de 40 mil veículos, entre os
quais, 1.800 ônibus, de 85 linhas diferentes¹, carros de passeio e caminhões
trafeguem pela avenida diariamente, emitindo um grande volume de gases
poluentes na região. Sob a justificativa de aumentar a mobilidade urbana e
melhorar a qualidade de vida das pessoas que circulam pelo centro, a
Prefeitura desenvolveu o Projeto Rio Verde, que, entre outras ações, prevê o
fechamento da avenida para o tráfego de veículos e sua transformação em um
parque urbano de dois milhões de metros quadrados.
Em junho de 2010, a proposta esteve próximo de ser executada. A
prefeitura chegou inclusive a anunciar um dia de teste para o fechamento da
via, o que acabou não acontecendo. A falta de alternativas para o escoamento
do trânsito, a ainda incipiente política de transporte de massa ao centro da
cidade e a enorme polêmica causada com o anúncio do projeto²,
principalmente entre os comerciantes que trabalham na via, podem ter sido
responsáveis pelo suposto embargo da proposta.
Independentemente das conjunturas locais, o projeto Rio Verde vem ao
encontro dos conceitos de retomada do espaço urbano pelo cidadão e de
estímulo ao uso de transportes de massa limpos, ou seja, que não
_________________
¹ Números obtidos em matéria da revista Veja (ver bibliografia);
² Em enquete realizada com internautas do Globo Online, 50,24% deles se disseram
contrários ao fechamento da avenida. Participaram da votação 1509 leitores.
5
emitam gases poluentes. Dentro destes conceitos, a transformação de vias
com grande volume de tráfego em calçadões é uma das intervenções
existentes mais visíveis e tem se mostrado uma tendência nas principais
metrópoles do mundo. Cidades como, por exemplo, Nova York — onde se
proibiu o tráfego de veículos na Times Square, mais precisamente no trecho da
Broadway — e Londres — onde semelhante medida foi adotada na Oxford
Street — dão sinais de que países com grandes economias têm assimilado
este movimento. Mesmo sem o fechamento da Rio Branco, parte do Rio de
Janeiro já vivencia os efeitos dessa tendência desde a conclusão do programa
Rio Cidade, desenvolvido pela Prefeitura entre os anos de 1992 e 1996 e que
seguiu o mesmo conceito.
Não pretendo aqui esmiuçar as especificidades do projeto do
fechamento da Avenida Rio Branco, muito menos ater-me aos seus aspectos
arquitetônicos, até mesmo pelo fato de não ter conhecimento específico para
tal. Entretanto, entrei em contato com a prefeitura para ter acesso ao projeto, e
tive minha solicitação indeferida. O que, confesso, causou-me estranheza.
Procurei saber com eles, então, a razão da não viabilização do fechamento da
via e eles me disseram apenas que “o projeto está em fase de reavaliação, e
encontra-se parado na CET-RIO”. Dessa forma, cabe esclarecer, que as
informações a respeito do projeto, nas quais me baseei para o
desenvolvimento dos argumentos explanados nessa monografia, as obtive
principalmente através de publicações da imprensa, em matérias de sites e
jornais.
6
1. O urbanismo no Rio até o fim do século XIX
Para falar sobre a Avenida Rio Branco e dimensionar os impactos
práticos e simbólicos que o seu fechamento pode acarretar, é preciso entender
o contexto no qual ela foi concebida. Para isso, sugiro que analisemos como se
deu a ocupação do Rio de Janeiro e as intervenções urbanísticas das quais a
cidade foi alvo desde sua fundação (1565) até o governo Pereira Passos
(1902-1906), quando foi realizada a abertura da via.
Até o fim do século XIX, podemos dividir a história do urbanismo do Rio
em cinco fases: abertura e fortificação (1565-1763), higienização (1763-1808),
abertura ao mundo (1808-1822), dinamização, através do desenvolvimento do
transporte (1822-1892) e planejamento (1828-1830). Já no início do século XX,
tivemos o governo de Pereira Passos (1902-1906), que pode ser classificado
como uma fase de modernização.
Erguida entre os morros Pão de Açúcar e Cara de Cão, a cidade teve
como principal função, até o século XVII, a de entreposto comercial, servindo à
extração de recursos naturais e à proteção do território. Pode-se dizer que foi o
café que impulsionou primordialmente a ocupação da orla e das áreas da
Candelária, São José, Sacramento, Santa Rita e Santana, ou seja, o que seria
hoje o centro e a zona portuária do Rio, onde foram erguidos armazéns para a
estocagem do produto.
O crescimento da mineração como atividade econômica e o
estabelecimento do Rio como o principal porto exportador do ouro extraído nas
Minas Gerais estimularam o surgimento de novos acessos da região
mineradora ao Rio de Janeiro. Como consequência, verificou-se uma maior
7
fixação de pessoas na cidade, assim como a implementação dos primeiros
melhoramentos públicos, como o aterro de alagadiços e as construções do
Aqueduto da Carioca, de chafarizes, largos e do Passeio Público.
