fasciculo 5: a impunidade no brasil

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8/14/2019 Fasciculo 5: A impunidade no Brasil http://slidepdf.com/reader/full/fasciculo-5-a-impunidade-no-brasil 1/16 05 Direito Penal A corrupção inicial “Ver e não ver” Princípio da Responsabilidade Convenções internacionais A impunidade no Brasil Augustino Lima Chaves  F  i  s  c  a  l  i  z  e   s  e  u   m  u  nicí   E  x  e  r  ç  a   s  u  a   c  i  d  a  d  a  n  UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ensino a distância  ® www.controlesocial.fdr.com.br Universidade Aberta do Nordeste e Ensino a Distância são marcas registradas da Fundação Demócrito Rocha. É proibida a duplicação ou reprodução deste fascículo. Cópia não autorizada é Crime.

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05

Direito Penal

A corrupção inicial

“Ver e não ver”

Princípio da Responsabilidade

Convenções internacionais

A impunidade no Brasil

Augustino Lima Chaves

 F i s c a l i z e

  s e u  m u

 n i c í p

 E x e r ç a  s

 u a  c i d a d

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Curso Controle Social das Contas Públicas74

Apresentar e descrever três correntes do Direito Penal;•Discutir sobre os efeitos da concentração de renda e os desvios administrativos;•Explicitar o Princípio da Responsabilidade como fundamento das regras de convivência;•

Apresentar relação de instituições internacionais e o ordenamento jurídico brasileiro que• apoiam o cidadão no combate à corrupção.

Objetivos

Direito PenalSe fitássemos a imagem do direito ocidental através dos séculos,

veríamos um grande arco. Em seu ponto inicial, os vultos da violên-cia e do conflito físico que, aos poucos, cederiam lugar às imagensdos discursos e das soluções que com a racionalidade, e o propósitode preservar as relações. Na imagem, à medida que a cortina fosseafastando-se, veríamos a diminuição da violência e o crescimento

da consensualidade. Entretanto, nos deparamos com condutas, comatos, que trazem nódoas ao tecido social, causando-lhe prejuízos ir-reparáveis.

O direito, nesse caso, utiliza a violência, usando-a contra os auto-res dessas condutas. Essas condutas são, em essência: o homicídio, oroubo, o estupro, a calúnia, o sequestro, o desvio de recursos da so-ciedade para uso pessoal. Estamos no território do direito que pune,o direito penal.

O julgamento, sobretudo em seu extremo, que resulta na punição,e, ainda mais, na punição enunciada em pena de privação de liberda-de (a ser cumprida em ambientes restritos), guarda sempre um saborreligioso, dos tempos antigos, misturado com o sabor ambíguo davingança.

O direito punitivo, hoje, reside, em sua maior parte, no Direito Pe-nal. No tocante à corrupção, o direito administrativo também tem láseu elenco de penas, algumas até bastante invasivas na esfera pessoal,previstas na Lei de Improbidade Administrativa, de 1992.

O direito penal no mundo é representado por três grandes corren-tes: a lei e ordem; o garantismo e o abolicionismo.

A corrente da lei e da ordem quer um endurecimento do direitoque pune: mais penas, mais condutas a serem tachadas de crimino-

sas, penas mais graves, restrição do direito de defesa, julgamentosrápidos. A mentalidade que alimenta essa corrente é a de que, parao mundo se tornar melhor, necessitaríamos de punir mais e commaior severidade.

A crítica a essa corrente é a de que, na vontade de punir, pune-seerrado, punem-se inocentes, e a onda punitiva, conforme as estatísticascabalmente demonstram, atinge de cheio os pobres. Punir os pobres.

A Lei de ImprobidadeAdministrativa ou Lei Nº8429 vem sendo utilizada

em todo o País para aresponsabilização de

milhares de autoridadesfederais, estaduais e

municipais que tenhamdilapidado o erário,

cometido atos de corrupção,desviado recursos

públicos, atentandocontra a probidade na

Administração Pública

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Não temos um conceito de polícia, um conceito do sistema repres-sivo. O Estado já não constituiria uma garantia, mas uma ameaçapara a segurança dos cidadãos.

Conforme essa crítica, o mundo não precisa de mais punição, massim de melhor distribuição do produto social e melhor aproveita-mento de uma fabulosa tecnologia de que dispomos.

Aumentam-se as cadeias, por exemplo, nos Estados Unidos umadas novidades no ambiente dos investidores, disputada novidade,reside na construção dessas cadeias, verdadeiras jaulas.

Cabe, entretanto, a advertência de que não podemos eleger a vin-gança como nosso programa social. E colocar cada vez mais pessoasno encarceramento.

O garantismo quer restringir o direito penal às condutas real-mente prejudiciais, perigosas à sociedade. Neste sentido, defende,um melhor combate a um conjunto menor de casos. Não aceita quecada vez mais condutas sejam levadas ao espaço do direito penal,

nem a restrição ao direito de defesa.Essa crítica não nos deixa esquecer que a sociedade ocidental nas-ceu de dois grandes erros de julgamento: Sócrates e Jesus. E que oserros de julgamentos, os sofrimentos de penas cruéis, geraram maisdores e mais desesperos para os seres humanos do que as própriascondutas as quais pretendiam combater.

O abolicionismo prega o fim do direito penal: afirma que estenunca resolveu problema social, além de ter inventado acusados: asmulheres, na caça às bruxas; os homossexuais, apresentados comosolução para a sífilis.

A repressão, por sua vez, é quase sempre ineficaz: ela pune apenasuma pequena percentagem de crimes, escolhidos ao sabor do acaso;ou ao sabor das escolhas pessoais de quem se encontra nas posiçõesde perseguição. E transforma o criminoso escolhido em bode expia-tório, infligindo-lhe pena desproporcional.

