fascículo 3: justiça, economia e instituições políticas (cidadania judiciária)

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Gustavo Feitosa JUSTIÇA, ECONOMIA E INSTITUIÇÕES POLÍTICAS Esta publicação não pode ser comercializada. GRATUITO UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ensino a distância ® Este fascículo é parte integrante do Curso Cidadania Judiciária - Fundação Demócrito Rocha I Universidade Aberta do Nordeste I ISBN 978-85-7529-612-7 3

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Curso de Extensão: Cidadania Judiciária. Realizada pela Universidade Aberta do Nordeste e Fundação Demócrito Rocha. Apoio cultural do jornal O Povo e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. http://fdr.com.br/cidadaniajudiciaria

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Gustavo Feitosa

justiça, economia e instituições políticas

Esta publicação

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obJetIVos Compreender melhor o cenário de surgimento dos principais direitos que deram origem ao nosso atual modelo de Justiça. Refl etir sobre o processo de construção dos direitos humanos e fundamentais que serviram de modelo para orientação da atuação da Justiça. Compreender os pressupostos de criação no Estado brasileiro após a independência e de aplicação da sua Constituição. Conhecer as condições de atuação do Judiciário no contexto do século XIX e os obstáculos ao desenvolvimento de uma cultura de defesa de direito do cidadão. Compreender os desafi os para a afi rmação de um Judiciário independente e apto a proteger e assegurar os direitos dos cidadãos.

suMÁrIo1. Introdução .........................................................................................................................................................................352. Transição econômica feudal para o capitalismo ................................................................................................353. Revoluções, direitos e justiça .....................................................................................................................................37 3.1 Compreendendo os direitos nascidos nas revoluções liberais .............................................................................38 3.2 Pensando os direitos para além da liberdade e da propriedade .........................................................................39

4. Liberdade contratual e a construção judicial dos limites para intervenção do Estado na economia ......................................................................................................................40

5. Os tribunais e o Movimento pelos Direitos Civis ..............................................................................................42 5.1 Os tribunais e o Direito à Saúde nos EUA ......................................................................................................................43

6. História social e política brasileira: contexto e pressupostos para o nascimento do nosso Judiciário ............................................................................................................................43

7. A escravidão, justiça e direitos ..................................................................................................................................45 7.1 Clientelismo e os obstáculos para uma cultura de direitos ....................................................................................45

8. Renovando o papel da Justiça...................................................................................................................................46

Síntese do fascículo .............................................................................................................................. 47Referências ............................................................................................................................................ 47Sobre o autor......................................................................................................................................... 47

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1.INtroDuÇÃoAo olharmos para a forma como entende-mos os nossos direitos hoje, muitas vezes somos levados a acreditar que estamos diante de algo natural, essencial e que se projetará para o futuro sempre na forma como conheemos hoje. No entanto, bas-ta uma breve leitura sobre a história da Europa e sobre como se transformaram suas instituições jurídicas e políticas, seu direito e sua economia, para perceber-mos o quanto mudou na relação das pes-soas com os outros seres humanos, com a terra, com seus bens e com o Estado. Um direito relativamente comum e que mar-ca nossa relação com os objetivos do dia a dia, como a propriedade, apresentava signifi cados diferentes nos séculos XIV ou XV dos sentidos dados atualmente pela maioria de nós.

A compreensão sobre os nossos di-reitos hoje, sobre o papel social do Estado e sobre as funções da Justiça depende, em grande medida, da refl exão sobre os caminhos e do contexto de transforma-ção que nos trouxeram ao cenário atual. Para não ir muito longe nesse caminho, é possível situar alguns aspectos impor-tantes dessa história na transição ocorrida na Europa, principalmente ao longo dos séculos XIV, XV e XVI, em especial, no que diz respeito a alguns direitos como a pro-priedade e a liberdade.

2.traNsIÇÃo eCoNÔMICaDA ECONOMIA FEUDAL PARA O CAPITALISMOA economia da Europa feudal carac-terizava-se, em linhas gerais, por for-mas peculiares de relação entre os senhores de vastas áreas de terra e os camponeses que as habitavam. Nos-so primeiro impulso, ao ler ou pensar sobre o assunto, é projetar sobre esta relação as formas atuais de interação entre um fazendeiro e um trabalhador rural. Pensamos em trabalho assalaria-do ou ainda nas velhas parcerias rurais predominantes num passado ainda recente em muitas regiões brasilei-ras. Todavia, as relações feudais1 do passado europeu apresentam um de-senho bem diferente do que encontra-mos hoje, no campo no Brasil2.

Até o século XIV, os camponeses na Europa haviam conseguido viver períodos relativamente longos de es-tabilidade nas formas de convivência com os senhores de terra. cabia a estes trabalhadores rurais cumprir um conjun-to de obrigações que envolvia plantar, administrar pequenas parcelas de terra,

1 Relações Feudais: A propriedade feudal pertencia a uma camada privilegiada, composta pelos senhores feudais, altos dignitários da Igreja (o clero) e longínquos descendentes dos chefes tribais germânicos. A principal unidade econômica de produção era o feudo, que se dividia em três partes distintas: a propriedade individual do senhor, chamada manso senhorial ou domínio, em cujo interior se erigia um castelo fortifi cado; o manso servil, que correspondia à porção de terras arrendadas aos camponeses e era dividido em lotes denominados tenências; e ainda o manso comunal, constituído por terras coletivas pastos e bosques, usadas tanto pelo senhor quanto pelos servos.Devido ao caráter expropriador do sistema feudal, o servo não se sentia estimulado a aumentar a produção com inovações tecnológicas, uma vez que tudo que produzia de excedente era tomado pelo senhor. Por isso, o desenvolvimento técnico foi pequeno, limitando aumentos de produtividade. A principal técnica adaptada foi a de rotação trienal de culturas, que evitava o esgotamento do solo, mantendo a fertilidade da terra.

(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Feudalismo)

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prestar alguns serviços ao senhor, en-tregar parte da produção, entre outras atividades. Os deveres, entretanto, vi-nham acompanhados de alguns direi-tos. Os camponeses podiam usar terras comuns como pastagens para criar ani-mais, transmitiam para seus herdeiros os vínculos com a terra em que traba-lhavam, não podiam ser expulsos (em condições normais) ou usufruíam de parte do resultado da produção.

A riqueza dos senhores dependia da presença de muitos servos em suas ter-ras e não havia interesse em expulsá-los. como se percebe, a relação entre os ho-mens e a terra era diferente. A ideia de propriedade não implicava num poder absoluto de fazer qualquer coisa com a terra e dispor livremente sobre o se pro-duzia nela. Os limites e obrigações do uso vinculavam mutuamente senhor e servo e se projetavam sobre toda a eco-nomia e sociedade feudal.

A realidade, contudo, modifi cou-se a partir dos séculos XIV e XV. O avanço gradual do comércio nas cidades e a demanda crescente pela produção de determinados produtos, como a lã, ge-rariam uma pressão sobre as formas até então tradicionais de produção. criar ovelhas para extrair a lã, por exemplo, levava a modifi cações na forma como os servos usavam as terras e as pastagens, direcionando trabalho e áreas de cultivo à produção de algo que não alimenta as famílias, destina-se à venda em trocas monetárias e não se compatibiliza com os usos coletivos de pastagem.