“O primeiro grande impulso do Rio de Janeiro, em termos de
vitalidade urbana, está articulado ao auge e à decadência da
mineração em Minas Gerais. Desde a construção do caminho
novo, por Garcia Rodrigues Pais, no início do séc. XVIII, o Rio
de Janeiro tornou-se o porto de escoamento da produção das
minas e de importação das mercadorias estrangeiras
destinadas aos populosos centros mineradores (...) O capital
mercantil, vinculado à metrópole, não tinha maiores
compromissos com a cidade, exceto aqueles indispensáveis à
circulação das mercadorias que por ela transitavam”
(Benchimol, 1992, p. 21)
1.1 A chegada da Família Real e a explosão demográfica no Rio
Com a chegada e a fixação da Família Real no Brasil, em 1808, e a
subsequente elevação do Rio de Janeiro da condição de colônia para a de
capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, a cidade, sob diversos
aspectos, sofreu grandes transformações. Era preciso adequá-la à corte e aos
cerca de 15 mil portugueses que a acompanharam em sua transmigração. Uma
série de melhoramentos, entre os quais, a intensificação do processo de
higienização da cidade, a abertura dos portos às nações amigas e a construção
de bibliotecas, teatros, escolas e casas, tanto para moradia, quanto para o
8
comércio, ocasionou um aumento do fluxo de migrações de diversas partes do
território brasileiro para o Rio de Janeiro. Haja vista que, em menos de duas
décadas, a população duplicou, e, em 1840, chegou a 135 mil habitantes3.
Com a abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional, também
um fluxo maior de estrangeiros passou a transitar pelo país. Segundo
Benchimol (1992), a análise dos relatos dessas pessoas mostra como a
precariedade das condições sanitárias da cidade saltava aos olhos do
estrangeiro. De acordo com autor, muito visitantes chegavam a comparar o Rio
a uma cidade árabe da época, em virtude de sua intensa atividade comercial e
seu enorme problema de insalubridade.
A proclamação da Independência, em 1822, e toda a riqueza produzida
com a expansão da indústria cafeeira, diferentemente do que foi verificado com
a chegada da família real, não produziram transformações qualitativas na
capital do Império. No espaço urbano, ainda prevaleciam as ruelas repletas de
cortiços insalubres, focos dos “temíveis” miasmas4. Nesta época, no entanto,
podemos destacar a implantação de meios de transporte mecânicos — aqui se
entenda bondes e trens — como principal responsável pela expansão do
perímetro urbano para os bairros de Leblon, Ipanema, Copacabana,
Laranjeiras Botafogo, São Cristóvão, Tijuca, que passaram a acomodar cerca
de 200 mil pessoas.
_________________
3 BENCHIMOL, 1992, 1 ed.
4 Supostas substâncias que viviam em ambientes fechados apontadas como
responsáveis por todas as enfermidades do homem (DE CARVALHO, 2010)
9
No fim do século XIX, a cidade já contava com 500 mil habitantes, mas
ainda não possuía esgotamento sanitário. Grande parte da população do
centro vivia em cortiços superlotados, em péssimas condições de higiene, o
que só agravava o estado calamitoso da saúde na capital. Foi este cenário
encontrado pelo Prefeito Pereira Passos, na época de sua posse, que o
convenceu a implantar uma das maiores reformas da história do urbanismo
carioca.
10
2. A Reforma Pereira Passos e a abertura da Avenida Central
A necessidade de reorganizar o espaço urbano às novas e incessantes
demandas do mercado, no fim do século XIX e início do século XX, acarretou
na maior transformação urbanística da história da cidade do Rio de Janeiro até
então: a Reforma Pereira Passos. Segundo Abreu (1997), o crescimento
acelerado da economia brasileira, o aumento do volume de exportações e a
maior inserção do país no contexto capitalista internacional exigiam uma nova
organização do espaço urbano.
Para isso, Passos procurou remodelar a cidade baseado no tripé
saneamento, mobilidade e embelezamento, com obras e equipamentos
públicos que, segundo o livro Planos Urbanos (2008), induziram a população a
mudar seus hábitos. Com o objetivo de superar o modelo colonial escravista
que imperou na cidade durante séculos, Passos, em um trabalho de
complementação às iniciativas federais, estabeleceu uma gestão de governo
que teve como objetivo tanto a execução de várias obras, como a
descentralização administrativa e a edição de posturas municipais, fixando
critérios de uso do espaço urbano — público e privado —, tomando como
modelo experiências executadas no exterior.
As ações do governo municipal buscaram claramente o ordenamento
urbano. Pereira Passos queria a todo custo por fim à alcunha de ‘capital da
febre amarela’5, que a cidade ganhara, para transformá-la no símbolo de um
__________________
5 BENCHIMOL, 1992, 1 ed.
11
novo país. Para isso, o funcionamento dos quiosques existentes na cidade, os
quais comerciavam nas calçadas diversas mercadorias como café, cachaça,
broa de milho, lascas de bacalhau, foi restringido. Pode-se dizer que a
repressão a este tipo de atividade foi o primeiro impacto na relação do carioca
com a rua desde o início da colonização do Rio de Janeiro, e que, a partir daí,
a permanência do cidadão nas calçadas, em parte fruto do convívio entre
esses comerciantes e os consumidores, se viu reduzida.