A prevenção seria sempre superior à repressão. O abolicionismoanuncia algo utópico, uma boa nova: a substituição do direito penalpor algo melhor do que ele. Essa boa nova, entretanto, encontra-sedistante do nosso estágio de evolução, do nosso equipamento mentalde hoje.

O direito penal brasileiro, na produção de suas leis, e de seus julga-

mentos, oscila entre a corrente lei e ordem e o garantismo.Este fascículo trata da impunidade, com foco na questão da cor-

rupção. O texto ressente-se, sobretudo, da ausência da matéria quenos oferece o mais compreensivo olhar sobre o mundo, além da ex-traordinária dialética entre o hoje e o ontem: a Antropologia.

O texto também não trata da violência urbana (nela incluindo anefasta distribuição de cocaína e substâncias decorrentes), crucial nas

Sócrates (470-390 a.C.) foium filósofo anteniensee considerado um dosfundadores da FilosofiaOcidental. Em 399, foimovido um processocontra ele, sob a acusaçãode corromper a juventudegrega com suas ideias econdenado a beber cicuta. É

considerado por estudiososum exemplo de intolerânciada democracia ateniense.

 Jesus é a figura centraldo cristianismo. Para amaioria dos cristãos, ele éa encarnação de Deus, oFilho de Deus que teria sidoenviado à Terra para salvar

a humanidade. Segundoo cristianismo, Jesus foicrucificado e, após a morte,ressuscitou.

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cidades brasileiras, que é quem puxa o discurso sobre impunidadepara o direito penal da lei e da ordem; tema que gostaria que algumparticipante, no nosso breve encontro, suscitasse.

A corrupção inicialBill Gates, o homem mais rico do mundo, ao conceder uma longa

entrevista sobre sua vida, não quis comentar sobre sua casa à beira dolago. Admitiu que já não mais se orgulhava daquele castelo. Ele to-mou consciência de quão excessiva é sua residência, em comparaçãocom a questão habitacional no planeta Terra.

Um afortunado empresário paulista narrou numa entrevista quecontratou um arquiteto para desenhar a casa de sua filha que ia casar.O noivo da filha, holandês ou dinamarquês, surpreendeu-se com oprojeto, porque a casa seria, na sua cultura, enorme e proibida pelasleis de seu país. Não precisavam de uma casa tão grande. O que umacasa grande exige, em espaço e material, retira de outras pessoas, que

também precisam de casa.As riquezas do mundo são uma só. E estão concentradas. A produ-

ção dos bens é o resultado de um ciclo social: todos participam, todostrabalham, nas várias etapas. E todas as pessoas querem participar,querem emprego.

A apropriação desses bens, que foram produzidos coletivamente,é particular. A distribuição já se encontra previamente determinadapelo sistema. A lógica privada, do acúmulo individual, do consumoindividual, toma o lugar, rouba a cena. Carrega uma vaga inocênciaquem nunca, ao acordar para um novo dia, teve que se entender com

esse carrasco: a concentração de renda.O primeiro ponto para se falar sobre a corrupção reside na con-centração de renda. Sendo uma realidade inicial, fomos nos acostu-mando com ela. É como se fosse da natureza das coisas, como se fosseuma fatalidade. Assim sendo, cabe indagar:• O que é que se constrói a partir de uma realidade inicialmente

distorcida?• Quais são as relações entre essa corrupção inicial, a concentração

de renda, com as corrupções que chegam depois dela?• Até que ponto podemos nos livrar da corrupção secundária

mantendo essa corrupção original?As estatísticas deixam transparentes a concentração de renda, em

todos os continentes, do planeta. Uma fotografia do planeta Terra,da perspectiva da concentração de renda, seria uma prova cabal denossa corrupção.

Existem correntes de estudos que afirmam ser a corrupção uma ca-racterística do sistema capitalista, cabendo ao Estado funcionar como

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um comitê de negócios dos grandes oligopólios, das grandes corpora-ções. O Estado seria um órgão da classe dominante.

O governo pode até ser ocupado pela melhor pessoa, em termospessoais, administrativos, de boa vontade para com o povo. Entretan-to, o nome da pessoa que ocupa o cargo deve ser percebido como onome da classe social que ela se vê forçada a representar.

Para essas correntes, o presidente da República, o governador doEstado, ou o prefeito Municipal não controlam o poder real. Estãoconfinados por balizas impostas pelo sistema. Embora importantes,eles não passariam de uma espécie privilegiada de síndico. Ou umexímio maestro que executa, a seu modo, uma partitura. Um presi-dente americano, amargando derrotas em inglórios jogos de força,teria desabafado: “Governo das corporações, pelas corporações, paraas corporações”(KORTEN).

A imagem do Estado, colocada nesses termos, é bastante simpli-ficada, embora contenha uma boa dose de verdade. O Estado não é

somente isso. Em todo caso, é uma imagem didática, que nos servepara melhor visualizar e diminuir a ingenuidade.A corrupção, seja ela qual for, há de ser firmemente combatida. Na

sua face que se quer natural, a da concentração de renda, que, emboraprotegida pela legalidade de hoje, revela-se contra a razão humana,porque nos afasta de um projeto minimamente comum. E nos afastade volumosos recursos para a construção de obras públicas essenciais,de investimentos essenciais, que beneficiariam muitos. Recursos queacabam consumidos, sob o olhar de nós outros, no luxo e no superluxo,no ritmo próprio da chamada sociedade do espetáculo. E na sua face decorrupção, estrito senso, que fere a legalidade.

Nesse plano, existe uma rede de instituições que dispõem dessaatribuição de controle de legalidade: os tribunais de contas, o minis-tério público, as auditorias, a imprensa, as ONGs.

As mencionadas instituições, que acompanham a execução de re-cursos dos gastos públicos, atuam em ambiente de democracia, deliberdade de expressão, de liberdade de imprensa, de transparência.As ditaduras nunca conseguiram combater a corrupção, pelo contrá-rio, as ditaduras são terrenos abertos a essa praga.

