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THIAGO KACZUROSKI FAROESTES URBANOS: A TIPOLOGIA DO PISTOLEIRO NA OBRA FICCIONAL DE MARÇAL AQUINO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA COGEAE PUC-SP SÃO PAULO 2013

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Monografia de conclusão do Curso de Especialização em Literatura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cogeae) sob a orientação da Prof.ª Doutoranda Geruza Zelnys de Almeida.

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Page 1: Faroestes Urbanos - Thiago Kaczuroski

THIAGO KACZUROSKI

FAROESTES URBANOS: A TIPOLOGIA DO PISTOLEIRO

NA OBRA FICCIONAL DE MARÇAL AQUINO

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA

COGEAE

PUC-SP

SÃO PAULO

2013

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THIAGO KACZUROSKI

FAROESTES URBANOS:

A TIPOLOGIA DO PISTOLEIRO

NA OBRA FICCIONAL DE MARÇAL AQUINO

Monografia de conclusão do Curso de Especialização em

Literatura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(Cogeae) sob a orientação da Prof.ª Doutoranda Geruza Zelnys

de Almeida.

SÃO PAULO

2013

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DEDICATÓRIA

A José Geraldo Ferreira de Moura Campos, que me ensinou, entre

um universo de coisas, a amar e respeitar os livros.

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AGRADECIMENTOS

A José Geraldo e Maria Therezinha, sem os quais eu não teria chegado nem perto das

conquistas que tive até hoje;

A meus pais, Maria e Antonio, pelo carinho e apoio;

A Cecília Lara, companheira querida, com quem divido a paixão pelas palavras, a casa, a

vida;

A Marçal Aquino, pela inspiração, atenção e generosidade.

Às coordenadoras, professores e colegas do curso, pelas interessantes trocas de

conhecimentos e experiências ao longo dos últimos dois anos;

À orientadora, Geruza Zelnys, pela paciência e prontidão nos momentos de angústias

acadêmicas.

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Quando entrares na violência vai até o fim; se não aguentas, não entres.

Agostinho Silva

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RESUMO

Estudar a obra de Marçal Aquino é lançar um olhar sobre um gênero com grande

aceitação de público, mas que ainda tem pouca entrada na Academia: a Literatura

Policial. Em tempos como o que vivemos, na cidade de São Paulo, uma visão sobre a

literatura que trata de temas que estão tão próximos - a escalada da violência, a

corrupção invadindo diversos setores da sociedade - se faz muito importante e

necessária.

Neste trabalho, será feita a análise de três personagens da obra do escritor: Anísio,

personagem chave da novela O Invasor, de 2002, e a dupla Albano e Brito, este último

protagonista do romance Cabeça a Prêmio, de 2003, a fim de detectar o processo de

criação do autor.

Tendo como base as edições originais das obras acima citadas e utilizando o

minucioso trabalho de pesquisa da socióloga Peregrina Cavalcante, Como Se Fabrica Um

Pistoleiro, de 2003, pretendo mostrar como é o processo de criação e como se encaixam

nas obras personagens tão singulares, que tem em comum o ofício de matadores e que

se encarregam de um papel ficcional muito peculiar: o de eliminar outros personagens da

trama.

PALAVRAS-CHAVE: Marçal Aquino, Literatura Policial, personagem, matador, pistoleiro.

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SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................7

Capítulo 1. Quem é Marçal Aquino?...................................................................................11

1.1A origem dos pistoleiros na obra de Marçal Aquino............................................12

1.2 O Invasor x Os Invadidos..................................................................................14

Capítulo 2. A Tipologia do Pistoleiro...................................................................................18

2.1 Anísio..................................................................................................................20

2.2 Os invadidos.......................................................................................................22

2.3 A entrada na pistolagem.....................................................................................23

2.4 Brito e Marlene...................................................................................................25

Capítulo 3. O Pistoleiro como função narrativa..................................................................27

3.1 Anísio e sua função............................................................................................27

3.2A função de Brito e Albano.................................................................................31

3.3 O Crítico como pistoleiro...................................................................................32

Considerações finais...........................................................................................................35

Referências Bibliográficas..................................................................................................37

Anexo I – Entrevista com Marçal Aquino

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Introdução

Meu contato com a obra de Marçal Aquino começou em 2002, e coincidiu com o

lançamento de O Invasor. Vestibulando de jornalismo, me interessava por autores que

fossem jornalistas e tivessem produções literárias de ficção e não-ficção. Desde então,

acompanho a carreira do autor, com quem tive breves contatos em palestras e eventos de

lançamentos de suas obras e roteiros de cinema.

Ao longo dos anos, fui percebendo traços que permeavam suas obras e

personagens que continham histórias e características semelhantes em seus contos e

romances. Este trabalho é uma tentativa de revelar características de um tipo específico

de personagens que aparece ao longo de sua escrita: os matadores de aluguel.

Paulista de Amparo, Marçal Aquino se formou em jornalismo pela Pontifícia

Universidade Católica de Campinas em 1983. Desde 1985 atuou como repórter, redator e

editor de veículos de comunicação como A Gazeta Esportiva, O Estado de S.Paulo e

Jornal da Tarde. Ao longo da década de 1990, se dedicou à literatura, atuando

paralelamente como colaborador da revista Época e do jornal Folha de S. Paulo.

Lançou livros de poesia (A Depilação da Noiva no Dia do Casamento, Abismos –

Modos de Usar e Por Bares Nunca Antes Naufragados), literatura juvenil (O Mistério da

Cidade Fantasma, O Jogo do Camaleão, O Primeiro Amor e Outros Perigos, A Turma da

Rua Quinze e Coleção Sete Faces), mas é mais reconhecido por seus livros de literatura

adulta (O Invasor, Faroestes, O Amor e Outros Objetos Pontiagudos, As Fomes de

Setembro, Miss Danúbio, Cabeça a Prêmio, Famílias Terrivelmente Felizes e Eu

Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios).

Por ser jornalista, Marçal Aquino traz para a ficção a crueza e o realismo da crônica

policial. Suas obras circulam pelo universo dos acertos de contas, das mortes por

encomenda, das perseguições a criminosos, da corrupção e dos casos de amor proibidos,

que geralmente acabam mal.

A obra de Marçal Aquino é muito visual. Não por acaso, o autor se destaca também

como roteirista de cinema e televisão, tendo adaptado para as telas alguns de seus livros,

como os que serão estudados neste trabalho, além de Os Matadores (baseado em um de

seus contos), O Cheiro do Ralo (adaptado da obra homônima de Lourenço Mutarelli),

assim como criações originais, como Nina e a série para televisão Força Tarefa. Seu

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trabalho mais recente como roteirista foi Eu Receberia as Piores Notícias de seus Lindos

Lábios, adaptado de seu romance lançado em 2005.

Apesar de premiada em diversas ocasiões, como em um concurso de contos do

Estado do Paraná (em 1994, por Miss Danúbio), na V Bienal Nestlé de Literatura (em

1991, por As Fomes de Setembro) e no Prêmio Jabuti (em 2000, por O Amor e Outros

Objetos Pontiagudos), a obra de Marçal Aquino tem pouca ou nenhuma entrada na

Academia, não existindo trabalho de peso sobre nenhum de seus livros.

O presente trabalho busca trazer à tona as histórias e personagens de um autor

ainda em atividade, reconhecido por público e crítica por tramas bem elaboradas, de forte

apelo visual, e que trata de questões como a violência e a fragmentação das grandes

cidades. Busca ainda valorizar a escrita de um autor ativo, peça importante no cenário da

literatura brasileira contemporânea.

Em suas obras, Marçal Aquilo trabalha de forma literária um perfil de personagens

com uma tipologia muito distinta. Os pistoleiros têm uma profissão com traços sociais

bastante distintos, atuando em um campo marginalizado, que viola o senso comum de

esferas jurídicas, sociais, morais. Estes tipos atuam como agentes de momentos de

violência que são determinantes para o andamento da narrativa nas obras.

Assim, a partir do tema proposto no trabalho, algumas questões acerca do enredo

e das personagens de Cabeça a Prêmio e O Invasor serão discutidas: os pistoleiros são

os criadores das situações de violência presentes na obra, ou apenas catalisadores de

um ambiente permeado por inúmeras situações de corrupção e impunidade? Como é feita

a construção de personagens – ainda que coadjuvantes em alguns casos – tão essenciais

para o enredo? Com quais características uma personagem com uma função tão

específica (eliminar peças da narrativa) é concebida?

Para isso, será necessária uma fundamentação teórica que alicerce essas

reflexões. Em 2003, a pesquisadora cearense Peregrina Cavalcante publicou o mais

completo estudo sobre a pistolagem no Brasil. Como se Fabrica um Pistoleiro traça um

apanhado sobre a gênese, os costumes e os agentes de um fenômeno muito

característico do país: o das mortes por encomenda.

Durante dois anos, a pesquisadora viajou pelos estados do Maranhão, Piauí e

Ceará, conversando com vítimas e autores de crimes de pistolagem, e produziu um

detalhado panorama sobre as causas, consequências e modus operandi destes agentes

da violência.