O caso da produção de lã é apenas um exemplo. A produção de gêneros exigidos para o comércio e a manufatu-ra levava a exigência de reestruturação do modelo de propriedade da terra da Idade média, com grandes repercus-sões sobre as vidas de milhões de cam-poneses, bem como da nobreza que tinha sua riqueza vinculada ainda aos seus direitos sobre vastas extensões de terras e às relações com seus servos.

Na esteira dessa transformação, ocor-reram expulsões em massa de popula-ções rurais para as cidades, desagregação dos vínculos que mantinham o sistema feudal e o fortalecimento de atividades mercantis. O processo não acontecia sem tensões. Revoltas no campo, confl itos de terra, guerras entre cidades e atritos envol-vendo nobre, reis e burgueses. As velhas tradições feudais atrapalhavam o desen-volvimento da emergente economia ca-pitalista. mas não apenas as relações no campo sofriam com as mudanças.

Nas cidades, as relações de traba-lho comandadas pelas corporações de ofício3 também acarretavam obstáculos para a prosperidade das manufaturas. mais uma vez, a tendência a tentar pro-jetar os modelos contemporâneos pode difi cultar a compreensão. Quando pen-samos em trabalho, imaginamos sempre a ideia de uma pessoa que livremen-te busca oportunidades e procura um emprego que melhor se adeque à sua formação. caso não possua as habilida-des necessárias, pode procurar cursos, aprender e aproveitar as vagas disponí-veis no comércio ou na indústria. Nada mais distante da realidade do século XV.

Atividades artesanais, como a de sapateiro ou pedreiro, encontravam-se sob o controle de corporações de ofí-cio reconhecidas e protegidas por leis locais. Isso signifi cava que para traba-lhar como sapateiro, exigia-se um longo período de trabalho (normalmente sete anos) como aprendiz para conquistar a habilitação legal para possuir sua pró-pria ofi cina. Não se poderia simples-mente abrir uma pequena loja ou fábri-ca de sapatos e contratar trabalhadores assalariados para atividades específi -cas. A grande maioria das atividades manufatureiras que levavam a produção de bens de consumo se encontravam li-mitadas pelo controle das corporações e pela impossibilidade de acesso livre à força de trabalho dos servos que se encontravam presos à terra.

2 “Cada propriedade feudal tinha um senhor. Dizia-se comumente do período feudal que não havia ‘senhor sem terra, nem terra sem

senhor’. [...] Pastos, prados, bosques e ermos eram usados em comum, mas a terra arável era dividida em duas partes. Uma, de modo geral, a terça parte do todo, pertencia ao senhor [...]; a outra fi cava em poder

dos arrendatários”. O trabalho fi cava a cargo dos camponeses (servos) que se encontravam presos à terra. Os servos não tinham a condição de escravos, mas não podiam abandonar a terra onde viviam. A produção nas terras

do senhor era integralmente entregue a estes e a das terras arrendadas

acabava apenas em parte nas mãos dos servos. Estes camponeses tinham uma vida dura e miserável e apesar de poder utilizar partes daquilo que produziam, deveriam tratar com

inteira prioridade o trabalho nas terras dos seus senhores, além de cumprir diversas obrigações para com seu senhor. (HUBERMAN, 1986, pp. 3-7)

3 Corporações de ofício eram formas de associação comuns na Idade Média,

utilizadas em algumas atividades artesanais (sapateiros, pedreiros,

padeiros etc.) para controlar e regular a produção e comércio de alguns

produtos e serviços. Estas corporações e exigiam que somente os seus

membros produzissem mercadorias como sapatos.

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Esse modelo de produção artesanal e urbana também sofreria severamente com o avanço do comércio. A intensi-fi cação da circulação de comerciantes, o tráfego de produtos de dentro e de fora da Europa, a opção pela produção em cidades com regulamentos mais fl exíveis em relação às corporações e à servidão, entre múltiplos aspectos, lan-çariam as bases para as novas formas de organização da economia, da socie-dade, do direito e do Estado.

muito se poderia discutir sobre um fenômeno tão amplo e complexo como essa transição vivida pela Europa, po-rém, para os nossos objetivos, o impor-tante é ressaltar o quanto esse processo afetou a forma como se estruturaram as constituições dos estados contemporâ-neos, a Justiça e como as pessoas en-xergam seus próprios direitos.

3.reVoLuÇÕes,DIREITOS E JUSTIÇAAs grandes transformações ocorridas na Europa nos séculos XV e XVI encon-traram na Inglaterra um terreno fértil. O avanço no cercamento das terras, o enfraquecimento da economia feu-dal e o crescimento da importância da manufatura e do comércio repercutiam no campo político e social. A ascensão econômica e política da burguesia4 se expressava na forma de uma crescente capacidade de intervir sobre as decisões políticas da monarquia inglesa. O avan-ço político da burguesia gerava tensões e se construía num jogo tenso de atritos, vitórias e resistências contra a nobreza.

Para Refl etirO continente americano e o Brasil em especial, só foram “descober-tos” no fi m do século XV, quando a Europa estava emergindo da Idade média. A época das grandes navega-ções é vista por alguns historiadores de hoje como o primeiro grande pro-cesso de globalização e, traz em seu bojo, a defesa do humanismo e uma visão antropocêntrica que torna o homem dono e senhor da natureza e das coisas. Na sua concepção, os va-lores sociais e o modelo econômico da Idade média teve algum impacto no novo continente descoberto?

4 A palavra burguesia nasce da designação das pessoas que habitavam pequenas cidades (burgos) e dedicavam-se, principalmente, ao comércio de mercadorias. O termo apresenta muitos usos e complexos desdobramentos conceituais, mas fi cou marcado pela ideia de fortalecimento de uma prospera classe social que crescia em riqueza e importância política por intermédio do comércio de atividades industriais.

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No século XVII, a monarquia Inglesa esforçava-se para preservar seu poder e manter um governo em moldes absolu-tistas. O Estado Absolutista revela bem as contradições e difi culdades das transfor-mações em curso. Seu modelo de funcio-namento pressupunha a presença de um rei com poderes ilimitados, apto a gover-nar todas as dimensões da vida econô-mica, política e social em seus domínios. Entretanto, sua atuação dependia da exis-tência de uma força militar pronta a agir em seu nome, de um aparato burocrático de servidores reais representando os inte-resses do Estado, de uma elite de nobres fortemente atada aos interesses da mo-narquia e de recursos fi nanceiros neces-sários ao sustento de toda essa máquina.

A Inglaterra do século XVII sofria com um estado sem recursos fi nancei-ros, sem exército permanente, repleto de divisões e tensões internas, fragili-zado em constantes guerras externas e mergulhado em confl itos religiosos associados à reforma protestante. Nes-te cenário, o poder econômico ascen-dente da burguesia contrastava com o enfraquecimento e o empobrecimento relativo da nobreza inglesa.

O parlamento5 naquela época não funcionava como um verdadeiro Po-der Legislativo. Em situações especiais e segundo os desígnios dos próprios reis, convocava-se uma reunião do Par-lamento para legitimar decisões impor-tantes, como realizar uma guerra ou cobrar impostos. Para um monarca com pretensões absolutistas, aceitar a pre-sença ou as eventuais deliberações de um parlamento signifi cava uma grande derrota e um gesto extremo necessário apenas em momentos muito graves.