Vejamos um exemplo brasileiro. A ditadura brasileira de 1964 em-punhou duas bandeiras: a de combate à corrupção e a de combate ao

fantasmagórico comunismo. Os militares apresentavam solução fácilà corrupção: tratava-se de uma questão moral, de decência pessoal,e assim iriam salvar a sociedade. Mergulhados nessa simploriedade,nessa falta de preparo, nada conseguiram. Faltou-lhes a dimensãopolítica, o entendimento de que a corrupção é um dado arraigadodo sistema. Reduziram-na a uma de suas mais aparentes faces: o seulado cosmético da moralidade pessoal.

ONG: organização nãogovernamental, “foi aforma encontrada pelaONU para designar seusinterlocutores que nãorepresentam estadosnacionais” (PINTO, p. 441))As ONGs multiplicam-se,em diversas atividades.Uma ONG congrega pessoa

que querem fortalecer acidadania, participar doprojeto social. No campode combate à corrupção,contamos com várias ONGsdestacando-se a arrojadaTransparência Internaciona

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As lições da história, em todos os continentes, nos advertem: maisditadura, mais corrupção. O remédio para a corrupção somente setorna eficaz em ambiente democrático.

A ditadura não admite fala em descompasso com a sua fala. Muitomenos oposição consistente. Tampouco liberdade de imprensa, es-sencial no combate a qualquer desvio de poder.

No Brasil, governado pelos militares (1964-1985), ficou patenteoutro tipo de corrupção: a perseguição, os inquéritos policiais mili-tares, de rito sumário, de provas insuficientes, de alarde na impren-sa, de restrição ao Judiciário.

E a pior corrupção, indelével, foi a tortura, o massacre físico aindefesos. Via de regra, colhemos dessas eras totalitárias — quando asacusações vindas do poder escondiam suas reais vontades, sob o pretextode cuidar do interesse público —, um aviso: a objetividade em acusar; ahonestidade em acusar.

“Ver e não ver”A acusação de condutas irregulares, seja o acusador a imprensa,seja o acusador oficial previsto na lei, que é integrante do MinistérioPúblico, não pode ser comprometida com motivações pessoais dasmais variadas espécies.

O respeito ao outro e a lembrança de que cometemos erros, deque, mesmo quando carregados das boas intenções, não somos in-falíveis: nem o policial, que fez o inquérito; nem o acusador, queutiliza o inquérito; tampouco o juiz, quando esses seus anteces-sores lhe exigem uma condenação, uma busca e apreensão, uma

prisão temporária.Atuando na condição de juiz federal, há quinze anos, testemunheierros, todos imbuídos no afã de combater a corrupção, descarregan-do toda a energia, toda a vontade de combater as coisas erradas, emuma pessoa só. Lembro de dolorosos casos individuais.

Entretanto, gostaria de registrar o ataque a programas sociais. Acre-dito que, todo programa social, em qualquer parte do mundo, apresen-ta, em seus custos, uma quota de desperdício em sua administração, ouuma quota de recurso aplicado fora do previsto, o que leva a corrupção.

Entretanto, tal realidade, a ser combatida, não desmerece o progra-ma social. Quero dizer que o programa social atacado, a despeito des-sas quotas, merece existência, destina-se a pessoas que dramaticamen-te dele necessitam. Um forte exemplo aconteceu no nosso Nordeste,nos anos 90: o programa de aposentadoria do trabalhador rural.

A Constituição Federal concedeu aposentadoria rural a nossos ser-tanejos, independentemente do pagamento da contribuição. O Gover-no Fernando Henrique Cardoso criou uma inspetoria com o objetivode examinar como essas aposentadorias estavam sendo concedidas.

Lembremos aqui do casode Juscelino Kubitschek,da perseguição implacávela esse ex-presidente, sem,ao final, comprovação denenhuma das acusações.

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Um coronel sulista ficou no comando da inspetoria. Foram contra-tados servidores temporários, sem as garantias do servidor efetivo.Viajaram pelo interior do Nordeste. Exigiam dos sindicatos de traba-lhadores rurais que mostrassem como se deu o tempo de serviço decada trabalhador rural. Queriam ver documento por documento quecomprovasse o tempo de serviço rural. Não entendiam nem faziam o

mínimo esforço para entender o que era a cultura rural nordestina.Bem, qualquer pessoa do Nordeste sabe que o nosso sertanejo

sempre trabalhou. Entretanto, não tem a papelada correspondente aesse trabalho. De nada adiantaria a Constituição Federal conceder aaposentadoria, sem a necessidade de contribuição, em decisão pensa-da e discutida, para o governo mandar, depois, uma pessoa que exigeuma documentação que todos sabem que nunca existiu.

Benefícios previdenciários, um salário mínimo, cancelados aos mon-tes, às carradas. Processos administrativos rápidos. Inquéritos policiaise centenas de ações criminais – eu mesmo julguei mais de cem delas.

Na sala, no banco dos réus, as pessoas mais sofridas do Nordeste.O serviço de inspetoria implantado desviou a atenção, tirando ofoco, de outras realidades, redefinindo nossa agenda, comandandonosso olhar, canalizando nossa energia.

A imprensa local, pasmem, aplaudiu a inspetoria em sua cruzadada moralidade. Chamavam de combate à corrupção.

Transcorridos alguns anos, muitas humilhações, muita falta de co-municação entre classes sociais, muito tempo existencial e institucionalperdido, a grande maioria dos benefícios foi reestabelecida. A inspeto-ria deixou de existir no Governo Lula. Não se sabe onde se encontra ocoronel que não gostava dos sertanejos, que não gostava do Nordeste.

