fatia de guerra - andrew knoll
TRANSCRIPT
a
Fatia de guerrade Andrew Knoll
Longe de casa
por Eliane Karas
Fatia de guerra. / Andrew Knoll. Longe de casa. / Eliane Karas. – Curitiba : SESI/PR, 2010.
100 p. ; 20 cm. – (Núcleo de dramaturgia SESI Paraná, v. 7).
ISBN ???-??-????-??-?
1. Teatro (Literatura). 2. Teatro brasileiro. 3. Literatura paranaense.
I. Knoll, Andrew. II. Karas, Eliane. III. Títulos.
CDU 792
© 2010.
Todos os direitos desta edição reservados ao SESI-Departamento Regional do Estado do Paraná.
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, desde que citada a fonte.
FICHA CATALOGRÁFICA
Fatia de guerrade Andrew Knoll
Longe de casa
por Eliane Karas
[APRESENTANDO O PROJETO]
5
O lugar do teatro é o mágico, o breve instante
em que atores e plateia encontram-se um diante
do outro e, juntos, dão sentido à expressão que
denomina uma apresentação teatral: espetáculo.
Mas antes desse momento, o elemento essencial
para que o teatro exista é a palavra. Palavra que é
encenada, oralizada, dramatizada, escrita.
O teatro não pode seguir seu caminho evolutivo
sem que novos autores surjam e deem novos
significados à palavra dramatúrgica, ao texto
teatral. Por isso, por acreditar que é preciso
incentivar novos autores teatrais para se produzir
uma dramaturgia contemporânea, o SESI Paraná
implantou em 2009, em Curitiba, seu Núcleo de
Dramaturgia, em parceria com o Centro Cultural
Teatro Guaíra e apoio do British Council.
Após um ano de intenso trabalho, o projeto
resultou em uma coleção de mais de trinta textos
teatrais inéditos, prontos para ganharem os palcos.
Esta publicação traz uma seleção de 17 deles, de
16 autores diferentes, que ganharão montagens ou
leituras dramáticas.
São resultados a serem comemorados ao fim do
primeiro ano de existência de um projeto que
deve se estender por muito tempo. Em 2010, o
Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná dará um
novo passo, apoiando a solidificação da obra desses
novos dramaturgos, e buscando novos talentos que
contribuam ainda mais com a construção de uma
dramaturgia brasileira contemporânea.
Rodrigo da Rocha Loures
Presidente do Sistema Federação das Indústrias do
Estado do Paraná – Fiep
[APRESENTANDO O NÚCLEO]
7
Muito antes das cortinas se abrirem e da magia
do espetáculo começar, um personagem solitário
procura sua inspiração para compor cenas e
diálogos que sejam capazes de contar uma boa
história, de emocionar e fazer refletir, ampliando a
percepção e a visão de mundo do espectador.
No Brasil são raras as iniciativas de incentivo à
formação de autores teatrais, sempre restritas a
pequenos circuitos culturais, escolas de teatro e
ao trabalho individual e abnegado de uns poucos
acadêmicos que formam suas próprias turmas.
Foi dentro deste contexto e com o desejo
de incentivar a formação de dramaturgos
contemporâneos, que o SESI Paraná implantou
seu Núcleo de Dramaturgia em Curitiba, uma
parceria com o Centro Cultural Teatro Guaíra
e apoio do British Council. Entre suas principais
atividades estão workshops e palestras de iniciação
à dramaturgia, aulas regulares e encontros com
autores consagrados nacionalmente.
Ao final de um ano de intensos trabalhos, especialmente
através do intercâmbio com o experiente autor Roberto
Alvim, o Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná
produziu mais de 32 textos, cuja qualidade dramática e
originalidade foram avaliadas por uma curadoria.
Com o intuito de divulgar os novos autores, o Núcleo
de Dramaturgia do SESI Paraná decidiu pela publicação
de 17 textos (de 16 autores) dos quais cinco serão
apresentados em sessões de leitura dramática e um
será encenado em um evento especial durante a 19ª
edição do Festival de Curitiba.
Nosso Núcleo de Dramaturgia continuará as suas
atividades em 2010, contribuindo para consolidar a
formação dos autores que já o compõe e também
buscar e formar novos talentos com a participação
dos trabalhadores da indústria.
A expressividade dos textos já produzidos e o
grande interesse pela continuidade do Núcleo
de Dramaturgia apenas comprovam a relevância
do projeto, através do qual o SESI Paraná reforça
cada vez mais o seu compromisso de apoiar e
democratizar a cultura brasileira.
Agradeço a todos que, direta ou indiretamente,
participaram da seleção, edição, composição e
lançamento desta bela edição.
Boa leitura!
José Antonio Fares
Diretor Superintendente do SESI
NÚCLEO DE DRAMATURGIA DO SESI/PR
Inspirando jovens talentos a renovar a dramaturgia nacional.
[PARCERIA TEATRO GUAÍRA]
9
O Teatro, em sua essência, exige dois elementos:
dramaturgia e interpretação - o autor com a estória e
os atores que vão, em cena, dar vida à idéia, ao texto,
às personagens, às falas criadas.
O Serviço Social da Indústria – SESI Paraná, por
intermédio de seu Núcleo de Dramaturgia, uniu-se ao
Teatro Guaira que, entre outras tantas iniciativas, dá
suporte ao aprendizado desse ofício cênico e oferece
o aprimoramento àqueles que se dedicam a essa
difícil, porém, gratificante tarefa.
O entendimento sobre a fundamental importância da
arte de escrever para teatro – e também para ópera,
cinema e TV – soma as duas instituições nesse trabalho
conjunto que, realizado em várias modalidades,
abriu-se espaço, também, para a necessária troca de
experiência entre dramaturgos paranaenses e os de
outras cidades deste país e do exterior.
No final desta fase da ação, desenvolvida no Teatro
José Maria Santos, unidade desta Casa, procedeu-
se a seleção dos textos que serão produzidos, lidos
publicamente e impressos neste livro.
Nesta edição está o fruto do talento daqueles que
participaram do projeto em 2009. Aqui também fica
registrada a boa e profícua união, entre o Centro
Cultural Teatro Guaira e o Sesi Paraná.
Marisa Villela
Diretora-Presidente
Centro Cultural Teatro Guaira
[APOIO CULTURAL BRITISH COUNCIL]
11
O texto sempre teve um lugar de destaque no teatro
britânico e especialmente nos últimos 20 anos, novas
vozes e novas idéias de diferentes segmentos da
sociedade têm sido colocadas no palco através de uma
safra de novos autores, contribuindo para o contínuo
florescimento da dramaturgia no Reino Unido.
Tendo o texto como foco principal e inspirado no
sucesso do Núcleo de Dramaturgia SESI- British
Council, que prospera em São Paulo desde outubro
de 2007 e que, cada vez mais, é visto como referência
no desenvolvimento e na formação de novos autores
brasileiros, o British Council orgulha-se em apoiar o
Nucleo de Dramaturgia do SESI Paraná, hoje também
considerado como um pólo de excelência e cujo
trabalho é reconhecido nacionalmente.
É através de projetos como os Núcleos de Dramaturgia
e iniciativas como esta nova Coleção que 16 novos
dramaturgos podem hoje expressar a sua visão de
mundo, servindo de estímulo para outros novos
autores e talentos no Brasil.
Stephen Rimmer
Diretor de Projetos e Parcerias
British Council, São Paulo
[PREFÁCIO]
13
A DRAMATURGIA COMO NORTE
As obras dos autores reunidos nesta coleção (que se
pretende a primeira coletânea de muitas outras ainda
por vir) inscrevem-se no campo da Arte: configuram
um contra-fluxo às estratégias de construção da cultura
de massa. São textos que salvaguardam o Teatro como
um espaço (cada vez mais raro em nossa sociedade de
consumo idiotizante) para a ampliação da experiência
humana. Elaboradas durante a Oficina Regular do
Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná, realizada em
Curitiba ao longo do ano de 2009 (e em parceria com
o Teatro Guaira, British Council e Imprensa Oficial/PR,
sob a coordenação do dramaturgo Marcos Damaceno,
que juntos possibilitam a presente publicação e a série
de Leituras Dramatizadas que serão apresentadas no
Festival de Curitiba – 2010, assim como a encenação
efetiva de uma das peças), constituem-se como escrituras
que nos confrontam, em graus distintos, com questões
implacáveis (e incontornáveis) da vida contemporânea.
Não será fácil o diálogo com estas peças: recusando
estereótipos, negando a imagem padrão acerca da
condição humana com que somos bombardeados
diariamente, os dramaturgos aqui presentes encetam
tentativas de costurar redes de afetos e campos de
contradições que apontam para outras possibilidades
de compreendermos o tempo, o espaço, a vida
humana. A única arma de que fazem uso é a linguagem
– é através de diferentes e insuspeitadas manipulações
das palavras que estabelecem outras idéias acerca da
natureza mesma do real.