O prefeito tinha um problema a resolver e identificou no cidadão o
responsável por todas as mazelas da saúde pública. A solução foi retirá-lo da
rua, primeiramente através da negação de costumes locais, para depois
restringir-lhe a permanência no espaço urbano.
2.1 A Abertura das ruas, a favelização e êxodo
O aumento da movimentação comercial do porto da capital federal
tornava imperativa uma reestruturação do espaço urbano para facilitar e
agilizar o escoamento de homens e, principalmente, mercadorias pelo próprio
centro ou em direção às regiões norte e sul da cidade. Com o intuito de
melhorar o aspecto das vias de circulação e o escoamento das águas pluviais,
considerado um ponto crítico para o desenvolvimento da cidade devido às
inundações, Pereira Passos determinou o recuo das novas edificações, para o
nivelamento diferenciado entre calçadas e ruas, e regulamentou o transporte
de cargas. Visando adequar o espaço urbano à indústria automobilística, ainda
incipiente no país, Passos aplicou calçamento asfáltico em diversas ruas do
12
Centro e de outros bairros, sendo este o primeiro registro de utilização no Brasil
deste tipo de material.
Para viabilizar a abertura e o alargamento das ruas, a prefeitura
desapropriou centenas de casas, dentre as quais, inúmeros cortiços
superlotados, cujos proprietários seriam ressarcidos com a venda dos terrenos,
certamente valorizados após as obras. A essa valorização dos imóveis
procedeu-se um aumento do preço dos aluguéis, o que acabou se tornando um
dos principais obstáculos para a permanência da população menos favorecida
no centro da cidade.
Sem alternativa, já que a prefeitura construiu apenas 120 casas para o
proletariado no centro6, parte dos moradores migrou para áreas periféricas —
aglomerando-se principalmente nos bairros da Saúde, Gamboa e Cidade Nova
—, para favelas próximas ao centro e para subúrbios distantes, onde foram
erguidas vilas operárias. Para Abreu (1997), apesar de a reforma, num primeiro
momento, ter trazido melhoramentos para a cidade de forma acelerada em
termos da aparência e saneamento, em longo prazo, contribuiu para a
estratificação espacial, entre bairros proletários e burgueses, ajudando a
consolidar uma estrutura núcleo/periferia que perdura até os dias de hoje.
2.1.1 A abertura da Avenida Central
Idealizada pelo governo federal e entregue ao prefeito e ao engenheiro
Paulo de Frontin para que fosse executada, a construção da Avenida Central
_________________
6 ABREU, 1997, 3 ed
13
foi sem dúvida a principal obra da reforma de Pereira Passos. Em termos de
transformação urbanística, a abertura da via foi com certeza a que mais
interferiu na vida do carioca no centro da cidade. Para a implementação da
obra, foram demolidas algo em torno de 600 casas, muitas com ocupações
numerosas7. As desapropriações custaram milhões ao Governo Federal e
contaram com uma legislação drástica para superarem a natural oposição da
população7.
Inaugurada no dia 15 de novembro de 1905, a Avenida Central foi criada
para fazer a ligação entre outras duas grandes obras — a Avenida Beira Mar
(pela administração Passos) e o novo porto do Rio de Janeiro (a cargo da
União) —, através de uma reta de 1.800 metros de extensão, por 33 de largura.
Compreendida do início do novo cais da antiga Prainha — região conhecida
atualmente como Praça Mauá — até a praia de Santa Luzia, perto do Castelo
— hoje Praça Marechal Floriano —, a Avenida Central só iria se tornar Avenida
Rio Branco em 1912, com a morte do Barão do Rio Branco.
O conjunto de desapropriações que possibilitou a abertura da via ficou
conhecido como “bota-abaixo”. A insatisfação popular diante as demolições só
foi estourar, no entanto, quando o cidadão sentiu o seu direito a inviolabilidade
do lar ameaçado com o lançamento de uma campanha de vacinação da
prefeitura, sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz. Sobre a Revolta da
Vacina, que não pretendo detalhar aqui, cabe ressaltar sua dimensão e o seu
caráter espontâneo. Por mais que, uma vez deflagrado, alguns grupos
específicos tenham tentado manipular a sua direção, o conflito teria sido
__________________
7 JUNIOR, 1988.
14
iniciado a partir de uma manifestação de jovens no Largo de São Francisco e
acabou se tornando a maior revolta popular da capital até então.
“O tiroteio penetrou a noite, a cidade já em parte às
escuras em conseqüência da quebra de lampiões. Ladrões se
aproveitavam para assaltar os transeuntes (...) No fim da noite,
a Companhia Carris Urbanos já contava 22 bondes destruídos.
A Companhia do Gás informava que mais de 100 combustores
tinham sido danificados e mais de 700 inutilizados. Entre os
feridos estavam vários populares e doze praças da polícia.