Tiram-se várias lições a partir da acusação de fraude sobre essessertanejos: que a acusação pode ser, às vezes, apenas um ponto devista. E, “um modo de ver é também um modo de não ver”, comosempre reforça em suas palestras o sociólogo Diatahy Bezerrra deMeneses. É importante ter cuidado com os discursos unilaterais, comos discursos que não suportam serem questionados. Há que se tersempre em mente que toda verdade posta há de ser colocada em de- bate, passar pelo crivo do debate.

O episódio isolado, como, por exemplo, “a inspetoria flagrou um ho-mem que conseguiu aposentadoria rural que na verdade era um funcio-

nário do jogo do bicho”, nos chega vistosamente como caricatura pelaimprensa. Aconteceu, de fato. Significa que uma pessoa, entre milhares,conseguiu fraudar o sistema. Entretanto, não autoriza, a partir de umcaso, colocar todo um conjunto sob suspeita; não autoriza a inspetoria aexigir de todos algo que de antemão se sabe que não é possível.

E da maneira como é colocado, põe em xeque o todo, põe em xequea imagem e a execução desse programa, esquecidos de seus benefícios,

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sem a preocupação de uma opinião mais madura, mais real. Numapalavra: sem responsabilidade, sem a ética da responsabilidade.

O caso isolado de desvio dentro de um programa social há de sercombatido. Entretanto, cumpre evitar que o remédio se transforme emveneno, matando todo o corpo, fazendo o jogo do discurso do Estado

Mínimo, levando as águas aos moinhos da concentração de renda.

Princípio da ResponsabilidadeA expressão “Estado Mínimo” encontra-se em oposição ao concei-

to de “Estado Social”, que é um estado que se declara insatisfeito comas coisas da maneira como estão, e se compromete a ser um agentede mudanças. O estado social é o tipo de estado que a Constituiçãode 1988 elegeu, ao inscrever, em seu art. 3º, inciso III, como objetivofundamental da República Brasileira, “erradicar a pobreza e a margi-nalização e reduzir as desigualdades sociais”.

É o que se chama, nos estudos acerca de subdesenvolvimento, de

retórica da intransigência, um tipo de discurso que, ao final, desacre-dita as mudanças e os programas sociais. Alguns repetem esse dis-curso sem consciência de que é um discurso que veicula intençõespolíticas conservadoras.

Caso ampliemos artificiosamente a noção de corrupção, enxergan-do-a em toda parte, em proporções imensas, podemos chegar a umaconclusão desanimadora: que não adianta fazer nada, vamos logoentregar o jogo.

Gostaria de registrar um exemplo: um dos fundadores da Antropo-logia, Lévi-Strauss, ao responder uma pergunta, em uma entrevista,

afirmou que não simpatizava com uma determinada cultura indíge-na (ERIBON). E, questionado, defendeu que essa sua postura não eraracista. E que a ampliação do conceito de racismo somente favorece oracismo. O que constitui racismo é uma conduta específica, prejudiciala uma cultura. Se considerarmos tudo racismo, se assimilarmos umacartilha excessivamente moralista, o combate a ele se torna inviável.

Da mesma maneira, o combate à corrupção: existem casos e casos,maiores e menores, relevantes e irrelevantes, efetivos ou superficial-mente montados.

O profissional que lida com os casos concretos, da área pública ouda imprensa, não se encontra autorizado pela coletividade a tratarum caso de maneira genérica, sem atenção para os elementos queformam o caso concreto, os elementos que definem cada caso.

A insistência no Princípio da Responsabilidade em relação aosacusadores parte de uma regra de convivência, a única possível, por-que a vida em comum seria impraticável sob o princípio da descon-fiança. A insistência no Princípio da Responsabilidade em relação aos

Intransigência: intolerância,rigidez.

Claude Lévi-Strauss(1908-2008): belga, mas denacionalidade francesa, foium dos maiores pensadoresdo século XX. Foi ofundador da AntropologiaEstruturalista. O“Estruturalismo é a procurapor harmonias inovadoras”,dizia. Morou no Brasil de1935 a 1939, quando lecionouna Universidade de São Paulo

(USP) e fez várias expediçõesao Brasil Central. O resultadodestas viagens está no livroTristes Trópicos

A teoria do Estado Mínimo éconsequência do pensamentooriundo da RevoluçãoFrancesa e RevoluçãoAmericana que pregam oliberalismo. Nas últimasdécadas do século XX, surgiuo neoliberalismo, que reduziuo papel do Estado no mundo

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acusadores parte de uma questão de honestidade, para quem cobrahonestidade dos outros.

A insistência no Princípio da Responsabilidade em relação aosacusadores parte, também, da necessidade de trabalhar de acordocom a realidade, além de preservar as acusações sérias, consistentes,para que elas não percam credibilidade.

Recentemente, uma brasileira alardeou que foi vítima de jovensnazistas, numa cidade na Suíça. A imprensa brasileira levantou-se aseu favor. Ela estaria grávida de gêmeos. A acusação maculava seria-mente a imagem daquele povo. Poucos dias depois soubemos queas coisas não se passaram desse modo. A imprensa não fala mais doassunto, nem mesmo para reconhecer seu erro.

Se esse caso tivesse ocorrido por nossas regiões, o juiz que ousassediscordar da primeira versão ganharia de presente a sugestão de ser sim-patizante do nazismo. Em algum ônibus, uns jovens, de cabelos raspa-dos, que andassem juntos, estariam até hoje encarcerados. A mulher que

inventou o caso, a suposta grávida, seria a eterna vítima do Judiciário.A acusação com base na chamada publicidade opressiva tira dapessoa acusada a sua energia para a defesa, parece não existir maisespaço para a defesa.

A corrupção é prejudicial à sociedade, sobretudo aos mais pobres.Tem que ser seriamente combatida, com sentido de continuidade.

