fazer cartaz de cinema

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS – UFPEL INSTITUTO DE ARTES E DESIGN – IAD ARTES VISUAIS BACHARELADO EM DESIGN GRÁFICO Trabalho de Conclusão de Curso Design e Imaginário: Os projetos de cartaz para filmes do subgênero realismo fantástico Eduardo Harry Luersen Pelotas/RS 2010

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Page 1: Fazer Cartaz de Cinema

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS – UFPEL INSTITUTO DE ARTES E DESIGN – IAD

ARTES VISUAIS BACHARELADO EM DESIGN GRÁFICO

Trabalho de Conclusão de Curso

Design e Imaginário: Os projetos de cartaz para filmes do subgênero realismo fantástico

Eduardo Harry Luersen

Pelotas/RS 2010

Page 2: Fazer Cartaz de Cinema

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Eduardo Harry Luersen

Design e Imaginário: Os projetos de cartaz para filmes do subgênero realismo fantástico

Monografia apresentada ao Instituto de Artes e Design ao curso de Artes Visuais bacharelado em Design Gráfico da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Design Gráfico.

Orientador: Guilherme da Rosa

Pelotas/RS 2010

Page 3: Fazer Cartaz de Cinema

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Resumo

Esta pesquisa busca agregar conhecimento acerca da relação entre design

e imaginário e aproximar ambos, a partir do estudo de cartazes para filmes do

subgênero realismo fantástico, utilizando como suporte metodológico de

trabalho a sociologia compreensiva de Michel Maffesoli. Com esta base teórica,

propõe-se criar um cartaz e um teaser para um filme deste estilo, adaptado

hipoteticamente do conto literário Uma Voz Dentro da Noite, de William Hope

Hodgson.

Palavras-Chave: Imaginário, design, cinema, fantasia

Page 4: Fazer Cartaz de Cinema

3

Abstract

This research proposes to gather knowledge about design and the

imaginary and to relate them both through the studies of movie posters for the

fantastic realism genre, supported by Michel Maffesoli’s methodological

approach, the comprehensive sociology. After achieving the objectives of the

theorical research, it is proposed to design a movie poster and a teaser for a

fantastic realism movie, hypothetically adapted from William Hope Hodgson’s

tale The Voice in the Night.

Keywords: Imaginary, design, movies, fantasy

Page 5: Fazer Cartaz de Cinema

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Sumário

1. Apresentação do Objeto......................................................................... 06

2. Fantasia e Esboços para um Subgênero “Realismo Fantástico”........... 12

3. Imaginário e Design............................................................................... 17

4. Opções Metodológicas........................................................................... 24

5. Cartazes e o Imaginário......................................................................... 27

6. Prática.................................................................................................... 41

7. Conclusão.............................................................................................. 49

8. Referências Bibliográficas..................................................................... 50

Anexo 1: Exercício prático: Teaser para Uma Voz Dentro da Noite......... 52

Anexo 2: Exercício prático: Cartaz para Uma Voz Dentro da Noite.......... 53

Page 6: Fazer Cartaz de Cinema

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Lista de Figuras Figura 1: Mirrormask: A Máscara da Ilusão. P.9 Figura 2: O Labirinto do Fauno. P.10

Figura 3: Representação de uma bacia semântica. P.19

Figura 4: Representação de um reservatório/motor. P.20

Figura 5: Representação da participação afetiva. P.23

Figura 6: Cena de Ofélia encontrando a entrada para o Labirinto. P.28

Figura 7: Cena de Ofélia encontrando a entrada para o Labirinto. P.28 Figura 8: Cenário animista de Wiene. P.29 Figura 9: Uso de tons desbotados no filme de Dave McKean. P.31 Figura 10: Algumas das tantas personagens surreais de Mirrormask. P.31

Figura 11: Criaturas sombrias do filme de Del Toro. P.32 Figura 12: As figuras deformadas de Dali postas ao lado de algumas de Mirrormask. P.33

Figura 13: O anjo do lar, de Max Ernst, mostra mais um ser híbrido. P.33 Figura 14: Um dos desenhos de Helena. P.34 Figura 15: Tabela comparativa das protagonistas. P.35 Figura 16: Os tiranos identificados. P.36 Figura 17: Os tiranos identificados. P.36 Figura 18: Representação do Chtulhu, personagem de H.P.Lovecraft. P.37 Figura 19: A imagem de Baphomet, do ocultista Eliphas Levi. P.37

Figura 20: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38 Figura 21: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38 Figura 22: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38 Figura 23: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38

Figura 24: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42 Figura 25: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42

Figura 26: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42

Figura 27: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42

Figura 28: A lua, o céu, alguns liquens e o barco, algumas das imagens utilizadas na

fotomanipulação do cartaz. P.46

Figura 29: A Espinha do Diabo. P.47

Page 7: Fazer Cartaz de Cinema

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1. Apresentação do objeto

“O cinema falado me ensinou I Love you, i Love you, te amo

Marlon Brando poderoso Meu chefão, cinemas Colby”

(Prósper Albanese / Tico Terpins, Joelho de Porco)

De que são feitas as coisas que percebemos do início do nosso dia até o

momento de nos deitarmos para dormir? Sobre a influência midiática à qual

está exposta a população dos Estados Unidos, tomando o exemplo de uma

nação que é uma espécie de “pulmão” que emana pulsões informativas

constantemente a todo o globo, estima-se que cada indivíduo esteja submetido

a mais de 1500 emissões publicitárias por dia, sob formas ostensivas,

disfarçadas ou subliminares1

Por meio de nossos sentidos, captamos estas marés de informação

composta que giram em fluxo constante nas ruas, no ambiente em que

vivemos, e que estão por toda a parte, em ressonância. Bebemos todos da

afluência da comunicação, ao mesmo passo em que sintetizamos a

informação, atribuímos significado, seja de forma voluntária ou não.

, dado referente ao ano de 1993, quando a

internet ainda representava uma importância muito menor no dia-a-dia do

americano do que hoje, por exemplo.

Algumas partes dessa captação se relacionam conosco de uma forma

pessoal, íntima, afetiva, de acordo com nosso trajeto antropológico. Este trajeto

consiste em ser, segundo definição de Gilbert Durand: “a incessante troca que

existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as

intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002,

p. 41).

Diante de tais definições, podemos especular que o comunicador visual,

bem como o social, é um mediador na relação das possibilidades do campo

imaginal com a sociedade. Essa relação se expande de maneira ainda mais

desenfreada através de meios de comunicação que transcendem fronteiras

territoriais, em casos como o do cinema, e é ainda mais latente na internet. São 1 EMERY, Edwin, AULT, Philip e AGEE, Warren. Introduction to Mass Communication. In: VIRILIO, Paul. A Arte do Motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

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formados circuitos de informações inapreensíveis, porém decodificáveis. Isso

tudo assume uma perspectiva imaterial de não-coisa (FLUSSER, 2007, p.54). As informações que hoje invadem nosso mundo e suplantam as coisas são de um tipo que nunca existiu antes: são informações imateriais. As imagens eletrônicas na tela da televisão, os dados armazenados no computador, os rolos de filmes e microfilmes, hologramas e programas são tão “impalpáveis” (software) que qualquer tentativa de agarrá-los com as mãos fracassa. (FLUSSER, 2007, p.54)

Segundo Flusser, essa nova configuração de ambiente está impregnada

nas gerações atuais e estará nas futuras, trazendo um estado de necessidade

de não coisas. Cada vez menos o homem interessa-se em possuir coisas, ao

passo que cada vez mais ele quer consumir informação. Esta noção, na

prática, pode ser verificada através do uso dos meios de comunicação

supracitados, por exemplo.

Uma particularidade, ainda assim, serve para dar consistência ao meio

do cinema em relação ao poder de interação com o imaginário das pessoas: a

afetividade. O cinema é capaz de sensibilizar, tocar às pessoas de uma forma

sutil, incitar, estimular, seduzir. O imaterial transpassa a tela, para diluir-se ao

imaginário do espectador.

O design pode se apresentar ao cinema de diversas maneiras. A direção

de arte, de fotografia, ou mesmo a criação de peças promocionais do filme,

como cartazes, teasers e outdoors, podem estabelecer o link entre a produção

cinematográfica e o imaginário sustentado coletivamente. A construção de

ambientes, cenários, personagens, irá contribuir para levantar a ponte entre a

atmosfera do filme e o espectador. Além disso, o cartaz e as peças gráficas

criadas para promoção do audiovisual poderão ser a entrada mais simples do

sujeito, para mergulhar na atmosfera visual desta produção.

Este trabalho pretende investigar as relações do design com o

imaginário através da linguagem visual dos cartazes de filme da vertente do

realismo fantástico. Para isso, faz-se pertinente também uma aproximação

sobre esta vertente cinematografia, cujo termo, realismo fantástico, é uma

apropriação de um movimento literário popularizado nas últimas décadas do

século XX, na América Latina, que se caracteriza substancialmente por uma

combinação da realidade e da fantasia. Alguns autores expoentes do estilo são

Gabriel García Marquez e Jorge Luis Borges.

Page 9: Fazer Cartaz de Cinema

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Cabe o estudo específico dessa vertente, também para explorar os

repertórios visuais fantasiosos e oníricos, típicos desse subgênero. Interessa

examinar os aspectos recorrentes na linguagem visual dos filmes dessa

corrente cinematográfica, na busca de elementos que apresentem alguma

identificação entre as produções dentro desse segmento, servindo como

mecanismo para despertar a atenção dos espectadores que apreciam esta

categoria de obra sequencial.

Após estas definições do realismo fantástico e a sua localização dentro

do mundo do cinema, o estudo se direciona ao imaginário e como ele dialoga

com o design. Nessa etapa, serão abordadas diversas noções sobre o

imaginário pertinentes à pesquisa, lançando-se um olhar sobre algumas

noções, entretanto, sem o objetivo de problematizá-las. Cabe aqui a

apresentação de teorias como a das bacias semânticas (DURAND, 2004,

p.103), que dão conta de um olhar sobre como as mensagens são

decodificadas a partir de significados atrelados ao repertório de cada indivíduo

ou grupo. As bacias semânticas serão relacionadas ao fenômeno da

participação afetiva. Edgar Morin (2008, p.148), em seu texto A Alma do

Cinema, explica como a pretensa “magia” do audiovisual surge a partir de um

mecanismo de projeção-identificação.