É fundamental destacar, neste prefácio, algo que será
facilmente verificável na apreciação direta dos textos:
tratam-se de peças absolutamente distintas umas das
outras, quer em interesses temáticos, quer nas escolhas
das estratégias de construção. O que afirmam (por
sua gravitação inevitável) é a necessidade imperiosa de
conquistarmos uma visão de mundo singular, descolada
dos discursos hegemônicos da cultura. É só através de
um olhar individual, da conquista (por cada um dos
criadores) da condição de alteridade, que se pode
perpetrar o ato mais revolucionário possível aos homens:
a re-construção do mundo através das palavras.
Constituindo-se como um desafio para encenadores
– e um convite perturbador para o público – as Poéticas
a seguir agem como um Norte, sugerindo caminhos e
desdobramentos para as questões (formais, existenciais...)
mais urgentes em nosso Teatro – e, inevitavelmente, em
nossa enigmática vida contemporânea.
Roberto Alvim
diretor, dramaturgo
e orientador da Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia
Dedicatória:
“A meu filho, Ihriel Siddhartha, que tanto ilumina o meu caminho”
15
[ Fatia de Guerra ]
por ANDREW KNOLL
Peça escrita durante a Oficina Regular
do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná,
sob orientação de Roberto Alvim, no
ano de 2009.
16 A n d r e w K n o l l
17
Grotas. Pampa. Minuano. Tertúlia.
Sons de cilhas, arreios e cincerros ao longe.
Céu limpo.
Verão.
Habitação simples.
Árvores em sua lateral esquerda.
Chegar em casa e deparar-se com as árvores nuas, transfiguradas.
Mar de cepos mortos.
...
Inverno Pleno
Grito surdo
Me falta o ar
Por fora e por dentro
Me resseco e me perco
...
Minhas memórias também estão fincadas, uma a uma, em sua lateral
Preenchem-se mais e mais com galhos novos até surgir a primeira folha, a primeira flor
Frutos jamais
...
18 A n d r e w K n o l l
ABRIR OS OLHOS
ABATER O CÃO
Necessidade imediata
Visualizar o ato antes mesmo de fazê-lo.
MÉTODO MÉTODO MÉTODO MÉTODO MÉTODO MÉTODO MÉTODO
Repetia para si. Policiar-se com suas atitudes, fria convicção.
Desviou-se da tarefa a manhã toda, desculpando-se com outros afazeres domésticos.
-AGORA NÃO... AGORA!
A cadela ressoa um ruído constante
Abatê-la.
Impossível prolongar seu sofrimento.
Dolorida, ainda podia correr entre os momentos em que se entregava ao sono.
PEQUENA HEMORRAGIA INTERNA.
INIMAGINÁVEL.
É ESTENDER A CARGA DE ANGÚSTIA QUE PRESSIONA O TEMPO A CADA SEGUNDO QUE SE
19
ESTENDE POR TODA A EXTENSÃO DE PERMANÊNCIA:
1.DO PENSAMENTO
2.DE EXISTÊNCIA
3.DO QUE NOS DIZ QUE É O AGORA/PALPÁVEL.
A cada segundo que a vida teima em continuar a luta ininterrupta por mais vida, braço a braço com cada
segundo que a morte sorve constante, pouco a pouco, a essência primeira:
1.DO PRIMEIRO SOPRO
2.DO PRIMEIRO ÊXTASE
***
O cão sonha.
RESPIRE. SENTIR-SE VIVO. OUÇA. LATIR PRA CONSTATAR.
AUF!OPEN YOUR EYES.
Daqui de baixo, mesmo na escuridão, eu cheiro e vejo a fumaça ao longe, depois dos clarões dos
bombardeios. Não mais estrelas. Eles cruzam o céu como cometas. Não o são. O assovio assombroso.
ATRÁS DOS CEPOS. ENCOLHER-SE!
***
20 A n d r e w K n o l l
Lembranças se engrossam ressequidas aos cepos mortos, aumentando em dimensão e em
aspecto grotesco
Cômodos da casa revividos por situações ativas na memória
Novamente verdes
Cômodos esquecidos pesam ainda mais escuros
Como esquecer o balcão?
A sala, o quarto, o porão?
De fato, de parte em parte, esqueci o porão.
***
Estão?
No parque.
Não. De novo... Estão?
...
No Parque de diversões.
Ok. Repita.
...
Estão no Parque de diversões.
Ok.
21
Continue...
Ela brinca com o cão de modo natural, fazendo-lhe festas e...
Não.
...
Repita.
...
Ela brinca com o cão de modo natural, enquanto é observada por um par de olhos atentos.
...
Ok.
...
PAPI! PAPI!
EU ME ESCONDO E VOCÊ ME ENCONTRA!
Ela beija-o e o abraça.
Pela geada, corre. Corre com pezinhos descalços.
Uma gota de sangue escorre de seu nariz.
Ela desmaia enquanto corre.
Não.
22 A n d r e w K n o l l
Uma gota de sangue escorre em filete de seu nariz e ela apaga enquanto corre.
Ok.
Ela cai bruscamente.
Não.
...
Em câmara lenta, deixa cair suavemente seu corpo branco nos cristais de relva.
Suavemente.
Suavemente pousa seu corpo branco nos cristais de relva, enquanto uma gota de sangue escorre em filete
de seu nariz
Suavemente.
Como se deitasse em lençóis brancos. Limpos. Confortáveis em sua casa segura. Limpa. Branca. Cristalina
de geada.
Ele já sabia. Ele já viu diversas vezes esta cena. Sempre se repete.
Agora seu batimento cardíaco se acelera. Ele não quer o tempo correndo para este desenlace. Impossível
conter o galope do tempo.
Inevitável não fazê-lo.
NÃO!
Somente pai e cadela no parque. Ele sabe que ela está doente. Ambos reconhecem-se sozinhos, numa breve
troca de olhares. Ele... suavemente... a acaricia.
CALMA... NÃO VAI DOER NADA... NÃO VAI DOER...
***
23
A cadela revolve o chão e descobre a arma na lata/caixa.
A mesma arma que um dia decidiu por nunca mais.
PAPI!
Sai correndo por onde entrou.
***
Inverno
Noite
Posto de Gasolina
(Casal chega de carro. Abastecem o carro e estacionam ao lado)
Ele
Ela
Atendente
Ritmo andante
Ele: Porque ficaste vermelha quando ele veio até nós? Juro por Deus que ficaste vermelha.
Ela: Que há contigo?
Ele: Que há comigo?
Ela: Já vais começar com as tuas insinuações, é! Mas que...
Ele: Mas o quê? Vai chamar-me de nervosinho de novo?
Ela: Nem precisa, não está vendo?
Ele: Não percebe o quanto de seriedade eu tenho me colocado aqui? E tu me dizes “Ah, estou
24 A n d r e w K n o l l
gostando, até agora!” Como se dissesse: “Ah, ‘stá gostoso, estou me divertindo às picas!” E claro
que não há nada de mais nisso, mas...
Não percebes o meu coração a sair pela boca? As pupilas dilatadas?
Estás a jogar comigo? Me testando? Continuar desta maneira... Não posso mais. Seria melhor
parar.
Os meus quereres não são os mesmos que os teus.
Não tenho nervos...
Não tenho nervos.
Ela: Mas o que estais querendo dizer?
Ele: Por Deus, estou louco. Quero fazer amor!!! Nada de verbos. Quero fazer amor!!!
Ela retira de forma extremamente erótica uma barra de chocolates. Abre, passa a língua
lentamente por sobre a mesma... e lhe oferece
Ele mudo, estupefato, com ar abobalhado.
Ele: Cacete! Não muda de assunto! Conheces o cara? Quem é o tal?
Silêncio
Ela: Era meu cunhado.
Ele: Teu...? Há!
Silêncio
Teu cunhado?
Ela: Sim, já não te disse? Meu cunhado! Meu ex-cunhado. Não é mais.
Ele: E qual o problema?
Silêncio. O atendente se aproxima com a chave do carro
25
A: A chave, senhor!
Ele: O rapaz, chega aqui!
Ele se aproxima
Ele: Conheces esta garota?
Ele a olha atentamente. Silêncio
A: Sim, conheço.
Ele: E podes me dizer de onde?
A: Eu fui casado com a sua irmã.
Ele: Cumprimenta-a.
A: Como ‘stá?
Ela permanece sem nenhum movimento, sem olhá-lo nos olhos. Têm uma expressa tensa
Black-out
Tempo
Luz
Ele está a jogar gasolina por cima do carro, e depois para dentro deste, pela janela da frente.
Não se pode ver dentro do carro. Devolve a mangueira no lugar.
Tira do bolso uma caixa de fósforos. Caminha para trás. Risca o fósforo.
Black-out
***
26 A n d r e w K n o l l
Menina
No meio da sala de jantar, ouvi o estampido seco, o ganir frouxo, o corpo tombado de lado e
girando no chão, de um lado para outro, com a barriga para cima. O rabo abanando.