Pede-se ao profissional do combate à corrupção:a) A honestidade do preparo profissional.b) O compromisso ao examinar as particularidades de cada caso.c) A independência para não ser arrastado pela correnteza da moda

que predomina naqueles dias.d) A temperança, que é um equilíbrio dos tempos: o tempo exigido

para elucidar o caso, e o tempo exigido para que o caso não percao seu sentido social. Em saber priorizar os casos mais relevantes,mais prejudiciais.Dizem que nenhuma cultura ergueu uma estátua para um acusa-

dor. A história guarda seus galardões aos estadistas, aos artistas, aoscientistas, aos que se ocupam nos projetos sociais, e aos defensores. Acultura jurídica reserva seus prêmios aos advogados, aos magistrados.Entretanto, um acusador preparado, sereno, objetivo, firme, bem me-receria uma condecoração social, uma melhor lembrança da história.

Convenções internacionaisO combate à corrupção tem seu ponto alto nas instâncias inter-

nacionais. O promotor de Justiça Antônio Carlos Osório Nunes, emseu artigo “Corrupção, o combate através da prevenção”, faz umalista das Convenções Internacionais Anticorrupção:

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a) Convenção Internacional contra a Corrupção, aprovada pela Or-ganização dos Estados Americanos (OEA), 1996.

b) Convenção sobre Suborno de Oficiais Públicos Estrangeiros, dospaíses da Organização para a Cooperação e DesenvolvimentoEconômico (OCDE), 1997.

c) Convenções para Corrupção do Conselho Europeu, ambas de 1999.

d) Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trans-nacional, também chamada de Convenção de Palermo, 2000.

e) Convenção da União Africana sobre Prevenção e Combate à Cor-rupção, 2003.

f) Convenção das Nações Unidas sobre Corrupção, Convenção das Na-ções Unidas Contra Corrupção (UNCAC, sigla em Inglês), 2003.Como se vê, a existência de várias Convenções Internacionais,

aprovadas em curtíssimo espaço de tempo ao longo da história con-temporânea, demonstra que os Estados e Organizações Internacionaisacreditam que o problema é preocupante, ultrapassa as fronteiras inter-

nacionais e exige um extremo esforço dos autores internacionais paracombatê-lo. Observa-se, ademais, que todas elas apostaram na preven-ção como um eficiente meio de reduzir e combater a corrupção.

Das preocupações da Convenção sobre o Combate da Corrupção, emParis, assinada pelo Brasil, em 1997, é proveitoso a leitura do seguinte tre-cho: “A corrupção é um fenômeno difundido nas Transações ComerciaisInternacionais, incluindo o comércio e investimento, que desperta sériaspreocupações morais e políticas, abala a boa governança e desenvolvimen-to econômico, e distorce as condições internacionais de competitividade”.

Em seu artigo “Três convenções internacionais anticorrupção eseu impacto no Brasil”, Mônica Nicida Garcia ressalta que:

Interessante notar a grande ênfase que foi dada, naquelas recomenda-ções, às medidas de caráter eminentemente preventivo. De fato, alémde incentivar o Brasil a continuar a fortalecer os órgãos de controle su-perior, as recomendações fazem referência à necessidade de se sistema-tizar as disposições que garantem o acesso à informação pública, deestimular a consulta dos setores interessados em relação ao desenhode políticas públicas, fortalecer e estimular a participação da sociedadecivil e de organizações não-governamentais na gestão pública, especial-mente nos esforços para prevenir a corrupção, ampliando a divulgaçãode informações oficiais através de diversos meios eletrônicos.

Em um artigo sobre a Transparência Internacional (TI), JoanoFontoura e Aline Soares destacam o seguinte: “A TI passou a enfati-zar a reforma nos sistemas reguladores dos países, retirando, assim,o caráter moralista do tema e atuando em duas frentes: uma local,através de seus Capítulos Nacionais; e outra global, ao levar o temada corrupção para a pauta política dos países”.

O relatório sobre o Brasilencontra-se disponível em:<www.oas.org/juridico/spanish/mec_ron1_inf.htm>.

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O que se deduz da leitura daqueles documentos internacionais:a) A tônica na prevenção, e não na repressão.b) O fortalecimento dos órgãos de controle, cujos dois mais relevantes,

aqui no Brasil, são os tribunais de contas e o ministério público.c) O incentivo e os instrumentos para uma maior participação popu-

lar, valendo-se da facilidade de comunicação através da internet.

Os Tribunais de Contas (Fascículo 3) e o Ministério Público ( Fascí-culo 7) são instituições antigas, que entram em cena de maneira bemmais presente a partir da Constituição de 1988, como resultado demovimentos internacionais nesse sentido, atentos a uma boa aplica-ção dos recursos enviados para o Brasil. O Poder Legislativo fiscalizaas contas do Poder Executivo, com a colaboração dos Tribunais deContas, que emitem parecer prévio sobre essas contas.

O emérito Professor de Direito Constitucional da Universidadede São Paulo (USP), Manuel Gonçalves Ferreira Filho, ensina que “aprestação de contas da administração é considerada um dos princí-

pios fundamentais do estado contemporâneo”.A Constituição Federal assegura a qualquer cidadão o acesso aos Tri- bunais de Contas: CF, art. 74, § 2º: “Qualquer cidadão, partido político,associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciarirregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”.

Medra uma discussão sobre a natureza dos julgamentos do tribunaisde contas: uns considerando um julgamento técnico; outros consideran-do um julgamento com influência política. Na prática, os tribunais decontas necessitam uma comunicação clara de sua jurisprudência, paratransmitir maior segurança àqueles que aguardam seus pareceres. Asdecisões dos Tribunais de Contas são passíveis de revisão pelo Poder Judiciário.