Sua obra passa por questões como a ética da pistolagem, o cotidiano dos “jurados

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de morte”, a preparação de um crime encomendado, as técnicas utilizadas nos ataques,

entre outros aspectos. Com isso, Cavalcante classificou três “tipos ideais” de pistoleiros: o

pistoleiro tradicional (subordinado a um coronel, espécie de patrão); o pistoleiro avulso

(que aceita crimes por encomenda, sem vínculo com o mandante) e o pistoleiro bandido

(que comete assassinatos e outros crimes, como sequestros, assaltos, estupros).

Esta será a obra utilizada para justificar a construção das personagens, que serão

enquadradas nestes tipos de acordo com as características apresentadas na narrativa.

Outros elementos expostos ao longo da construção do enredo apontam semelhanças com

o que foi pesquisado por Peregrina Cavalcante em sua pesquisa, e também serão

expostos neste trabalho.

Para que as características das personagens sejam afloradas e analisadas,

algumas obras sobre a criação literária (principalmente de personagens) serão utilizadas

na fundamentação do presente trabalho. Uma delas é Como Funciona a Ficção, do crítico

e teórico inglês James Wood, que trata da criação das personagens, dos aspectos da

empatia e da complexidade na caracterização dos mesmos e dos detalhes na narrativa –

que podem ser a porta de entrada para a análise mais profunda dos tipos a serem

analisados neste trabalho.

Também serão utilizadas livros sobre o papel da personagem nas narrativas, em

especial as análises de Vladimir I. Propp em A Morfologia do Conto Maravilhoso, além de

obras que, se não citadas no texto, serviram como bases de leituras teóricas como A

Personagem, de Beth Brait, Personagem e Antipersonagem, do Prof. Dr. Fernando

Segolin, A Personagem de Ficção, de Antônio Cândido, Anatol Rosenfeld e Décio de

Almeida Prado, entre outros.

No primeiro capítulo, Quem é Marçal Aquino, veremos a biografia e a produção

literária de Marçal Aquino e sua importância para o cenário da literatura brasileira

contemporânea. Também veremos uma entrevista com o autor sobre seu processo de

criação e sobre características das personagens que serão analisadas no trabalho, a fim

de esclarecer pontos sobre a trajetória dos mesmos em suas obras.

O segundo capítulo, A Tipologia do Pistoleiro, trará a análise da obra sociológica de

Peregrina Cavalcante, na qual apontaremos semelhanças e diferenças entre os

personagens e os pistoleiros reais estudados pela autora. Também trataremos a função

destas personagens nas obras e uma característica muito singular: eles eliminam outros

personagens da trama.

O terceiro capítulo, A função do Pistoleiro, trará uma análise sobre as obras

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estudadas e como as personagens influenciam seu desenvolvimento. Por fim, no quarto

capítulo, O Crítico Pistoleiro, faremos uma reflexão sobre o papel deste pistoleiro e como

esta função de “seleção” do que permanece e do que sai de cena pode ser estendida a

outras áreas, como o ofício do autor e do crítico.

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Capítulo 1. Quem é Marçal Aquino?

Marçal Aquino nasceu em Amparo, interior paulista, em 28 de janeiro de 1958. Aos

25 anos se formou jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, tendo

atuado como repórter, redator e editor de veículos de comunicação como A Gazeta

Esportiva, O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde. Além de ter sido colaborador da revista

Época e do jornal Folha de S. Paulo.

A partir de 1985, quando se mudou para São Paulo, atuou em diversas editorias, e

se aproximou em alguns momentos, principalmente n'O Estado de S. Paulo e no Jornal

da Tarde, da reportagem policial, algo que de certa forma marcaria seus trabalhos futuros.

A estreia de Aquino na Literatura veio em 1984, com a edição independente do livro

de poemas A Depilação da Noiva no Dia do Casamento. A poesia na carreira do escritor

teria espaço em apenas mais um livro, Por Bares Nunca Antes Naufragados, publicado

também de forma independente, no ano seguinte.

Quatro anos depois, publicou seu primeiro livro infanto-juvenil, A Turma da Rua

Quinze, sucesso de vendas, mas não lhe deu o reconhecimento que viria com trabalhos

posteriores.

Lança mais livros infanto juvenis até que em 1991 publica o volume de contos As

Fomes de Setembro, vencedor do 5º Prêmio Bienal de Nestlé de Literatura, seu primeiro

livro adulto. Foi neste ano que surgiu a parceria com o cineasta Beto Brant, que renderia

sete filmes feitos pela dupla. Brant procurou Aquino pensando em adaptar o conto Onze

Jantares para o cinema. O projeto não foi para a frente, mas nasceu aí a amizade.

O ano de 1994 foi um divisor de águas na carreira de Marçal Aquino. Lançou Miss

Danúbio, também de contos, que foi premiado em um concurso no Paraná. Deste livro

saiu o argumento de Os Matadores, seu primeiro trabalho como roteirista e primeiro longa

a ser lançado da parceria com Beto Brant, em 1997. Aquino decidiu então sair das

redações e se tornar um redator freelancer, para poder se dedicar à Literatura.

Em 2000 veio o prêmio máximo da carreira do autor. Ele foi o vencedor da

categoria de contos do Jabuti, com O Amor e Outros Objetos Pontiagudos, que consolidou

sua carreira literária, afastando-o ainda mais do jornalismo.

Em 2002 estreou o longa O Invasor, baseado em uma novela de mesmo nome, que

deu grande projetor a Marçal tanto em seu trabalho como escritor como de roteirista. O

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filme foi premiado em diversos festivais pelo mundo e Aquino foi convidado para ser

consultor do 4º Laboratório de Roteiros Sundance/RioFilme, a convite do Sundance

Institute, Utah, Estados Unidos – uma das principais entidades do cinema independente

mundial.

Desde então foram lançados outros livros e roteiros para o cinema e para a

televisão. Seu filme mais recente, Eu Receberia As Piores Notícias de Seus Lindos

Lábios, baseado em seu romance homônimo, foi sucesso de crítica e público, trazendo a

atriz Camila Pitanga em atuação memorável. Após a primeira temporada bem sucedida da

série Força Tarefa, da Rede Globo, assumiu novos trabalhos como roteirista de televisão,

sua principal atividade atualmente. Seu novo livro, Como Se o Mundo Fosse um Bom

Lugar, um romance sobre uma família de criminosos de um bairro de São Paulo, tem

previsão de lançamento para o fim de 2012.

Herdeiro de mestres da literatura policial como Dashiell Hammett, James Ellroy,

Lawrence Block, F.X. Toole (de quem é um dos tradutores no Brasil) e Rubem Fonseca, a

literatura de Marçal Aquino é marcada por climas tensos, a violência sempre presente e

frases curtas e precisas.

O amor, embora marque presença em diversas de suas obras, foge do clichê de

mocinhos e mocinhas. Seus personagens, em sua maioria, são sujeitos que vivem à

margem, envolvidos com atividades ilícitas, e que têm dificuldade de se relacionar.

Os matadores, tipo a ser analisado neste trabalho, são bastante presentes na obra

de Marçal Aquino. Como este trabalho tem um foco específico em três destes

personagens, não analisarei todas as incidências de pistoleiros em sua obra. Mas um

destes casos merece destaque: o conto Matadores, escrito em 1991 e publicado em Miss

Danúbio, de 1994.

Matadores têm diversos elementos que serão revisitados pelo autor nas duas obras

analisadas neste texto – principalmente em Cabeça a Prêmio. Percebe-se nesta obra a

gênese de um personagem que aparecerá diversas vezes ao longo de sua carreira.

Podemos considerar estes personagens do conto – que foi o primeiro do autor adaptado

por Beto Brant ao cinema, dando início à longa parceria – como proto-matadores,

modelos que serão revisitados em obras seguintes.

1.1 A origem dos pistoleiros na obra de Marçal Aquino

O universo de Os Matadores surgiu durante um trabalho de investigação

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jornalística que o autor fez na década de 80. Na entrevista1 feita para o presente trabalho,

Marçal contou como teve este primeiro contato com o mundo da pistolagem: “Tomei

contato com o universo dos pistoleiros de aluguel pela primeira vez nos tempos de

repórter, no começo da década de 1980. Estava recolhendo material para um futuro livro-

reportagem, que acabei não levando em frente. Dizia respeito ao assassinato de uma

mulher em Campinas por pistoleiros contratados no Paraguai pelo próprio marido da

morta. A pesquisa me levou para a fronteira Ponta Porã-Pedro Juan Caballero e encontrei

lá um clima meio de faroeste que me interessou muito. Percebi que existia toda uma

mitologia por trás daqueles homens e resolvi investigar com a ficção. Essa foi a gênese

do conto Matadores, meu primeiro texto a abordar o mundo dos pistoleiros, que escrevi

em 90/91.”

Ele afirma, porém, que seus personagens não são baseados em algum caso

específico que viu em seu trabalho como repórter policial, mas sim criações puramente

ficcionais: “Todos os matadores que aparecem na minha literatura são apenas

personagens. Mas é evidente que uma ou outra característica vem do mundo real, dessas

vivências que eu tive”, completa o autor.

Isso posto, vejamos o enredo de Matadores: o conto narra a história de três

pistoleiros: Alfredão, Múcio e do narrador, que não tem o nome revelado. O narrador e

Alfredão estão em uma tocaia, em um bordel frequentado por caminhoneiros na divisa

entre Brasil e Paraguai. O narrador, novo no ofício, está em sua primeira missão

acompanhando Alfredão, capanga de confiança do empresário Turco. A todo tempo, eles

relembram Múcio, antigo parceiro de Alfredão, morto em uma emboscada em um quarto

de hotel no Paraguai. Alfredão conta sobre missões anteriores, sobre a perícia e a

perspicácia de Múcio e lamenta não ter mais o parceiro a seu lado.