No meio da tarde da sala de jantar, vi as paredes da casa tornarem-se ainda mais brancas, num clarão
repentino-cegante.
Depois, o cogumelo ao longe. Nunca vi um cogumelo de fumaça e fogo tão grande, e quis um igualzinho
pra mim.
A cadela parecia que estava mesmo era brincando, fazendo troça para o PAPI, como sempre o fazia...
Depois... A onda de choque me fez... flamar...
A radiação me faz cócegas.
Homem
Acreditei, por instantes, que via-a pela primeira vez, talvez tomado de assombro pela cena da morte, por
ver o tempo comprimido naqueles poucos segundos depois do primeiro estampido.
Tornara-se, por instantes, filhote novamente, a brincar.
Na morte iminente, o tempo se dobra de forma visível.
***
27
A arma ficava guardada desde que a havia adquirido na juventude. Lembrava-se vagamente deste instante,
e de quando cuspia projéteis na sala de testes, ou no campo branco, logo depois de sua:
1. MONTAGEM
2. COMPRA
3. EMBRULHO E DESEMBRULHO
4. LIMPEZA E CARGA
ELE NÃO A USAVA PARA NADA
A não ser no dia do acidente. Ela realmente não esperava que, sem querer, se dispara-se nas mãos da
menina, que estava a brincar e a correr pelo jardim.
Enfim, uma oportunidade, depois de tanto tempo. Ela sentia-se feliz. Reluzente, radiante com seu cano
longo SMITH & WESSON, seu tambor reluzente. O madeiramento do cabo, seu ponto máximo de orgulho
e soberba. Era sem dúvida uma madeira nobre. Mãos mais sensíveis poderiam desvendar sua história.
Sentiu a mão firme a tencionar-lhe o gatilho...
Silêncio
Som de tiro. Eco.
Gritou a plenos pulmões, deixando escapar pelo canto dos lábios a fumaça de pólvora que trazia na nuca.
Preparou-se para um segundo, ainda com a vontade inata de ver seu trabalho bem executado.
O dedo tenciona a partir dos feixes musculares interligados ao punho, antebraço, braço, ombro... Até o
primeiro impulso cerebral... Que por sua parte tenciona o gatilho, o tambor.
A engrenagem dura, fria. Perfeita.
O TEC! surdo...
Falhou.
Tempo congelado.
28 A n d r e w K n o l l
Madrugada
Infância
Barulho de correntes que ouvi, à noite em que meus próprios galhos cresciam silenciosamente
sob os lençóis
No sonho de queda, reteso-me
Cala-frio
Tive de ir buscar os cavalos no mato, ainda no escuro da madrugada
EU SÓ TINHA OITO ANOS
Não se pode distinguir muita coisa na escuridão
O coração à boca, os nervos travados pelo medo dificultando os movimentos
EU SÓ TINHA OITO ANOS
Tinha de ser eu
Acho que nunca sentirei tanto medo novamente
Esqueci, pouco a pouco, de como cresci
De quando chamei minha mãe pela última vez com voz de filho fértil
Esqueci o que queria já não ser quando cresci
***
29
Mirou os olhos do Homem com uma impressionante...
Não.
...
Mirou os olhos do Homem.
Ok.
Continue...
Mirou os olhos do homem. Viu-os apertarem-se. Uma lágrima curta, banhando a íris. Embaçado seu
reflexo.
...
Já não era mais a mão firme. Agora trêmula...
Não.
...
Já não era mais a mão firme. Abria-se o tambor e expunha seu recipiente interno.
Ok.
...
Continue...
...
Através do vão do tambor, ele percebe o rabo da cadela a acenar para si. De imediato, mais um tiro. Este
valeu.
Este valeu.
...
30 A n d r e w K n o l l
Continue...
Mirou em cheio, sabia disto. Mas notou que o Homem vira algo. Algo que ela, a arma, não havia visto.
***
Ele liga. Ela atende
Ele: Olá. Como vai?
Ela: Hey! Olá.
Ele: Como passaste estes dois dias? Ela: Passei bem. E tu? Ele: Fiquei aqui a imaginar...
Silêncio
Ela: Ficasse...?
Ele (sombrio): O que fizeste nestas duas noites... Onde foste, e com quem estiveste. Fiquei aqui...
no meu silêncio... me torturando...
Ela ri
Ele: O quê?
Ela: Bobo!
Ele: Como? Bobo? Ela: É! Bobo!
Ela torna a rir
Ele: Bobo eu?
31
Ela: Sim. Isso mesmo.
Ele: Estás a rir da minha cara?
Ela: Hey, hey! Calminha. Não te eleves a voz comigo, garoto. Não tens o direito.
Ele: Não tenho o direito... Então me dizes, com quem tu ficasse... Trepasse no carro? Sujasse os
bancos novamente?
Ela: Aff. Absurdo.
Silêncio. Ela suspira
Ele: E então?
Ela: O quê?
Ele: Não vais falar nada?
Ela: Não tenho nada que te dizer. Não te devo satisfações do que faço, do que não faço...
Ele: Ah, não deves? Esqueceu que tenho espadas? Ouro? Copas?
Ela: Não me importo.
Ele: Não deves... (vê-se brilhar uma lâmina sob o casaco)
Ela: É isto que ouviste. Não devo.
Ele: Então foi tudo um jogo?
Ela: Jogo?
Ele: É! Jogo! Joguete! Brincadeira.
Ela: Humpf! Não estou a jogar.
Ele: Jogas comigo. Todo o tempo.
Ela (ríspida): Não estou a jogar! Já não o disse?...
32 A n d r e w K n o l l
E pára com isso! Discussão boba.
Ele: Como? Boba?
Ela: É! Boba! Discussão infantil. Não precisávamos de nada disso.
Ele: Sim. Se, pelo menos, me tivesse ligado.
Ela: Te ligado?
Ele: Sim. Poderia ter-me ligado. Dado um alô! Dito: “Hey, como ‘sta?”
Ela: E tu?
Ele: ...ter dito: ‘Hey, como vai? Eu vou bem. Estou aqui a foder com um cara lindo. Conheci-o
na fila para o pub. Ele foi-me tão direto. Não ficou nada a me enrolar como tu.` Poderia ter-me
dito isto.
Ela: Imbecil.
Ele: Completamente.
Ela: Sim.
Ele: Por me doar a ti.
Ela: Hah!
Ele: Por me perder... o tempo e o coração.
Ela: Estás louco.
Ele: Completamente.
Ela: Louco.
Ele: Cuidado.
Ela: Bobo!
33
Ele: Cuidado...
Ela: Quê?
Ele: Cuidado! (ele puxa um Às de Espadas)
Ela ri-se, interrompida bruscamente
Som de suas respirações fortes e aceleradas
Som do telefone fora de linha
***
Por uma fresta da porta a menina vê o primeiro tiro
MEUS PÉS GELADOS
A cadela não morre de imediato
O MEDO CRESCE MAIS NAS MINHAS COSTAS
O pai puxa o gatilho pela segunda vez
PUPILA DILATA-SE
Vejo mais - A arma falha
OS TORNOZELOS CHOCAM-SE UNS AOS OUTROS
Ela percebe a intenção de um terceiro tiro
PULAR PRA FORA DA MINHA BOCA
34 A n d r e w K n o l l
Não se contém
DISPARO. DEIXO MEU CORPO PRA TRÁS
Corre. Corre com pezinhos descalços.
GRITO AGORA E SEMPRE GRITO AGUDO
A arma dispara. Assustada, cai da mão trêmula, sem jeito.
...
Quase tudo ao mesmo tempo.
...
ClarãoNoite.
PAI e FILHA.
PAI: trinta anos.
FILHA: 3 a 4 anos.
FILHA: Papai... Eu não quero morrer.
Som grave contínuo. Inicia alto, e baixa gradativamente.
Eu lembro da nossa cadela... Muito doente.
PAI: Isso se chama saudade. FILHA: Sau-da-de?
Som aumenta levemente.
Lembra quando ela brincava? Correndo do nosso lado... Pulava no rio.
FILHA ao PAI: E se a gente voltasse ao imício, papai?
PAI: Imício, filha? Quê é isso?
35
FILHA: Imício! Começar de novo.
PAI: Ah! I-ní-cio!
FILHA: Sim. Se eu voltasse... e a mamãe... VIVA!
PAI: Morta... FILHA: Ãh? PAI: ... ...
Dez anos de cicatrizes...
DEZ ANOS
E do seu desprezo.
Nunca um gesto de carinho.
NUNCA Uma palavra de amor. Conversas...
NUNCA
Partir o mundo ao meio eu quero. Das tuas palavras de silêncio criei conversas noite adentro.
Abraços nunca tive. Ternuras desviei. Chegas... CHEGA Desencilhas... CHEGA Entra em
casa, deixa o tirador e prepara o mate. É só isto que fazes. Não sou tua égua. Some pras
coxilhas!
...
36 A n d r e w K n o l l
PAI
AVÔ
MESTRE DE CERIMÔNIAS / PAI / Clownesno Demoníaco
Rufar de caixas.