Havia pelo menos um morto. O Exército e a Marinha passaram
a guarnecer vários prédios e locais estratégicos”, (De Carvalho,
1987, p. 104)
Superada a resistência popular, a construção da Avenida Central
estimulou o desenvolvimento do comércio na região. As melhores casas foram
ali instaladas, assim como os principais jornais da época. Além disso, a nova
avenida recebeu clubes, hotéis e edifícios do Governo, como a Escola de Belas
Artes, a Biblioteca Nacional, o Supremo Tribunal, o Theatro Municipal e o
Palácio Monroe. Às margens da Avenida Central, foram erguidas construções
emblemáticas, formando um expressivo conjunto da “belle epoque”.
Com a abertura da Avenida Central, modificou-se não só aparência da
cidade como também os hábitos do carioca. O Rio de Janeiro perdeu seus
ranços coloniais, ganhando contornos europeizados, que lhes garantiram a
alcunha de ‘Cidade Maravilhosa’. As ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias,
15
antigos centros nervosos da então capital federal, perderam o seu glamour e a
sua importância.
“A vida carioca no fim do 19º século – Levantava-se
cedo, e o banho de mar era discreto (...) Os bondes
descarregavam gente e mais gente em S. Francisco, Largo da
Carioca, pois a vida amanhecia em boa hora: almoçava-se às
10h, o mais tardar às onze (...) Na Gazeta de Notícias, Ramiz
Galvão, Machado de Assis, colaboração de Eça de Queiroz,
principalmente Ferreira de Araújo, eram leves graciosos,
facetos (...) A política enchia o vazio nacional, (...) Na Rua do
Ouvidor, para a tarde, todo mundo se reunia. Do Largo da
Carioca e do Largo de São Francisco eram levas e mais levas
de transeuntes (...) Moças e rapazes se espremiam, sorriam,
namoravam, entravam no Café do Rio, para um café, no
Paschoal, para um sorvete (...) Flores ambulantes, em
pequenos buquês, nas encruzilhadas. Baleiros por toda a
parte. Croisis e fraques, gravatas vistosas, damas de cintura
fina, devant droit, anca para trás, vestido até os pés (...) A
avenida, o automóvel, o cinema, o ruge, a saia curta, o cabelo
cortado, a imprensa amarela, mudaram tudo...já não há
Ouvidor, nem meetings no Largo de São Francisco, nem
namoro de gargarejo, nem serenatas, mas há futebol, corridas,
Jockey Club, os Palaces, os chás, os dancings...(...) (Carvalho,
1988, p. 104).
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Para projetar as fachadas dos prédios a serem erguidos, foram
realizados concursos entre arquitetos brasileiros. Apesar de democrático, o
resultado é polêmico do próprio ponto de vista arquitetônico, uma vez que o
conjunto da avenida ficou muito eclético, sem um estilo padronizado, segundo
Junior (1988).
Em relação à crise de moradia causada pela demolição de casas e
cortiços para a abertura de ruas, a Avenida Central foi a obra da reforma
Pereira Passos que mais contribuiu para o agravamento desse quadro.
Calcula-se que cerca de três mil pessoas tenham ficado desabrigadas com a
abertura da avenida. Não é a toa que a obra é apontada não só como um dos
fatores preponderantes do adensamento das favelas nos morros da região,
mas também pelo êxodo de moradores do centro para subúrbios distantes.
Note-se que, após as obras da Reforma de Pereira Passos e as demais
intervenções urbanísticas dos governos que se seguiram, a população do
bairro da Candelária (centro da cidade) apresentou encolhimento, caindo de
4.454 moradores, em 1906, para 3.962, em 1920, um decréscimo de 11%. Este
número iria despencar ainda mais após a remoção do Morro do Castelo e do
bairro de Misericórdia, durante a administração do de Carlos Sampaio, em
1922.
A partir de 1912, a Avenida Central, agora já com o nome de Avenida
Rio Branco, passou por um processo de transformação. Os gabaritos dos
prédios foram aumentados, graças ao desenvolvimento da tecnologia do
concreto armado e uma grande flexibilização da legislação urbanística da
cidade ao longo de diversos governos. Tudo isso permitiu com que em pouco
17
tempo a via fosse ladeada em quase toda a sua extensão por grandes arranha-
céus.
A reforma de Pereira Passos, aliada a outras intervenções do Estado,
propiciou o contexto ideal para o surgimento do Modernismo. Foi nessa nova
fase, diante dos problemas gerados pelo crescimento desordenado, que o
urbanista francês Alfredo Agache, em 1930, elaborou o primeiro plano
totalizante para a cidade, o Plano Agache.