Um exemplo desta situação ocorreu em 1640, quando o rei carlos I precisou recompor e aceitar o Parlamento para encontrar uma solução para a falência total das fi nanças estatais em meio a confl itos externos, riscos de revoltas po-pulares, recusa generalizada de pagar

novos impostos e desobediência às leis estabelecidas pelo monarca. A reunião do Parlamento naquele momento signi-fi cou apenas mais um ato das crescen-tes agitações e confl itos em que mergu-lhava a Inglaterra e que veio seguida de uma sangrenta guerra civil.

Ao longo dos anos seguintes, a In-glaterra teve quatro reis, enfrentou guer-ras (externas e internas), passou por um breve período republicano e, fi nalmente, chegou em 1688 e 1689, ao fi m da cha-mada Revolução Gloriosa. A designação de gloriosa nascera da conclusão dos seus atos fi nais com deposição do rei Jaime II e ascensão da maria Studart e Guilherme III (de Orange) sem a necessi-dade de derramamento de sangue.

3.1 COMPREENDENDO OS DIREITOS NASCIDOS NAS REVOLUÇÕES LIBERAISNa releitura de todos esses aconteci-mentos, importa aqui prestar atenção na discussão sobre os direitos naturais do homem e sobre as funções do Es-tado desenvolvidas ao longo de todos os anos de confl ito e consolidada após o seu encerramento. O país assistiu a rápidas mudanças na sua economia e a um tenso processo de luta em torno da nova realidade econômica.

Do lado da monarquia e da nobreza, prevalecia o impulso de tentar preservar privilégios, direitos e benefícios econômi-cos. Isso implicava em tentar, por exem-plo, estabelecer monopólios sobre o co-mércio de determinados produtos como o sal, cobrar impostos sobre a venda externa de mercadorias manufaturadas, como os produtos têxteis, ou restringir o poder da burguesia urbana e comercial. Do lado da nova classe de comerciantes prevalecia um esforço para romper as bar-reiras que ainda limitavam o avanço do comércio e da produção de mercadorias e drenavam capitais para o Estado. Em

5 Os reis ingleses entre os séculos VIII e XI reuniam, em ocasiões especiais, seus principais conselheiros e nobres para

auxiliar em decisões importantes para o reino. O termo “parlamento”, contudo, somente foi utilizado pela primeira vez em 1236. O parlamento não era

considerado uma instituição e, sim, um evento. Ao longo dos séculos, havia uma crescente pressão dos barões sobre o rei para aumentar sua participação nas decisões mais relevantes. Em 1215, por exemplo, os barões obrigaram o rei João a assinar a Magna Carta, em que ele se comprometia a levar em consideração as orientações destes nobres. A ideia de realização de reuniões regulares do parlamento consolidou-se aos poucos. No século XIV, a representação dos

burgueses e dos cavaleiros (Commons) das cidades e condados foi incorporado como parte permanente do Parlamento.

E a partir do século XV, os Comuns ganharam papel central no poder do rei para legislar sobre Impostos. As grandes agitações ao longo da Revolução Inglesa ligam-se, em grande medida, às tensões entre o Parlamento e monarca. O fi m da Revolução é marcado pela consolidação de um papel de crescente hegemonia do

Parlamento. (UK, on-line)

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meio a todo este jogo, encontravam-se os camponeses e trabalhadores pobres ingleses vivendo a violência dos cerca-mentos e da expulsão do campo, a reali-dade dura da vida de trabalhos urbanos e os efeitos das guerras e das intempéries na forma da fome e de epidemias.

O contexto revelou-se favorável ao fl orescimento de ideias que permi-tissem aspirar um futuro melhor e, ao mesmo tempo, entrassem em sintonia com os novos horizontes que surgiam na economia e na sociedade inglesa. A ideia de um direito natural à liberdade, propalado com intensidade no fi nal do século XVII, atendeu bem a muitas aspi-rações e se moldou de maneira fl exível aos anseios de diversos grupos.

Para a burguesia, a liberdade sin-tetizaria o desejo do comércio e do trabalho livre, sem barreiras impostas pelo Estado, por tradições feudais ou pelas corporações de ofício. Os gru-pos religiosos criam na possibilidade de expressar livremente sua fé, sem a imposição de cultos ou a repressão aos protestantes. No campo da política, a liberdade representaria a possibilidade de manifestar e expressar seus interes-ses de forma pública e sem privilégios de poder para a velha nobreza. Para as pessoas em geral, especialmente os mais pobres, poderia signifi car muitas coisas, como o direito de não ser preso arbitrariamente (perder a liberdade) ou de não pagar pesados impostos fi xados numa realidade de muita miséria.

Outra discussão importante para o período refere-se ao direito à proprie-dade. A defesa do direito à propriedade privada como um direito natural apre-sentou efeitos revolucionários, pois im-plicou numa limitação direta na possibili-dade do rei de avançar sobre os bens da burguesia, de instituir ou elevar impostos ou de intervir sobre a economia. É verda-de que já se reconhecia a propriedade muito antes das revoluções liberais, mas

Para Refl etirVocê considera que todas as gran-des revoluções ou revoltas ocorridas nas sociedades representaram a luta por mais direitos e por mais justiça? No caso brasileiro, é capaz de citar uma ou mais revoltas ou revolução em que as principais reivindicações dessa natureza?

com um sentido diferente, conforme observamos no tópico anterior. Na nova forma teórica apresentada para o direi-to à propriedade, desapareceram todas as limitações oriundas das velhas tradi-ções feudais e surgiu naquele momento um direito considerado natural, amplo e muito relevante, cuja restrição exigia uma autorização expressa dos indivídu-os titulares desse direito por meio do Parlamento. A propriedade ganhou um contorno quase absoluto.

Agora prestemos muita atenção nestes dois direitos amplamente defen-didos como essenciais pelos vitoriosos na Revolução Gloriosa inglesa. Nos dois direitos, sobressaía a ideia de que “nós temos direitos que são inerentes e na-turais”. Não são direitos que nasceriam pela mão do rei ou do Estado. Eles exis-tiriam mesmo contra a vontade do Esta-do. O monarca que pretendesse abolir ou ofender tais direitos estaria afrontan-do algo superior e anterior ao seu pró-prio poder. Percebe-se nesta construção teórica o teor revolucionário e legitima-dor da revolta contra o absolutismo que a defesa do direito natural à liberdade ou à propriedade pode apresentar.

O rei que violasse um direito natural poderia ser legitimamente derrubado. Um grupo que se rebelasse contra um governante e destronasse o monarca estaria legitimado pela defesa da liber-dade essencial dos homens. O Estado nada mais seria do que uma instituição a serviço da proteção de direitos. O rei converter-se-ia, assim, num servidor de seu povo e veria seus atos constante-mente sujeitos à avaliação popular. Para noberto Bobbio6 (1992), a grande mu-dança trazida pelas revoluções consistiu em transformar súditos em cidadãos. Ou seja, de alguém que serve o Estado, passamos a nos enxergar em indivíduos servidos por ele.

3.2 PENSANDO OS DIREITOS PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA PROPRIEDADEAs ideias associadas à Revolução Libe-ral Inglesa, bem como à Independên-cia dos EUA (em 1776) e à Revolução Francesa (em 1789) modelaram a ma-neira como nós, até hoje, olhamos o Estado. Percebemos esta grande ins-tituição como uma organização políti-ca voltada à realização e proteção de direitos, num sentido muito amplo. Os atos dos governantes, agora eleitos, submetem-se ao olhar dos cidadãos e sua legitimidade encontra-se sempre a prova. Seja pela eleição, seja pela avaliação da legalidade ou constitu-cionalidade (pelo Judiciário), os atos de quem governa devem sempre se subordinar a uma lógica de proteção e concretização de direitos.