O nosso ordenamento jurídico coloca hoje à disposição do cidadãoo caminho para ingressar na Justiça em defesa do patrimônio públicoe em defesa do meio ambiente.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LXXIII, preceitua: “Qual-quer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anularato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, àmoralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico ecultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judi-ciais e do ônus da sucumbência”.

A Ação Popular é disciplinada na Lei Nº 4.717/65 (veja íntegra nosite do curso). Nela se destaca a autoria: qualquer cidadão terá acessoà Justiça para questionar ato administrativo que seja lesivo.

Antigamente, a ação judicial, ou seja, para se ingressar na Justiça,existia apenas o caminho do interesse pessoal. Assim, alguém ingres-sava na Justiça para pedir algum interesse relativo a seu patrimônioparticular.

Fundada em 1993, aTransparência Internacional

(www.transparency.org) éuma organização, de âmbito

global, da sociedade civil queluta contra a corrupção. Hojea TI conta com mais de 90capítulos regionais, entre eleso Transparência Brasil (TB),que foi criado em 2000 (www.transparencia.org)

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Curso Controle Social das Contas Públicas84

A legislação processual dos dias de hoje mudou muito, e temostodo um sistema voltado para a defesa de interesses difusos, ou seja,interesses que dizem respeito a todos; e interesses coletivos, ou seja,interesses que dizem respeito a um grupo.

Temos hoje um verdadeiro e completo sistema processual coleti-vo: a mencionada Lei da Ação Popular, de 1965; a Lei da Ação Civil

Pública, de 1985 (veja íntegra no site do curso); o Mandado de Segu-rança Coletivo, de 1988; o Código do Consumidor, de 1990; a Lei deImprobidade Administrativa, de 1992 (veja íntegra no site do curso).

O conjunto dessas leis, todas com amplo amparo na Constitui-ção Federal, engendrou uma revolução no acesso à Justiça, no nos-so sistema processual, oferecendo ao cidadão um instrumental aoexercício da cidadania.

O cidadão conta também com duas instituições que se destacampor sua vitalidade: o Ministério Público e a Defensoria Pública. Elessão um dos titulares da ação civil pública e são quem, efetivamente,

mais utilizam essa importante ação.A condenação criminal, por seu simbolismo e longa tradição, éa mais forte punição. O Código Penal estabelece os crimes contra aAdministração Pública.

A Lei de Improbidade Administrativa traz fortes punições aosservidores públicos acusados de corrupção. Daí porque respeitadoscomentaristas afirmam que essas punições não devem levar a “ex-cessos ou desproporcionalidades supostamente moralistas”. Que aaplicação dessas sanções a condutas que apresentem culpas leves oulevíssimas, inviabilizariam o sistema. É a lição do estudioso do Direi-to Administrativo, Juarez de Freitas, professor da Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul (UFRS).

De sua lavra, vale transcrever o seguinte trecho: “É equívoco sériocrer que o simples erro legal do agente, sem desonestidade, deva serenquadrável como improbidade administrativa. É até imoral”.

A imagem negativa de um segmento social é uma janela abertapara punições. O serviço público sofreu continuadas críticas em umpassado recente. Essas críticas não eram gratuitas, não eram sem in-teresse: tinham como objetivo a transferência desses setores para oâmbito privado: a telefonia, a água, a energia.

Grandes empresas queriam deles se apossar. Setores nos quais os

serviços são quase que obrigatórios. Setores onde a infraestrutura jáhavia sido construída pelo Estado. Setores que acumulam lucros fa- bulosos. Conseguiram. E nada sabemos sobre a formação desses pre-ços, pagos por milhões de pessoas.

É notório que o serviço público tem suas falhas. Atende a um pú- blico universal, de todas as classes sociais. E suas falhas refletem fa-lhas nossas, de toda população, falhas que refletem nosso capitalismo

O Mandado de Segurança

Coletivo é ação igualmentede rito especial quedeterminadas entidades,enumeradas pelaConstituição, podem ajuizarpara defesa, não de direitospróprios inerentes a essasentidades, mas de direitolíquido e certo de seusmembros, ou associados,ocorrendo, no caso, oinstituto da substituiçãoprocessual.

A Ação Popular compreendida comoum instrumento posto aserviço de cada membroda coletividade no sentidodo controle e da revisãoda legitimidade dos atosadministrativos, a açãopopular foi introduzida emnosso ordenamento jurídicona Constituição de 1988 e

emprestou maior abrangênciaao seu objeto e alcance.

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tardio, nossa posição internacional de terceiro mundo. É claro que háde existir a crítica. É claro que há de existir aprimoramento. E é cla-ro também que existiu uma crítica, como já colocado, com objetivosfinanceiros. E tiramos um aviso: a corrupção é sempre tratada comoalgo do setor público, cabendo aqui um lembrete ao setor privado: “éde ti que a fábula narra”.

No plano da legislação, é necessário registrar, no combate à cor-rupção, a Lei Nº 9631/98, que trata da lavagem de capitais. Ou seja,do crime de esconder fabulosas quantias de capital provenientes decrime antecedentes, às vezes com conexões internacionais, utilizan-do-se de extrema velocidade, através da internet.

Deparei-me, umas três ou quatro vezes, em ações na Justiça Fede-ral, com outro tipo de corrupção: o trabalho escravo. As piores condi-ções de trabalho. A necessidade de um emprego, a despeito de tudo.

Darcy Ribeiro, nosso mais brasileiro intelectual, antropólogo quemorou com os índios nos anos 1950, escritor preclaro, professor no Bra-

sil e pelo mundo afora, ministro de Estado, chamava muita atenção,em suas entrevistas, para um tipo de corrupção, de desvio de grandesquantidades de recursos, em jogadas de cúpula, aparentemente neu-tras, difíceis de perceber pelo nosso olhar condicionado de classe mé-dia. Jogada às vezes relacionada com a formação de preços, gerando brutais concentrações de renda; às vezes relacionadas com transaçõesinternacionais. A grande corrupção, das altas esferas, muitas vezes como completo manto da legalidade. E me ocorre um traço da política dacartilha marxista: política é expressão concentrada da economia.