Após um momento em que eles saem da boate e Alfredão vai ao banheiro e não

volta, o narrador descobre que o parceiro acaba de ser assassinado e agoniza sobre uma

privada. Ele então se recorda de que, quando estava vigiando Múcio, em sua primeira

missão a mando de Turco, suspeitava que seu pistoleiro estava saindo com sua mulher.

O conto passa então a narrar as origens de Múcio, como se tornou destemido após

ser aprendiz de um famoso matador da região, e de como se envolveu com a esposa do

patrão, até o momento em que vão para o derradeiro quarto de hotel.

Então, o leitor descobre que o matador enviado por Turco para dar cabo do amante 1 Todas as falas de Marçal Aquino, não assinaladas com a fonte ao longo deste trabalho, se referem à entrevista concedida para nossa pesquisa e que se encontra na íntegra como Anexo ao final.

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Page 15: Faroestes Urbanos - Thiago Kaczuroski

da esposa é justamente Alfredão, melhor amigo do traidor, após uma discussão, em que

Múcio sugere que ele o deixe fugir. Alfredão fala que isso não adiantaria, e que foi enviado

para este serviço justamente para provar ao patrão que era de confiança. Mata então o

amigo com três tiros – algo incomum para um atirador exímio, que resolvia suas missões

com apenas uma bala.

Este conto, embora escrito mais de dez anos antes dos textos que serão

analisados aqui, já apresenta diversos elementos sobre o modo de vida e a forma como

agem estes personagens. E traz ainda um recurso narrativo que marcaria diversos dos

textos de Marçal Aquino.

Como é de praxe na literatura policial, o leitor deve ser surpreendido. Em

Matadores, Marçal trabalha com maestria este recurso, induzindo o leitor a pensar que o

narrador, novo no esquema de Turco, havia matado Múcio para tomar seu lugar, quando

percebe que foi o parceiro, que lamentava seu assassinato, o verdadeiro autor dos tiros.

Este conto também mostra alguns detalhes do modo de atuação dos matadores

das áreas mais afastadas dos grandes centros: trabalham sempre em duplas, fazendo

elaboradas tocaias para aprender a rotina de seus alvos, para que os serviços sejam os

mais rápidos e sem imprevistos.

Há também um traço bastante comum entre estes personagens: o de envolvimento

com prostitutas ou mulheres mais velhas das regiões em que estão fazendo algum

serviço. Mulheres que fazem poucas perguntas e que de uma hora para outra serão

abandonadas sem nenhum tipo de contato posterior.

Este conto, porém, fala sobre as origens de um dos matadores, algo que seria

presente em Cabeça a Prêmio. Também humaniza o narrador, nos diálogos com o

parceiro e com uma das prostitutas, nos quais o leitor consegue ver que por trás de um

assassino existe um ser humano semelhante em alguns aspectos a muitos de nós.

1.2 O Invasor x Os Invadidos

Embora tratem de temas semelhantes – o trabalho de matadores de aluguel – as

duas obras têm diferenças marcantes, que serão exploradas a seguir.

O Invasor – Enredo

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O Invasor narra a história de Ivan – o narrador, em primeira pessoa -, Alaor e

Estevão, sócios de uma construtora. Após receberem uma proposta, via um ex-colega

que agora é assessor em Brasília, de fazerem um negócio fraudulento, os sócios entram

em conflito. Ivan e Alaor querem participar do esquema, que lhes trará muito dinheiro,

algo que não recebiam sendo sócios minoritários. Estevão não quer e ameaça desfazer a

sociedade.

Ivan e Alaor decidem então contratar Anísio, um matador de aluguel, indicado por

um amigo de Alaor, Norberto. O livro começa com o encontro dos três para acertar o

negócio em um bar da periferia de São Paulo. O preço, avaliado inicialmente em 20 mil

reais, dobra para que o serviço seja feito com rapidez e para que Estevão sofra antes de

morrer, condição pedida por Alaor.

Mesmo tendo apenas 10 mil reais em dinheiro, decidem confirmar o negócio, que

será efetuado nas próximas horas. Para comemorar, Alaor leva Ivan a um bordel, e ele

descobre que o parceiro era o dono do lugar, um negócio que ele não conhecia.

Ivan passa então a se sentir culpado, e tenta desistir, mas é advertido pelo parceiro

de que não havia mais volta. Anísio cumpre a promessa e Estevão e sua mulher são

encontrados mortos a tiros no porta-malas de seu carro.

A polícia começa uma investigação, e o sentimento de culpa de Ivan aumenta a

cada momento. Alaor tem medo que o parceiro levante suspeitas e tenta manter os

negócios da empresa funcionando normalmente. É quando Anísio aparece na sede da

construtora para pressionar os dois a pagarem a segunda parte. Aos poucos, ele vai se

infiltrando cada vez mais na vida dos personagens, começa a trabalhar como segurança

da companhia e a se envolver com Marina, filha de Estevão, agora herdeira majoritária da

construtora.

Ivan, cujo casamento está em ruínas, se envolve com Paula, jovem estudante que

conhece em um bar. A culpa de Ivan somada à pressão de Anísio fazem com que o

protagonista chegue a seu limite, planejando uma fuga com Paula para o nordeste. Ele

então decide desfalcar a empresa e ir embora de São Paulo. Armado, vai ao apartamento

de Paula e não a encontra como planejado, deduz que Anísio já sabia do golpe e havia

sequestrado a garota. Ao ver uma conta de celular presa à geladeira, descobre que Paula

conversava diariamente com Alaor, ou seja, fazia parte do esquema.

Desnorteado, vai ao bordel tentar falar com Alaor, mas ao chutar uma porta, quebra

o pé. Dentro da sala estava Norberto, que não o atende. Sai do bordel e sofre um

acidente de trânsito, que inutiliza seu carro. Toma então uma medida desesperada: se

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Page 17: Faroestes Urbanos - Thiago Kaczuroski

entrega à polícia, contando com detalhes como haviam planejado o assassinato de

Estevão, o envolvimento de Alaor e de Paula e dá detalhes da negociação com Anísio.

O delegado então o coloca numa viatura e vai à casa de Marina, onde todos

estariam comemorando o aniversário de Anísio. Ao chegar lá, Ivan é surpreendido ao

saber que o delegado era Norberto, que o entrega a Alaor e Anísio, ordenando que eles

“cuidem deste problema”.

Cabeça a Prêmio – Enredo

O livro conta a história dos negócios ilícitos da família Menezes, comandada pelos

irmãos Mirão e Abílio. O esquema envolve eliminar desafetos, papel dos matadores

Albano e Brito (o protagonista da história, cuja perspectiva, ainda que na terceira pessoa,

norteia a trama). Muito ativos no tráfico de drogas em parceria com o cartel de Cali, os

Menezes têm um piloto, Dênis. Sedutor, acaba se envolvendo com Elaine, filha de Mirão.

Abílio – único personagem homossexual presente nas duas tramas – descobre o

envolvimento da sobrinha e do piloto e passa a chantageá-lo. Ele então decide armar um

golpe para fugir com Elaine e rouba um avião carregado de cocaína, que é vendido no

Paraguai.

Enquanto isso, Brito e Albano estão em uma tocaia para matar um líder sindicalista.

Durante o período, se envolvem com mulheres da região, o que serve de estímulo para as

lembranças de Brito com Marlene, a mulher de quem havia acabado de se separar em

São Paulo, antes da viagem.

Ao saber da fuga do piloto e de que o irmão estava acobertando o romance da

sobrinha, Mirão espanca Abílio, que é hospitalizado. Brito e Albano são obrigados a

cancelar a tocaia ao sindicalista e retornam à fazenda para pegar as coordenadas de

onde estariam o piloto e Elaine, agora parte do Sistema de Proteção a Testemunhas da

Polícia Federal.

Após comprarem a informação de um contato dos Menezes em Brasília, os dois

matadores seguem então para o esconderijo. Antes, conversam com Abílio e este pede

para que eles matem a sobrinha, como vingança do irmão. Sabemos então que ele foi o

responsável pelo assassinato do irmão mais velho, Nicanor, que o humilhava por conta de

sua homossexualidade.

Elaine, grávida, decide abandonar o esconderijo da polícia. Neste momento, Albano

e Brito rendem o policial que fazia a guarda da casa e conseguem assassinar Dênis.

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Elaine se arrepende e, ao encontrar o namorado morto, decide se vingar do pai. O livro

acaba com ela armada, chegando ao esconderijo do pai, já muito debilitado, planejando

sua vingança.

Antes da análise dos personagens, vamos às características do trabalho de

Peregrina Cavalcante, que servirá como base de comparação entre as obras.

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Capítulo 2. A tipologia do pistoleiro

Em seu trabalho de pesquisa, Peregrina Cavalcante (2003) detalha o envolvimento

que teve durante seus anos de trabalho junto aos pistoleiros. Algumas características do

que ela elenca como Tipos Ideais serão minuciosamente destrinchadas ao longo do

volume, em especial na terceira parte de seu livro: O Pistoleiro: as múltiplas faces e

lugares.