Mestre de cerimônias-clown, no megafone. Tom exagerado.
O MUNDO LHES APRESENTA... A LINGUAGEM DA DOR!!!
Repique final! Sonoplastia circense ora em tom maior, ora menor.
PAI e AVÔ. AVÔ fala. Não se ouve o que ele diz. Ele está a bradar ao filho, numa discussão.
Há muito tempo o Sr. me fala disto...
AVÔ volta a falar, sem som.
Mas não têm importância, porque quando eu mudar, ninguém verá.
Não.
Assim como tenho mudado.
Não.
Assim como tu não têns visto.
Não.
Nunca verá .
Ok.
Continue...
Muito nobre da sua parte.
PAI, ao AVÔ: (modo monocórdico)
37
29 ANOS DE CICATRIZES DE SILÊNCIO.
NUNCA UM GESTO DE AFETO.
NUNCA DAS TUAS PALAVRAS DE SILÊNCIO CRIEI CONVERSAS NOITE ADENTRO.
ABRAÇOS NUNCA TIVE.
TERNURAS DESVIEI.
PRESSIONO MINHA FILHA COM O EXAGERO E O DESCONTROLE DE CARINHO QUE SÓ UM PAI
DESESPERADO PODE DAR.
Ela se torna parte de seu corpo.
QUASE NUNCA FALO A MÃO TREME segurando a carta afiada.
TREME O CORPO. DÉSOLÉ.
CARNE RASGADA DE MIM, vão caindo conforme eu seguro o silêncio minuano das tuas palavras.
QUERO E NÃO TENHO.
QUERO E NÃO TENHO.
PIOR: VIGÍLIA OU SONHO.
PORQUE SE MEUS SONHOS FOSSEM MENOS REAIS.
TRAGO COMIGO, DURANTE O DIA, SENSAÇÕES DA NOITE PÓSTUMA A fio, corto as carnes que
me sobram pelos espaços vazios, dos cantos frios que sozinho me encontro.
Como patins de gelo deslizando. Os cantos brancos me sussurram lembranças.
PAI deitado. FILHA criança aproxima-se devagar, até a altura de seus joelhos. Não se vêem suas
mãos. De repente, FILHA saca de uma grande espada. Aponta-a ao pai, meio do peito.
FILHA
Foi a mamãe que mandou.
38 A n d r e w K n o l l
Posso cortar seu pescoço? Posso?
...
Quase tudo ao mesmo tempo.
***
Partes secas se escondem e se expõem nele junto com as partes verdes, que crescem, por
vezes florescem
Perto dos olhos, lírios transbordam quando a parte decepada do coração empurra um galho
verde de artéria nova
Tenho a flor menor plantada no meio, na cavidade entre os pulmões. Ela têm já quatro ciclos
de estações
Sinto roçar suas pétalas sobre meus braços/galhos
Sei que vêns de longe.
***
39
3:20 a.m. (Flash)
3:19 a.m. (Flash)
3:18 a.m. (Flash)
3:17 a.m. (Flash)
(Estática) BOMBARDEIO PELO LADO LESTE! BOMBARD... (Estática) ...ADO LESTE! CÂMBIO!
A ogiva vermelha rasga o céu num grito que se aproxima
ELA SORRI! REPITO: ELA...(Estática)...SORRINDO! CÂMBIO!
Ninguém viu quando ela sorriu.
Com ela, corri anos mais tarde. E ainda lembro /Eco/
A CADA MANHÃ! COPIANDO! A CADA MANHÃ corremos descalços por entre as minas, no meio do
PARK. (Estática)
Clarão Sépia ***
Agarra-se e finca raízes... Ganha espaço e orvalho novo
Se espalha por todo o ambiente, como erva doce, como flor vestal
Trepadeira sedenta trepadeira que expande-se em seu próprio tempo.
***
40 A n d r e w K n o l l
A imagem da criança se desfaz
Arfar contínuo durante toda a cena.
ACORDO. O TIRO... ERRO.
Sem pensar, pego o animal ferido. Corro. Preciso de algo. Alguém. O que preciso? De quê? De quem? Um
carro. Árvores, pessoas. Bichos de olhos rápidos. Grandes pássaros negros cravam seus bicos afiados em
outros menores, dilacerando a carne ainda viva. Este, não este. Um outro que olha e aponta. Um doutor.
Um médico.
CORRA
CORRA
CORRA
Correr preciso. Encontrar alguém que possa...
Silêncio
HOMEM
Correndo na rua não parece mais do que a simplicidade estarrecida de um palhaço mal desenhado pelas
mãos de sua filha.
Clarão Off (criança ri)
O que é isso, querida? Um palhaço?
É você, PAPI! Você correndo carregando O DOG!
Clarão Seus olhos estavam agora como no desenho. Olhos grandes, esbugalhados, que poderiam refletir um
panorama magnífico, grande angular. A boca aberta busca o ar, a língua fora... Em desespero, o pensamento
age em turbilhão. Cruzo um parque de diversões.
41
O cão.
Pulso!Pulso. Pulso... Pulso... ... Puls ... Pul ...
***
Acordei com o clarão de luz na cara.
PERCEBI ESTAR DEITADO.
Luz e som difusos que foram tornando-se nítidos.
Sentia o corpo dormente.
Me perguntaram algo.
Parecia que estava debaixo d’água.
Distingui a palavra SONDA.
Distingui a palavra PÊNIS.
Senti a dor queimando o pau por dentro.
Gritei.
Me consolaram.
Enfermeira: Quantos foram os ataques?
Ele: ... Três ... ou quatro ...
Enfermeira: E tu, onde estava?
Ele: ... Tertúlia ...
***
42 A n d r e w K n o l l
Homem no parque, agachado. O cão já morto.
Chora copiosamente.
Filha aparece, e lhe afaga os cabelos.
Homem
Quem imaginou isto? Eu? Você? Onde está o que resta de mim? Neste espaço, eu divido com
você... com você, que me olha com estes olhos sem vida, um pouco da minha dor, e até mesmo para que
eu possa entender melhor tudo isto, e talvez possa até mesmo... esquecer. E ver isto tudo... num clarão...
de-sa-pa-re-cer...
Homem abraça a cadela. Luz sobe a FULL, ofusca o olhar da platéia.
***
Noite
Clarões de luz à frente
Bem próximos
Assovios riscando o ar próximo ao ouvido
Pólvora queimada, carne cauterizada... e enxofre
Frio. Muito frio. Depois, os paralelepípedos úmidos
43
Saliva, suor, sangue
Queda do corpo ao chão
Nuca bate
Joelho estala
Coração atabaque descompassado
***
Cadela:
Verão. Correr. Correr com pés descalços.
Deixo o sol afagar os pêlos e me aquecer por um momento. Me recolho. As patas... E a cabeça por sobre
as patas.
Então disparo.
Corro, corro... corro e dou voltas. E mais.
Sinto o cheiro dele e dela. Quero me aproximar. Ela brinca, brincamos juntas. Ele não faz muita questão.
Sei que hoje eu morro. Já o vi limpando a arma ainda há pouco. Eu a encontrei!... E a desenterrei.
Percebo sua tristeza, seu temor antes do ato. E tento confortá-lo. Do meu jeito, é claro. Fazê-lo entender
que já sei de tudo, e que ele não precisa ter medo algum.
Corro à volta de suas pernas, toco com o focinho, percorro a língua na ponta de seus dedos...
44 A n d r e w K n o l l
Suor...
Sua mão treme como nunca.
...
Aproveitar estes momentos como o são realmente: os últimos.
É o que mais desejo.
AUF! AUF! De imediato salto, e no ar, patas estendidas...
Sinto o pulsar, o coração na boca e...
novamente sou parte de tudo isto.
O quintal nunca foi tão meu, o gramado é meu, é meu o ar envolta, e que me queima os pulmões como
combustível. E o mundo envolto. Outros assovios vindos de cima.
Ogivas vermelhas se aproximam. Posso ver garras e dentes.
Elas e eu.
Rumamos juntas em direção ao solo. Aperto os olhos antes da queda.
Língua pra fora. Frio e calor como um só.
E não vejo...
mais...
nada
Clarão
45
Arreios: Conjunto de peças com que se aparelha o animal para montaria.
Cincerro: Chocalho ou sineta, colado no pescoço do animal através de uma coleira, geralmente bovino ou
eqüino, para guiar o resto da tropa.
Coxilha: É uma colina localizada em regiões de campos, podendo ter pequena ou grande elevação, em geral
coberta de pastagem. Este tipo de relevo é encontrado principalmente no estado brasileiro do Rio Grande do Sul,
numa região de campos denominados pampas, e no Uruguai, onde estas colinas recebem o nome de cuchillas.
Minuano: Chama-se minuano ao vento forte vindo do sul do Rio Grande do Sul, que atravessa a pampa gaúcha.
Em certos dias ele é tão forte que é possível ouvir seu som em forma de assovio.