Observar a relação entre cultura e design, sob o olhar das bacias

semânticas, serve ao propósito de ilustrar a imanência das produções

audiovisuais em nosso imaginário e, conseqüentemente, em nosso cotidiano.

Para investigar a relação do imaginário com o design, tendo como recorte o

projeto de cartazes para filmes fantásticos, também se faz necessário lançar

um olhar para observar as noções de reservatório/motor, mencionadas por

Juremir Machado da Silva (2006, p.12) em seu livro Tecnologias do Imaginário,

de maneira a ilustrar as relações do emissor com as mensagens que este

compõe. Interessa ao estudo relativizar o que Durand discute a partir de Jung,

sobre o inconsciente coletivo, visando pontuar o caminho da mensagem entre

emissor e receptor, e sua confluência na cultura.

De posse do embasamento teórico apresentado, serão estudadas as

peças gráficas de dois filmes que se enquadram no subgênero do realismo

fantástico. A análise formal dos cartazes, sob o ponto de vista do design,

comporá a pesquisa, entretanto não se tornará a parte central do estudo. É

Page 10: Fazer Cartaz de Cinema

9

importante analisar não apenas as peças, mas também a esfera da linguagem

visual dos filmes, com o objetivo de relacionar o design a partir das

perspectivas do imaginário, valorizando a existência da peça como um convite

ao espectador.

A escolha foi feita de forma a selecionar filmes com uma visualidade

onírica instigante, com semelhanças e diferenças entre eles possíveis de

análise a partir dos conceitos estudados sobre o imaginário.

Os filmes em questão, a partir dos quais serão feitas as análises são os

seguintes: Mirrormask: A Máscara da Ilusão (2005), sob direção do designer

Dave McKean, com roteiro do seu companheiro de trabalho de longa data nos

quadrinhos, Neil Gaiman. Este possivelmente seja o filme com maior incursão

no tema da fantasia entre dos eleitos e, torna-se um objeto de interesse a

parte, por apresentar um profissional com experiência no design gráfico, na

função de diretor.

Figura 1: Mirrormask: A Máscara da Ilusão

O outro filme a ser observado no estudo é o Labirinto do Fauno (2006),

sob a direção de Guillermo del Toro. Este foi selecionado por ter influência bem

mais direta do movimento literário do realismo fantástico latino de meados do

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século XX, e concentrar também grandes esforços no que compete à

expressão visual. O Labirinto do Fauno possui ainda um diferencial bastante

evidente em relação à outra escolha, o fator de admitir maiores tendências do

suspense.

Figura 2: O Labirinto do Fauno

Dentre as diferenças na linguagem visual abordada nos cartazes, busca-

se também encontrar variáveis de acordo com o teor do filme, encontrando

nestas peças referências à faixa etária dos públicos, preferências estilísticas,

identificação pessoal, que apelem à sedução, um convite a “participar” do

imaginário do filme. É importante lembrar que, durante a análise, as peças não

podem ser dissociadas dos filmes em questão, pelo interesse da pesquisa

voltar-se justamente ao imaginário comum que forma-se a partir dos dois

ambientes: o gráfico e o fílmico.

Como atividade prática, propõe-se a criação de um teaser 2

2 Teaser é uma técnica utilizada para chamar a atenção da audiência de forma a provocar a curiosidade, a atrair para a grande revelação que acontecerá a seguir, nos próximos capítulos

e um cartaz

para um filme hipotético, baseado em uma obra literária que apresente

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algumas características recorrentes do realismo fantástico, numa tentativa de

demonstrar a concepção de um ambiente imaginal a partir de uma simples

peça bidimensional. A obra em questão é o conto Uma Voz Dentro da Noite,

escrito em 1907, pelo escritor inglês William Hope-Hodgson. Será considerado

o caminho antropológico do designer através deste estudo, refletindo essa

experiência no projeto, apresentando o cartaz como peça introdutora ao

ambiente visual do objeto maior, a obra audiovisual.

A partir deste estudo, objetiva-se então observar a relação entre

imaginário e design a partir da prática projetual, ponderando a maneira como o

imaginário de uma obra infere sobre o designer responsável no processo

criativo. Buscar-se-á a ligação entre os temas tendo em vista os repertórios

estéticos e culturais averiguados a partir de cada obra, esboçando algumas

possibilidades da bacia semântica de onde bebem os designers em cada uma

das peças.

Concomitantemente, é abordada a maneira como linguagens visuais

oníricas e surreais são expressas na proposição dos projetos de cartazes para

filmes de realismo fantástico, abordando o conhecimento construído de posse

do mapeamento de elementos de recorrência desta linguagem dentro das

peças gráficas estudadas. Com isso também pode ser observada, em certa

medida, a forma como o imaginário do filme se conecta ao cartaz, através da

estética e linguagem visual.

do anúncio. Seja na próxima página de uma revista, no próximo outdoor de uma loja, ou no comercial de algum programa, etc. No caso específico da produção cinematográfica, irá anteceder ao cartaz, geralmente indicando alguma pista sobre o filme.

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2. Fantasia e esboços para um subgênero “realismo fantástico”

Na busca por um recorte mais específico deste trabalho, o estudo volta-

se a gêneros cinematográficos que possuam componentes visuais que possam

emprestar às dimensões do paralelo entre design e imaginário uma fonte ampla

para pesquisa. Assim, a pesquisa se detém ao gênero de fantasia, pelo papel

que o design desempenha neste tipo de produção, pensando no aspecto

criativo na concepção de ambientes, criaturas e situações que não existem no

concreto. Para a composição dessa conjuntura, há de se munir de uma

perspectiva muito mais imaginal, subjetiva, do que material e objetiva.

Pensando que a relativização de elementos para observação e análise

em uma esfera tão ampla quanto o gênero fantasia poderia gerar resultados

por demais desenlaçados e incongruentes, foi necessário recortar mais o tema.

Dessa forma, foi pesquisado um subgênero contendo as características

recorrentes ao cinema de fantasia que interessavam a esta pesquisa,

encontrando-se o chamado “realismo fantástico”.

Verifica-se como característica do realismo fantástico o conteúdo de

elementos mágicos ou fantásticos ocorrentes muitas vezes sem explicação,

bem como a presença do sensorial para a apreensão da realidade. O tempo

pode passar por um processo de dissociação racional, enfrentando uma

temporalidade cíclica ou mesclada. O cotidiano transforma-se, a partir da

inclusão de experiências sobrenaturais ou fantasiosas pelas personagens no

trânsito da história.

Este subgênero da fantasia possui uma ampla produção literária,

entretanto no cinema não se chega a formar um consenso quanto à adoção do

termo para rotular filmes. Contudo, baseado nas noções sumárias, nos

fundamentos de narrativa, linguagem e descrição de elementos de recorrência,

é possível aplicar a alcunha ao objeto selecionado em caráter analítico para

este trabalho.

A expressão realismo fantástico, na literatura, foi empregada

primeiramente para definir a obra do escritor Jorge Luís Borges (O Aleph,

História Universal da Infâmia, Ficções) (CAMARANI, 2008, p.1). Utiliza-se na

crítica muitas vezes também o termo “realismo mágico” para se referir ao

mesmo subgênero. Esta corrente se desenvolveu na América Latina, durante o

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século XX e, além dos livros de Borges, já foram classificadas dessa forma

algumas obras de Gabriel Garcia Marquez (Cem Anos de Solidão, de 1967) e

Júlio Cortázar (Bestiário, Casa Tomada, de 1977).

O realismo fantástico, no circuito latino-americano, em meados do

século passado, se desenvolveu como produto de duas visões que conviviam

na América hispânica, sobretudo: a cultura da tecnologia e a cultura da

superstição. Ele pode ser definido como a preocupação estilística e o interesse

de mostrar o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum (CARPENTIER,

2007, p.6). Ainda procurando definir um campo mais restrito para o fantástico, torna-

se importante a obra Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov.

Nela, o autor apresenta algumas noções sobre o subgênero estudado e relata

que certamente, o realismo fantástico pertence à literatura fantástica. Porém,

no realismo fantástico, o argumento é sempre um fato passível do real, ao qual

se agrega um ingrediente ilusório ou fantástico (TODOROV, 2007, p.62). Este é

um dos principais aspectos que serve para diferenciar o subgênero do gênero

maior.

Na literatura fantástica em geral, incluindo o estilo em questão, as

narrativas sofrem a ocorrência de fatos inconcebíveis, inexplicáveis e surreais

que produzem uma grande sensação de estranhamento no espectador.

Algumas vezes, essa atmosfera irreal é meramente alegórica, ou seja, através

do inverossímil, se faz uma alusão a algum aspecto da realidade concreta.

Uma característica importante que ajuda a obter uma definição do

fantástico é a hesitação do leitor entre uma explicação natural e uma

sobrenatural. No fantástico, o evento sobrenatural não é completamente aceito,

nem explicado pelas leis da razão ou da natureza, sendo caracterizado,

principalmente, pela dúvida sobre a autenticidade dos eventos relatados

(TODOROV, 2007, p.83). É preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem. (TODOROV, 2007, p.38)

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O realismo fantástico repercutiu. No Brasil, são muitos os expoentes na

corrente literária e cinematográfica. O romancista Ignácio Loyola Brandão, com

obras como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), é exemplo da

mistura de alguns elementos fantásticos com outros de uma tradicional

distopia. Érico Veríssimo em Incidente em Antares (1971) também demonstra

influências do subgênero estudado. Lygia Fagundes Telles é mais uma autora

que possui produção realista-fantástica. Seu conto As Formigas (1978)

inclusive recebeu uma adaptação livre para a grande tela no ano de 2004, sob

direção de Verônica Guedes. Em O Pirotécnico Zacarias (1974) e histórias de

Contos Reunidos (2005), Murilo Requião também apresenta características do

realismo fantástico.