No capítulo 26, Esboço de uma leitura do tipo ideal de pistoleiro, a autora detalha

os três perfis encontrados por ela:

O pistoleiro tradicional: tipo que está ligado a “um dono”, a “um patrão”, sem autonomia para praticar crimes de pistolagem se não houver a ordem desse mesmo patrão. A ligação ocorre por laços de fidelidade, existindo entre as partes uma troca de favores e um rígido código de honra, justificando assim quaisquer “serviços arbitrários”. O pistoleiro tradicional jamais se ausenta dos limites geográficos do patrão, permanecendo assim “cativo” a esse espaço, que, na maioria das vezes, é a fazenda. É interessante reafirmar que esse tipo, segundo meus informantes, encontra-se em extinção, por causa da “modernização” das estruturas dos poderes locais. (CAVALCANTE, 2003, p. 155.)

Este tipo ideal, como veremos adiante, condiz com o modus operandi dos

personagens de Cabeça a Prêmio.

Há, ainda,

O Pistoleiro avulso: tipo caracterizado pala autonomia, funcionando como um prestador de

serviço, sem ligação a nenhuma hierarquia de mando. É dono da sua força de trabalho, e é o seu

próprio patrão. Encara a prática da pistolagem como uma profissão. Seu código de honra está

circunscrito ao que chama de “fazer o serviço bem feito”, não existindo laços de fidelidade com um

patrão da hora, com um proprietário. O seu corpo é móvel e nômade, em deslocamento constante,

não se fixando, assim, em um só lugar. A sua trajetória espacial é determinada pela procura de

seus serviços. Existe na vida do pistoleiro avulso um outro agente, o intermediário; é por ele que

se arma a sua teia de relações de trabalho. (CAVALCANTE, 2003, p. 156.)

Este tipo claramente se relaciona ao personagem Anísio e seu modo de atuar.

Por fim, há

O pistoleiro bandido: tipo com atividades múltiplas: mata, rouba, assalta, sequestra, estupra. Ele é um agente de práticas “marginais” múltiplas, não

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se define só como matador. O roubo, prática marginalizada pelo pistoleiro tradicional, é integrada ao comportamento do pistoleiro bandido. A honra e o grupo em que atua são efêmeros, fazendo-se e desfazendo-se na velocidade do dia, no jogo das temporalidades e dos movimentos transitórios. É também chamado de “elemento”, “marginal”, “sem-vergonha”, “cabra ruim da peste”, “pervertido”, “crápula”. Faz parte das cenas das sociedades rurais e urbanas. O pistoleiro bandido envolve-se constantemente com a rendosa “profissão” de assaltantes de bancos e de cargas de caminhão. (CAVALCANTE, 2003, p. 156).

Embora este tipo ideal não se relacione com os personagens estudados no

presente trabalho, é talvez o tipo mais comum que vem à mente da opinião pública

quando se fala em pistoleiro, remontando uma imagem dos bandos de cangaceiros do

sertão brasileiro, passando por grupos que atuam hoje em cidades pequenas do norte e

nordeste do país, organizando roubos simultâneos a diversas instituições do lugar, até os

latrocidas que vemos diariamente nos noticiários.

Além dos tipos tradicionais, Cavalcante organiza em seu livro uma série de

qualidades que seriam comuns aos agentes da pistolagem, e que, veremos, muito têm a

ver com os personagens analisados.

No mesmo capítulo 26, ela elenca essas características, coletadas de suas

conversas com mandantes, vítimas e pistoleiros:

• Sua atuação está atrelada a poderosos mandantes de crimes;

• São conhecidos por cabras, capangas ou guarda-costas;

• Atuam nas cidades e nas fazendas;

• São indivíduos que matam por dinheiro;

• Não são homens de lutar peito a peito, nem para tiroteios. São perigosos,

traiçoeiros, astutos e covardes;

• Atuam sempre em tocaia, para conseguirem evadir-se das cenas dos crimes com

rapidez, por isso precisam ser exímios motoristas ou pilotos de motocicletas

(veículo muito utilizado hoje em dia por conta da agilidade, o que facilita escapar de

cercos após os crimes);

• Premeditam os crimes, geralmente escolhendo um local favorável a fugas.

Usualmente essa escolha é feita e informada ao mandante, que pode ajudar ou

não na escolha da melhor ocasião por conhecer a rotina da vítima;

• Ingressam no mundo da pistolagem geralmente ainda jovens, muitas vezes depois

de cumprir pena por algum crime;

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• Por contarem com proteção dos mandantes – no caso dos pistoleiros tradicionais –

costumam arriscar a vida por seus patrões e serem determinados: quando um

serviço é dado, não há desistência. E ficam comprometidos com o mandante até o

assassinato ser efetuado;

• A causa principal do êxito na prática é a impunidade: como geralmente os

mandantes são pessoas influentes na política ou na economia local, os crimes não

são investigados com rigor, o que faz com que após algum tempo o crime seja

arquivado e o pistoleiro esteja apto a atuar novamente.

Essas características encaixam-se perfeitamente na atuação de Anísio, Albano e

Brito. Embora em ambientes diferentes, a atuação e vínculos são bastante semelhantes

ao que Cavalcante encontrou em sua pesquisa.

Na visão de Marçal Aquino, os personagens também têm características distintas,

que condizem com os tipos elencados pela pesquisadora:

O Anísio, de O invasor, é aquilo que a polícia chama de “pé-de-pato”, um matador que em geral vive na favela e faz uma espécie de saneamento no lugar, eliminando aqueles que são indesejados pela comunidade. Trabalham sozinhos e de forma independente ou contratados por comerciantes, por exemplo. Brito e Anísio são aqueles profissionais que vi muito na fronteira, que na maioria dos casos trabalham para sob contrato para algum poderoso.

2.1 Anísio

O “invasor” da novela é caracterizado como um homem calculista, eficiente em seu

ofício, mas que não dá detalhes sobre sua vida.

Era um homem atarracado, de braços fortes e mãos grandes. Tinha a pele bem morena, olhos verdes e usava o cabelo crespo penteado para trás. Uma dessas misturas que o Nordeste brasileiro produz com certa frequência. Ao contrário do que eu imaginava, ele não parecia ameaçador – embora houvesse dureza em seu jeito de olhar.” (AQUINO, 2002, p. 9)

Diferente do que aconteceu em Os Matadores, não sabemos sobre o passado, as

origens, nem mesmo os crimes cometidos por Anísio. Em seu primeiro contato, ele não

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chega a intimidar seus contratantes, mas faz questão de mostrar que eles estão em um

ambiente desconhecido.

Eu nunca erro. Sei olhar para uma pessoa e dizer direitinho quem ela é e o que ela faz na vida. Tem a Ver com meu trabalho. (…) Dá só uma olhada no povo desse bar: tudo cara fodido, de pele manchada, cabelo ruim, faltando dente, unha preta. Qualquer um é capaz de dizer que vocês não são daqui.” (AQUINO, 2002, p. 9)

Também, de forma sutil, sabe se impor para cobrar sua dívida ao saber que a pasta

só continha 10 mil.

Olha, normalmente eu não aceitaria esse tipo de coisa. Mas eu gostei de vocês. E, além do mais, foi o Norberto quem indicou e eu confio em quem ele confia. Vou aceitar isso aqui como um sinal. Espero que vocês não estejam pensando em me dar um calote.Que é isso, Anísio?, Alaor se mexeu na cadeira. A gente vai pagar direitinho.Tenho certeza que vão, Anísio colocou a pasta no colo.” (AQUINO, 2002, p. 16).

Começa aí a sombra do personagem sobre a empresa e principalmente sobre Ivan.

Curioso, ainda que seja um personagem chave que dá título ao livro, nas 126 páginas,

Anísio tem apenas cinco diálogos com Ivan. Porém, seu nome aparece pelo menos uma

vez em cada um dos 15 capítulos da trama. Segundo Marçal Aquino, este recurso foi uma

saída para manter o clima de suspense da narrativa. O Invasor começou a ser escrito

como livro, mas foi abandonado. A história acabou virando um roteiro de cinema, filmado

por Beto Brant, que insistiu para que o autor terminasse a história. O autor conta esta

passagem da seguinte forma:

Comecei a escrever O Invasor em 1997. No final daquele ano, mostrei o material pro Beto Brant, que em seus dois primeiros longas tinha usado minha literatura como matriz – Os Matadores (97) e Ação Entre Amigos (98). Ele me convidou pra adaptar a história, que, até aquele momento, cobria apenas um terço da narrativa. Todo o restante foi criado e resolvido diretamente no roteiro. Com isso, abandonei a novela; não via razão para contar de novo uma história que eu conhecia a fundo. Porém, o Beto me instigou a concluir o livro e a publicá-lo. Então voltei pro texto. E a solução foi aquela narrativa na primeira pessoa, que permitia ao narrador conhecer apenas uma parte da trama, aquela a que ele tinha acesso. Daí o Anísio pairar sobre o pesadelo vivido pelo narrador como uma sombra.