6 Norberto Bobbio (1909 ‒ 2004) é um os grandes fi losofos do direito no século XX e importante historiador do pensamente politico. Produziu inumeros textos sobre temas como a democracia, o autoritarismo, os direitos , o Estado, sempre com grande repercussão e infl uência internacinonal.

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novo direito. mas por contraditório que possa parecer, estas duas resposta ape-nas sintetizam a ideia de que precisamos compreender os sentidos e os conteúdos dos nossos direitos, a partir dos proces-sos que levaram à sua construção e dos desafi os que enfrentamos atualmente.

Até o século XIX, quando se fala-vam de direitos como a liberdade ou a propriedade, a discussão centrava-se nos seus aspectos econômicos e nos seus efeitos para o mercado. Privilegia-va-se a concepção de livre mercado e dos elementos importantes para o de-senvolvimento da economia, sem maior destaque ou preocupação com a misé-ria, a fome ou as desigualdades sociais extremas. Ao longo dos anos seguintes, em particular, no curso do século XX, muitos confl itos sociais, movimentos populares e greves ocorreram como expressão da revolta de uma popula-ção de operários ou camponeses mi-seráveis insatisfeitos com sua situação e com a maneira como o Estado lidava com suas difi culdades e sofrimento.

A tendência dos governos consistia em apenas reprimir e punir toda forma de expressão política das populações mais pobres e criminalizar qualquer conduta que desviasse as pessoas do trabalho duro cotidiano. Recusar-se a trabalhar nas indústrias ou no campo no século XIX era considerado crime. Pouco importava em que condições esse trabalho se dava. Até mesmo crianças poderiam trabalhar 10

ou mais horas por dia em ambientes in-salubres e perigosos, como em minas de carvão. Não havia garantias ou restrições de qualquer natureza. Nenhuma limita-ção à jornada de trabalho ou ao valor do salário era aceita, pois seriam considera-das ofensas ao direito essencial á liberda-de. Presumia-se que a relação entre uma indústria e um trabalhador seria a perfeita expressão da liberdade contratual.

4.LIberDaDeCONTRATUAL E A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DOS LIMITES PARA INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIAUm exemplo interessante de como se via lidavam com estes direitos ocorreu nos EUA. Em 1895, o Estado de Nova Iorque aprovou uma lei (Bakeshop Act) para regular o funcionamento das pa-

SAIBA MAIS

A Declaração de Independência dos EUA, de 1776 trazia em seu texto “[...] que to-dos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”

Será que podemos falar da felicidade como um direito? haveria como imaginar uma forma do Estado prover aos indivíduos felicidade? Na realidade, a Declaração fala de um direito “a busca por felicidade”. A proteção dirige-se à possibilidade de cada um escolher de maneira livre o seu próprio destino.

Não por acaso, continua importan-te estudar as grandes transformações trazidas por uma Revolução do século XVII como a inglesa. Por meio deste es-tudo, conseguimos perceber aspectos das origens do modelo de Estado e de direito utilizados hoje. contudo não se pode esquecer que no contexto daque-les eventos históricos, direitos como liberdade e a propriedade tinham sen-tidos e utilidades muito especiais. Sua necessidade e conteúdo se inseriam no fl uxo das grandes transformações eco-nômicas vivenciadas na Inglaterra e no restante da Europa, desde o século XIV.

Esta observação visa chamar atenção para a necessidade de pensar sobre os sentidos que damos aos direitos hoje. O que signifi ca de fato liberdade? Em 1689, ao fi nal da chamada Revolução Gloriosa, os líderes do movimento acreditavam que a liberdade representava o direito de trabalhar livremente para conquistar riqueza, comprar e vender mercadorias e circular com seu patrimônio, expressar a fé religiosa sem restrições do Estado, não ser preso ou perder a vida e os bens sem um processo, ou ainda não ser submetido a leis sem ter participado (direta ou indire-tamente) da sua elaboração. muitos des-dobramentos a mais poderiam ser dados aos sentidos da liberdade, mas todos eles estavam presos aos problemas da época.

Quando se pensa e se discute liber-dade, ganham destaque outros aspec-tos relacionados aos desafi os do tempo contemporâneo e das condições especí-fi cas em que vivemos. muito se fala hoje sobre a liberdade na internet, por exem-plo. Sobre o direito de navegar sem que os governos possam impedir as pessoas de visitar livremente qualquer site, de ex-pressar suas opiniões, de se integrar e de interagir em redes sociais. Será, então, que estamos falando de outro direito, ou apenas da velha liberdade tão defendida em séculos passados? É possível respon-der de modo afi rmativo às duas pergun-tas. Sim, é a velha liberdade. Sim, é um

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darias que estabelecia um limite de 60 horas de trabalho semanais e 10 horas diárias para os padeiros. Naquela época, praticamente não existia limitação legal à quantidade de horas de trabalho rea-lizadas diariamente por cada emprega-do. Qualquer tentativa de regulamentar a jornada de trabalho era considerada uma violação à liberdade contratual, de-fi nida pelos tribunais como um direito constitucional dos norte-americanos.

De modo curioso, não havia na constituição dos Estados Unidos da América qualquer previsão clara indi-cando a liberdade de contratar como um direito fundamental dos cidadãos. Este desdobramento da liberdade originou-se de uma discussão judicial sobre o chamado direito ao “devido processo legal” (ou due process of law), previsto na 14ª emenda constitucional. A emenda estabelece que o Estado não pode privar uma pessoa da sua vida, li-berdade ou propriedade sem o devido processo legal. Ou seja, o Estado não poderia estabelecer limitações legais na liberdade das pessoas de usar livre-mente sua propriedade e determinar sua vontade na realização de um contra-to. Somente em casos extremos, como aqueles relacionados à saúde pública, à moralidade e à segurança, aceitar-se-ia alguma forma de restrição às possibili-dades contratuais, em prol do chamado poder de polícia do Estado. E em últi-mo caso, apenas ao Judiciário caberia defi nir sobre a constitucionalidade de tal intervenção estatal.

Em 1899, o proprietário de uma pa-daria, Sr. Joseph Lochner, recebeu uma multa por permitir que um padeiro tra-balhasse mais de sessenta horas por semana. Algum tempo depois, recebeu nova multa e, insatisfeito, resolveu re-correr da punição. Após vários recursos e disputas, o caso chegou à suprema corte dos eua7, mais alto tribunal do país. Num julgamento famoso, conhe-cido como Lochner versus New York, a

corte decidiu que aquela limitação da jornada de trabalho violaria a constitui-ção do país. A decisão marcou as déca-das seguintes, na medida em que serviu como modelo para invalidar várias leis estaduais que pretendiam melhorar as condições de vida dos trabalhadores, com redução do número de horas diá-rias de trabalho ou fi xação de um valor mínimo para o salário.

Dois aspectos deste caso merecem nossa atenção. O primeiro diz respeito à construção dos direitos fundamentais. coube aos tribunais nos EUA defi nir de maneira gradual os contornos do que seria a chamada liberdade, em especial nos seus efeitos sobre autonomia con-tratual. O segundo aspecto relaciona-se à rejeição ampla a qualquer forma de intervenção estatal na economia para proteger empregados e assegurar me-lhores condições de vida ou trabalho. considerava-se que se um operário de-sejava e suportava trabalhar mais de 60 horas por semana, não caberia ao legis-lador dizer o contrário. O mesmo valia para o salário. Se alguém aceitava tra-balhar por uma remuneração muito pe-quena, isso estaria no campo da liber-dade individual de cada ser humano.