Além dos autores do movimento na América Latina, há alguns escritores

mundo afora que já continham uma produção que poderia, posteriormente, ser

encaixada nesse estilo. Em geral, autores conhecidos da literatura fantástica

como Edgar Allan Poe (A Máscara da Morte Escarlate, de 1842 e O Gato

Preto, de 1843), no início do século XIX, e Franz Kafka (Metamorfose, de 1912)

e Howard Philips Lovecraft (Dagon, de 1917, O Chamado de Chtulhu, de 1926,

O Caso de Charles Dexter Ward, de 1927), de produção na primeira metade do

século XX, já escreveram contos que poderíamos classificar segundo o viés do

realismo fantástico.

H.P. Lovecraft, conceituado escritor estrangeiro no gênero de terror,

aborda teoricamente algumas noções da literatura fantástica que podem ser

interessantes para tangenciarmos ao design no momento da concepção de

peças promocionais para itens do gênero da fantasia. Segundo ele, a

atmosfera é fundamental para a imersão do leitor no conto, questão que será

abordada no capítulo posterior sobre Imaginário e design. No caso de

Lovecraft, por ser um contista que mescla o fantástico ao terror, essa atmosfera

teria de conter o medo como fator preponderante: A atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério definitivo de autenticidade (do fantástico) não é a estrutura da intriga, mas a criação de certas impressões. (...) Por tal razão, devemos julgar o conto fantástico nem tanto pelas intenções do autor ou pelos mecanismos da intriga, mas sim em função da intensidade emocional que provoca mesmo em sua parcela menos mundana. (...) Um conto fantástico funciona se faz com que o leitor experimente em forma profunda um sentimento de temor e terror,

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a presença de mundos e de potências insólitas. (LOVECRAFT, 2006, p.6).3

Saltando para o ambiente do cinema, o subgênero poderia abarcar

filmes diversos, que senão obras explicitamente de realismo fantástico, ao

menos produções audiovisuais que se parecem alimentar-se de influências

desta fonte. Em algum ponto, blockbusters4

Existem também filmes fantásticos realizados com baixo orçamento, que

se caracterizam por custo, sistemas de distribuição e exibição alternativos ao

mercado de blockbuster. A linguagem visual destes filmes torna-se um

problema a resolver, sobretudo pela inclusão do elemento fantasia. Os filmes

escolhidos para análise são todos oriundos de produções alternativas, onde a

fantasia aparece através da atmosfera criada a partir do elo entre direção de

arte, direção de fotografia e roteiro.

como Matrix (1999, de Larry e

Andy Wachowski) e O Iluminado (1980, de Stanley Kubrick), por exemplo,

apresentam algum grau de realismo fantástico em sua concepção. Outros

filmes baseados em obras literárias de Stephen King, thrillers psicológicos,

como 1408 (2007, Mikael Håfström), podem abarcar algumas características do

subgênero em questão, sem, entretanto, poderem ser classificados

especificamente desta forma.

Além de Mirrormask e O Labirinto do Fauno, poderiam ser referidos

filmes como A Espinha do Diabo (2001), também com direção de Guillermo Del

Toro, o francês Ladrão de Sonhos (1995), o terceiro longa de Darren

Aronofsky, A Fonte da Vida (2006), e a distopia Brazil (1985) (entre tantos

outros filmes de Terry Gilliam), que possuem características semelhantes às

abordadas nos parágrafos anteriores. Entretanto, estes devem ficar como

3 Tradução do autor do trabalho. Texto original em inglês: “Atmosphere is the all-important thing, for the final criterion of authenticity is not the ovetailing of a plot but the creation of a given sensation. (…) Therefore we must judge weird tale not by the author's intent, or by the mere mechanics of the plot; but by the emotional level which it attains at its least mundane point. (…)The one test of the really weird is simply this—whether or not there be excited in the reader a profound sense of dread, and of contact with unknown spheres and powers”. LOVECRAFT, Howard Philips. Supernatural Horror in Literature. Edição digital. Disponível em: http://capacitorfantastico.blogspot.com/2009/07/supernatural-horror-in-literature-by-h.html Acesso em: 30 de out. 2009. 4 O termo blockbuster, de tradução literal “arrasa-quarteirão”, é usado para fazer referência a peças ou filmes de orçamento alto, que alcançam enorme sucesso comercial, gerando grandes bilheterias.

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acervo para aporte e referências pontuais na definição de uma base

consistente de filmes que bebem do realismo fantástico.

Na linguagem cinematográfica, o autor providencia duas próprias

imagens e cria o ambiente visual onde atuam suas personagens e a história se

desenvolve. É o seu imaginário pessoal que se molda e mescla ao do

espectador para a construção de um produto cujas leituras e interpretações

serão sempre únicas e pessoais. Seu imaginário irá se dissolver na obra

presenciada pelo público, tangenciando o coletivo.

Nos filmes selecionados em questão, a experiência de alguns elementos

do surrealismo e do expressionismo, sobretudo, é proposta pela linguagem

visual das produções. As sensações, ambientes, atmosfera, têm no visual algo

já sugerido. É a relação com estas linguagens que o produtor vai pôr em

diálogo com seu imaginário, realizando uma obra que seja sedutora ao público.

É seu repertório visual, sua bacia semântica. E isto pode ser visto a refletir no

ambiente fílmico, no cartaz e então, no meio.

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3. Imaginário e design

Em relação a uma atividade prática projetual de comunicação,

formadora de padrões estéticos e de visualidade cotidiana, influenciadora e

influenciável pela sociedade de consumo, tal como é a atividade do design

gráfico, torna-se relevante tangenciar a dimensão da cultura. Sendo o

imaginário suporte para o objeto de estudo, cabe traçar alguns paralelos entre

este e a cultura. A cultura pode ser identificada de forma precisa, seja por meio das grandes obras da cultura, no sentido restrito do termo, literatura, música, ou no sentido amplo, antropológico, os fatos da vida cotidiana, as formas de organização de uma sociedade, os costumes, as maneiras de vestir-se, de produzir, etc. O imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera. (...) É uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável (MAFFESOLI, 2001,p.75).

Maffesoli emprega o termo imaginário como coletivo por excelência,

como um inconsciente social, tratando-se de uma esfera maior do que uma

simples apropriação individual da cultura. A cultura constitui-se num conjunto

de fenômenos descritíveis, dados objetivos, enquanto que o imaginário possui,

além disso, algo de imponderável (MAFFESOLI, 2001, p.75). Imaginário e

cultura justapõe-se e coexistem, entretanto não se equivalem. A cultura

influencia o imaginário e pode-se dizer, ao mesmo passo, que o imaginário está

contido na cultura, embora não se atenha apenas a isso. Mais do que isso,

observa-se que o imaginário injeta na cultura traços do acaso, de conteúdo

inexorável. É importante enfatizar que essa cultura não é algo imóvel, mas é

uma prática cultural, está em movimento constante, sob diálogo freqüente com

as pulsões do imaginário.

Silva (2006, p.17) destaca a superstição como um exemplo de

racionalização imaginária que pode provocar o ser humano. Em função de

necessidades simbólicas, o homem acata os sentidos, abraça-se a potenciais

fictícios diante do inexplicável. O vazio racional é suprido pela imaginação.

Que poderá o homem ponderar, então, diante de grandes questões

irredutíveis da existência humana como o universo, a liberdade, os sonhos, o

amor ou a morte? Se estes caminhos parecem tão repletos de lacunas e

espaços vazios (senão vazios ao menos abertos a questionamento) que

Page 19: Fazer Cartaz de Cinema

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ultrapassam as explicações de um concretismo racional absoluto, se fazem

campos ricos e férteis para as rotas constantemente construtivas,

desconstrutivas e reconstrutivas do imaginário.

O quanto mais fecundo pode ser o potencial dessas pulsões do

imaginário ao encontrarem-se afastadas das afirmações exatas e fechadas,

aproximando-se dos domínios do paradoxal, do contraditório e, sobretudo, do

ilógico? Pois bem, não é possível determinar valores quantificáveis para estas

variáveis imensuráveis e inconstantes. Contudo, são passivas de observação

as possibilidades criativas e expressivas do encontro do imaginário com a

fantasia e seu componente surreal.

A produção de linguagens visuais surreais e oníricas parece um terreno

prolífero para as noções de imaginário. Os ambientes visuais vislumbrados

para uma produção audiovisual de fantasia estão relacionados a uma atenção

especial a partir da direção de arte e fotografia, aliadas à veiculação de

cartazes que transmitam a mesma linguagem e simbologia. Estas correntezas

visuais devem ser capazes de formar uma atmosfera correlativa entre o filme e

o cartaz. Este último, pela possibilidade de ser o primeiro contato visual do

espectador com um pedaço da obra, tem uma função de introduzir o

observador à ambiência do filme, podendo haver encontro e confluência desta

com as águas da “bacia semântica” de onde bebe o sujeito, gerando interesse

no audiovisual e uma nova direção para o curso destas águas.

A noção de bacia semântica é apresentada por Gilbert Durand (2001, p.

116) e relata a mutação como um processo dinâmico da vida. Numa metáfora

recorrendo às bacias fluviais, Durand sugere que correntes desordenadas,

marginalizadas, atingem os movimentos institucionalizados, possibilitando que

haja o escoamento dessas águas. Estas simples correntes irão formar diversos

divisores de águas, com dimensões mais significativas, iniciando a formação de

um rio. Como qualquer outro rio, este também tomará um curso, e seguirá seu

caminho até encontrar contracorrentes e outros movimentos que podem

transformar sua dinâmica, apresentar outros caminhos e até alterar o seu

curso. Metaforicamente, vislumbra-se enxergar neste percurso a caracterização

de um sistema simbólico aberto. A noção das bacias semânticas possibilita

uma abordagem amplamente dinâmica, mutável em termos de harmonia, e

com riqueza em contradições.