Outro importante ponto entre a política e a economia: os progra-mas sociais. A obrigação política com os investimentos. Vejamos ocaso aqui do nosso Ceará: um estado sem história de acumulação decapital, sem fluxo de caixa, sem tecnologia de ponta. O nosso Produ-to Interno Bruto, (PIB) não chega a dois por cento do PIB do Brasil.Pelos dados do IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada(IPEA), do ano de 2005, o PIB do Ceará correspondia a 1,9% do PIBnacional, que, por sua vez, representava 2,7% do PIB mundial — omaior PIB é o dos Estados Unidos, com 20,7% do PIB mundial.

O que se conclui desse nosso quadro cearense? A necessidade deinvestimento, de buscar recursos internacionais. Lembro bem minhaprimeira lição para melhor focar esse assunto: admirava um adminis-

trador local, ocupante de um cargo estadual, e era pai de um colegade colégio. Aparecia com ar de gravidade, elegante, e representavapara mim a conspícua honestidade. Conversei sobre ele com meuavô, velho advogado e professor da faculdade de direito. A primeiracoisa que ele veementemente destacou: “ele devolveu recursos paraBrasília, não aplicou todos os recursos, não fez bem para o Ceará”.

Assim sendo, pratica desvio de conduta o governante cearense

Mineiro, Darcy Ribeiro (1922- 1997) era antropólogo,criou a Universidade deBrasília (UnB), foi ministroda Educação e ministro

chefe da Casa Civil dopresidente João Goulart.Exilado com o golpe de1964, morou em váriospaíses da América Latina,entre eles o Chile – foiassessor do presidenteSalvador Allende. Voltouao Brasil em 1976. Comosenador, elaborou e fezaprovar no Senado e enviarà Câmara dos Deputados a

Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (LDB).Entre seus livros estão:Utopia Selvagem, Aos Trancose Barrancos, Sobre o Óbvio,Suma Etnológica Brasileira, O

 povo Brasileiro, entre outros.

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que não luta em prol do aporte de recursos nacionais e internacionais.Precisamos de desenvolvimento. Precisamos de emprego. Precisamosinserir o Ceará no mundo. Da mesma maneira, o ator social que, porfiligranas, ou a pretexto de defender causas secundárias, ou mesmoquestionáveis, no plano do meio ambiente, dificulta a chegada dessesrecursos internacionais, praticando conduta distorcida, prejudicial.

A corrupção é o desvio dos recursos coletivos. Havemos que cuidare velar pelas riquezas do mundo. A mais preocupante corrupção é ado meio ambiente, que traz o signo da irreversibilidade. A necessidadede energia. O dramático uso da água. A Amazônia. E a mais urgentee ameaçadora: o aquecimento global. Vejamos uma metáfora do físico James Hansen, no documentário Uma Verdade Inconveniente:

Tento acordar as pessoas. Podemos usar a metáfora do sapo e da águaquente: se você aquece água numa panela com um sapo dentro, ele sedeixa cozinhar, mas se ele cai direto com a água fervendo pula fora. Ahumanidade está permitindo cozinhar a si própria. Ela continua quei-

mando combustíveis fósseis o que levará a uma situação sem controlepara os nossos filhos e nossos netos.

Outra riqueza do mundo em significativa parte desviada: nossa ener-gia de trabalho. O que nós, o conjunto da humanidade, produzimos edeveríamos produzir? O nosso símbolo é o carro. Onde vamos pararcom tantos carros? Por que a corrida pelo consumo? Por que competen-tíssimos cientistas russos acabaram nos EUA na produção de vídeoga-mes? Por que o desvio para a indústria da guerra? Trata-se de lamentáveldesvio de recursos, onde o capricho toma o lugar do necessário.

Para ingressarmos numa luta de ação política com alguma luci-

dez, havemos de nos perguntar quem somos nós cearenses, quemsomos nós brasileiros, quem somos nós habitantes do planeta Ter-ra. O que precisamos, para onde queremos ir. Somente entenden-do o contexto, somente entendendo o papel dos outros, entende-remos o nosso, quer na esfera privada, quer na esfera profissional,quer na esfera pública.

Há um mito da sabedoria judaica que ensina que quando Deus foifazer o homem tirou barro de todos os cantos da Terra. A Terra é, por-tanto, o lugar dos cruzamentos humanos. Segundo o filósofo alemãoEmmanuel Kant, em belíssimas palavras, o direito de propriedade

da Terra é comum, até mesmo em virtude da superfície da Terra que,enquanto superfície esférica, os homens não podem estender-se atéo infinito, mas devem, finalmente, suportar-se uns aos outros, pois,originalmente, ninguém tem mais direito que outro de estar em de-terminando lugar da Terra.

O mundo pertence aos povos. As grandes realizações da humani-dade são coletivas. Nossa força é insuperável porque é coletiva. Nos-

 James Hansen (1941): Chefedo Instituto Goddard deEstudos Espaciais da NASAe professor do Departamentode Ciências da Terra edo Meio Ambiente da

Universidade de Columbia,com pesquisas na área declimatologia e mudançaclimática.Uma Verdade Inconveniente ( An Inconvenient Truth, 2006,100 min. - www.climatecrisis.net): Documentário ganhadorde dois Oscar baseado nolivro homônimo do ex-vice-presidente americanoAl Gore, no governo

Bill Clinton.

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sas grandes obras são expressões de uma inteligência coletiva acu-mulada. Não podemos renunciar às lutas. Somos herdeiros de umalegião de grandes homens. Não podemos nos sentir insignificantes,cairmos no que Walter Benjamin chamou de fatalismo, que renunciaa qualquer ação coletiva, a qualquer ação política. Sentimento de hu-milhação. Sentimento de quem não é protagonista. Ou no impacto da

expressão de Hannah Arendt, que ressoa nos espaços da consciência:“a corrupção pela modéstia”.