Pampa: Planície extensa sem vegetação arbórea, porém rica de pastagens, especialmente no Rio Grande do
Sul e Argentina. Tertúlia: 1.Reunião de família. 2.Relações sexuais entre dois ou mais casais. 3.Agrupamento de
amigos.
[CURRICULO DO AUTOR ]
Andrew Knoll
Ator desde 1998, tendo a profissionalização desde 2001.
Trabalhando principalmente com o GRUPO PROPCESSO, do qual é membro fundador, e colaborando com outros
como a VIGOR MORTIS, COMPANHIA SILENCIOSA, Knoll vem desenvolvendo constante pesquisa na área de teatro
(dramático e pós), produção, direção e dramaturgia.
Recentemente, realizando trabalhos para o cinema, com a PROCESSO FILMES, - extensão do Grupo Processo - , e
produtoras parceiras como a GRAFO AUDIOVISUAL.
Integrante do Núcleo de Dramaturgia- SESI-PR
Coordenador de Produção para o cinema.
Dedicatória:
“A Mary Mieko Koike, a bibliotecária que me confiou seus livros mais preciosos. E ao Artur, que ouve, enlevado,
minhas histórias.”
[ LONGE DE CASA ]
por ELIANE KARAS
Peça escrita durante a Oficina Regular
do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná,
sob orientação de Roberto Alvim, no
ano de 2009.
51
UMA SALA DE PAREDES MUITO ALTAS.
PEQUENAS JANELAS DISTRIBUÍDAS IRREGULARMENTE.
UMA PEQUENA PORTA AO FUNDO.
ENTRA A FILHA ARRASTANDO UMA PEQUENA MEA.
COLOCA A MESA NO CENTRO DA SALA.
FILHA – Tive um sonho.
SAI. VOLTA ARRASTANDO UMA CADEIRA. COLOCA A CADEIRA JUNTO À MESA.
FILHA – Eu ia por uma estrada que de repente se bifurcava.
SAI. VOLTA COM UM PRATO, UM GARFO, UMA COLHER, UMA FACA E UM COPO. ARRUMA-
OS NA MESA.
SENTA-SE E FICA QUIETA POR UM TEMPO.
52 E l i a n e K a r a s
FILHA – No meio da bifurcação havia uma árvore. Carregada de bebês. Eles caíam no chão porque
estavam maduros. Quando caíam faziam ploc. Como frutas podres.
NUMA DAS JANELAS APARECE A CABEÇA DE UMA MULHER DECRÉPITA.
MÃE – Vai comer?
FILHA – Não tenho fome.
MÃE – Não come há dias. Vai ficar doente.
FILHA – Estou cansada de cozinhar. Elas comem muito. E bebem café sem parar.
MÃE – Estão dormindo. Por que você não sai?
FILHA – Está ouvindo?
MÃE – São ratos. As caixas estão cheias de ratos.
FILHA – Ainda está muito escuro. E não consigo terminar a mala.
MÃE – Compre tudo novo.
PAUSA.
FILHA – Você acha?
MÃE – Claro.
FILHA – E se depois eu não gostar? Eu nunca gosto. Gosto na hora... Não acredito que estou te ouvindo...
O que é que você sabe disso?
53
MÃE – Ninguém nunca soube...
FILHA – Está ouvindo?
MÃE – mas eu, sempre tive um sonho...
FILHA – (ESCUTANDO) Os ratos vão comer tudo.
MÃE – ... conhecer o deserto.
FILHA – Você?
MÃE – Ser trocada por um camelo. Viver numa tenda com um daqueles homens de turbante.
FILHA RI.
MÃE – Sabia que eles são azuis?
FILHA RI.
MÃE – E você?
FILHA – O quê?
MÃE – Você escrevia nomes de cidades nos seus cadernos. Eu nem sabia onde ficavam.
FILHA – Eu vou dormir.
MÃE – Filhinha, espere, não jogue fora meu jogo de porcelana portuguesa.
FILHA – Eu sabia. Essa conversinha... Você e suas malditas porcelanas.
FILHA VAI SAINDO.
MÃE – Era prá pra ser teu presente de casamento. Não é minha culpa se...
54 E l i a n e K a r a s
FILHA – Eu te lavei. Vi cada pedacinho do teu corpo. Mole. Nojento. Cheio de manchas. Deve ser por isso
que você nunca gostou de sexo.
MÃE – Quieta. Silêncio. São elas.
EM OUTRA JANELA APARECEM AS TRÊS MULHERES. SÃO VELHAS E UIVAM.
1.ª. MULHER – Isso são horas de mãe e filha discutirem? Vão dormir.
2.ª. MULHER – A noite não serve de conselheira.
3.ª. MULHER – Ai! Meu estômago dói. Preciso de comida.
MÃE DESCE COM AGILIDADE PELA LONGA PAREDE, SEGURANDO-SE EM ALGO QUE
PARECE UMA CORDA DE LENÇÓIS.
MÃE – Venha, eu vou te ajudar a fazer a mala. Santa Terezinha! Você fede a urina! Espere aí.
MÃE SAI.
MULHERES DESCEM PELA PAREDE COMO A MÃE.
FILHA ARRASTA UMA CAIXA, ENCOSTA NA PAREDE, SOBE NA CAIXA, ABRE UMA
JANELA. ESPIA PARA FORA. DESCE, ABRE A CAIXA ESCOLHE ALGUMAS COISAS, COM
INTENÇÃO DE JOGAR FORA.
DESISTE.
MÃE VOLTA ARRASTANDO UMA TINA.
55
MÃE – Vem. Tira a roupa. Vou te dar um banho.
FILHA SE DESPE. ENTRA NA TINA.
MÃE – Hoje é teu dia de rainha, minha filha. Você vai ser muito feliz. Levante os braços. Assim. Meu Deus,
que nojo! Precisa raspar esse sovaco! Homem não gosta de mulher relaxada!
(PARA AS TRÊS MULHERES) Venham aqui, me ajudem.
AS TRÊS MULHERES SE APROXIMAM RESMUNGANDO. UMA DELAS TRAZ UM
BARBEADOR, A OUTRA UM POTE COM ESPUMA, A OUTRA UM PINCEL. RASPAM OS
SOVACOS DA FILHA.
MÃE – Agora o vestido da noiva. Com cuidado para não amassar. Custaram os olhos da cara este vestido.
Mas é lindo, não é, minha filha? Você merece. Antes, seja sincera com tua mãe. Uma vez te vi no fundo do
quintal, o teu primo te bolinando. A mão por baixo da tua blusa.
FILHA – Mentira! Quem te contou?
MÃE – Não fique nervosa. Ninguém viu. Hoje você tem que estar calma e linda. Que pele, minha filha,
parece seda. Ele vai te tocar aqui. Bem no meio de tuas pernas. Não se assuste. Não vai doer nada. Se você
ficar tranquila, pensando só nos dedos dele entre as suas pernas, prá pra baixo e prá pra cima, prá pra baixo
e prá pra cima, então vai ficar toda molhada, e ele entrará com facilidade. Você ouvirá sinos tocando. A
hora! Meu Deus! Venham, rápido, o vestido! Vamos, primeiro as pernas, me ajudem aqui, agora os braços,
isso, vestiu. Quantos botões! Se ele for viril de verdade com um puxão te deixará nua. Jesus! O que é que
você andou comendo. O vestido não fecha. Socorro! Avisa o noivo. A noiva se entupiu de porcaria e agora
não passa de uma porca gorda. Cancela tudo. Vamos, suas velhas, mandem todo mundo embora.
56 E l i a n e K a r a s
MULHERES SE AFASTAM.
FILHA SE PAVONEIA COM O VESTIDO.
FILHA – Quando eu fiz minha primeira comunhão você disse que eu parecia uma noivinha.
MÃE -– Disse. Você ficou linda.
FILHA – As freiras disseram que se o véu fosse comprido elas cortariam na fila. Você fez véu comprido.
Minhas pernas tremiam.
AS TRÊS MULHERES, SENTADAS SOBRE A CAIXA, DORMEM.
MÃE – Escuta. Elas roncam. É noite. Aqui dentro e lá fora. Vai embora. Rápido! Pega uma lamparina.
FILHA – Amanhã. Senta aqui, eu vou pentear os teus cabelos.
MÃE – Aiii! Devagar. ! Faz tanto tempo que não me penteio. Há nós em cada fio dos meus cabelos. Na sua
primeira comunhão você fez cachos nos cabelos.
FILHA – Quando eu morrer, não terei uma filha para me pentear.
MÃE -– Você já é velha. Não é mais bonita. Mas, talvez, ainda possa ter um filho.
FILHA – Não quero um filho. Quero uma filha.
MÃE – Bobagem. Nenhuma mulher é amiga da outra. Lembro-me de você menininha. Nessa época, você
era minha amiga.
FILHA – E os teus santos? Será que dá azar jogar jogá-los fora?
PANCADAS FORTES DO LADO DE FORA.