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Seu modo de “invasão” à empresa e à vida do protagonista vai se moldando de

forma bem arquitetada. Marçal Aquino trabalhou muito bem a situação de troca de favores

e de gratidões de honra, algo que dita aspectos importantes da vida de matadores de

aluguel. Aqui, além da situação de contratação para o serviço, há o chamado “rabo

preso”, expressão usada algumas vezes ao longo da trama.

Anísio sabe usar bem este artifício. Pede, por exemplo, para que Alaor e Ivan

guardem o que sobrou do dinheiro pago por eles pelo assassinato, criando assim mais um

vínculo. Depois, já trabalhando como segurança extraoficial da empresa, mata um

adversário de negócios, para o qual os dois sócios deviam. Isso vai criando uma

intrincada rede da qual Ivan não consegue se safar.

Apesar de ser um matador, Anísio não aparenta a nenhum momento estar armado.

Quando Ivan, antes da fuga, decide comprar um revólver para se proteger, tem a falsa

ilusão de que poderia enfrentar o matador caso houvesse um confronto. A dominação

proposta por Anísio é muito mais intimidatória, psicológica, que física. A não ser na

descrição do assassinato, ele não pratica violência física em momento algum.

Essa cordialidade e, de certa forma, seu carisma, faz com que conquiste espaço na

empresa, principalmente após seduzir Marina. Aqui, há uma diferença em relação à outra

obra a ser analisada: enquanto Brito e Albano são apenas funcionários, que ganham, sim,

bastante dinheiro com suas operações, eles não apresentam ambições de poder.

Parecem acomodados na função, que lhes causa certo prestígio no submundo.

Não têm intenção, por exemplo, de assumir os negócios dos irmãos Menezes.

Enquanto isso, Anísio quer o contrário. Encontra na situação de Alaor e Ivan uma

oportunidade de ascender socialmente, fazendo parte da sociedade da empresa, depois

que Marina lhe dá direitos de administrar sua parte. Ao final, o leitor percebe que ele, que

já era o lado da força, da violência em um esquema de corrupção que envolvia até a

polícia, sobe mais um degrau, deixando de ser apenas um matador contratado para se

tornar um “igual” a Alaor e Norberto.

2.2 Os invadidos

Se em O Invasor há uma “sombra” constante de Anísio, que domina as páginas do

livro e faz com que o protagonista, Ivan, fique em constante paranoia até o desfecho

trágico, em Cabeça a Prêmio Marçal Aquino escancara a vida dos matadores: sabemos

como atuam, como se dá a sua relação de trabalho com os irmãos Menezes e, no caso

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de Brito, o protagonista da trama, sabemos de seu passado e de sua relação amorosa

com Marlene, que acabou antes da missão principal da trama.

Albano e Brito se encaixam na descrição de Peregrina Cavalcante para os

Pistoleiros Tradicionais: estão ligados a um dono – os irmãos Menezes -, e não praticam

outros crimes que não sejam ligados ao interesse do patrão. Eles estão sob um código de

honra - parte deste código é descrito num interessante diálogo que abre o décimo

primeiro capítulo:

E freira?Albano refletiu por um instante. Ele havia falado que existiam duas espécies que não aceitava matar: padres e mulheres grávidas. Daí, riu.Diacho, Brito, por que alguém ia querer matar uma freira?Sei lá. Você faria?Acho que não.(…) Brito lembrou que Mirão nunca falava em matar. Preferia pedir que você cuidasse de uma pessoa. Ou que desse um jeito em alguém. Sutilezas de um homem que até o tamanho impedia de ser sutil. (AQUINO, 2003, p. 59)

Os matadores tradicionais descritos por Peregrina Cavalcante dificilmente se

ausentavam dos limites geográficos da propriedade de seus patrões. Neste aspecto, os

personagens de Cabeça a Prêmio se diferenciam: eles não ficam limitados às fazendas

dos irmãos, porque o campo de atuação da quadrilha é muito amplo, o que gerava

desavenças em diversos lugares. Por isso, moram cada um em sua casa e são

convocados para resolver os problemas, sendo enviados aonde quer que fosse

necessária sua atuação. Ainda assim, esta é a categoria descrita pela pesquisadora que

mais engloba o tipo de atuação destes personagens.

2.3 A entrada na pistolagem

O livro narra a entrada de Brito para o mundo da pistolagem, algo que não

acontece em O Invasor. A passagem se dá no início do capítulo 11:

Na boate em Campo Grande, quando se conheceram, Brito demorou um pouco para compreender o que ele estava pedindo. Albano o levou até a mesa e o apresentou aos irmãos Menezes (…) Beberam, conversaram sobre a vida, contaram piadas. Brito notou que Mirão dava as cartas. Abílio pouco falava (…) Tem um radialista no Paraná que está incomodando um amigo nosso. O Albano disse que talvez você possa ir até lá para cuidar

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disso (…) Vivendo de bicos como estava, Brito calculou que precisaria de pelo menos dois anos para juntar aquela quantia. E entendeu na hora o que esperavam dele. Depois de expulso da polícia, nunca mais tivera um trabalho fixo. Vivia como dava (...)É um trabalho como outro qualquer. Você vai ver, Brito, dá até um certo prazer (AQUINO, 2003, p. 95-98).

Ficamos sabendo então que o autor do assassinato descrito no começo do livro,

em que um radialista é assassinado de madrugada, após telefonemas misteriosos para

um encontro onde seria presenteado com informações importantes sobre um político que

ele denunciava com frequência, fora o primeiro trabalho de Brito no mundo da pistolagem.

Cavalcante também trata essa iniciação em seus relatos dos encontros com

pistoleiros. Segundo ela, geralmente a contratação de um pistoleiro se dava através de

um teste na região do Jaguaribe, onde sua pesquisa se desenvolveu:

O fazendeiro sempre perguntava e testava se o cabra era valente. Quando havia uma briga no vale do Jaguaribe, eles mandavam o sujeito ir e, se ele matasse o cabra mais valente da briga, tinha passado no teste” (CAVALCANTE, 2003, p. 123)

A frieza e a coragem são elementos quase fundamentais para exercer o ofício de

matador. A clareza na hora de executar um alvo, o treinamento necessário e a disposição

de encarar uma situação adversa é o que faz um profissional bem sucedido neste meio.

A noção de coragem, porém, é algo muito discutido no livro de Cavalcante. Para

uns, o modo de operação dos pistoleiros é visto como covarde, já que agem sempre

pegando o alvo de surpresa: “O que não varia é a coragem, como capacidade de superar

o medo, que vale mais que a covardia. A coragem é a virtude dos heróis e pode servir

tanto para o bem quanto para o mal” (CAVALCANTE, 2003, p. 123).

Essa coragem é discutida por conta do modo sorrateiro com que os pistoleiros

aproveitam as falhas na segurança de seus alvos para dar o bote. Segundo a

pesquisadora, este tipo de abordagem tem origem nos conflitos de terra das regiões

centro-oeste e norte do Brasil, mais especificamente em terras onde os índios brigavam

com fazendeiros por propriedades. Dada a natureza caçadora dos índios, os ataques

eram feitos de surpresa, pegando os fazendeiros e seus capangas – mesmo que com

tecnologia bélica superior – de surpresa. Esta “herança” indígena influenciou o modo de

atuação da pistolagem nestas regiões.

Quanto à afirmação final de Mirão, falando sobre o possível prazer da atividade,

Marçal Aquino afirmou – na entrevista concedida para a elaboração deste trabalho – que

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a culpa não é uma carga comumente carregada por estes matadores: “A maioria dos

matadores que entrevistei me contou que não contemplam a culpa naquilo que fazem.

Para eles, aquilo é apenas um trabalho.”

Outro ponto importante do trabalho dos pistoleiros é a discrição. Segundo

Cavalcante (2003, p. 163), “O pistoleiro é treinado para ser desconfiado, para falar pouco

e ter atenção e, entre outras qualidades, deverá também ser anônimo, isto é, não informar

a sua procedência quando chegar a um lugar”. Este tipo de comportamento contrasta com

um aspecto importante na tipologia dos pistoleiros: como são “cabras machos”, procuram

sempre a companhia de uma mulher do local onde estão trabalhando, algumas vezes

prostitutas que atendem nos locais onde precisam exercer um trabalho.

Isso é visto em diversas passagens de Cabeça a Prêmio: quando estão de tocaia

em algum lugar, Albano e Brito sempre acabam por se envolverem com mulheres locais –

o que de certa forma pode servir para conseguirem informações sobre as rotinas e

costumes daquela região, mas que também pode ser um ponto vulnerável em seus

disfarces. Porém, se tratam por nomes falsos quando estão na companhia de alguém que

não é da quadrilha: Brito atende por Chico e Albano é Mário, como ficamos sabendo no

início do capítulo 5.

2.4 Brito e Marlene

É justamente essa falha na discrição que faz com que Marlene, uma cafetina que

morava com Brito em um apartamento no centro de São Paulo, descubra a atividade do

namorado e decida abandoná-lo. A ação se dá ao longo do capítulo 15, quando, após

Marlene encontrar um ex-cliente em um restaurante, Brito tem uma crise de ciúmes. Eles

discutem em casa e ela pergunta se ele vai voltar lá para matar o homem. Ele então

percebe que ela havia descoberto seu segredo: ele voltou de uma missão com uma foto

de seu alvo no paletó. Dias depois, a mesma foto – de um empresário assassinado – está

em todos os jornais.