Temos responsabilidades coletivas. A maturidade exige participa-ção e confiança em resultados de médio prazo. Podemos questionar asociedade de consumo. Devemos questionar a globalização, da manei-ra como nos é apresentada, como destino. Nos nossos dias de hoje acomunicação, tremendamente facilitada, é nosso melhor instrumento,prenunciando uma poderosa maneira de compartilhamento, de mobi-lização. Essa lida é uma só, em seus vários aspectos: a concentração derenda, a corrupção específica, o meio ambiente, novos modos de vida.

Um organização, fundada em 1992, na França, a ATTAC (Associaçãopara uma Taxação de Transações Financeiras para Auxílio de Cidadãos), já conta com milhares e milhares de participantes. Transcrevo as palavrasde seu presidente, o francês Bernard Cassen: “O mundo não é mercadoria.Trata-se apenas de retomar o futuro em nossas mãos” (GUILLEBAUD).

Como operador jurídico, sei da importância dessas lidas. Da Consti-tuição Federal, dos avanços. Da proteção aos direitos individuais. Embo-ra o direito não seja um bloco homogêneo. Embora o direito, sob algumponto de vista, possa servir para uma manutenção do mundo como seencontra hoje. Entretanto, sei também que “o direito é menor que o con- junto das relações entre os homens. O direito não pode substituir à ver-dadeira norma, que tem origem em uma crença compartilhada”.

Finalizando, transcrevo a advertência de Tobias Barreto, para que“o povo não faça papel do velho cão estúpido que morde a pedra quenele bate, em vez de procurar a mão de quem a arremessou”.

E as palavras de convocação do poeta cearense Sílvio Barreira: “Teugrito não pode apodrecer por entre os frutos da solidão; portanto, com-panheiro, estende o braço à procura de outras mãos, e sonha aberto emunir as manhãs, porque as dores de uma época são todas elas irmãs”.

Walter Benjamin (1892 –1940): Filósofo e sociólogoalemão foi, com TheodorAdorno, um dos fundadoresda Escola de Frankfurt,formada por um grupo de

filósofos e cientistas sociaisde tendências marxistas, nofinal dos anos 20 do séculopassado, que criou conceitoscomo “indústria cultural” e“cultura de massa”.

Em dezembro de 1997, odiretor do jornal Le MondeDiplomatique, Ignacio

Ramonet, em editorial,examinou a questão datirania dos mercados econcluiu com um apelo àcriação de uma associação:a ATTAC – Association pourla Taxe Tobin pour l’Aide auxCitoyens, criada em junhode 1998, como movimentointernacional para o controledemocrático dos mercadosfinanceiros e suas instituições,

com o objetivo de combateras políticas neoliberais erespectivas consequências,e de reconquistar o espaçoperdido pelas democraciasface à esfera financeira.

Tobias Barreto (1839 - 1889):Filósofo, poeta, crítico e

 jurista pernambucano.

Por ter sido professorda Faculdade de Direitodo Recife, a instituição écarinhosamente chamadade “A Casa de Tobias”.Foi membro da AcademiaBrasileira de Letras.

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Neste fascículo, procurou-se mostrar que a•ação política, a ação coletiva é sempre e essen-cialmente a mesma quando se está lutandotanto em prol de uma melhor distribuição de

renda como contra a corrupção, os desman-dos de um regime totalitário, a intolerânciaem todas os seus matizes (religioso, sexual,político), entre outros bons combates.

ARENDT, Hannah - O julgamento de Eichman

AVRITZER, Leonardo; BIGNOTOO, Nilton; GUIMARÃES, Juarez;

STARLING, Heloísa Maria Murgel (Org). Corrupção: Ensaios e Críticas.UFMG, 2008.

PINTO, Celia Regina Jardim - ONGs - in Corrupção: Ensaios e Críticas.UFMG, 2008.

ERIBON, Didier - De per to e de longe. Cosac Naify, 2007 (Publicadooriginalmente pela Nova Fronteira, 1990.

GUILLEBAUD, Jean Claude. A força da convicção - em que podemoscrer. Bertrand Brasil, 2007.

PIRES, Luis Manoel Fonseca; ZOCKUN, Maurício; ADRI, Renata Porto(Coord.) - Corrupção, ética e moralidade administrativa.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, EditoraRevista dos Tribunais, 2002.

BERMAN, Harold. Direito e Revolução. A formação da tradição jurídicaocidental.

GARCIA, Mônica Garcia. Três convenções internacionais anticorrupção eseu impacto no Brasil, in Corrupção, ética e moralidade administrativa.

MARX, KARL. Manifesto comunista.

1. O que Hannah Arendt queria nos transmitirquando cunhou a expressão “corrupção pelamodéstia”?

2. Fale sobre a relação entre a existência da inter-net e o combate à corrupção.

3. Você acredita nos movimentos sociais contra o

aquecimento global em favor da preservaçãoda terra?

4. A pobreza do Ceará tem como causa a cor-rupção?

5. O movimento internacional contra a corrupçãofaz certo ao pregar o fortalecimento dos Tribu-nais de Contas?

6. Por que a tônica na prevenção, e não na re-

pressão, dos movimentos internacionais con-tra a corrupção?

Referências

Avaliação

Realização Apoio

Síntese

Coordenadora do Curso: Adísia Sá

Coordenadora Editorial: Laurisa Nutting

Coordenadora Pedagógica: Ana Paula Costa Salmin

Fundação Demócrito Rocha

Av. Aguanambi, 282 - Joaquim TávoraCep 60.055-402 - Fortaleza - Ceará

Tel.: 3255.6005 - 0800.280.2210