Page 20: Fazer Cartaz de Cinema

19

Figura 3: Representação de uma bacia semântica

Aliado a esta questão das bacias semânticas, podemos postar o

imaginário como um reservatório/motor. Um motor de mecanismo

individual/grupal que parte da emanação de mensagens de um reservatório

cultural/emocional/empírico do emissor até um sujeito imerso em outro

reservatório, que vai recebendo e transformando estas mensagens, de forma

desordenada e não-controlada. Neste processo fluido e descompassado,

segundo Silva (2003, pág.12), o imaginário emana do real, estrutura-se como

ideal e retorna ao real como elemento propulsor. Ele comenta: O imaginário é a marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do vivido. Como reservatório, o imaginário é essa impressão digital do ser no mundo. Como motor, é o acelerador que imprime velocidade à possibilidade de ação. O homem age (concretiza) porque está mergulhado em correntes imaginárias que o empurram contra ou a favor dos ventos. (SILVA, 2003, p.12)

Pelo imaginário o ser se molda dentro da cultura. Forma um reservatório

que abriga, e pelo motor transmuta imagens, sentimentos, memórias,

experiências, impressões. O fluxo pode conduzir a modos de ver, sentir, ser,

agir. Ao haver a difusão natural destas marés subjetivas de informação, o

imaginário representa-se com uma feição social. Coletiva por excelência. Este

motor há de alimentar a foz de significados do transmissor novamente. E o

diálogo de inoculações segue impulsionando as correntezas.

Page 21: Fazer Cartaz de Cinema

20

Figura 4: Representação de um reservatório/motor

As águas da bacia semântica do emissor (no caso do objeto de estudo,

o designer responsável pela direção de arte do filme ou mesmo o compositor

das peças gráficas de divulgação, até o diretor de fotografia do filme) a produzir

um trabalho de realismo fantástico, devem possuir algum conteúdo capaz de

exprimir os recursos imponderáveis da fantasia. De uma forma muito natural,

as estéticas surrealistas e expressionistas compartilham características com

esta subcategoria de cinema.

Desconsiderando-se a produção cinematográfica pura destes dois

estilos, o surrealismo e o expressionismo, mas levando em conta os

pressupostos das vanguardas artísticas que originaram estes movimentos,

destacam-se determinadas características que têm condições de transcrever

imageticamente o cunho misterioso do fantástico. São estéticas que

apresentam alguns detalhes em comum, como a distorção proposital da

realidade, a sondagem do mundo interior e algum modo de frenesi, entretanto

são propriedades particulares de cada uma delas que, mescladas, aparecem

freqüentemente no audiovisual do realismo fantástico.

Vale lembrar que a utilização dos vocábulos “expressionismo” e

“surrealismo” na imersão do texto fazem referência mais exata justamente aos

critérios visuais destas vanguardas. Do surrealismo tomam-se emprestados

mais exemplos de pintores para fazer referência aos elementos incorporados

nos cartazes e na direção de arte do filme, por entender-se que a pintura do

Page 22: Fazer Cartaz de Cinema

21

estilo se comunica de forma bastante correlata aos elementos de fantasia dos

filmes em questão. Quanto ao expressionismo, buscam-se relações no cinema

alemão do pré-guerra, também pelo motivo de se pensar ser mais análogo ao

tema do que o restante das manifestações artísticas desta vanguarda.

Retomando ao realismo fantástico e sua maneira plástica de ser

representado no cinema, podem ser então, apropriadas algumas

características recorrentes ao repertório das vanguardas supracitadas. Do

surrealismo, Max Ernst, René Magritte e Salvador Dali, por exemplo, é possível

encontrar contato direto com o fantástico a partir da ruptura com a lógica,

fazendo com que a fantasia apareça no concreto. No realismo fantástico

também é possível ver a exploração do subconsciente e do sonho, criando-se

assim uma imagem onírica que habitualmente é contrastada do cotidiano, mas

que nesse caso faz-se aliada. As figuras antropomórficas e seres híbridos que

se vê por vezes neste subgênero também carregam consigo um aporte surreal.

Do expressionismo, Fausto (1926) e Nosferatu (1922), de F. W. Murnau,

e Metrópolis (1927) e M o Vampiro de Düsseldorf (1931) de Fritz Lang, por

exemplo, além dos elementos já citados que se compartilham em algum nível

com o surrealismo, observa-se a valorização e peso dos sentimentos humanos,

os contrastes acentuados e os traços dramáticos que contribuem para a

imersão do real(ismo) tratado no filme, em um ambiente fantástico. A paisagem

artificial, que participa nos fluxos anímicos dos personagens também é uma

recorrência, enquanto que o tratamento das sombras é uma das marcas mais

visíveis que o expressionismo pode deixa para o fantástico. Uma marca que

raramente foge do realismo fantástico, mas no nível do texto, que também se

vê como uma influência do expressionismo é a presença do “tirano”5

5 De acordo com Nazário, Tirano pode significar a presença de um personagem sinistro que possui poder para controlar: “É numa jovem República estremecida que o expressionismo chega às telas, desenvolvendo um modo fantasmagórico de narrativa e uma dramaturgia do horror, em alegorias que giram, quase sempre, em torno de um personagem sinistro ou mágico, que concentra grande poder em suas mãos, capaz de dominar os indivíduos e controlar a realidade que os cerca pela liberação de forças expedicionárias”. (NAZÁRIO, 1983, p.22).

. Ao ser

feita a análise dos cartazes e as relações com o imaginário de toda a obra,

serão retomadas estas questões estéticas.

Page 23: Fazer Cartaz de Cinema

22

Os conhecimentos destas vertentes artísticas se fazem importantes para

que o realizador destas peças possa transmitir o fantástico, o sobrenatural, de

forma mais espontânea para o público. Dessa forma, torna-se menor o choque

que existe entre as informações em fluxo na bacia semântica da produção

audiovisual e o espectador sentado em sua poltrona. A passividade física do

espectador diante da tela, não reflete o contínuo movimento de pulsões

informativas que ocorre durante o ato de assistir ao filme. Em A Alma do

Cinema (1983, p.148), Edgar Morin explica a magia do audiovisual a partir do

sistema de projeção-identificação. O processo ocorre quando o espectador se

apresenta diante do espetáculo cinematográfico, quando não só se projeta no

universo dramatúrgico do filme, como, segundo o pensamento de Morin, passa

a desenvolver uma participação afetiva entre aquela projeção e sua vida

particular, convertendo aquela magia em sentimento.

A partir desse ponto, o espectador já não mais percebe o universo

fílmico como uma construção. Sua percepção já não se atenta aos detalhes da

encenação desde que ele imergiu no espaço fílmico e se envolveu com as

imagens, com o drama apresentado, se emocionando a partir de sua própria

subjetividade. Sobre essa questão da percepção do espectador, David

Bordwell, teórico do cinema, afirma: Ao ver um filme, o receptor identifica certas indicações que o incitam a executar numerosas atividades de inferência, que vão desde a atividade obrigatória e rapidíssima de perceber o movimento aparente, passando pelo processo mais ‘penetrável do ponto de vista cognitivo’, de construir, digamos, vínculos entre as cenas, até ao processo ainda mais aberto de atribuir significados abstratos ao filme. Na maioria dos casos o espectador aplica estruturas de conhecimento às indicações que reconhece dentro do filme. (BORDWELL, 1991, p. 3).

Assim, posso considerar a tela como uma interface de abertura do canal

sensível do espectador, por onde se encaminham pulsões informativas a se

introjetar no imaginário do sujeito assistindo, de acordo com seu trajeto

antropológico, conforme mencionado na introdução deste texto, fazendo com

que ele interprete o que viu.

Page 24: Fazer Cartaz de Cinema

23

Figura 5: Representação da participação afetiva

Neste ponto, cabe observar uma particularidade no âmbito dos filmes de

fantasia. O fantástico, imponderável, tende a dialogar de maneira mais

adjacente com o imaginário do público, pois a interpretação simbólica é

intrínseca ao ser humano e o inexplicável, inacabado incita nosso pensamento.

Mantém o motor do reservatório de imagens, símbolos, desejos, sonhos,

lembranças, girando. De acordo com Durand: (O imaginário) é uma representação incontornável, a faculdade da simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da Terra. (DURAND, 2004, p.117)

Os campos imaginários contribuem para formar um ambiente que une o

homem e o seu entorno. O imaginário está presente sempre nas criações do

pensamento humano. Ele faz um projeto de design, visto pela sua ótica, tomar

proporções afetivas, respirar do imaterial, dialogar muito mais com os sentidos.

Page 25: Fazer Cartaz de Cinema

24

4. Opções metodológicas

É possível que seja devido a um procedimento fundamentalmente

racionalista de desenvolvimento intelectual, que se tenha criado o hábito de

procurar por quantias exatas, por medidas determinadas e invariáveis em

aspectos naturais da vida. Talvez seja também por influência de um modo de

vida ocidental catequizado por gerações, sob crenças monoteístas, que em

diversos âmbitos de nossas vidas, inclusive o acadêmico, tenhamo-nos

acostumado a procurar por verdades absolutas, conceitos formados, ciclos

fechados. Estas questões delicadas envolvendo afirmações e certezas rígidas

tornam-se ainda mais frágeis sob o recinto das ciências humanas e sociais.

Pode-se dizer também que, no viés da comunicação, por vezes pode ser

interessante buscar por alternativas de pesquisa que cedam maior margem à

subjetividade. Portanto, para o desenvolvimento deste trabalho, “relativizar” e

“aproximar” se tornaram duas palavras-chave. Ampara-se, assim, ao dito por

Maffesoli: A sensibilidade relativista – para nada excluir do todo social – prefere uma diligência prudente em lugar do que chamei, na Lógica da Dominação, o “terrorismo da coerência”. Pretende proceder por via de aproximações concêntricas, por sedimentações sucessivas – maneiras essas que manifestam uma atitude de respeito ante imperfeições e lacunas que, por um lado são empiricamente observáveis e, por outro, são estruturalmente necessárias à existência como experienciamos, pois, como se sabe, a perfeição é a morte. (MAFFESOLI, 2007, p.39)

Pontua-se, dessa forma, que a subjetividade interpreta papel importante

também para o estudo do imaginário no cotidiano. A sociologia compreensiva,

proposta por Michel Maffesoli, trata menos de elaborar um “conteúdo” do que

de apresentar uma projeção. É a sociologia como ponto de vista (MAFFESOLI,

2007, p.39). Em um momento em que a sociedade tanto fomenta o combate às

bases do preconceito, talvez fosse possível a abertura de um diálogo quanto ao

estabelecimento de conceitos imutáveis em si, ao tratar-se das ciências

humanas. Os grandes sistemas explicativos de nossos tempos, tais como o

positivismo, talvez tenham alcançado um grau intenso de saturação, diante da

presença plural da mídia no cotidiano da sociedade, produzindo uma troca

imensurável de pulsões informativas e simbólicas.