Para um leitor dos dias de hoje, a si-tuação dos operários do início do século XX parece um absurdo quase incompre-ensível. como imaginar que a simples ideia da existência de um salário mínimo ou a proibição do trabalho infantil pode-ria ser amplamente rejeitada pelo Judici-ário? Assim, voltamos a um dos pontos centrais deste texto, a construção dos direitos e de seus sentidos liga-se aos processos históricos e o Judiciário pos-sui papel central neste processo.

7 A Suprema Corte (Supreme Court) é o tribunal mais importante dos Estados Unidos da América. Compete a ela dar a palavra fi nal em matéria de constitucionalidade.

O leitor pode se perguntar: mas como os EUA passaram a aceitar a exis-tência de um salário mínimo ou de outras restrições à liberdade contratual, como a limitação da jornada de trabalho se os tribunais tratavam tais iniciativas como in-constitucionais? A resposta nos remete a outro julgamento interessante envolven-do a Suprema corte dos EUA e decidido em 1937. No caso conhecido como West coast hotel co. versus Parrish, uma ca-mareira do estado de Washington (EUA) processou um hotel para receber a di-ferença entre a remuneração paga e o valor correspondente ao salário mínimo estabelecido com base na legislação es-tadual. O litígio acabou por chegar à Su-prema corte, sob a alegação de que a lei estadual feriria a constituição do país. O argumento repetia o fundamento de de-cisões anteriores da corte, chamadas de precedentes, segundo o qual somente em situações especiais seria legítima, ra-zoável e justa a existência de uma inter-venção estatal na liberdade contratual.

No julgamento do caso, a Suprema corte considerou constitucional a exis-tência de uma lei que estabelecesse um valor mínimo para a remuneração paga para uma mulher. Ou seja, a limitação à liberdade contratual seria permitida em razão do reconhecimento pelo tribunal da necessidade de uma proteção espe-cial à mulher e pelas repercussões à co-munidade que os salários baixos ou uma jornada de trabalho degradante poderia levar. Observe-se que se trata de um pas-

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so adicional para o reconhecimento da possibilidade do Estado estabelecer por lei um salário mínimo, dando novos con-tornos à chamada liberdade contratual.

Esse caso ganhou ainda mais re-levância por representar um marco na mudança da jurisprudência da Supre-ma corte ocorrida durante o período de recuperação da economia dos EUA, após a grande crise econômica iniciada em 1929. Ao longo dos anos de 1930, o então presidente dos Estados Unidos, Franklin d. Roosevelt8, elaborou um conjunto de medidas e projetos conhe-cido como New Deal (ou novo acordo).

Seu objetivo consistia em incentivar a atividade econômica, reduzir os efei-tos do desemprego para os trabalhado-res mais pobres e aumentar os contro-

8 Franklin Delano Roosevelt foi o 32º presidente dos Estados Unidos e

governou o país de 1933-1945.

civis” nos EUA ou ainda, recentemente na discussão em torno do direito à saúde associado à aprovação da Lei de Proteção ao Paciente e da Saúde Acessível (Patient Protection and Affordable care Act), po-pularmente conhecido como Obamacare.

O movimento pelos Direitos civis nos EUA possuía como principal objetivo combater a segregação imposta aos ne-gros pela legislação de diversos estados norte-americanos, em especial no sul do país. O marco inicial do movimento foi a recusa, em 1955, da costureira negra Rosa Parks em se levantar de um assento reservado exclusivamente para brancos, dentro de um ônibus de transporte cole-tivo na cidade de montgomery, no Ala-bama. Rosa Parks acabou presa e conde-nada por desrespeitar a lei que dividia os lugares nos ônibus entre negros e bran-cos. A situação inspirou um boicote da população negra aos ônibus e levou ao fi m da lei segregacionista no transporte público da cidade.

Os efeitos deste movimento se es-palharam. com protestos, revoltas, ma-nifestações, boicotes e ações judiciais foram derrubadas e abolidas todas as formas de segregação e separação entre negros e brancos nos EUA. Uma parte importante desse processo ocorreu nos tribunais federais por meio de ações que visavam assegurar a jovens negros o di-reito de estudar em escolas e universida-des destinadas apenas aos brancos.

O mais famoso destes casos ocor-reu na Universidade do mississipi, es-tado situado no sul do EUA. Em 1962, o ex-militar negro James meredith conseguiu numa corte federal o direi-to de ingressar na universidade. O en-tão governador do estado descumpriu a ordem e impediu a sua efetivação, acarretando uma intervenção de tro-pas federais para fazer valer o direito de meredith. A ação militar para cum-prir a decisão da Justiça resultou em violentos confrontos, com dois mortos e muitos feridos.

les sobre diversos setores da economia, como forma de evitar a repetição dos eventos que antecederam a grande cri-se. Iniciativas como a criação de uma previdência social, de um órgão de re-gulação e fi scalização do mercado de capitais e o estabelecimento de um sa-lário mínimo foram partes importantes das suas políticas.

Os projetos, todavia, entravam em choque direto com as interpreta-ções dos tribunais acerca dos limites da intervenção do Estado na econo-mia. muitas das medidas criadas no governo de Franklin D. Roosevelt fo-ram barradas por decisões judiciais que as consideravam inconstitucional. Em meio a tensões políticas, ao apoio popular do presidente e as demandas de um país em crise, ocorreram aos poucos mudanças na jurisprudência da Suprema corte. O tema era tão sensí-vel que o presidente chegou a propor a modifi cação do número de juízes do tribunal para tentar interferir na orien-tação das suas decisões.

5.os trIbuNaIsE O MOVIMENTO PELOS DIREITOS CIVISObserva-se que a gradual mudan-ça social e econômica nos EUA veio acompanhada de alterações também nos direitos reconheci-dos aos cidadãos e na posição das cortes sobre tais direitos. Esse processo não se interrompe e apresenta momentos de muito destaque, como durante o cha-mado “movimento pelos Direitos

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Parece difícil acreditar que ainda nos anos de 1960, muitas normas nos EUA, em todos os níveis de governo, tratavam os cidadãos negros de ma-neira prejudicial e racista, impedindo--os, inclusive de votar. O mesmo país em que a liberdade individual e a de-fesa da igualdade de oportunidades condicionava vigorosamente o desen-volvimento econômico, acatava leis que tentavam conservar a segregação racial dos tempos da escravidão.

5.1 OS TRIBUNAIS E O DIREITO À SAÚDE NOS EUAUm dos últimos acontecimentos desse importante processo de construção de novos limites para os direitos fundamen-tais ocorreu após a aprovação em 2010, durante o governo de Barack Obama, de uma lei para ampliar o acesso à saúde para pessoas com menor renda. Os EUA possuem um sistema de saúde com os melhores recursos de conhecimento e tecnologia, contudo apenas quem pode pagar um plano de saúde privado goza de acesso a tais benefícios.