Esta relação entre Brito e Marlene apresenta um ponto interessante na obra: como

uma figura tão dura, capaz de assassinar pessoas a sangue frio, pode ficar tão abalado

com o fim de uma relação amorosa.

Marçal Aquino conta que a relação entre estas personagens surgiu como forma de

imaginar como se dá um romance entre pessoas com caminhos tão virtuosos: “Meu

interesse com o encontro Brito-Marlene em Cabeça a Prêmio era examinar uma daquelas

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histórias em que 'dois sujos se amam com pureza'”. Minha intenção era justamente falar

de um romance em meio a um clima totalmente hostil, tanto na vida dele, como matador,

quanto na dela, na condição de cafetina. Entre outras coisas, me fascinava descobrir o

quanto vale para personagens desse tipo aqueles sentimentos prosaicos em qualquer

relação, como o ciúme e a dominação”.

Cavalcante também relata as relações amorosas dos pistoleiros no capítulo 41,

Pistoleiro: um homem apaixonado, no qual relata o constante envolvimento destes

profissionais com mulheres dos locais onde atuam. Segundo ela, o tipo pistoleiro causa

um fascínio feminino, por conta da valentia, dos modos viris:

A construção social da relação amorosa na pistolagem é revestida de significações que que expressam a ordem do masculino e do feminino dessa realidade. As mulheres são passivas, ordeiras, obedientes, monogâmicas; os homens são ativos, inquietos, migrantes, poligâmicos, reativando sempre os símbolos dos imaginários masculino e feminino dessa organização social. (CAVALCANTE, 2003, p. 217)

Essas relações também são vistas pela pesquisadora como uma certa fraqueza.

Muitas vezes as investigações policiais focam nas mulheres destes criminosos, já que

elas sempre funcionam como um elo destes sujeitos com os locais dos crimes e não raro

um criminoso, após cometer um assassinato, se esconde na casa de sua amante.

Este expediente é utilizado na obra de Marçal Aquino: muitas vezes é por meio da

mulher que se chega ao criminoso.

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Capítulo 3. O Pistoleiro como função narrativa

Para entender melhor a função que estes personagens pistoleiros têm na trama,

vamos recorrer às analises de Vladimir I. Propp que, em sua obra Morfologia do Conto

Maravilhoso, elencou uma série de funções narrativas e papéis básicos das personagens

deste tipo de literatura. É evidente que O Invasor e Cabeça a Prêmio não são alegorias

como as estudadas pelo teórico russo. Mas suas observações nos ajudam a esclarecer a

construção de Anísio, Brito e Albano.

Vendo os sete tipos criados por Propp (Agressor/Antagonista, Doador, Auxiliar,

Princesa e Seu Pai, Mandante, Herói e Falso Herói), nos parece claro que tanto Anísio

quanto os pistoleiros de Cabeça a prêmio se encaixam na primeira categoria. No caso de

Anísio, isso se confirma, mas no caso de Cabeça a Prêmio, a trama dos papéis é um

pouco mais complexa.

3.1 Anísio e sua função

Anísio, o matador de O Invasor é um daqueles vilões clássicos: de aparência

intimidadora, que faz uso da violência para conseguir seus meios; é ardiloso, consegue,

com carisma, criar situações que intimidam outros personagens da trama, principalmente

o herói – neste caso, Ivan:

O antagonista é o responsável pela infelicidade do herói e pelos perigos que este deve enfrentar. Esse conflito ocorre por várias razões. O agressor é caracterizado pela sua crueldade e por fazer de tudo para conseguir o que almeja. A maioria das vezes, o vilão vai em busca do poder absoluto. É esse o motivo que faz com que o vilão deseje extinguir o herói, pois o agressor o vê como algo que pode impedi-lo de alcançar seu objetivo. (DAMIÃO, 2008, p.26-27.)

Como vimos anteriormente no enredo de O Invasor, a presença de Anísio na

construtora é a causa da infelicidade de Ivan. Suas táticas de aproximação intimidam o

protagonista, que se vê sufocado pela proximidade com o autor do assassinato de seu

sócio. E a busca do poder que Anísio promove inclui artifícios como deixar o dinheiro do

crime em poder dos mandantes e até mesmo se envolver intimamente com a filha do

assassinado.

Fazendo um exercício de interpretação, podemos ver inclusive outros elementos

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dos tipos ideais propostos por Propp no enredo da trama: temos o Falso Herói, Alaor, que

o tempo todo parece estar “do lado” de Ivan, mas no final se revela criador de um

complexo esquema de crimes e corrupção; temos a Princesa e seu Pai (Marina, filha do

sócio assassinado); temos o Doador, Norberto, que é quem indica o matador, que neste

caso, funciona como o “elemento mágico” para que o herói resolva seu problema,

eliminando seu obstáculo. É evidente que esta abstração funciona até certo ponto, já que

o enredo da trama não funciona exatamente como um conto fantástico ou mágico, mas a

estrutura da narrativa segue alguns pontos comuns à outras histórias, como veremos a

seguir.

Pegando como base uma aula dada pelo professor Ivan Paganotti, convidado do

curso "Ciências da Linguagem: Práticas Midiáticas 2" – CJE-ECA-USP, em dezembro de

2010, vemos que a estrutura de O Invasor, pelo menos em sua criação, tem elementos

que correspondem à estrutura narrativa proposta por Propp. Paganotti desmembra as

funções narrativas das situações dramáticas de Propp em algumas situações:

Situação Inicial: bem estar prévio/status quo inicial. Ivan é um empresário bem sucedido, embora esteja descontente com os rumos e

sua participação na empresa.

Afastamento: saída para o desconhecido.A história começa com a ida de Ivan e Alaor a um bar na periferia, um ambiente

estranho e hostil, no qual se encontrarão com Anísio, um pistoleiro.

Proibição: Interdição. Local secreto, ato proibido.Os dois vão a um bar, em um ambiente escondido, contratar o assassinato de um

sócio, conhecido deles desde a faculdade, com quem tem uma empresa. O crime deve

ser efetuado sem que as suspeitas caiam sobre eles.

Transgressão: violação rompe a interdição.Após o acordo firmado, Ivan tenta desistir da ideia, mas é dissuadido por Alaor, já

que o acordo já havia sido firmado. Não há mais volta. Ivan já é um criminoso, um

mandante de homicídio.

Interrogatório: Investigação - antagonista procura informações sobre o herói (ou

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vice-versa).Vemos que nos dias seguintes ao crime, a empresa passa tanto pela investigação

policial quanto por uma procura de Ivan em saber se Anísio é mesmo confiável –

principalmente depois que o matador se aproxima da rotina da empresa.

Informação obtida.Aqui o enredo da trama começa a se distanciar da estrutura proposta por

Paganotti. Ivan só descobrirá que Anísio está mancomunado com Alaor e Norberto no fim

do enredo.

Ardil/Fraude: Vilão tenta ludibriar o herói. Agressor assume feições alheias. Estratégia de persuasão, mágica, fraude ou coação.

A presença de Anísio na empresa é de total coação, mesmo que implícita.

Enquanto conquista a confiança de funcionários – e da herdeira do assassinado -, o

Invasor demarca seu território, deixando Ivan sem ação.

Cumplicidade: Vítimas se deixam enganar ou ajudam involuntariamente o crime.Após o envolvimento de Anísio com a filha do assassinado, ela lhe dá carta branca

para que administre sua parte dos negócios, uma manobra que reforça a busca por poder

citada anteriormente.

Carência: Situação de precariedade, prejuízo/injustiça. Fragilidade (propicia a ação da vilania).

Desesperado com a ação de Anísio e a ruína de seu casamento, Ivan se deixa

envolver por uma jovem que conhece em um bar. Posteriormente vai descobrir que ela

era apenas uma peça no esquema criado por Alaor.

Mediação - Conexão: proposta de tarefa para o herói “Buscadores”/”Herói vítima”.É quando começa a parte final da trama, em que Ivan decide se armar e tentar fugir

do país após roubar uma parte do dinheiro da construtora. É então que ele “liga os

pontos” e percebe que está sendo vítima de uma rede de interesses.

Decisão: Herói decide enfrentar o desafio.É quando Ivan, ao achar que sua nova namorada havia sido sequestrada por

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Anísio, resolve ir para o combate, procurando a polícia para contar o crime.

Partida: Herói sai para enfrentar os desafios.Todo o trajeto da última parte da novela, em que quase é abordado pela polícia,

depois provoca um acidente e vai ao bordel de Alaor para tentar esclarecer a história.

Enfrentamento: Comprovação do mérito do herói com provação de capacidade.É quando Ivan, neste percurso todo já citado, precisa enfrentar diversos obstáculos

até optar pelo sacrifício de, mesmo confessando um crime com perspectiva de vários

anos de prisão, contar seu envolvimento no assassinato do sócio para fazer com que

Alaor e Anísio também paguem pelo erro.

Adjuvante: Artefato/Coadjuvante que dá “poder fazer” mágico ou tecnológico.Aqui podemos interpretar como duas opções: tanto o amigo que lhe vende

clandestinamente a arma, que serviria para um confronto com Alaor ou Anísio, quanto o

computador com o qual ele faz a transferência financeira que lhe daria os meios de

escapar do país.

Deslocamento: Transpor distâncias longas, instantaneamente.Aqui não há exatamente uma forma mágica, o trajeto é feito, como já citado,

enfrentando diversos contratempos.