Page 26: Fazer Cartaz de Cinema

25

Silva (2003, p.87) discorre sobre a metodologia do pesquisador dos

campos do imaginário, a quem dá a alcunha de narrador do vivido: O narrador do vivido não se restringe ao virtual, mas sabe que o advento da cibercultura desmanchou na tela a solidez dos imaginários do ar. No seu trabalho de coleta de dados, deve surfar nas ondas do rádio e da televisão, navegar nas vagas dos bits, acumular átomos e produzir símbolos por meio de signos. Nada do que se possa imaginar lhe é estranho; nada do que se possa simbolizar o deixará indiferente. O narrador do vivido é um romancista das ciências humanas, um repórter da sociologia compreensiva, um cronista da antropologia, um etnógrafo do aqui e do agora, da fugaz cidade (SILVA, 2003, p.87).

Para analisar a esfera design-filme, o imaginário do audiovisual é

projetado a partir do ambiente visual gerado pela convergência entre direção

de arte/direção de fotografia e da peça gráfica promocional em pauta. Com

este efeito, a pesquisa do imaginário remonta a outra característica da

narração do vivido: a imersão do pesquisador no contexto de análise. Um

mergulho na bacia semântica de si mesmo e do outro, uma auto-inserção no

meio pesquisado, para trilhar o próprio trajeto antropológico, na contramão das

verdades de acostamento e das certezas de retrovisor, para tornar-se parte do

imaginário repisado (SILVA, 2003, p.75).

Com isso ultrapassa-se a esfera paranóica das pesquisas de campo

positivistas (onde se examina com olhar do topo sobre o objeto investigado,

para colher dados e resultados), para uma abordagem metanóica

(MAFFESOLI, 2007, pág.25), com um olhar de dentro, imerso no bolsão

semântico das pulsões do imaginário. Isto pode ser inferido a partir do

pensamento de Maffesoli: Quero, no entanto, dar uma dimensão mais aberta, e, por isso, em O conhecimento comum, procuro usar o termo noção, a fim de buscar uma instrumentação congruente com o momento vital. É preciso encontrar noções menos verdadeiras possíveis. O conceito busca a verdade. A noção busca a semelhança: olhar longe para trás para olhar longe para frente. Insisto na idéia de superação do conceito pela humildade da noção. No conceito, há algo, fundamentalmente, paranóico. (MAFFESOLI, 2008, p.7)

Trata-se assim de, a partir dos sentidos e da experimentação, aliada ao

conhecimento apreendido sobre design, carregando consigo o já citado trajeto

antropológico, compreender a estética fantástica e onírica do filme a partir de

sua linguagem e atmosfera visual. E, dessa forma interagir com a corrente de

significados do imaginário do audiovisual pesquisado. Faz-se assim, da razão

Page 27: Fazer Cartaz de Cinema

26

sensível, uma grande aliada na obtenção de impressões sobre a estética,

compartilhamento de emoções, dentro do assunto referido.

Acerca do que fora referido no parágrafo inicial, durante a análise, não

se pretende alcançar a formação de conceitos cristalizados sobre o tema da

pesquisa. Ao contrário, busca-se a relativização de aspectos comuns

examinados na criação dos cartazes e respectivos filmes, visando à

confluência de ambos para emitir um imaginário aos espectadores. Isto se faz

através de noções de semelhança nas bacias semânticas do imaginário entre

emissor e receptor, gerando relações de congruência, dialogando, sem isolar o

objeto como produto finito e acabado.

O contato com o apanhado teórico construído a respeito do imaginário e

as análises a partir do repertório estético onírico dos filmes de realismo

fantástico será apropriado para projetar em relação a essa linguagem visual. A

peça gráfica é o objeto de design a ser criado para aplicação na prática dos

conteúdos teóricos perpassados durante as relativizações acerca do imaginário

e análises da dimensão climatológica (atmosfera), ambiência visual do par filme

e peça gráfica.

A parte projetual da pesquisa adota como dispositivo a idéia do

desenvolvimento de um cartaz e um teaser de um conto que tenha

características recorrentes ao realismo fantástico e seja descritivo ao ponto de

permitir o desenvolvimento de uma representação pictórica ou imagética. O

olhar teórico estará incluso no projeto das peças, através das referências

estéticas adotadas na concepção do intento.

O conto Uma Voz Dentro da Noite (1907), de William Hope-Hodgson, foi

selecionado por apresentar potencial visual e elementos descritivos que se

fazem aplicáveis para a execução da prática projetual. Estes elementos

apresentados durante a narrativa facilitam a capacitação e criação de uma

linguagem visual dialógica com a atmosfera suscitada pelo conto. No

desenvolvimento do projeto, considerar-se-á teorias do imaginário para

experimentar e compor, bem como os estudos sobre o realismo fantástico. Ao

utilizarem-se elementos visuais recorrentes a filmes do gênero, aparece a

noção de bacia semântica. De forma semelhante, a participação afetiva estará

presente enquanto o projeto apresentar elementos que permitam a

identificação e reconhecimento do espectador com o cotidiano, seu tempo.

Page 28: Fazer Cartaz de Cinema

27

5. Cartazes e o Imaginário

Neste capítulo, será estudado o imaginário em torno da produção

audiovisual somada ao cartaz como cartão de visita a este imaginário. Para

isso, farei breves análises dos cartazes dos dois filmes selecionados e dos

ambientes visuais provenientes da estética deles, ligando-os através de

elementos correlativos na linguagem visual utilizada. Será relativizado o

imaginário comum onde o espectador vai imergir e relacionar cartaz e filme,

bem como a questão da sedução ao ambiente fílmico.

Busca-se traçar relações entre os filmes escolhidos, detectando o que

separa o imaginário em torno de cada um deles a partir de suas próprias

características. Estas diferenças podem ser construídas a partir do teor do

audiovisual, do foco, entre outras coisas. Para isso será interessante fazer a

mediação entre os elementos de recorrência entre os filmes em questão,

influências estéticas e fatores de dissonância.

Cabe ainda falar sobre a importância do designer na esfera do

imaginário destas produções e como o profissional participa do

desenvolvimento de uma bacia semântica afluente de repertórios visuais

oníricos e fantásticos. Observo para isso, como o imaginário está sempre

presente nas criações do pensamento do ser humano. Por isso, penso que

para o designer que se relaciona à produção de um design a partir de um olhar

do imaginário, imaterial, sob uma perspectiva de “não-coisa”, além do hábito do

material, é importante saber extrair desses movimentos intensos de pulsões

subjetivas, algumas maneiras de ver, entender e projetar seu objeto.

A investigação pode começar dispondo-se lado a lado as ilustrações

feitas para os filmes. Com isso se faz possível aproximar algumas percepções

entre estes e também assemelhar algumas de suas características com

propriedades surreais e expressionistas. Os cartazes em questão iniciam a

imersão do espectador no ambiente do filme sob propostas de tempo distintas.

No cartaz do Labirinto do Fauno, é possível ver a representação de uma cena

do filme em pausa, o plano em que Ofélia se depara com a entrada das ruínas

do labirinto, prestes a entrar no ambiente mágico do audiovisual.

Page 29: Fazer Cartaz de Cinema

28

FIGURAS 6 e 7: Cena de Ofélia encontrando a entrada para o Labirinto

A ilustração é vista com características mais hiper-realistas6

Já em Mirrormask, no pôster, é vista a personagem Helena circundada

por elementos que aparecem durante momentos diversos da linha narrativa do

filme. Este plano, com todos os elementos presentes da capa

concomitantemente em cena, não é visto dessa forma em nenhum momento no

que na cena

do filme. Como decorrência disto, a imagem do cartaz possui maiores

contrastes e iluminação exagerada com relação ao filme. A representação feita

desta forma no cartaz, além de “exagerar” uma cena marcante no audiovisual,

destacando-a, apresenta a roupagem mágica do filme, incorporando à cena

traços que permeiam todo o ambiente do longa.

6 O hiper-realismo, também chamado de realismo fotográfico ou fotorrealismo, é um estilo artístico que procura mostrar uma grande abrangência de detalhes, o que faz da obra objeto muito mais detalhado do que uma fotografia ou do que a própria realidade: hiper-realista. As peças hiper-realistas, por apresentarem uma preocupação com os detalhes bastante minuciosa e pessoal, geram um efeito de irrealidade, formando a premissa paradoxal: "É tão perfeito que não deve ser real".

Page 30: Fazer Cartaz de Cinema

29

audiovisual, sendo uma coleção de momentos, personagens e ambientes da

trama.

No cartaz do filme de Guillermo Del Toro, é vista a protagonista

observando de frente a entrada do labirinto, circundada por uma vegetação

predominantemente seca e retorcida, possuindo um tom mórbido em sua

constituição. Este comportamento atribuído à natureza recorre a uma marcante

característica dos expressionistas da escola alemã de cinema, visto em

diversas obras do gênero, como fica explícito em O Gabinete do Doutor

Caligari (1920), por exemplo: O cenário animista. O momento de tensão vivido

por Ofélia no filme, no instante captado pelo cartaz, é compartilhado com a

natureza.

FIGURA 8: Cenário animista de Wiene

Não é possível enxergar a expressão facial da personagem no cartaz

por ela estar de costas, entretanto, a paisagem pode refletir o instante de

dúvida, mistério, agonia e medo que toma a protagonista naquele momento. Os

cenários do filme e personagens foram todos construídos utilizando-se do

mínimo possível de computação gráfica, sob um apelo muito forte para a

maquiagem e iluminação. Isto gerou a peculiaridade do aspecto visual da obra

e reflete um pouco da experiência acumulada de Del Toro trabalhando como

supervisor de maquiagem, o que fica bastante aparente ao ser visualizado o

repertório estético do filme, através das personagens e cenários.