Uma das ideias centrais por traz deste sistema é a concepção individu-alista de que cabe a cada pessoa pagar pelos custos de manutenção da sua própria saúde. Somente em casos espe-ciais, como em emergências ou quando as pessoas se encontram em situações de maior vulnerabilidade, como os ido-sos, justifi car-se-ia uma atuação estatal para fi nanciar tratamento, internações etc. Ou seja, para parte importante da

população dos EUA a saúde não é e não deve ser considerada um direito sujeito a proteção e garantia governamental.

O tema encontra-se cercado de po-lêmica. Após muitos projetos, diversas tentativas de presidentes anteriores, conseguiu-se aprovar uma nova lei des-tinada a ampliar a cobertura dos planos de saúde à população com menor ren-da. Entre muitas mudanças, a nova lei permitiu ao governo federal alocar re-cursos para fi nanciar o acesso aos pla-nos de saúde às pessoas consideradas pobres ou em condições de necessi-dade especial. Não cabe aqui explicar detalhadamente o plano, mas discutir como esta questão levou, mais uma vez, ao Judiciário a defi nição dos contornos de um direito considerados por muitos, como essencial a todo ser humano.

Um acalorado debate jurídico ani-mou todos os EUA em torno da consti-tucionalidade do chamado Obamacare. O caso acabou nos tribunais e exigiu uma manifestação da Suprema corte. Em ju-nho de 2012, os juízes da corte decidiram em votação apertada (5 a 4) pela manu-tenção da lei. O resultado foi comemo-rado como uma vitória histórica para os defensores do reconhecimento do direito à saúde. Todavia, a maior parte das dis-cussões jurídicas passou ao largo deste tema, restringindo-se a aspectos como a obrigatoriedade de contratação de um plano de saúde para todo americano, sob pena de multa e o limite de intervenção do governo federal no campo da saúde privada. Não obstante, iniciou-se uma nova fase no país em que se legitima uma crescente participação governamental no fi nanciamento do acesso à saúde às pes-soas de menor renda.

6.HIstÓrIa soCIaL E POLÍTICA BRASILEIRA: CONTEXTO E PRESSUPOSTOS PARA O NASCIMENTO DO NOSSO JUDICIÁRIOO Brasil tornou-se um país independen-te em 1822 e, já em 1824, elaborou sua própria constituição. De maneira diferen-te da maioria dos países que passavam pelo processo de independência, o Bra-sil teve uma constituição outorgada, ou seja, imposta pelo próprio rei, D. Pedro I. Não bastasse o fato atípico de adotarmos a monarquia como forma de governo e acolhermos como soberano um membro da família real de nossa antiga metrópole colonial, registramos uma situação estra-nha do monarca exigir o estabelecimento de uma constituição que, em tese, limita-va e regulava os poderes reais.

Nas revoluções ocorridas até então, a ideia de constituição surgia como pon-to de partida de um novo Estado em que o exercício do poder ocorreria de forma contida e planejada. O texto constitucio-nal serviria para esclarecer e fortalecer os limites do poder de quem governa e, assim, proteger os cidadãos de eventuais abusos. como parte da estratégia para evitar tais abusos, optava-se por um siste-ma de separação das funções do Estado

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Para Refl etirOs Estados Unidos da América é considerado por muitos estudiosos, um país que vive um regime politi-co democrático moderno e amplo. como você explicaria o motivo de um país democrático e próspero manter tanta resistência às leis que geram intervenção na relações eco-nômicas e de trabalho ou favorecem o fi nanciamento público da saúde?

seguindo a chamada Teoria da Separa-ção de Poderes de montesquieu9. Por meio da separação, haveria a distribuição racional de atribuições entre as diversas instituições estatais, como forma de evi-tar que qualquer delas gozasse de poder excessivo e pudesse, dessa forma, se ex-pandir e acabar por oprimir a população.

Em resumo, parece natural que se faça uma revolução ou declare a inde-pendência para lutar contra a opressão e se libertar do domínio abusivo do coloni-zador. No caso brasileiro, fi zemos uma in-dependência em que o herdeiro do trono português assumiu o poder no novo país e impôs uma constituição, ou seja, “exi-giu” a limitação do seu próprio poder.

mas será que essa limitação de fato aconteceu? O que se pretendia re-almente com a criação de uma consti-tuição para este novo país chamado de “Império do Brazil” (1824)?

Para responder a essa pergunta, nos remetemos ao relato da revolução liberal inglesa e todas as consequências que se seguiram. Ao término das revoluções, es-

9 Montesquieu (1689-1755) foi um político e escritor francês muito conhecido por sua Teoria da

Separação de Poderes. Inspirado nas ideias do liberalismo político e do iluminismo, desenvolveu sua teoria acerca da necessidade de separar as funções do Estado e distribuí-las

como forma de evitar o abuso do poder.

10 Uma das diferenças mais marcantes consiste na existência de quatro

poderes, e não de três: Moderador, Executivo, Judicial e Legislativo.

várias previsões, assegurava os direitos fundamentais do cidadão. E quais eram estes direitos? Os direitos dos cidadãos teriam por base a liberdade, a seguran-ça individual e a propriedade. Dentre eles se encontrava que: não poderia existir prisão sem ordem de autorida-de legítima, salvo se em fl agrante; a lei seria igual para todos; fi cariam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis; as ca-deias deveriam ser limpas e arejadas e os presos separados conforme a nature-za dos seus crimes; a educação primária seria gratuita e assegurada a todos os cidadãos; nenhum cidadão seria obri-gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa salvo em virtude de lei.

Ao observarmos esta lista de di-reitos, percebe-se que eles não se diferenciam de muitos daqueles direi-tos previstos na constituição Federal de 1988. Podemos então perguntar como é possível conviver por tantos anos com a escravidão, com práticas violentas e arbitrárias do Estado, com cadeias imundas e lotadas ou com a total ausência ou insufi ciência de es-colas primárias? Isso não seria contra-ditório ou desmoralizante para quem elaborava ou mesmo defendia a im-portância da constituição? Uma forma de responder isso se baseia na ideia de que a constituição representaria um projeto para transformar e aprimorar a nascente nação brasileira. Não ha-veria contradição, pois o que de fato desejávamos era seguir o exemplo das grandes potências estrangeiras e ten-tar imitar o que parecia ser o “ideal de civilização e progresso”.

Outro caminho, contudo, mostra-se mais duro e não inteiramente incompa-tível com a ideia anterior: a constituição protege apenas aqueles considerados cidadãos. E que eram os cidadãos? Se excluíssemos os negros e escravos do status de cidadão, estes não poderiam invocar a proteção constitucional. O

pecialmente da Independência dos EUA e da Revolução Francesa, prevaleceu a ideia de que seria necessário lançar os pi-lares para a criação de um novo Estado, fundado em bases racionais e científi cas e orientado para a proteção e realização dos direitos naturais dos homens. Os re-volucionários acreditavam que a legitimi-dade de sua luta derivava diretamente da necessidade de restabelecer o respeito aos direitos essenciais de cada homem.

Ao se derrubar um rei tirano, mos-trava-se essencial estabelecer um novo modelo de organização das instituições do estado, ou seja, “constituir” uma nova sociedade politicamente organizada. A constituição seria o pressuposto para o progresso nacional e para a emancipação humana. Sem constituição, não haveria país civilizado e livre. Desta maneira, um dos pontos centrais para impulsionar este desejo de muitos, e do próprio rei, consis-tia na necessidade de oferecer as bases para o que seria um país “civilizado” e que almejava o progresso. Essas aspirações vinculavam-se, em linhas gerais, às teorias liberais muito infl uentes naquela época.

como resultado desta infl uência, seguimos com algumas diferenças10, os modelos já elaborados por outros países, como a França, e elaboramos uma constituição que organizava os poderes estatais, distribuía funções, regulava o exercício do poder e, entre

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mesmo valeria para as mulheres, para os estrangeiros e para os homens livres po-bres. mesmo sem uma exclusão expres-sa no texto constitucional, verifi cava-se que a sociedade brasileira do século XIX se estruturava sem utilizar a concepção de cidadania como elemento fundante. Quando muito, poderíamos falar de uma cidadania limitada a pequenos grupos.