Combate: Herói enfrenta vilão.Aqui é talvez o ponto claro de que a história, embora seja estruturalmente

tradicional, leva a um desfecho inesperado. No confronto com o vilão, Ivan acha que vai

desmantelar um esquema criminoso, mas não sabe que o delegado para qual acabou de

contar todo o esquema é Norberto, aliado de Alaor e Anísio. Então em vez de uma

posição favorável no combate, o herói aqui se encontra em maus lençóis.

Estigma: Marca do combate. Signo de heroicidade.Aqui a marca do combate é implícita. Ivan está prestes a ser morto pela dupla –

algo que não é contado no livro. Sua heroicidade de nada valeu.

Com estes exemplos, vemos que embora a princípio Anísio pareça um personagem

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mais simples – se comparado a Brito, de Cabeça a Prêmio – sua função na trama vai

muito além de apenas eliminar um obstáculo, no caso um dos sócios da empresa.

Aquino também rebate essa afirmação de que os personagens são mais ou menos

complexos: “É difícil falar que um personagem é mais complexo que outro. Acho que eles

têm semelhanças, mas também grandes diferenças, em especial na razão pela qual

fazem o que fazem: o Anísio em busca de ascensão social e o Brito apenas cumprindo

um trabalho com o qual ganha a vida”. Em minha conversa com Aquino, questiono o

porquê de pouco se saber sobre a vida e o passado de Anísio, suas aspirações, seu

objetivo por trás das ações – algo que é muito mais explícito em Cabeça a Prêmio.

“Quando escrevo, tenho muito pouco previamente definido sobre os personagens, que

vou 'descobrindo' à medida que a narrativa avança. Foi assim com o Brito e com o Anísio.

Eu diria que tudo que sei sobre eles está no livro.”

3.2 A função de Brito e Albano

No segundo romance analisado, embora Brito seja o protagonista e um dos

matadores, sua função é mais clara: eliminar desafetos de seu patrão, visão

compartilhada pelo autor na resposta citada anteriormente. Embora a construção de seu

personagem seja mais elaborada: acompanhamos sua história de amor, seu passado na

polícia, detalhes de seu modus operandi, Brito funciona muito mais como um agente da

violência em uma complexa rede.

Aqui, os tipos descritos por Propp confundem-se e se mesclam de forma menos

clara. O herói não tem exatamente um vilão, um antagonista com o qual se confrontar.

Também não tem uma jornada nos moldes clássicos. A princesa se volta contra seu pai

após ser contrariada e perseguida, o falso herói, um dos irmãos Menezes, também pode

ser caracterizado como vilão. Enfim, esta é uma história na qual esta estrutura tradicional

da narrativa não se aplica com clareza.

Como já citado no capítulo X, as personagens de Cabeça a Prêmio –

principalmente Brito – são muito mais humanizadas:

As personagens, além de serem reproduções do ser humano, também são consideradas como modelos morais. Ao criar uma personagem, o escritor tem o intuito de torná-la a mais real possível, oferecendo traços humanos a fim de aproximá-la, cada vez m a is , da rea l i dad e . Por fim a personagem acaba sendo ma is coe r en t e que o p r óp r i o se r hum ano

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g r aças a essa esquematização da qual faz parte. Essa coerência obtida pela personagem a faz viva, real. ( DAMI ÃO , 2008 , p . 20 - 21 )

Parece claro que um matador de aluguel não é exatamente um modelo moral. Mas

expor sentimentos e traços da vida pessoal do matador certamente aproxima o leitor do

personagem, reconhecendo traços de sua vida e sua personalidade ali.

Com isso, vimos que as personagens aqui estudadas de Marçal Aquino têm uma

função bastante específica: eliminar personagens que funcionam como “travas” da trama,

o que reforça a ideia de personagem função de Propp. Como antagonistas das histórias,

segundo vimos anteriormente, estes matadores atuam de forma aguda, e cumprem a

função a qual são destinados: matar. Tanto que nos dois livros, não há um momento em

que são mal sucedidos em seus ofícios: os trabalhos dados são cumpridos. Evidente que

mudam o modus operandi, a motivação, o envolvimento com as vítimas, conforme vimos

nos exemplos e citações da obra de Cavalcante, evidentemente mais focada na análise

dos tipos populares com que teve contato em sua pesquisa. Mas o ato é sempre

cometido, o que os coloca em uma categoria – seguindo a análise de Propp – rígida de

personagens. Essa característica é determinante para a escolha desta abordagem crítica,

em detrimento a outras possíveis análises - teóricas ou psicológicas – neste momento da

pesquisa.

A fala de Marçal Aquino, “Quando escrevo, tenho muito pouco previamente definido

sobre os personagens, que vou 'descobrindo' à medida que a narrativa avança. Foi assim

com o Brito e com o Anísio. Eu diria que tudo que sei sobre eles está no livro”, citada há

alguns parágrafos, corrobora com esta afirmação: o que existe sobre essas personagens

esta em suas páginas, sua função é mais importante que qualquer outro traço.

3.3 O crítico como pistoleiro

Após ver estes aspectos sobre o modo de operação dos pistoleiros, chegamos a

algumas conclusões e questões.

O pistoleiro é o agente de um ambiente violento, permeado por crimes de

corrupção, politicagens e atividades ilegais. Eles são os agentes de uma atividade

condenável, mas necessária para o “bom andamento” dos negócios de seus patrões:

eliminam peças que estão dificultando o desenrolar dos negócios. É deles a tarefa de

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eliminar das “tramas” sociais quem não deve estar ali – por uma série de fatores e

interesses.

Este expediente dá ao pistoleiro um poder imenso: ainda que não seja deles a

decisão sobre quem deve viver e morrer – normalmente, como vimos, a ordem vem “de

cima”, de uma instância da qual ele não toma partido nas decisões – é deles a ação que

elimina essas peças do complicado tabuleiro social de diversas partes do Brasil.

O mesmo acontece na ficção. Ainda que os pistoleiros sejam criação ficcional,

estão a serviço de uma entidade maior – o autor – atuando como agentes que

determinam a saída de personagens na trama, de acordo com interesses dos mais

variados para o bom andamento do enredo do conto, novela, romance, roteiro.

Sendo assim, uma reflexão que lanço é sobre o papel do crítico literário no

contexto acadêmico. Fazendo um breve exercício de reflexão, a função pode ser

comparada – evidentemente no sentido figurado – à do pistoleiro que vimos

anteriormente. É do crítico o poder de iluminar ou apagar uma obra ou autor. Ainda que

seja uma intrincada rede de valores, referências e interesses. É na mão dele que está a

arma – as palavras, o texto – que ajuda a elevar uma obra, movimento, escritor, poeta ao

Olimpo dos relevantes, ou ajuda a cavar ainda mais a cova dos que não devem merecer a

atenção do meio literato.

O crítico pode atuar como qualquer um dos três tipos ideais elencados por

Peregrina Cavalcante: pode ser um Pistoleiro Bandido, que além de circular pela

Academia, comete também outros crimes – é jornalista, escreve uma ou outra orelha de

publicações de autores para uma editora, é tradutor, revisor; pode ser um Pistoleiro

Avulso, que não tem ligação com instituições de ensino ou pesquisa, que age por “conta

própria” fazendo trabalhos independentes. Pode ser, ainda, um Pistoleiro Tradicional, este

com relações muito estreitas com um patrão que não faz julgamentos relacionados à

moral dita universal, mas que segue regras pré-determinadas, ligadas ao que interessa a

um determinado grupo em um determinado período histórico/social, sem questionar, ou

questionando pouco, já que a troca de favores lhe é vantajosa.

Assim como na pistolagem, a crítica tem seu modus operandi muito peculiar, que

pode ser estranho aos não iniciados, mas que é perfeitamente entendida pelos que fazem

parte daquele meio. Conta com treinamento, provas de valentia, coragem e tem todo seu

arsenal, que se bem usado, cria lendas. Mas isso pode levar a um cenário perigoso, que

muitas vezes não é percebido por seus membros, que veem a “pistolagem” como “apenas

um trabalho”.

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Dito isso, algumas questões que ficam para um futuro aprofundamento são: qual o

verdadeiro papel – e poder – da Crítica Literária? Será que é dela, e de seus agentes -

nós, os críticos, professores, pesquisadores – a função de decidir sobre quem deve ou

não sobreviver neste restrito meio da Literatura, que ainda que seja visto com certo

desdém quando pensamos no mundo em que vivemos, tão voltado a resultados,

números, sucessos e insucessos, ainda rende tanto prestígio? Quantos inocentes já

foram mortos pelo caminho? Em nome de quais interesses protegemos alguns e

eliminamos outros? Será que este modelo, que no caso da pistolagem é algo que remonta

a séculos passados, onde a dominação de um pequeno grupo usando ferramentas de

poder lhe garantia a soberania, ainda funciona quando estamos falando de Literatura?

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Considerações finais

Nesta breve pesquisa vimos algumas das características de personagens da obra

do escritor paulista Marçal Aquino. Por meio da análise de duas de suas obras – O

Invasor e Cabeça a Prêmio – vimos como é feita a construção de personagens de uma

classe distinta: a dos matadores de aluguel.