57
FILHA – Calma! Eu vou atender.
A MÃE E AS TRÊS MULHERES SE APROXIMAM RAPIDAMENTE.
FILHA – Xô!!! Xô!!!! Fora! Eu não quero que ninguém veja vocês.
ELAS SE ESCONDEM. FILHA VESTE ALGO PARA ESCONDER O VESTIDO. ABRE A PORTA.
HOMEM – Boa noite! Desculpe! Não quero incomodar, se incomodo, volto outra hora.
FILHA – Não. De onde você veio?
HOMEM – Ouvi uma voz. Então, pensei, há uma vizinha ao lado. Mas se não for uma boa hora, volto outro dia.
FILHA – O que foi que você ouviu?
HOMEM – Acho que... sua voz... só pode ter sido. Falava alto, mas, na verdade, ainda não entendo com
muita clareza seu idioma.
FILHA – Sei.
HOMEM – À noite esfria um pouquinho, não é? Sou sensível à friagem.
FILHA – Entre.
HOMEM ENTRA E FILHA FECHA A PORTA. MÃE E MULHERES OBSERVAM.
FILHA – Está tudo um pouco desarrumado.
58 E l i a n e K a r a s
HOMEM – Uma bela casa. Paredes sólidas.
FILHA – É.
HOMEM – A casa onde morei a minha vida toda era assim, grande e sólida.
FILHA – Sei.
HOMEM – Posso me sentar?
FILHA – Ali.
HOMEM – Obrigado. Bela casa!
FILHA – É.
HOMEM – Quer que eu pegue uma cadeira para a senhora?
FILHA – Só tem essa.
HOMEM – Ah!
FILHA – O senhor veio sozinho?
HOMEM – Sim. Vim para conhecer novas pessoas. Então é melhor estar sozinho, não é?
FILHA – É. Nunca tinha pensado nisso.
HOMEM – Curioso... Onde eu morava havia uma moça muito parecida com você.
FILHA – Outra?
HOMEM – Não entendi.
FILHA – Viajar. Eu penso nisso. Um outro país. Estou de licença prêmio.
Mas, não sei fazer mala. Tiro e ponho as roupas o tempo todo e, ela nunca fica pronta.
HOMEM – Já pensou em comprar tudo novo?
59
FILHA – Não falo uma palavra de nenhuma outra língua.
HOMEM – Eu também não falava uma palavra da sua língua até chegar aqui. Mas aprendi rápido. Vê como
já falo?
FILHA – É. Tem sotaque. Mas é bonito o seu sotaque.
HOMEM – Bela casa. Paredes sólidas.
FILHA – O senhor queria algo?
HOMEM – Oh! Desculpe-me. Dois ovos. Foi isso que vim pedir. Gosto deles quentes, ainda bem moles.
Dois todas as noites. Há quem goste dos ovos pela manhã. Para a maioria das pessoas ovos à noite não
caem bem. Mas não para mim. Sinto-me rejuvenescido.
FILHA – Vou buscar os ovos.
FILHA SAI E VOLTA EM SEGUIDA COM OS OVOS.
HOMEM – Muito obrigado! Você lembra a moça da minha cidade. Isso deve ser bom!
FILHA – Está bem.
HOMEM DESPEDE-SE E SAI. FILHA VAI A UMA DAS CAIXAS RETIRA COISAS E AS JOGA
PARA FORA SEM TITUBEAR.
A MÃE E AS TRÊS MULHERES A OBSERVAM.
FILHA SAI DE CENA E VOLTA EM SEGUIDA COM UM PRATO DE COMIDA NA MÃO. SENTA-
SE NA CADEIRA E COME UM POUCO. TEM ENJOO. QUASE VOMITA. DESISTE.
A MÃE E AS MULHERES FAZEM ENTRE SI SINAIS DE SILÊNCIO.
AS MULHERES VOLTAM A DORMIR.
60 E l i a n e K a r a s
MÃE – Seu pai ficou impotente muito cedo. Tentava entrar, mas não conseguia. Você não sabe o quanto eu
gostava de sexo. Eu perdia o sono de madrugada e minhas mãos procuravam o sexo do teu pai. Eu gemia
madrugada afora. Às vezes você acordava e eu saia da cama melada, escorrendo pelas pernas. Quando
voltava, ele estava dormindo, mas eu o acordava. Depois, não houve mais sexo. Você, quando morrer, terá
mortalha branca, branquinha. De virgem. E no dia da tua morte eu vou subir no telhado e uivar como uma
gata no cio.
FILHA – Por que você me odeia?
MÃE – Você é a minha menininha.
FILHA – Quando tinha visita e você queria que eu dissesse a tabuada, eu errava de propósito.
MÃE – Eu nunca soube a tabuada. Achava bonito saber a tabuada de cor.
FILHA – Você me perdoa?
MÃE – Não sei.
SILÊNCIO.
FILHA – Elas precisam ir embora. E se eu soltasse aqui dentro uns cães ferozes, sem água e sem comida?
MÃE – Não vai adiantar. Elas são ciosas de suas obrigações.
FILHA – Eu devia ter ido embora. Devia. No dia seguinte.
MÃE -– Você vai ficar como elas. Não demora e estará vestida de branco, véu negro, um grande lenço nas
mãos, arrastando suas lágrimas e seus lamentos.
Você parece uma árvore morta em pé. Não há nada mais triste do que uma árvore morta em pé.
FILHA – Você sabia que existem espécies de árvores que são encontradas sempre em grupos? Uma
favorece a germinação e o crescimento das outras.
61
MÃE – E daí?
FILHA – E há aquelas que só crescem isoladas... Só se encontram outras da mesma espécie a quilômetros
e quilômetros de distância. Como você.
AS TRÊS MULHERES ACORDAM UIVANDO.
1.ª MULHER 1 – Vai dormir, menina.
2.ª MULHER 2 – Vai fazer a mala, menina.
FILHA – Vou limpar o outro quarto.
FILHA SAI. MÃE ABRE A CAIXA E TIRA ALGUNS QUADROS QUE PENDURA NA PAREDE.
SÃO QUADROS SEM COR E SEM IMAGEM.
PANCADAS NA PORTA. A MÃE E AS MULHERES SE ESCONDEM. FILHA VEM VAI ABRIR.
CONTINUA VESTIDA DE NOIVA, MAS ABOTOOU O VESTIDO E PÔS UM LAÇO NA
CINTURA..
HOMEM COM UMA CADEIRA NA MÃO E UM ENVELOPE COM FOTOGRAFIAS.
HOMEM – Trouxe umas fotos da minha casa.
HOMEM ENTRA. A ROUPA DA FILHA NÃO LHE DESPERTA NENHUM ESTRANHAMENTO.
PÕE A CADEIRA AO REDOR DA MESA. TIRA UMA GARRAFA DO BOLSO E UM COPO.
SERVE O COPO QUE TROUXE E O COPO DA FILHA.
62 E l i a n e K a r a s
HOMEM – Quando decidi viajar, pensei em vender a casa. Mas, para quê? É só uma casa. É grande e sólida,
e eu sempre posso querer voltar.
FILHA OLHA AS FOTOGRAFIAS.
HOMEM – Na minha cidade todo mundo me conhecia. É uma cidade pequena. Muito organizada. Lá, cada
coisa está em seu lugar.
FILHA – Faz frio na sua cidade?
HOMEM – Ah! Faz. Mas minha casa é quente. As paredes são grossas e o aquecimento é muito bom.
FILHA – Sempre tive vontade de conhecer um lugar frio, onde nevasse.
HOMEM – A neve é triste. São dias e dias cinzentos. Bom é aqui, esse sol. Céu azul. Você não sente calor
aqui dentro?
FILHA – Não. O vento encana quando abro as janelas. Não gosto de vento.
HOMEM – Pois eu gosto! Principalmente se for vento do mar. Na minha cidade quando venta parece alma
penada uivando. (HOMEM RI)
FILHA – Você acredita em alma penada?
HOMEM – Pra falar a verdade, não. Você se interessa pela morte? Morrer é fácil e rápido. Há várias
formas de se morrer. Mas é necessário precisão e destreza. A morte pode ser limpa e indolor.
FILHA – A morte. Eu não entendo. Na morte se perde a dignidade.
HOMEM – Não. É preciso muito respeito pela morte. Veja, é possível morrer decapitado sem espirrar uma
gota de sangue em ninguém. Mas o executor precisa ter muita habilidade. É uma arte. Um belo ofício. Meu
tataravô foi o primeiro de minha família. Depois ensinou ao filho dele, que ensinou ao seu filho, que ensinou
ao meu pai, que me ensinou. Meu pai nunca voltou para casa com uma gota de sangue. Hoje em dia, é claro,
63
as coisas evoluíram, usamos injeções letais, choques. Perdeu-se o romantismo. Bonito mesmo era o corpo
balançando no ar, a cabeça pendente. Um corte perfeito de espada ou guilhotina. A cabeça separada do
corpo com absoluta precisão. Sem dor. Ë muito importante não deixar a vítima sofrer.