7.a esCraVIDÃo,JUSTIÇA E DIREITOSA escravidão é dos elementos mais im-portantes para compreender a história das instituições brasileiras e os proces-sos de afi rmação e construção dos direi-tos no Brasil. Não há problema social, fragilidade institucional e vício na ação estatal que não apresente ligações pró-ximas ou distantes com os efeitos da escravidão na realidade do país.

O uso do braço escravo represen-tava o núcleo da vida econômica e a base de todas as atividades produtivas no país. Em geral, associa-se o trabalho escravo com a grande lavoura cana-vieira ou cafeeira, ou ainda ao ciclo do ouro, todavia sua utilização dominava as atividades domésticas, a construção, a limpeza urbana, o transporte de car-gas e todas as formas de labor braçal existentes na nossa sociedade. A con-vivência e a dependência da escravidão permeavam a rotina dos brasileiros e deixava pouco espaço para os homens livres pobres.

Essa presença tão intensa em ativi-dades tão diversas implicava na necessi-dade brutal de vigiar e controlar de ma-neira constante, uma enorme população negra que circulava pelos campos ou pela cidade em razão do seu trabalho.

Ao contrário do que se pode imaginar, os negros não estavam sempre acorren-tados ou amarrados. Suas amarras mais importantes eram pouco visíveis, porém poderosas. construímos, assim, uma so-ciedade de vigilância e controle sobre os escravos (e sobre os pobres em geral), em que a punição diária reproduzia e re-forçava os papéis sociais esperados para estas populações. A desigualdade e a violência criaram marcas permanentes na maneira como as pessoas e o Estado agem sobre as populações pobres, em particular sobre os negros.

Vivíamos (ou talvez ainda vivamos) com a necessidade constante de negar os sentidos de igualdade, liberdade e proteção aos direitos idealmente pro-jetados nas doutrinas jurídicas e nos textos constitucionais. Nessa oscilação entre o desejo de se transformar em país próspero e preservar as estruturas de manutenção da sociedade escravo-crata, optamos, com frequência, pela segunda opção. E o Estado brasileiro se organizava também segundo estas necessidades e opções. Justiça e Polí-cia, Legislativo ou Executivo, agiam no século XIX, segundo as condicionantes da conservação da escravidão.

mesmo com a abolição da escravi-dão, a preocupação com o controle so-bre negros e pobres continuou. No pro-cesso de transição para a introdução do trabalho livre, o país passou mais de trinta anos criando novas leis, refor-mando o Judiciário e a Polícia e cami-nhando rumo à abolição em pequenos passos. A preocupação mais presente advinha do temor da perda do controle sobre os negros, que poderiam se re-voltar, tomar as cidades ou se recusar completamente a trabalhar.

A partir de 1850, regulamentaram--se de maneira mais cuidadosa os novos contratos de prestação de serviço dos homens livres, tentou-se por meio da legislação evitar o acesso à terra como forma de forçar as pessoas a trabalhar

nas fazendas e assegurou-se a preser-vação de formas violentas e arbitrárias de controle sobre negros e homens li-vres pobres, conservando uma quase imunidade das polícias em relação aos controles judiciais.

7.1 CLIENTELISMO E OS OBSTÁCULOS PARA UMA CULTURA DE DIREITOSA chegada da República e, as décadas que se seguiram, não foram sufi cientes para afastar o temor das revoltas e da perda de controle sobre os trabalhado-res pobres. As formas de repressão antes desenhadas para atuar sobre escravos negros expandiram-se para formas mais genéricas de combate ao ócio. crimi-nalizava-se e punia-se a mendicância, a chamada vadiagem e muitas espécies de agrupamentos populares para o lazer ou para manifestação cultural. A capoei-ra, hoje vista com grande manifestação de nossa cultura, era designada por mui-tas décadas como uma atividade crimi-nosa, reprimida com vigor e constância pela polícia e pela justiça.

A divisão social e econômica entre escravos negros e proprietários deixava pouco espaço para os homens livres po-bres (brancos ou negros) exercerem ati-vidades remuneradas ou obterem algu-ma forma de rendimento. A repressão e a violência exigidas pela manutenção da segregação racial da escravidão pro-duziam refl exos também sobre os po-bres que não fossem escravos.

A sobrevivência nesta sociedade de-pendia da capacidade de se inserir sob a proteção de grupos ou pessoas mais ricas e poderosas, de se submeter a formas de trabalho subordinado que não interferis-sem na maneira como se organizava a produção da grande lavoura exportadora e de colaborar com um sistema de trocas clientelistas que regia o funcionamento de todas as esferas de governo.

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Os principais cargos do Estado bra-sileiro nascido com independência eram ocupados por um grupo relativamente pequeno de pessoas, na sua maioria, oriundos das faculdades de Direito e nascidos na elite econômica e política, que atuava desde o período colonial. A prosperidade econômica e o predomí-nio político sobre a atuação estatal an-davam juntos. Proprietários de terra ou comerciantes almejavam alimentar boas relações com os funcionários do Estado e o faziam por meio de casamentos, ami-zade, trocas de favores ou simples cor-rupção. Na maioria das vezes, este siste-ma de troca e favorecimento, conhecido como clientelismo, não gerava qualquer tipo de indignação pública.

Não havia uma expectativa geral de um Estado que agisse de maneira igua-litária sobre as pessoas e viabilizasse uma aplicação rígida da lei. O desejo e a aspiração dos indivíduos consistia em gozar de privilégios, de receber trata-mento diferenciado, contar com bene-fícios, favores e rendimentos especiais. Assim, o caminho para alcançar algum tipo de serviço público era se inserir nesta rede de proteções e favores. José murilo de carvalho (2002) exemplifi ca bem esta situação com uma frase ainda usada em tom de brincadeira até hoje: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

Ao contrário do que se poderia imaginar, dentro de um projeto de Estado em moldes liberais, a lei não é vista como um instrumento de pro-teção dos indivíduos contra abusos. O tratamento dentro da lei demonstra o oposto: a perseguição pelos inimigos, a ausência de amizades poderosas e o desprestígio. Neste ambiente, as lutas das pessoas por uma vida melhor aca-ba não se realizando por intermédio de uma busca por direitos ou pela conver-são em lei de demandas e interesses. A via mais rápida para obtenção da sa-tisfação de interesses e necessidades imediatas era a inserção na rede de

proteção criada por trocas de favores e amizades. Um bom emprego, uma vaga na escola, uma autorização para construir ou produzir dependiam sem-pre de amizade e favorecimento e não do cumprimento da legislação.

Podemos então perguntar: como essa estrutura se mantinha se existiam eleições periódicas? A mesma dinâmica contaminava o processo eleitoral. No sé-culo XIX, as eleições eram baseadas em critérios de renda. Somente pessoas ca-pazes de comprovar uma determinada renda poderiam participar da votação. Os critérios não eram muito elevados e propiciavam uma participação relativa-mente alta. Todavia, se considerarmos que escravos, mulheres, crianças e pes-soas com renda muito baixa não partici-pavam, restava um percentual de menos de 10% da população (este número varia ao longo das décadas do século XIX).