“O Rio de Janeiro que emergiu dos escombros da
cidade velha e das cinzas do grande motim popular era,
sem dúvida, uma cidade nova e diferente. Não a cidade
maravilhosa dos apologistas da reforma, posto que, ao
mesmo tempo em que resolvia algumas contradições do
herdadas do passado, essa política “racional” que se
propunha corrigir os erros da obra “espontânea” de
gestação da cidade, engendrou novas contradições e
agravou outras tantas. Bom exemplo disso é o
recrudescimento da crise habitacional nas áreas
deterioradas remanescentes do centro e em suas
imediações, assim como o aparecimento das favelas no
cenário do Rio de Janeiro” (Benchimol, 1992, p. 319)
18
3. A Rua como meio fundamental para a construção da identidade de um
povo
A partir da segunda metade do século XX, muitos autores passaram a
defender a rua como um espaço fundamental na formação da identidade de um
povo. De algumas décadas para cá, verificamos exemplos de intervenções
executadas sob esse conceito em cidades como Londres e Nova York, onde
podemos encontrar ruas cujos tráfegos de veículos foram interrompidos ou
restringidos em detrimento do melhor aproveitamento do espaço pelo cidadão.
No caso do Brasil, mais especificamente do Rio de Janeiro, também há
experiências bem sucedidas nesse sentido, dentre as quais podemos citar
como exemplo o Programa Rio-Cidade (1992-1996). Se Pereira Passos
responsabilizou o cidadão pela mazelas do Rio antigo, subtraindo-lhe a rua, o
Rio-Cidade reparou em parte a injustiça cometida no passado readequando o
espaço e entregando-o a quem de direito.
Nos últimos 60 anos, as metrópoles brasileiras passaram por grandes
transformações, em especial aquelas decorrentes do advento do automóvel, de
tal forma que, a partir de certo momento, obra pública passou a ser um quase-
sinônimo de obra rodoviária. Pouco a pouco, ruas (e calçadas) foram se
enchendo de carros e esvaziando de público. Tornaram-se desagradáveis,
sujas, inseguras, enfim, hostis ao cidadão-pedestre; simples locais de trânsito
ou passagem de residência para o trabalho e vice-versa. Desestimulou-se,
assim, a vontade de sair à rua. Daí o surgimento dos condomínios fechados,
clubes e shoppings centers.
19
O Significado atribuído às ruas na constituição da vida social nas
cidades é defendido por vários autores no mundo, entre os quais, Kevin Lynch
— que falou sobre a importância dos trajetos na formação da imagem da
cidade, ligando a leitura do espaço à formação da identidade do cidadão — e
Aldo Rossi. No Brasil, Carlos Nelson F. Santos, pesquisando o bairro do
Catumbi, foi quem observou que, sob certas condições, a rua pode virar casa;
e Roberto da Matta (1978), por sua vez, definiu os significados sociais dos
elementos rua e casa.
Para Da Matta (1987), a ‘casa’ e a ‘rua’ são categorias sociológicas para
os brasileiros. Não se tratam apenas de espaços geográficos, mas, sim,
entidades morais e culturais, por causa disso, capazes de despertar emoções,
reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e
inspiradas. Segundo Da Matta (1987), o mundo que chamamos ‘real’ é feito de
casa e rua. Assim sendo, é possível ler o Brasil tanto da perspectiva de um
elemento quanto do outro. Para ele, as leituras do ângulo da casa ressaltam a
pessoa e sua intensidade emocional é alta. Já as leituras pelo ângulo da rua
são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais.
Ao abordar os contraste entre a casa e a rua, Da Matta (1987) fala sobre
a diferença entre o comportamento apresentado pelo cidadão quando está
dentro de casa e o comportamento apresentado, quando está na rua. Dentro
de casa, o autor o classifica como o supercidadão, que quer ser ouvido,
respeitado. Quando fora de casa, o autor o vê como o subcidadão, muitas
vezes humilhado pelo Estado. Na rua, o responsável pela desordem é o
Estado. Assim, o cidadão comum, em geral, não sente qualquer necessidade
de contribuir com a ordem pública, já que, para ele, isso não é
20
responsabilidade sua, ao contrário do que ocorre em sua casa. É nesta
diferença de comportamento entre um espaço e o outro que o autor identifica a
dificuldade do cidadão em perceber que o Público é aquilo que é de todos, e
não aquilo que não pertence a ninguém. Segundo Da Matta (1987), para mudar
a forma com que o cidadão lida com a coisa pública, é preciso, antes de tudo,
recriar o espaço público de modo que ele reflita o mesmo ambiente caseiro e
familiar que o cidadão encontra dentro de casa.
A influência da casa e da rua, para Da Matta, ocorre até mesmo nos
diferentes discursos que encontramos. Para ele, entre os tecnocratas, os donos
do poder, o discurso é muito mais o da rua, com seus componentes legais e
jurídicos. “A fala dos subordinados é muito mais o idioma da casa e da família,
e em sendo assim é sempre vazado em conotações morais e de um apelo aos
limites morais da exploração social”, afirma Da Matta (1987)
Da Matta diz também haver sociedades em que os indivíduos são
fundamentais, enquanto, para outras, as relações é que o são. Para o autor
(1987), “o segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade
de estudar aquilo que está entre as coisas”. Apesar disso tudo, Da Matta afirma
que no Brasil a relação casa e rua se deu “de modo extraordinariamente
equilibrado”. O problema é que em algum momento, no Rio de Janeiro, assim
como na grande maioria das metrópoles do mundo, esse equilíbrio parece ter
sido desfeito.