FILHA – Nunca teve pesadelos?
HOMEM – Não.
FILHA – No meu trabalho eu executo dívidas. Eles imploram. Prometem. Na hora eu nem ligo. Faço meu
trabalho e pronto. Quem mandou não pagar? Eu não tenho culpa. Só faço meu trabalho. Mas, mesmo
assim, sonho.
PAUSA.
HOMEM -– Mais vinho?
FILHA -– Posso lhe pedir um favor?
HOMEM – Claro.
FILHA – Eu vou sentar no seu colo. Você levanta meu vestido, coloca seus dedos entre as minhas pernas,
e eu vou me concentrar. Quero ver se consigo ficar molhada.
HOMEM – Ah! Pois não!
FILHA SENTA NO COLO DO HOMEM QUE A MASTURBA COM PRECISÃO CIENTÍFICA. ELA
GEME E TEM UM ORGASMO DISCRETO. ELA LEVANTA E SENTA-SE NA CADEIRA. ELE TIRA
UM LENÇO DO BOLSO E LIMPA, METICULOSA E DELICADAMENTE, SEUS DEDOS.
FILHA -– Você tem fome? Posso preparar alguma coisa.
64 E l i a n e K a r a s
HOMEM – Acho que eu ia gostar.
FILHA SAI E TRAZ UM FOGAREIRO QUE COLOCA SOBRE A MESA. PREPARA UMA
COMIDA.
HOMEM DIRIGE-SE À CAIXA E RETIRA OUTROS QUADROS DE DENTRO DELA. VAI
PENDURANDO PELA PAREDE.
HOMEM – Eu sempre tive muito tempo livre. Então, tomei gosto pela arrumação da casa. Depois que
minha mãe morreu, eu cuido de tudo. E não há um grão de poeira. Pode-se vasculhar a casa toda.
FILHA – Detesto limpar. De uns tempos para cá não tenho mais nem o que vestir. Gosto de cozinhar.
Cozinho o tempo todo. Como não tenho fome, a comida estraga.
HOMEM – Na minha casa há uma horta. Planto ervas aromáticas. Acho bonito. Mesmo não sabendo
cozinhar.
FILHA – Que perda de tempo!
HOMEM – Você não planta? O clima do seu país é perfeito.
FILHA – É melhor comprar na feira.
HOMEM – Não! O prazer de ver a plantinha crescer. Arrancar as ervas daninhas. Colher as ervas perfumadas.
FILHA – Está quase pronto!
HOMEM – Que cheiro bom! O que é?
FILHA – Um prato que a minha mãe fazia para mim.
HOMEM – Minha mãe me fazia um mingau de alho nas manhãs frias. Era quente, cheirava bem, e me dava
uma felicidade enorme. Não me lembro da receita. Uma pena.
65
FILHA SERVE. ELE COME.
HOMEM – Bom. Muito bom. Depois das execuções eu chegava em casa com muita fome. E tinha vontade
de contar os detalhes. Mas minha mãe nunca permitiu. Então, se eu comia com gosto, ela sabia que tudo
tinha sido perfeito.
FILHA – Quer mais?
HOMEM – Obrigado.
FILHA – Você vai voltar?
HOMEM – Vou.
HOMEM SAI, LEVANDO A CADEIRA, O COPO, A GARRAFA E O ENVELOPE COM
FOTOGRAFIAS.
FILHA CONTINUA SENTADA ABSOLUTAMENTE QUIETA.
MÃE SE APROXIMA.
MÃE – Cuidado com esse homem. Tem cara de manso, mas ninguém sabe de onde veio.
FILHA – E que diferença faz prá pra você?
MÃE – Eu sou tua mãe. Tenho medo que te façam mal. Não quero que te aconteça nada.
ENQUANTO A MÃE FALA, FILHA VAI ATÉ UMA CAIXA. TIRA UMAS FLORES ARTIFICIAIS
E AS AJEITA NOS CABELOS.
66 E l i a n e K a r a s
FILHA – (OLHA PARA A MÃE) Não se preocupe. Nunca me acontece nada.
MÃE – Vermelho? Você nunca gostou de vermelho.
FILHA – Do que é que você está falando?
MÃE – Das flores.
FILHA – (OLHANDO A FLOR) Vermelho. É bonito.
MÃE – Eu me sinto muito mal. Fraca. Estou me esvaindo. Sente o meu cheiro?
FILHA – Não.
MÃE – Podre. E se ele só quiser te roubar? Ele é delicado demais. Bonzinho demais. Não confie nele... Eu
tenho experiência. Já vi homens assim fazerem coisas horríveis.
FILHA – Gostei dele.
MÃE – Eu acho que você devia vender esta casa.
FILHA -– Nunca vou te entender.
MÃE – Mudar. Pode ser bom. Lembra daquela tua tia, irmã mais velha do teu pai?
FILHA -– A cascavel?
MÃE – Está tão sozinha. Você podia pedir uma transferência. Podia morar com ela.
FILHA – Enfermeira de novo? O cheiro de ferida aberta ainda não saiu das minhas mãos.
MÃE – Porque é teimosa. Nunca abriu a caixa de luvas.
FILHA – Eu sou alérgica.
MÃE – Você é fraca.
FILHA – Cala a boca. Engole a tua língua. Se afoga com ela.
67
TOCA UMA CAMPAINHA. UM SOM AGRADÁVEL. FILHA VAI ABRIR.
FILHA – Ouviu? É para mim. Saia.
FILHA ESPERA MÃE SAIR. ABRE A PORTA, ENTRA O HOMEM COM UM BOLO ENFEITADO NA
MÃO.
HOMEM – Para você.
FILHA – Não é meu aniversário.
HOMEM – Você gosta de aniversários?
FILHA – Nunca me lembro no dia.
HOMEM – Vamos comer?
FILHA – Espere. Antes, você pode me bater? No rosto, com força.
HOMEM A OLHA.
FILHA - – Não vai doer. E se doer... não faz mal. É bom com dor. Rasgue a minha roupa. Aqui... me bata
aqui... Eu quero gritar. Vamos, bata. ! Com força. Eu vou gostar.
HOMEM – Não consigo fazer isso.
SILÊNCIO.
68 E l i a n e K a r a s
FILHA – FAÇA.
SILÊNCIO
FILHA – Pensei... que os homens gostassem.
HOMEM – Não. Alguns.
FILHA – Desculpe.
HOMEM – Você é bonita.
FILH A – Não sou. Agora você vai embora?
HOMEM – Não.
FILHA – Você não tem medo desta casa?
HOMEM – Não. É uma casa bela e sólida.
FILHA – Esta casa está cheia de teias de aranha. A parede tem fissuras.
HOMEM – Não vejo nada.
FILHA -– Quando eu era criança um monstro morava no meu quarto. Depois, ele se foi. Mas eu ainda sinto
medo.
FICAM EM ABSOLUTO SILÊNCIO.
FILHA -– Você está ouvindo?
69
HOMEM PRESTA ATENÇÃO.
FILHA – São ratos. Preciso pôr veneno nas caixas. Está tudo tomado. Quase todas as caixas têm ninhos
cheios de filhotes.
HOMEM – Você está enganada. É chuva! Eu adoro a chuva no seu país. É lindo chover num dia de sol. Veja!
Está entrando pela janela. Venha, vamos nos molhar.
O HOMEM A CONDUZ PARA A CHUVA FINA QUE ENTRA PELAS JANELAS. ELA O
ACOMPANHA PASSIVAMENTE. ELE TRAZ A CADEIRA. ELES SENTAM JUNTOS. CHOVE
SOBRE OS DOIS.
HOMEM – Talvez estrague o seu vestido
MULHER – Eu ia jogar fora quando você chegou.
HOMEM – Você fica bonita assim. Devia se molhar mais vezes. Mas, cuidado, pode pegar um resfriado.
FILHA – Eu nunca fico doente.
HOMEM – Nunca vi a moça que lembra você, assim, molhada. Posso tocar seus seios?
FILHA – Pode.
ELE O FAZ.
FILHA – Você pensa em voltar?
HOMEM – Talvez.
70 E l i a n e K a r a s
FILHA – Quantas pessoas você já matou?
HOMEM – Eu não diria assim.
FILHA -– Quantas?
HOMEM – Nunca contei. Não parecia respeitoso.
FILHA – Seus mortos nunca voltaram?
HOMEM – Os mortos não voltam.
FILHA – Nunca?
HOMEM – Precisam ser bem enterrados.
FILHA – Olhando prá pra você é difícil de acreditar. Como era?
HOMEM – Falar disso não explica. Falei uma vez. Minha mãe tinha morrido. Não havia nada para comer.
Então eu comia fora. Numa noite tomei vinho demais.
Estava frio.
Ri demais.
Falei demais.
Tudo se espalhou como fogo.
(RI) Uma boa mulher a minha mãe. (PAUSA) E a sua como era?
FILHA – Comum.