No cartaz de Mirrormask, o cenário parece representar um estado de

devaneio, O ambiente não possui uma característica animista homogênea,

senão a do sonho. Uma névoa divide o cenário em duas porções, embora

ambas as partes se misturem de maneira disforme. Na metade inferior, a

Page 31: Fazer Cartaz de Cinema

30

protagonista Helena é observada sentada sobre um chão composto por seus

desenhos e rabiscos, segurando uma máscara. A partir da névoa que envolve

Helena, do centro para o topo do cartaz, podem ser observados alguns

elementos que interagem com um campo imaginário que flui revelando

subsídios surreais (DURAND, 2004, p.103). Estes elementos apresentam ao

indivíduo que observa o cartaz um grande aporte do repertório visual do filme,

que pode ser um convite ao espectador para adentrar a um ambiente onírico e

fantástico, sugerindo peixes que nadam num espaço aéreo, gigantes que

flutuam abraçados, que se misturam a outros componentes fantásticos que

permeiam o filme e que não aparecem no cartaz, como os pássaros-macacos,

as esfinges, livros voadores e as incontáveis escadas espirais. As paisagens

do filme parecem fluir contíguas a um sonho, mesmo antes de Helena entrar no

ambiente fantástico de Mirrormask.

Além dos cenários animistas, é possível enxergar o jogo de contrastes

entre luz e escuridão, outra característica do expressionismo alemão, na bacia

semântica dos realizadores dos filmes, mas isso é mais perceptível em

Labirinto do Fauno. O ambiente de suspense é formado pela cortina de

sombras constante durante o filme e que também aparece no cartaz. Neste,

Ofélia é circundada por luz, contrastando com a cena toda, que é imersa na

escuridão. Esta luz parece reforçar o conteúdo mágico do filme, revelando

detalhes azulados da noite.

No pôster de Mirrormask há tanto luzes duras quanto difusas, vindo de

direções diversas, completando o sentido de devaneio e irrealidade do

audiovisual. A iluminação é utilizada de forma condizente com a que é vista na

maioria dos momentos na atmosfera visual do longa-metragem, entretanto, as

cores são mais saturadas, enquanto que no audiovisual, especialmente nos

momentos de fantasia, vê-se um aspecto tonal muito mais desbotado. A luz

neste ambiente fantástico é constantemente dramática, havendo uso mais

acentuado das sombras nos momentos de clímax.

Page 32: Fazer Cartaz de Cinema

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FIGURA 9: Uso de tons desbotados no filme de

Dave McKean em comparação ao cartaz de cores vibrantes

Uma característica surreal bastante freqüente em ambos os filmes e em

muitos do gênero do realismo-fantástico, e da fantasia em geral, é o

aparecimento de personagens estranhos, deformados, apresentando em sua

constituição física a hibridização entre seres de origem dessemelhante. Uma

face surreal de ambos os filmes fica bastante exposta com o aparecimento de

tais criaturas, que oscilam entre personagens que protagonizam seqüências

importantes da narrativa e outros que não passam de figurantes que ajudam a

corroborar o onirismo das linguagens visuais aparentes.

Page 33: Fazer Cartaz de Cinema

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FIGURA 10: Algumas das tantas personagens surreais de Mirrormask

FIGURA 11: Criaturas sombrias do filme de Del Toro

As bacias semânticas dos filmes parecem possuir freqüentemente

afluência da vanguarda representada por Dali, Ernst, Magritte, etc. Em

Mirrormask, as já citadas esfinges, pássaros-macaco e gigantes abraçados

aparecem para compor cenas que assumem o componente surreal, integrados

à narrativa de sonho lúcido de Helena. Na produção de Del Toro estas

influências também são visíveis. O Fauno, apesar de já ser uma figura mítica

romana conhecida, antropomórfica dentro do próprio mito (bem como a esfinge

no caso anterior), ainda assim pode ser considerada uma criatura paradoxal e

surreal dentro da estrutura do filme. Além dele, há a figura do obscuro Homem

Pálido, personagem a quem cabe protagonizar momentos de terror dentro da

trama, e a ninfa-fada, bastante fabulosa, no sentido literal da palavra.

Page 34: Fazer Cartaz de Cinema

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FIGURA 12: As figuras deformadas de Dali postas ao lado de algumas de Mirrormask

FIGURA 13: O anjo do lar, de Max Ernst, mostra mais um ser híbrido

Mas há outra característica marcante do surrealismo que pode entrar em

diálogo com os filmes. O mundo interior das personagens é levado em conta,

deixa-se transparecer por vezes representações do que parecem ser marés do

subconsciente das protagonistas, fazendo caminhar a representação gráfica

em direção à linha da narração. Assim, a história fornece um fluxo onde a

fantasia mescla-se ao real no filme. O mundo interior das personagens também

habita a atmosfera visual das produções. Ambas as histórias enlaçam a

linguagem visual ao argumento do filme e o desenrolar da narrativa, levando

em conta a figura da personagem principal.

É possível relativizar acerca da aproximação que a atmosfera visual em

Labirinto do Fauno faz, por exemplo, dos contos de fada. Não distante disso,

está o fato da protagonista Ofélia ter o hábito da leitura de fábulas. Seu gosto

pelos contos a faz fugir da posição de repressão em que se encontra, com a

Page 35: Fazer Cartaz de Cinema

34

mãe em uma situação instável e o ambiente da guerra civil por sua volta. Esta

atmosfera mágica é refletida e circunda o audiovisual, inclusive, a ilustração do

cartaz lembra em algo os contos de fadas. A representação pictórica, as luzes

muito brilhantes esporádicas e o tema azulado da noite reforçam essa

impressão.

Em Mirrormask este processo também pode ser observado. Quando

Helena percebe que está envolta por um mundo de fantasia, lembramo-nos dos

seus desenhos, sua fuga do cotidiano. Também aqui parece presente o mundo

interior da personagem, adjacente ao mergulho no fantástico. A protagonista

tem em sua vida um cotidiano circense que a desagrada, a constância dos

espetáculos e problemas familiares e afetivos que vemos refletirem-se na

esfera de fantasia do filme. Além do ambiente de picadeiro, os rascunhos de

Helena mostrados ao longo do filme fazem parte da junção entre os

acontecimentos da linha narrativa e a linguagem visual. No cartaz, a

personagem segurando a máscara da ilusão pára sobre um chão repleto de

desenhos seus, enquanto que no topo está o mundo fantástico projetado,

produto, dentre outras coisas, do seu mundo interior.

FIGURA 14: Um dos desenhos de Helena

A isto se pode atrelar a participação afetiva do espectador. O complexo

de projeção-identificação, que incluiria os fenômenos subjetivos que

transformam a realidade objetiva, comporta o fator da magia. Este pode

acontecer quando os estados psíquicos tomam uma maior proporção, onde a

identificação atinge o ponto da consideração dos mitos, deuses, etc. (MORIN,

Page 36: Fazer Cartaz de Cinema

35

1970, p.112) e também é o caso das aproximações do público do cinema à

narrativa fantasiosa do audiovisual. É o que discute Morin: Mesmo cheio a transbordar de alma e, mais amplamente, mesmo estruturado e determinado pela participação afetiva como está, o cinema não deixa de responder às necessidades [...] Essas necessidades já nós as sentimos: são as necessidades de todo o imaginário, de todo o devaneio, de toda a magia, de toda a estética: aquelas que a vida prática não pode satisfazer (MORIN, 1970, p. 136).

Na medida em que a humanidade avançou, o estado mágico das coisas

foi reprimido em favor da desmistificação do mundo. Assim, a magia passou a

ser interiorizada pelo individuo para tornar-se sentimento. Através dos

sentimentos nas participações afetivas, estão alocadas as projeções-

identificações. Deste modo, o estado anímico das personagens, transmitido

também pela expressão visual, valoriza o ingresso do espectador ao ambiente

fílmico. Por isso igualmente, a transmissão desses estados animistas para o

cartaz torna-se um convite à atmosfera visual da obra. Seja por meio da

linguagem de suspense “fabuloso” maduro de O Labirinto do Fauno, ou através

da esfera de devaneio que toma o espaço na ilustração de Mirrormask.

FIGURA 15: Tabela comparativa das protagonistas

Esta valorização dos sentimentos, acerca do que foi falado sobre o

alento das protagonistas dos filmes, embora seja uma característica própria da

narrativa, como já foi visto, reflete-se no visual. E este apelo ao afetivo também

foi uma característica marcante do cinema expressionista alemão. Bem como a

presença de um tirano na história. Em Mirrormask, esta personagem é vista no

pôster vigiando Helena, como ocorre durante o filme. Ela é quem rege a vida

no ambiente fantástico do filme. Representa uma face sombria da mãe da

Page 37: Fazer Cartaz de Cinema

36

protagonista, que também possui uma personagem representando a parte

oposta, quando se vê a imersão na fantasia.

Em Labirinto do Fauno é possível observar um tradicional tirano político

na personagem do Capitão Vidal. Fascista e violento, possui demais

características de um vilão arquetípico situado como autoridade-chave, líder

político no desenrolar de uma guerra civil. Entretanto, observando-se que o

tirano do expressionismo é aquela personagem sinistra que pode administrar

as situações mágicas, abrigando os poderes para controlar a realidade a sua

volta, este papel pode ser também atribuído ao Fauno.

FIGURA 16 e 17: Os tiranos identificados

Trivial e obscuro, faz Ofélia questionar suas intenções, submetendo-a ao

mundo de fantasia torturada que acomete a protagonista. Em alguns cartazes o

fauno é apresentado como a figura principal, entretanto, na peça escolhida

para análise não consta sua presença física. Mas pode ser arriscado dizer que

ele não está ao menos mencionado lá.

No pórtico representado no cartaz vemos uma cabeça de bode. Esta

construção faz parte da cena no filme, então vale também ser considerado

outro elemento que não consta no mesmo instante no audiovisual: A entrada

para o labirinto, que tem a forma de chifres. O fauno se conhece,

mitologicamente, por ser constituído pela figura híbrida entre um homem e um

Page 38: Fazer Cartaz de Cinema

37

caprino. Os chifres, além de trazerem a lembrança a respeito desta figura,

possuem também sua conotação ocultista e são de grande recorrência em

criaturas dentro dos contos fantásticos de horror e representações gráficas de

personagens obscuros.

FIGURAS 18 e 19: Representação do Chtulhu, personagem

de H.P.Lovecraft, e a imagem de Baphomet, do ocultista Eliphas Levi.