21
3.1 O Programa Rio-Cidade
Na tentativa de restabelecer este equilíbrio, encontramos hoje no
mundo, como já foi dito, diversos exemplos de experiências bem sucedida
nesse sentido. No Brasil, atenho-me ao exemplo do programa Rio-Cidade.
Intervenção importante na busca pelo equilíbrio da vida social, o Rio-Cidade foi
criado baseado num plano de obras voltado para a reconstrução de espaços
públicos, incluindo a disciplina de usos e atividades e melhoria dos padrões
urbanísticos. De acordo com seus próprios idealizadores, o objetivo do
programa era “restituir aos cidadãos o direito à cidade, integrando objetivos
sociais econômicos e culturais”8. No livro ‘Rio Cidade, o urbanismo de volta às
ruas’, Cesar Maia, o então prefeito, diz que as obras daquele programa eram
“apenas o primeiro passo na direção de um futuro urbano que se anuncia mais
promissor, democrático, justo e humano”. Para o engenheiro responsável, Luiz
Paulo Fernandez Conde, o Rio-Cidade fez com que a população carioca
passasse a reivindicar espaços públicos ainda mais qualificados.
3.2 O Projeto Rio Verde e o fechamento da Avenida
Seguindo a mesma linha de pensamento, o Rio Verde talvez seja o
exemplo mais atual de projetos cujo um dos principais conceitos é a retomada
do espaço público pelo cidadão. Desenvolvida pela Prefeitura do Rio, a
proposta visa melhorias na acessibilidade ao centro e na qualidade de vida do
_________________
8 RIO-CIDADE, o urbanismo de volta às ruas, 1996
22
carioca. Entre as ações do projeto, o fechamento da Avenida Rio Branco e a
conseguinte transformação da via num grande parque urbano de dois milhões
de metros quadrados é sem dúvida a mais polêmica. Como já foi dito, estima-
se que cerca de 40 mil veículos, entre os quais, 1.800 ônibus de 85 linhas
diferentes, veículos de passeio, táxis e caminhões, circulem por dia em média
pela avenida, emitindo grande volume de gases poluentes na região. Cabe
esclarecer que o projeto não prevê o fechamento do trecho compreendido entre
a Praça Mauá e a Candelária, para não interferir no projeto de revitalização da
Zona Portuária.
3.2.1 Desafios e soluções para a execução do projeto
O maior desafio para a implementação do Projeto Rio Verde certamente
é a falta de alternativas para o escoamento do atual fluxo de veículos da via. A
prefeitura, aparentemente, no entanto, não vê esse grande volume do tráfego
como um obstáculo importante. Segundo o secretário de transporte Alexandre
Sansão, em matéria publicada pelo site O Dia Online, apenas 30% do tráfego
na via (ou seja, 12 mil veículos) são veículos de passagem9, e precisariam ser
escoados para outros acessos. Para isso, a prefeitura estaria pretendendo
construir, segundo matéria do Globo Online, mais dois mergulhões, a exemplo
_________________
9 O pesquisador Paulo Cezar Ribeiro, professor de Engenharia de Transportes da
Coppe/UFRJ, constatou, em contagem realizada em outubro de 2009, que, na parte da manhã,
passam por hora na Rio Branco 779 automóveis, 546 ônibus, 273 vans, 854 táxis e 26
caminhões. Nos horários de maior movimento, a Rio Branco recebe um ônibus a cada 11
segundos.
23
da Praça Quinze. Os acesso seriam construídos nas interseções da avenida
Rio Branco com as avenidas Nilo Peçanha e Almirante Barroso. A ideia é que
carros oriundos dessas vias usem as passagens subterrâneas a caminho da
Rua da Carioca e da Avenida Chile.
O restante do tráfego, composto por ônibus e, principalmente, táxis,
seria substituído, segundo a revista Veja, por transportes alternativos
sustentáveis. Entre as opções que estariam sendo estudadas pela prefeitura,
veículos elétricos de grande porte, esteiras e ecotáxis10.
O projeto prevê ainda a construção de pelo menos duas grandes
garagens no subsolo, para compensar a restrição ao tráfego na avenida e a
proibição do estacionamento na superfície. O número de vagas e os locais
destinados aos estacionamentos subterrâneos ainda estariam sendo
estudados, mas a Rua México e a Avenida Graça Aranha seria as vias mais
cotadas para recebê-los.
Segundo o secretário municipal de Urbanismo, Sérgio Dias, em matéria
publicada pelo Globo Online, a prefeitura irá exigir que o vencedor da licitação
para a construção do parque se comprometa com a manutenção de todo o
espaço. Em contrapartida, o concessionário teria o direito de explorar as
garagens e os serviços de carrinhos elétricos e ecotáxis10.
_________________
10 Bicicletas adaptadas para transportar passageiros
24
3. 2. 2 Os aspectos ambientais
Em relação à questão dos aspectos ambientais, fora os evidentes
benefícios que acarretariam ao centro da cidade uma diminuição expressiva no
volume de emissão diária de gases poluentes na região, há uma outra
abordagem em relação ao projeto, de cunho mais simbólico, porém não menos
importante, que não pode deixar de ser feita.