HOMEM – Você se parece com ela?
FILHA – Não. Talvez quando eu era criança.
HOMEM – É bom parecer com os nossos.
71
FILHA – Passei todas as noites da minha vida sob esse teto...
HOMEM – Engraçado. Eu também.
FILHA – Por que você não ficou lá?
HOMEM – Eu ainda estou lá. Só estou esperando que esqueçam.
FILHA – Acho que eu estou muito cansada. Preciso dormir.
HOMEM SAI.
MÃE ENTRA GRITANDO SEGUIDA DAS TRÊS MULHERES.
ELAS UIVAM.
MÃE – Socorro! Estou cega! Completamente cega!
MULHERES UIVAM AINDA MAIS.
MÃE -– Saiam! Chega! Ai! Minha cabeça!
MULHERES SAEM
MÃE – É culpa dessa escuridão. A culpa é sua. Você tomou conta desta casa. Agora chega. Abra as
janelas!
FILHA COLOCA A MÃE SENTADA NA CADEIRA E ABRE TODAS AS JANELAS.
72 E l i a n e K a r a s
MÃE – Daqui a pouco passa.
FILHA – Você nunca teve isso.
MÃE – Tive. Uma vez. Ai, minha filhinha! Você ainda era tão menina.
FILHA – Não me lembro.
MÃE – Nunca nenhuma palavra. Silêncio! Ninguém pode saber! Não conte pra ninguém. Nunca aconteceu.
Ninguém pode saber. Não aconteceu. Não aconteceu. Não aconteceu.
(PARA A FILHA) Repita, minha filha. Não aconteceu
FILHA – não aconteceu
não aconteceu
não aconteceu
MÃE – Isso, filhinha. De novo.
FILHA – não aconteceu
MÃE – Isso. De novo. Bem devagar.
FILHA – não aconteceu
não
não
(FILHA GRITANDO)
NÃO
NÃO
(PAUSA)
73
não me castigue!
Não me castigue!
Eu estou suja, mamãe. Eu me sujei.
Meu vestido... todo sujo.
Eu fiquei suja.
Ainda estou.
Estragou o meu vestido...
Estou toda melada, papai...
MÃE – Eu pensei que você tinha esquecido.
FILHA – A culpa foi minha. Você disse.
MÃE – Não.
FILHA – Você gritava, gritava.
MÃE – Não.
FILHA – Eu ouvia você chorando.
MÃE – Não.
FILHA – Você vagava pela casa. Eu tinha medo de você.
MÃE – Não.
SILÊNCIO.
74 E l i a n e K a r a s
FILH A – Por que papai foi embora?
MÃE – Apenas foi.
FILHA – Quando ele saiu... eu vi... corri atrás... ele não me olhou...
MÃE – Os homens são assim.
FILH A -– Foi por minha causa.
MÃE – Não. Você era tão pequena.
FILHA – Quieta! Está ouvindo? Agora, não são elas. Nem os ratos. Tem gente cochichando. Está vendo?
Cochicham.
MÃE – Filha... Perdão, eu achava que você esqueceria.
FILHA – Eu vou dormir. Boa noite.
FILHA SAI. MÃE FICA SENTADA.
MULHERES SENTAM AO SEU LADO.
FILHA ENTRA EMPURRANDO CAIXAS. COLOCA TUDO NA SALA. ABRE UMA E OUTRA.
JOGA COISAS PARA FORA, PELAS JANELAS ABERTAS.
FILHA CHORA E JOGA COISAS.
FILHA PÁRA PARA E DESCANSA.
PELA PRIMEIRA VEZ O DIA AMANHECE.
MULHERES – Estamos com fome. Você não vai preparar nosso café?
FILHA – Passei a noite toda limpando esta casa. Uma imundície. Teias de aranha. Ninhos de rato. Gavetas
entulhadas. Comida podre por todos os cantos. Estou exausta.
75
MULHERES – Nós não podemos ficar sem comer. Faz parte do nosso trato.
FILHA – Já está acabando. Daqui a pouco vocês irão vão embora.
1.ª MULHER 1 – Então você vai comer?
2.ª MULHER 2 – Devia tomar um banho.
3.ª MULHER 3 – E arranjar um coração novo.
MÃE – Aiiii! Não enxergo nada. Será que desta vez é para sempre?
FILHA – Se voltou da outra vez...
MÃE – É verdade. É só esperar. Venha. Sente-se aqui comigo. Deite sua cabeça no meu colo. Feche seus
olhos e esqueça. Vou cantar para você.
MÃE CANTA. FILHA ADORMECE.
MÃE – (PARA A FILHA ADORMECIDA) Estou cansada. Muito cansada. Preciso ir. Voltou. Voltou. Meus
olhos. Minha filha, venha me ajudar. Está na hora.
FILHA – Você precisa ir? E eu?
MÃE – Está ouvindo o vento? Eu vou aproveitar. Gosto de ventania. Estou leve.
FILHA – O que é que eu tenho que fazer?
MÃE – Tire a minha roupa.
FILHA DESPE COMPLETAMENTE A MÃE.
76 E l i a n e K a r a s
FILHA – Você não fica com frio assim?
MÃE – Frio, não. Sinto um arrepio.
FILHA – Espere.
FILHA TIRA DE UMA DAS CAIXAS UM PANO E ENROLA A MÃE.
MÃE – Estou bem. E você?
FILHA SORRI.
MÃE – Você me leva até o portão?
FILHA DÁ A MÃO PARA A MÃE E A CONDUZ.
AS MULHERES VÃO ATRÁS, UIVANDO.
FILHA VOLTA SOZINHA. PENDURA ALGUNS QUADROS NA PAREDE. HOMEM ENTRA.
AJUDA A PENDURAR OS QUADROS.
HOMEM – Dormiu bem?
FILHA – (SORRI) Sonhei que eu estava voando. Eu ia por uma estrada muito escura e cheia de lodo. Não
conseguia mudar os passos. Aí, eu lembrei que sabia voar. Minha roupa era escura e suja, parecia uma
bruxa, mas sabia voar. Movimentei meus braços assim, como asas, e voei por cima do lodo.
HOMEM – Parece que está de partida.
FILHA – É.
HOMEM – Está fazendo um dia lindo.
77
FILHA – Foi o que pensei.
HOMEM – Não vai fechar as janelas?
FILHA – A vizinhança é segura.
HOMEM – Lembra da moça da minha cidade?
FILHA – Lembro.
HOMEM – Falei com ela. Ela diz que tem mantido minha casa sem um grão de poeira.
FILHA – Que bom!
HOMEM – Terminou sua mala?
FILHA – Vazia.
HOMEM-– Você ainda tem muito tempo.
FILHA – Como saber?
HOMEM – Lembrei da receita da minha mãe. Se um dia você quiser experimentar...
FILHA SORRI, VESTE UM CASACO, PEGA UMA PEQUENA MALA E SAI.
HOMEM FICA.
ESCURIDÃO.
[CURRICULO DO AUTOR ]
79
Eliane Karas
Como atriz atuou no Grupo Delírio de Teatro durante mais de 10 anos. Antes do Teatro atuou como locutora em
rádios, onde experimentou pela primeira vez a dramaturgia. Como professora trabalhou com crianças, professores,
pessoas com limitações mentais, e na formação de atores.
80
CRÉDITOS
FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO PARANÁ - FIEP
Rodrigo Costa da Rocha Loures
Presidente
SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA – SESI. Departamento Regional do Estado do Paraná
José Antonio Fares
Diretor Superintendente
Maria Cristhina de Souza Rocha - Gerência de Desenvolvimento de Produtos
Anna Paula Zétola - Coordenação de Cultura
Maria Schirley Cherobim Figueiredo - Coordenação de Cultura
Neiane da Silva Azevedo Andreato - Coordenação de Cultura
Nome - Gerência de Mídias Educacionais
NÚCLEO DE DRAMATURGIA SESI PARANÁ
Marcos Damaceno - Coordenação e Produção
Roberto Alvim - Orientação da Oficina Regular
Pretto Galiotto - Assistente de Produção
Mauro Frassom - Fotografia
PRODUÇÃO EDITORIAL
DIRETORIA DE TECNOLOGIA DE GESTÃO DA INFORMAÇÃO
Pedro Carlos Carmona Gallego
Diretor
COORDENAÇÃO DE MÍDIAS EDUCACIONAIS
Roberto De Fino Bentes - Coordenador
Ana Célia Souza França - layout e diagramação
Christine Trelm - diagramação
Priscila Bavaresco - layout
81
GOVERNADOR DO ESTADO DO PARANÁ
Roberto Requião de Mello e Silva
SECRETÁRIA DE ESTADO DA CULTURA
Vera Maria Haj Mussi Augusto
CENTRO CULTURAL TEATRO GUAÍRA
Diretora Presidente
Marisa Vilela
Diretora Artística
Lú Rufalco
Diretor Administrativo
Walter Gonçalves
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA OFICIAL
Diretor Presidente
Eviton Machado