Os temas ocultos são bastante comuns na filmografia de Del Toro, que

já tratava de fantasmas em A Espinha do Diabo (2001), o tema da vida eterna

em Cronos (1993) e demônios em Hellboy (2004). O diretor constantemente

teve seus filmes premiados em categorias relacionadas à fotografia. O

elemento suspense em seus filmes sempre influiu nos ambientes escuros e

sombrios desenvolvidos. Os tons escuros, de forma geral, parecem permear

suas obras.

Enquanto isso, em Mirrormask é possível observar, além de algum gosto

também pelo escurecido, alguma preferência por tons arenosos e dourados. O

trabalho de Dave McKean tem esta particularidade, desde as capas para as

HQs de Sandman (de 1989 a 1996). Seu reservatório de imagens também

pode ser em parte observado em alguns outros trabalhos como a capa para o

livro Someone Comes to Town, Someone Leaves Town (2005) e para Coraline

(2002).

Page 39: Fazer Cartaz de Cinema

38

FIGURAS 20, 21, 22 e 23: Trabalhos de

McKean com opção por tons amarelados

Além das cores, o estilo proveniente de experiências com recorte e

colagem permeia a obra de McKean. Isto também aparece na direção artística

do filme, inclusive no visual de personagens já citadas como a esfinge. O

cartaz não apresenta esta estética da colagem, entretanto flerta com algumas

tonalidades costumeiramente utilizadas por McKean.

Voltando à questão da narrativa refletida na direção de arte e fotografia e

rebatida, conseqüentemente, no projeto gráfico, pode ser analisado o uso das

metáforas verbais para traduzir determinados significados nos filmes. Isso pode

ser observado a partir dos títulos e a que podem se referir na trama. Pode-se

começar por Mirrormask. A máscara do espelho, traduzido como a máscara da

ilusão.

A partir da máscara é possível se retomar as noções de persona de

Jung. O termo se refere juntamente às máscaras utilizadas por atores no

período clássico. A persona faz referência ao caráter que alguém assume para

apresentar-se frente a sociedade, ou seja, à máscara ou face que uma pessoa

Page 40: Fazer Cartaz de Cinema

39

veste para enfrentar o mundo (JUNG, 2002, p.30). Já a metáfora do espelho

pode representar a criação de imagens múltiplas, geralmente ambíguas e que

desvelam aspectos mais interessantes do que a representação fiel de um

objeto. Para considerar a metáfora do espelho como uma identificação, basta

compreendê-la como a transformação no sujeito a partir de quando ele assume

uma imagem (LACAN, 1998, p.100). Na literatura, é também comum a

aplicação da metáfora do espelho para descrever situações como a descoberta

da identidade. No romance O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de

Queirós, por exemplo, ao olhar para o espelho, o padre percebe seu desejo

pelo corpo da mulher, que se estende à percepção da dimensão do seu próprio

corpo e desejo, paradoxalmente à sua condição de clérigo.

Transpondo-se as noções de Lacan e Jung, lançando um olhar análogo

à personagem Helena, em Mirrormask, percebe-se a angústia da protagonista

na sua busca por sua identidade. Talvez por isso, em sua estada no ambiente

fantástico, esteja ela cercada por elementos da sua imaginação, seus

desenhos, elementos estes, que também vem a compor as peças gráficas

promocionais do audiovisual. Sob o plano de fundo onírico, Helena projeta sua

imagem no papel da princesa do mundo obscuro que descobre. Jung propõe

que na busca por identidade, o ser humano utiliza e experimenta várias

máscaras, relacionando-as a supressões do ego. A partir do confronto com

estas personas, o indivíduo poderá em certo ponto retirar suas máscaras.

Assim, especulam-se relações entre as metáforas da máscara, do espelho, e o

mundo de fantasia, transposto na linguagem visual de Mirrormask.

Já o labirinto, metaforicamente costuma ser sugerido como uma

representação do conhecimento não-linear e da confusão, devido à sua

constituição rizomática. Esta concepção parece estar ligada à figura do Fauno,

não só pela lógica sugestão do título, mas também por esta personagem

possuir o poder mágico que gera a confusão e o caos na situação de Ofélia. As

espirais inscritas na testa do Fauno também suscitam à construção labiríntica.

Escadas espirais também são vistas em abundância no ambiente fantástico de

Mirrormask, e parecem ser de alguma recorrência em peças de cunho

fantástico, sobretudo em casos surreais, possivelmente pelo caráter

contraditório e paradoxal que dialoga com este gênero.

Page 41: Fazer Cartaz de Cinema

40

As espirais também possuem um caráter gráfico que flerta com a teoria

dos fractais. A virtualização à qual o Fauno submete o mundo concreto de

Ofélia oferece uma demonstração do controle transcendental exercido pela

figura. Entretanto, não há um diálogo tão profundo da metáfora em questão

com essas figuras, e a relação não flui de forma tão viscosa quanto em

Mirrormask. De certa forma, a metáfora verbal não parece tão presente no

cartaz do Labirinto do Fauno como no filme de Dave McKean, sendo que no

primeiro, parecem mesmo predominar a estética de fábula ilustrada, os

elementos visuais referentes às figuras principais e a atmosfera obscura de

mistério, magia e suspense do filme.

Analisados alguns fatores da comunicação entre a linguagem do filme e

a peça gráfica que o representa, cabe ainda ressaltar que o momento de

recepção do cartaz é diferente do momento de recepção do filme, pelo público.

O filme apela para a imersão, a fragmentação e a experiência, já o cartaz

remete à memória, ao relato e ao instante. É diferente a experiência de ver o

cartaz e ver o filme. O espectador, entretanto, com o olhar captado pela peça

de divulgação, pode ali receber informações capazes de convidá-lo para

assistir àquela obra.

Page 42: Fazer Cartaz de Cinema

41

6. Prática

Para desenvolver o teaser e o cartaz propostos como prática dessa

pesquisa pretende-se apropriar algumas recorrências do imaginário ligado à

fantasia, a partir dos filmes assistidos e analisados e dos seus respectivos

cartazes. Como aporte, o caráter descritivo da literatura de realismo fantástico

também pode emprestar algum estímulo criativo para o desenvolvimento de

uma estética fantasiosa convincente nas peças.

O tema das peças, naturalmente é o realismo fantástico. Mais

especificamente, a proposta apresenta um cartaz para um filme fictício,

baseado em um conto literário onde alguns dos principais elementos de

recorrência no subgênero podem estar presentes.

Parte-se de um mapeamento das bacias semânticas dos filmes

analisados. A proposta abre um diálogo das recorrências entre estas bacias e

os demais conteúdos investigados durante a pesquisa. O cartaz novo é

projetado para uma hipotética adaptação do conto ao cinema, pois no caso de

optar-se por um projeto de redesign, poderia ocorrer demasiada redundância, o

que não permitiria aplicar as recorrências examinadas da mesma maneira à

peça, sendo que o foco desta pesquisa são efetivamente os elementos de

recorrência entre cartaz e filme que estabelecem um imaginário como universo

semântico comum. Desta forma, em termos de aplicação teórico-metodológica

ao projeto, a pesquisa opta pelo desenvolvimento da peça a partir de um conto

com possibilidade de adaptação para a linguagem audiovisual.

O recurso técnico para realização do cartaz e do teaser foi a

manipulação fotográfica, sendo incluídos ainda recursos de colorização digital.

Realizaram-se estudos da técnica para poder criar a peça com acabamento

mais qualificado e resultados mais condizentes com os pretendidos, a partir de

temáticas surreais ou fantásticas.

Page 43: Fazer Cartaz de Cinema

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FIGURAS 24, 25, 26 e 27: Experimentos com

fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica

Dados como data de veiculação, direção e cast principal, título e outros

elementos comuns aos cartazes de cinema constam na peça. Para o teaser,

somente informações mínimas se fazem presentes, na tentativa de provocar

curiosidade no hipotético espectador. O cartaz apresenta o formato de

circulação A3, enquanto que o teaser foi desenvolvido para amostragem em

tamanho A4, por se tratar de uma peça com menos detalhes.

Page 44: Fazer Cartaz de Cinema

43

Uma Voz Dentro da Noite foi um conto escrito pelo inglês William Hope

Hodgson, em 1907. Está ambientado num meio de suspense, e terror. A

atmosfera visual do conto situa-se em maior parte no mar aberto, sobre

condições de visibilidade dificultadas pela ação de uma névoa espessa. O

autor faz a história transmitir sensações de apreensão, medo, silêncio,

expectativa e curiosidade. Hodgson, durante sua carreira como escritor,

constantemente escreveu histórias relacionadas à vida no mar, por ter servido

como ajudante de marinheiro por muitos anos. Nesta, ele fala sobre um casal

náufrago que se vê isolado em uma ilha tomada por liquens e fungos

pegajosos, que misteriosamente parecem cativar aos dois. O homem sai em

alto mar em busca de comida, e acaba relatando a alguns marinheiros a sua

história, mas não quer mostrar seu rosto, deixando os marujos angustiados, por

quererem ajudar a um estranho que resiste em mostrar sua face. Com o

desenrolar do conto, o homem revela que ele e sua esposa foram tentados a

comer o estranho líquen, que parecia ter vida própria, e crescia

exponencialmente por todo lugar onde passava. Ao final, revela-se que o

homem já estava tomado pelos fungos, tornando inclusive sua aparência

semelhante a de um, e o homem vai embora para a ilha, deixando os

marinheiros espantados e comovidos pela situação.

Alguns trechos que podem servir como referência na construção do

objeto prático de pesquisa, seja por apresentar alguma descrição visual ou

desenhar parte da atmosfera presente durante a leitura do conto:

Era uma noite escura, sem estrelas. Estávamos paralisados por

uma calmaria a um ponto qualquer do noroeste do Pacífico. Nossa

posição exata eu não sabia, pois com uma semana estafante e

sem brisa, o sol se escondera por trás de uma fina bruma flutuante

em volta de nós à altura dos mastros, mas que, por vezes, descia

e embrulhava o mar num lençol. (HODGSON, 1968, p.85)

Chamaram de novo: era uma voz rouca que não tinha nada de

humano, que se elevava de algum lugar, a estibordo, na noite

escura.