Há indícios de que o sistema de produção baseado no consumo,
adotado entusiasticamente pelos EUA após a segunda guerra mundial para
aquecer a economia, e copiado por grande parte mundo, esteja entrando em
colapso. Para se ter uma ideia, de acordo com a pesquisadora Annie Leonard
(2008), a população dos EUA, que representa 4% da população mundial,
estaria consumindo 33% dos recursos atuais do planeta. Segundo os seus
cálculos, a Terra precisaria ser cinco vezes maior caso todos os países
“decidissem” consumir no mesmo ritmo dos estadunidenses.
Leonard ressalta a influência da publicidade nesse processo e faz um
apelo em favor do consumo consciente. Segundo ela, estimulados pela
propaganda, consumimos muito mais coisas do realmente que precisamos. E
para pagarmos pelo o que consumimos a mais, trabalhamos, logicamente,
cada vez mais. Ela revela ainda que o ser humano ocidental não tem tão pouco
tempo livre — período no qual costumamos nos dedicar as coisas que
realmente nos fazem felizes — desde a época do período feudal.
E o pior é que, durante o tempo que nos resta, segundo Leonard, as
duas coisas que o homem ocidental mais faz é assistir televisão e ir às
compras. Este ciclo de consumo é descrito por Leonard de forma bastante
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pedagógica em um vídeo na Internet*. O ser humano trabalha mais, chega em
casa cansado e assiste à TV lhe dizer que a sua roupa não presta, o seu
cabelo não presta, que ele não presta e que a solução para isso tudo é ir às
compras. Vamos ao shopping, e acabamos tendo que trabalhar ainda mais
para pagar o que consumimos além da conta. Um comportamento
constrangedor, que, de fato, precisa ser revisto. É justamente neste ponto que
iniciativas como o projeto Rio Verde podem ser úteis. E é fácil de entender
como isso pode ser possível.
O carro é, sem dúvida, o principal símbolo de status da sociedade de
consumo. Restringir o acesso ao carro no centro comercial de uma cidade
como o Rio de Janeiro pode significar uma mensagem de negação ao sistema
vigente e tudo aquilo que ele prega. Valorizar o uso do transporte coletivo em
detrimento dos carros que, em grande parte das vezes, circulam com apenas
uma pessoa pelas ruas do centro, pode ser considerado um importante passo
nesse sentido.
Em outras palavras, enquanto na sociedade de consumo a
individualidade é valorizada, na sociedade sustentável devem predominar as
relações sociais. Enquanto na sociedade de consumo o tempo é visto apenas
como um fator determinante dentro do processo produtivo em busca otimização
da produção, na sociedade sustentável o tempo deve ser destinado
principalmente ao favorecimento e estreitamento das relações sociais. E é
exatamente a rua, nesse contexto, o principal espaço para que essas relações
se dêem.
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3. 2. 3 As possibilidades
A transformação do espaço da Avenida Rio Branco em um parque
urbano abriria margem para uma série de possibilidades visando à revitalização
do comércio no centro da cidade, ao contrário do que temem os comerciantes
que lá trabalham. Haja vista os famosos boulevards da Europa, onde, em
muitos deles, há quiosques que servem pratos e bebidas nos quais os
trabalhadores do centro, advindos de diversas partes da cidade, se encontram
após o serviço para relaxar e se confraternizar, movimentando ainda mais a
economia local.
Além disso, o projeto poderia estimular o turismo no centro da cidade,
com seus prédios públicos e igrejas históricos, uma vez que, na ausência dos
carros, seria mais circular pela principal via da região. Isso sem falar da
possibilidade de artistas de rua lançarem mão do espaço para apresentação de
seu trabalho.
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Conclusão
Longe de determinar a devolução definitiva do espaço público ao
cidadão, o fechamento da Avenida Rio Branco ao tráfego de veículos seria um
passo importante nesse sentido. Não só pelo valor simbólico, devido à
importância da via para a cidade, mas principalmente por permitir o convívio
diverso, haja vista o grande fluxo de pessoas advindas de várias partes do
município que circulam pelo local. Este convívio, já não tão breve quanto
aquele verificado na organização atual do espaço, ajudaria a romper o modelo
estratificado de ocupação Núcleo/Periferia, definido principalmente a partir da
reforma de Pereira Passos.
Em meio à polêmica que envolveu o anúncio do projeto neste ano, um
dos argumentos defendidos por aqueles que são contra a proposta é que não
há justificativa histórica para o fechamento da via, uma vez que, desde a sua
concepção, a abertura da antiga Avenida Central tinha como objetivo melhorar
a circulação urbana de homens e mercadorias no centro ou em direção às
regiões norte e sul da cidade. Ao pesquisarmos a origem da via, no entanto,
identificamos, pelo contrário, um débito histórico da avenida com o carioca,
tendo em vista que a sua abertura foi um dos principais fatores responsáveis
pela crise de moradia, amplamente abordada neste trabalho, e,
consequentemente, o aprofundamento da estraficação na organização do
espaço da cidade.