O alistamento eleitoral, o percurso até os locais de votação e a indicação do voto ocorria de maneira sempre tensa, violenta e sujeita a todo tipo de fraude. O voto era aberto e todos sabiam em quem cada um votava. Nesse contexto, o ato de votar signifi cava o momento de provar e reafi rmar as lealdades com os grupos e pessoas no poder. mesmo conhecendo das fraudes, desconfi ando dos resultados e sujeitando-se a vio-lências e represálias, o eleitor precisava passar por isso para legitimar seus padri-nhos políticos. As eleições, assim, pou-co expressavam uma manifestação clara dos interesses de grupos organizados ansiosos em ver seus projetos represen-tados pelo legislador. Votar representava uma retribuição de favores e o desejo de gozar também de privilégios e proteção.

Quebrar este ciclo não era tarefa fá-cil, não importava em que posição social se encontrasse. Ricos e pobres assumi-ram um risco pessoal enorme ao tentar romper com o clientelismo, pois todas as estruturas do Estado funcionavam segun-do a lógica da troca e do favorecimento.

8.reNoVaNDoO PAPEL DA JUSTIÇAEstamos falando aqui do século XIX, mas ao ouvir estes relatos sentimos uma sensação estranha de que muito desta forma de agir continua ainda muito pre-sente em nossas vidas. De maneira muito simplifi cada, podemos dizer que um dos grandes pressupostos da criação de uma nova ordem jurídica e política, baseada numa constituição, consiste no desejo de limitar os abusos realizados pelo Esta-do e projetar um modelo de intervenção estatal sobre a vida das pessoas baseado na lei. Em outras palavras, signifi ca espe-rar que os direitos reconhecidos na lei ou na constituição sejam aplicados de ma-neira igualitária sobre os cidadãos.

Não obstante, um dos maiores de-safi os da sociedade e do Estado bra-sileiro, no século XX e XXI, consiste exatamente em superar esse legado e redefi nir os marcos que guiam a atua-ção na proteção e efetivação dos direi-tos do cidadão.

Para o Judiciário, esta tarefa mos-trava-se extremamente difícil, pois não se pode pensar sua atuação de manei-ra distinta do conjunto do sistema polí-tico, da escravidão e da estrutura eco-nômica. A Justiça brasileira, do século XIX e boa parte do século XX desem-penhava função essencial na manuten-

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sÍNtese Do FasCÍCuLo

As grandes revoluções liberais, como a Revolução Gloriosa Inglesa, Indepen-dência dos EUA e Revolução France-sa, transformaram as relações entre os indivíduos e o Estado e redefi niram os principais elementos da sua constru-ção após o século XVII. As revoluções aconteceram num cenário de conso-lidação da economia capitalista e de valorização dos direitos associados à li-berdade individual. Partiu-se de um Es-tado centrado na proteção dos direitos à liberdade, à propriedade e à segu-rança para, gradualmente, incorporar novos direitos, como saúde e educa-ção, às leis e constituição e ao campo de proteção estatal.

No Brasil, o projeto de construção de um país independente baseou-se, no plano jurídico, em modelos euro-peus de reconhecimento do direito à liberdade e nas possibilidades de alcan-çar o progresso por meio de uma nova ordem constitucional. Este projeto teó-rico conviveu com as peculiaridades de uma economia e sociedade baseadas no trabalho escravo, na segregação e vigilância dos mais pobres e na orienta-ção da ação do Estado por um sistema de trocas clientelistas. Neste cenário, as aspirações de construção de uma jus-tiça apta a desenvolver uma cultura de direito aplicados igualitariamente aos cidadãos não pôde prosperar.

Somente com a gradual afi rmação histórica das condições de independên-cia e autonomia administrativa do Judi-ciário passou-se a caminhar mais rapida-mente para uma renovação da atuação do Judiciário e redefi nição do seu papel na jovem democracia brasileira.

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ção e reprodução do modelo de fun-cionamento do Estado pensado num cenário de escravidão. Isto signifi cava concentrar-se na repressão e controle social de pequenos delitos de traba-lhadores pobres e escravos, dedicar-se à proteção da propriedade privada e manter uma atuação prudente e cau-telosa, quando os litígios envolvessem membros das elites do país.

A atuação dentro dos rigores da lei para um juiz no século XIX represen-tava um enorme risco à sua carreira e até mesmo à integridade física. Porém, sempre recaiu sobre os bacharéis em Direito, em especial sobre os magistra-dos, uma grande expectativa quanto ao papel da justiça na reforma e transfor-mação da sociedade brasileira.

Por mais que se possa recusar e criticar esta perspectiva, em muitos momentos depositava-se na Justiça a esperança de transformar as práticas políticas do país e se instituir uma es-pécie de “cultura de direitos” desen-volvida de cima para baixo por inter-médio das intervenções do Judiciário. Em parte, pode ser atribuída a este desejo, a opção por entregar ao Judi-ciário a gestão do processo eleitoral e criar a Justiça Eleitoral.

O Judiciário e os magistrados sempre tiveram um papel de destaque na história nacional, todavia, percor-remos um longo caminho até se con-solidar uma justiça que contasse com todos os elementos de independência e autonomia necessárias a redefi nir o seu papel. E é sobre esta justiça que se depositam hoje tantas expectativas, como a obtenção de vagas nas escolas e de leitos em hospitais ou respeito ao bom uso dos recursos públicos. As as-pirações de uma atuação renovadora continuam, mas agora há um novo ce-nário com grande potencial para uma atuação capaz de transformar a ideia do respeito à lei e de aplicação dos di-reitos em seu sentido positivo.

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ApoioRealização

expediente FUNDAçãO DEmócRITO ROchA Presidência joão dummar neto | Direção Geral marcos tardin UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE coordenação Pedagógico-Administrativa ana paula costa salmincURSO cIDADANIA JUDIcIáRIA | concepção e coordenação Geral cliff Villar | coordenação de conteúdo Gustavo Feitosa | coordenação de Edição Raymundo netto | Gerência de Produção sérgio Falcão | Edição de Design amaurício cortez | Editoração Eletrônica dhara sena e cristiane Frota | Ilustrações Karlson Gracie | catalogação na Fonte Kelly pereira

Este fascículo é parte integrante do curso cidadania judiciária da Fundação Demócrito Rocha (FDR) / Universidade Aberta do Nordeste (Uane) isBn 978-85-7529-612-7

Fundação demócRito RochaAv. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora cep 60.055-402 - Fortaleza-ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 Fax: (85) 3255.6271

fundacaodemocritorocha.com.br [email protected] [email protected]

sobre o autorGustavo Feitosa é graduado em Direito com mestrado em Sociologia, pela Uni-versidade Federal do ceará, e doutora-do em ciências Sociais pela Universida-de Estadual de campinas. Atualmente,

é professor titular do Programa de Pós--Graduação em Direito constitucional e do centro de ciências Jurídicas da Universidade de Fortaleza. É profes-sor adjunto de Direito Processual civil

na UFc. É coordenador de pesquisa do centro de ciências Jurídicas da Universi-dade de Fortaleza e editor do periódico Pensar: revista de ciências Jurídicas.