- Ei, vocês de bordo!

- Ei! – respondi, depois de recobrar o ânimo. – Quem é você e o

que deseja?

Page 45: Fazer Cartaz de Cinema

44

- Não tenham medo – replicou a voz que talvez tivesse notado

perturbação no tom da minha resposta. – Eu sou... apenas um

pobre velho. (HODGSON, 1968, p.86)

Houve uma pausa e em seguida a voz acrescentou num tom que

parecia suplicar perdão por sua audácia:

- Se eu me arrisquei a vir pedir auxílio é porque estamos famintos

demais e os sofrimentos dela (a esposa) me torturavam. (...)

Subitamente, eu me dei conta de que o Ser Invisível que nos

falava não estava louco, mas que, ao contrário, era vítima de um

horror inominável. (HODGSON, 1968, p.92)

A partir deste ponto a narração passa a ser pela voz do homem que foi

pedir ajuda, contando sobre o naufrágio do navio Albatroz e como ele e sua

esposa sobreviveram:

Durante quatro dias ficamos à deriva através daquela bruma, até

na noite do quarto dia, quando ouvimos o barulho de ondas que se

quebravam numa praia que devia estar próxima. (HODGSON,

1968, p.97)

Cheguei finalmente a bordo (de um veleiro abandonado). Lá eu vi

que o convés estava coberto quase todo de grandes manchas

cinzentas, algumas delas entremeadas de nós que se elevavam

muitos pés acima do assoalho. (HODGSON, 1968, p.98)

Com efeito, conquanto um de nossos primeiros cuidados tivesse

sido raspar aquelas bizarras placas de vegetação que cobriam o

chão e as paredes dos camarotes e do salão, estas tornavam a

crescer no período de vinte e quatro horas. Isso não somente nos

desanimava como também nos dava uma vaga sensação de mal-

estar. (HODGSON, 1968, p.100)

Quando nos aproximávamos, notei que os horríveis cogumelos

que nos haviam afugentado no navio se espalhavam literalmente

pela terra firme. Em certos locais formavam horríveis e fantásticos

montículos que pareciam quase fremir quando o vento os agitava.

Era como se tivessem vida. Aqui e ali tomavam a forma de dedos

enormes e por vezes se espalhavam doces e traidores sobre o

solo. Algumas vezes, ainda, assumiam o aspecto de árvores

Page 46: Fazer Cartaz de Cinema

45

grotescas, cheias de nodosidades. E tudo aquilo, de quando em

vez, tremia de modo hediondo. (HODGSON, 1968, p.102)

Virei-me rapidamente e vi uma massa de líquen de forma

extraordinária, bem perto do meu cotovelo, agitando-se com um

movimento regular. Essa massa balançava com inquietação, como

se estivesse animada de uma vida própria. (HODGSON, 1968,

p.107)

Um braço em forma de galho se destacava das massas cinzentas

em torno e vinha em minha direção. A cabeça da coisa – uma bola

cinzenta e sem forma precisa – estava inclinada para o meu lado.

(...) Mas a minha angústia era insuportável, pois eu estava certo

de que acabava de assistir ao fim de um dos homens que tinham

aportado ali com aquele barco veleiro. E aquele monstruoso fim

prenunciava o nosso. (HODGSON, 1968, p. 108 e 109)

Após o homem contar sua história, a narração volta a ser do marinheiro

interpelado, que tentava enxergar o homem com quem conversara no mar por

tantas horas.

Instintivamente percebi qualquer coisa que se agachava entre os

remos. Parecia uma esponja: uma grande esponja cinzenta e

curvada. Os remos continuavam a fender o mar. Eram cinzentos,

como também era o bote. Meus olhos procuraram em vão o

contato da mão com o remo. Meu olhar fixou-se na cabeça. Ela se

inclinava para a frente, enquanto os remos mergulhavam para

trás. Depois, o bote saiu da mancha de luz e a... coisa continuou a

avançar hesitante para dentro do nevoeiro. (HOSGSON, 1968,

p.111).

Com base nestes trechos do conto de Hodgson, obteve-se um

referencial suficiente para criar as peças gráficas, valorizando as descrições

visuais do autor e tirando proveito da atmosfera de suspense já comentada que

é sugerida ao longo da obra.

Para a manipulação da peça principal, foram utilizadas imagens livres,

de stock de sites como o Stock.xchng7

7 Disponível em:

, suficientes para encontrar os elementos

http://www.sxc.hu. Acesso em: 21/12/09

Page 47: Fazer Cartaz de Cinema

46

necessários para a representação desejada. O cenário do cartaz mostra o

navio abandonado onde o homem náufrago se depara pela primeira vez com

os liquens cinzentos que tomam parte crucial na trama. A cena representada

na peça tenta deixar transparecer a atmosfera e a sensação apreendidas a

partir da leitura do conto, por isso a névoa e a imensidão do mar estão

presentes. Os liquens aparecem em quase todo o casco da embarcação e

possuem alguns ramos mais abundantes na ponta e no topo do navio.

A observação de cartazes de filmes do gênero do realismo fantástico

auxiliou na composição do cartaz, sobretudo para gerar o ambiente em

questão, tentando comunicar ao espectador a aparência do hipotético filme. O

clima de suspense em muito foi inspirado por filmes que misturam o mundo da

fantasia com o terror, como o Labirinto do Fauno, por exemplo.

A lua cheia, hiper-realista e em proporções colossais, é um elemento

bastante recorrente que coube no cartaz para ajudar a preencher o ambiente

noturno e com incursões fantásticas da peça. Não por acaso, a lua nestas

condições também é vista na cena representada do cartaz analisado do

Labirinto do Fauno.

Figura 28: A lua, o céu, alguns liquens e

o barco, algumas das imagens utilizadas na fotomanipulação do cartaz.

Page 48: Fazer Cartaz de Cinema

47

Muita neblina e nuvens escuras foram utilizadas para contribuir com os

elementos de mistério e medo do conto, também tendo sido observados como

componentes de aparição freqüente no gênero da fantasia, sobretudo em

temas mais correlatos ao terror. O uso dos tons escuros, o uso abundante de

preto, foi uma característica observada do expressionismo alemão citado nos

capítulos anteriores.

Quanto à tipografia utilizada para o título, além de uma fonte de

influência gótica, eleita tanto por ser peculiar em temas mais obscuros,

referentes ao ocultismo (também supracitado), quanto por dar um tom de

literatura romântica à peça, apresenta a cor vermelha. Foram observadas para

as análises diversas peças gráficas referentes a filmes de apelo semelhante à

obra de Hodgson. Em várias delas, pôde-se constatar a presença de tipografia

avermelhada sobre uma ilustração em tons de azul. Isto, então, é

constantemente visto em filmes de suspense, alguns de apelo fantástico, como

no filme de Guillermo Del Toro inclusive, A Espinha do Diabo (2001). Além de

recorrente, imprime à peça um alto valor de contraste, causando tensão na

composição, entre as cores azuis e vermelhas.

FIGURA 29: A Espinha do Diabo

Para a confecção do teaser, foi escolhida uma solução muito mais

simples. A lua, muito maior e ainda mais hiper-real, serve como um elemento

Page 49: Fazer Cartaz de Cinema

48

que apresenta a faceta noturna do conto, que permeia quase toda a história.

Os elementos atmosféricos que têm presença no cartaz, como a névoa, o azul,

as sombras, também aparecem nesta peça, mantendo uma identidade concisa

para apresentar a obra como um todo. No topo vêem-se os liquens, que têm

presença importante na narrativa do conto, praticamente cumprindo o papel de

um tirano, que não se percebe representado por nenhuma das personagens.

Estes liquens têm função semelhante à da tipografia no centro, que apresenta

a data de estréia do hipotético filme: gerar um sentimento de curiosidade no

espectador que se depara com a peça.

Page 50: Fazer Cartaz de Cinema

49

7. Conclusão

Após comentários dos objetos resultantes da pesquisa, resta dialogar

sobre os resultados da mesma. Observando que o objetivo principal desde o

começo do estudo visava relacionar imaginário e design, a partir da análise de

cartazes de filmes do realismo fantástico, percebe-se que o principal diálogo a

ser indagado foi realizado. Tocaram-se aqui diversos assuntos que

contemplavam o foco do trabalho, ao lançar olhares sob teorias do imaginário,

da razão sensível, do design como prática projetual a partir dos estudos do

imaginário, literatura realista-fantástica e do cinema no curso da fantasia.

Esta pesquisa fez relações que dão margem a especular como os

campos imaginários participam na formação de um ambiente que liga o homem

contemporâneo ao seu entorno. Observou-se como o imaginário é presente

nas realizações do pensamento humano transposto em criação. Ligou-se a

noção de imaginário a prática projetual, e discutiu-se sobre estes estudos que

podem levar obras a tomar proporções mais afetivas, ao fazê-las relacionarem-

se mais com as impressões e percepções, por fim, com os sentidos.

Além disso, com este estudo, foi possível observar o imaginário de uma

obra a relacionar-se com o designer no desenrolar de um processo criativo. Foi

proposto e investigou-se a respeito da forma como linguagens visuais oníricas

e surreais podem ser expressas através dos projetos de cartazes, com o

estudo e mapeamento dos elementos de recorrência destas linguagens dentro

do subgênero do realismo fantástico. Por meio destas relações e demais

noções apresentadas no decorrer da pesquisa, também puderam ser

observadas as conexões da linguagem gráfica de cartazes com a estética dos

filmes, através de uma perspectiva do imaginário.

Propõe-se, com o desfecho deste trabalho, que se investigue mais sobre

as possibilidades dos campos do imaginário, sobretudo em áreas que

demandam da criação visual, como o design e o cinema. Na fotomanipulação,

por exemplo, onde pode haver interferência de objetos em ambientes onde

seriam improváveis, em que se podem criar, a partir de imagens realistas do

cotidiano, cenas que só seriam possíveis nos devaneios mais surreais ou em

exercícios imponderáveis de fantasia, abre-se um campo fértil para a

continuidade de estudos relacionados ao imaginário na prática do design.

Page 51: Fazer Cartaz de Cinema

50

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