Além disso, a abertura da Avenida Central representou o fim da
convivência de milhares de moradores que historicamente ocuparam aquele
espaço de forma espontânea e, até então, a seu modo, contribuíram para a
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formação da identidade do povo carioca e brasileiro através de seu convívio. É
verdade que as condições sanitárias eram precárias e precisavam de solução.
Mas nada justifica o fato de a prefeitura ter deslocado essa população do seu
espaço de convivência, sem lhe oferecer alternativas similares, desprezando
assim uma importante contribuição para formação da identidade local (carioca).
Sob o ponto de vista econômico, a reorganização e o reaproveitamento
do espaço, concomitantemente à melhor exploração do potencial turístico e
cultural da região, poderiam multiplicar as oportunidades e contribuir para a
criação de novas atividades comerciais e o aquecimento das já existentes. A
preocupação de comerciantes localizados na via e adjacências de que o
fechamento da avenida iria prejudicar os seus negócios e desvalorizar os seus
imóveis não é, aparentemente, justificável. Isso porque, o volume de pessoas
que viajam ao centro de carro, seja para trabalhar ou em busca de serviços
e/ou mercadorias, não representa uma porcentagem significativa do volume
total de pessoas que circulam no centro diariamente. Além disso, com o
fechamento da via, grande parte das pessoas que vão ao centro de carro
poderia passar a fazê-lo através do metrô, sendo este, inclusive, um dos
objetivos do projeto Rio Verde.
Por falar da questão ambiental, verificamos aqui que a contribuição do
fechamento da Avenida Rio Branco para esse tema é mais importante do que
uma estimativa de potencial redução dos índices de emissão de gases
poluentes no centro da cidade é capaz de mensurar. Vimos aqui que a abertura
da avenida e, mais do que isso, a capacitação da via para receber um fluxo
cada vez maior de veículos, foram reflexos de uma política de estímulo do
29
consumo, fruto da rendição da político-econômica nacional à política de
consumo do capitalismo internacional. Diante do iminente colapso desse
sistema — caso, evidentemente nenhuma medida seja tomada — é natural que
toda a estrutura erguida para sustentá-lo aos poucos caia com ele, ou, o que é
mais provável, ao menos se modifique. É preciso estimular o consumo
consciente, em detrimento do comportamento que apresentamos hoje.
Vimos que na sociedade em que vivemos, vigora a lei da individualidade.
O valor do indivíduo, o seu status, é medido por aquilo que ele é capaz de
comprar, sendo o carro, o símbolo maior desse modo de vida. O produto maior
— considerando apenas os bens móveis — da valorização da individualidade
sobre a coletividade. E, de fato, a organização atual da cidade, de forma nada
democrática, privilegia o carro na distribuição do espaço urbano. Acontece que
nem todos têm carro. E o que é pior: o sistema “não permite” que todos tenham
carro, sob pena de ocorrer um colapso do tráfego. Ao retirarmos o carro das
ruas transmitimos a mensagem de que rejeitamos esse estilo de vida. Ao
devolvermos a avenida ao cidadão, estamos lhe dando a condição para que
usufrua desse espaço para restabelecer suas relações sociais.
Também discutimos aqui a relação entre a casa e rua, que, para o
brasileiro, hoje, se dá quase de forma antagônica. Se a casa é o lar, é onde o
cidadão vive em sua plenitude, ele vê a rua não como um espaço de todos,
mas, sim, como um espaço que não pertence a ninguém, e, nesse sentido, a
organização atual desse espaço só contribui para que ele o veja dessa forma.
A rua é um ambiente inóspito, onde ele deve se portar de acordo com a norma
da lei. Logo, a valorização da família em detrimento da comunidade se dá de
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forma cada vez mais clara, o que justifica comportamentos nos quais atitudes
como o nepotismo e o favorecimento aos indivíduos de seu núcleo sejam vistos
com algo não tão condenável e até mesmo natural. Assim sendo, é preciso o
quanto antes transformar o espaço público num lugar menos inóspito, o que iria
auxiliar no rompimento da barreira entre a casa e a rua, entre o que é família e
o que é a sociedade, transformando a rua numa extensão de sua casa.
Portanto, a respeito da proposta de fechamento da Avenida Rio Branco,
podemos concluir que, assim como é grande o desafio, também os são as
possibilidades. Tendo em vista os argumentos aqui desenvolvidos,
considerando que as alternativas apresentadas pela prefeitura para a
superação dos obstáculos sejam coerentes do ponto de vista técnico, tudo leva
a crer que a proposta é benéfica à população, além de ser perfeitamente
executável. Cabe apenas ao poder público — se um dia, de fato, a proposta
vier a ser implementada — elaborar a melhor forma de utilização desse espaço
e, ao cidadão acompanhar todo o processo e fazer valer as suas necessidades.
Afinal a rua é PÚBLICA, ela PERTENCE A TODOS NÓS.
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Referências
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32
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33
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