Começamos pela importância em se estudar um autor tão produtivo em diversas

mídias e querido do público como Marçal Aquino, que é quase que esquecido pela

Academia. Talvez por estar ainda na ativa, talvez por ainda ser jovem, ou ainda por se

tratar de um gênero marginalizado como a literatura policial. Mas suas credenciais, obras

e premiações o credenciam a um estudo – ainda que breve – e ressaltam sua relevância.

Depois passamos pelos enredos das duas obras, que ainda que tenham sido

adaptados para o cinema, pode ser de conhecimento de poucos leitores quando se trata

de uma pesquisa acadêmica como esta. Vimos ainda as características de três

personagens em especial: Anísio, de O Invasor, e Albano e Brito, de Cabeça a Prêmio. Ao

longo de trechos e análises das obras, além de uma entrevista com o autor, vimos como

eles foram construídos e quais seus papéis nas tramas.

Como auxílio teórico para esta análise, foram usadas a pesquisa da Professora

Peregrina Cavalcante, que durante anos conviveu com pistoleiros, mandantes e jurados

de morte nas regiões norte e nordeste do Brasil. Sua obra Como se Fabrica um Pistoleiro

mostra as características e o modus operandi destes tipos, comuns em algumas regiões

do país, e que serviram como base de comparação entre o mundo real e o da ficção.

Também contamos com as análises de Propp sobre a função narrativa e das

personagens, que nos serviu como base para mostrar a importância das personagens

analisadas nas tramas e na obra de Marçal Aquino.

Por fim, lanço algumas questões, baseado nas análises das obras ficcionais sobre

o papel e a importância da crítica, fazendo um breve exercício de imaginação,

comparando o papel do crítico e do pesquisador literário com o do pistoleiro e sua função

primordial: ditar quem vive e quem morre nas complexas tramas sociais que tratamos

neste trabalho.

É evidente que uma pesquisa com esta brevidade não dá conta da complexidade

da criação de uma personagem em uma obra ficcional – ainda mais se tratando de tipos

com características tão complexas quanto os matadores. Há uma infinidade de

características que ficaram de fora, mas que podem ser desenvolvidas em uma pesquisa

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acadêmica de mais fôlego.

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Referências bibliográficas

AQUINO, Marçal. As Fomes de Setembro. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.

________. Cabeça a prêmio. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

________. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

________. Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

________. Faroestes. São Paulo: Ciência do Acidente, 2001.

________. O amor e outros objetos pontiagudos. São Paulo: Geração Editorial, 2000.

________. O Invasor. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

________. Miss Danúbio. São Paulo: Scritta, 1994.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985.

CÂNDIDO, Antonio. ROSENFELD, Anatol, PRADO, Decio de Almeida, GOMES, Paulo Emílio Salles. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.

CAVALCANTE, Peregrina. Como se fabrica um pistoleiro. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.

DALCASTAGNÈ, Regina.Ver e imaginar o outro: alteridade,desigualdade,violência, na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte, 2008.

DAMIÃO, Amanda Orfão. Os Seres Narrativos em Harry Potter. 2008. 58 p. Monografia (Licenciatura em Letras) – Universidade Católica de Santos, Santos, 2008.

PAGANOTTI, Ivan. Estruturas e funções da narrativa – Propp. In: Curso Ciências da Linguagem: Práticas Midiáticas 2 – Aula 4 – CJE-ECA-USP, 2010. Disponível em: http://prezi.com/ujdmw6bhefr-/estruturas-e-funcoes-da-narrativa-propp/. Acesso em 19 set. 2012.

PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.

PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1984.

SEGOLIN, Fernando. Personagem e Antipersonagem. São paulo: Cortez & Moraes, 1978.

WOOD. James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.

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Anexo I – Entrevista com Marçal Aquino

Para a elaboração desta monografia, desde o início havia a ideia de trabalhar com

a palavra do autor fazendo um contraponto aos referenciais teóricos. Por ser um autor

vivo e em atividade, gostaríamos que suas opiniões sobre seu processo criativo fossem

consideradas na análise de suas personagens.

O primeiro contato com Aquino foi feito por e-mail, em novembro de 2012, já com

as questões teóricas sobre as personagens bem desenvolvidas. A escolha por fazer este

contato já com boa parte do trabalho escrito se deu na intenção de que a entrevista –

diferente de um trabalho jornalístico que falasse sobre a carreira ou alguma obra recente

do autor – abordasse temas mais específicos de seu processo criativo e suas referências

para a construção das personagens.

Muito solícito, Aquino respondeu a todas as perguntas enviadas em dezembro do

mesmo ano. A entrevista foi realizada por e-mail, por conta da indisponibilidade geográfica

do entrevistado em cedê-la pessoalmente, já que hoje passa boa parte de seu tempo em

compromissos profissionais no Rio de Janeiro.

A seguir está a íntegra da entrevista concedida:

Essa “familiaridade” com os matadores de aluguel vem do tempo em que você atuou como repórter policial? Você cobriu algum caso especial que inspirou alguma história? E estes pistoleiros, o Anísio, o Albano e o Brito são inspirados em alguém que você viu por aí, ou são criações que levam em conta traços comuns a diversos pistoleiros?

Tomei contato com o universo dos pistoleiros de aluguel pela primeira vez nos

tempos de repórter, no começo da década de 1980. Estava recolhendo material para um

futuro livro-reportagem, que acabei não levando em frente. Dizia respeito ao assassinato

de uma mulher em Campinas por pistoleiros contratados no Paraguai pelo próprio marido

da morta. A pesquisa me levou para a fronteira Ponta Porã-Pedro Juan Caballero e

encontrei lá um clima meio de faroeste que me interessou muito. Percebi que existia toda

uma mitologia por trás daqueles homens e resolvi investigar com a ficção. Essa foi a

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gênese do conto Matadores, meu primeiro texto a abordar o mundo dos pistoleiros, que

escrevi em 90/91. Todos os matadores que aparecem na minha literatura são apenas

personagens. E uma ou outra característica vem necessariamente do mundo real, dessas

vivências.

A diferença no modus operandi dos pistoleiros de diferentes regiões do país

fica evidente com esses personagens... O Anísio trabalha sozinho, os personagens d’Os Matadores e do Cabeça a prêmio trabalham em dupla; o Anísio tem um quê de crueldade, que os outros não aparentam, são mais precisos, mais profissionais... Que outras diferenças você apontaria na forma em que eles trabalham?

O Anísio, de O invasor, é aquilo que a polícia chama de “pé-de-pato”, um matador

que em geral vive na favela e faz uma espécie de saneamento no lugar, eliminando

aqueles que são indesejados pela comunidade. Trabalham sozinhos e de forma

independente ou contratados por comerciantes, por exemplo. Brito e Anísio são aqueles

profissionais que vi muito na fronteira, que na maioria dos casos trabalham para sob

contrato para algum poderoso.

No Invasor, o leitor não fica simpático ao Anísio, o que acontece com o Brito

e o Albano, por exemplo... Apesar de não aparecer tanto nos diálogos, há um “fantasma” do Anísio que ronda a história toda. Queria que você falasse um pouco sobre como foi a criação deste personagem. Tem algo que você imaginava sobre ele mas que não está no livro?

Comecei a escrever O Invasor em 1997. No final daquele ano, mostrei o material

pro Beto Brant, que em seus dois primeiros longas tinha usado minha literatura como

matriz – Matadores (97) e Ação Entre Amigos (98). Ele me convidou pra adaptar a

história, que, até aquele momento, cobria apenas um terço da narrativa. Todo o restante

foi criado e resolvido diretamente no roteiro. Com isso, abandonei a novela; não via razão

para contar de novo uma história que eu conhecia a fundo. Porém, o Beto me instigou a

concluir o livro e a publicá-lo. Então voltei pro texto. E a solução foi aquela narrativa na

primeira pessoa, que permitia ao narrador conhecer apenas uma parte da trama, aquela a

que ele tinha acesso. Daí o Anísio pairar sobre o pesadelo vivido pelo narrador como uma

sombra ameaçadora.

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Já o Brito é muito mais humanizado. O leitor acompanha a história dele com a Marlene, se sensibiliza... Como foi construir uma história de amor com um personagem que está inserido em um ambiente tão hostil?

Meu interesse com o encontro Brito-Marlene em Cabeça a prêmio era examinar

uma daquelas histórias em que “dois sujos se amam com pureza”. Minha intenção era

justamente falar de um romance em meio a um clima totalmente hostil, tanto na vida dele,

como matador, quanto na dela, na condição de cafetina. Entre outras coisas, me

fascinava descobrir o quanto vale para personagens desse tipo aqueles sentimentos

prosaicos em qualquer relação, como o ciúme e a dominação.

Por conta disso você acha que o Brito é um personagem mais complexo que

o Anísio?É difícil falar que um personagem é mais complexo que outro. Acho que eles têm

semelhanças, mas também grandes diferenças, em especial na razão pela qual fazem o

que fazem: o Anísio em busca de ascensão social e o Brito apenas cumprindo um

trabalho com o qual ganha a vida.

De certa forma, o mistério que temos sobre o Anísio (não sabemos sobre o

passado, onde ele mora, que outros crimes cometeu) não aparece da mesma forma com o Albano e o Brito. Sabemos sobre seus passados, seus medos etc., coisas que eles escondem das pessoas que o cercam, mas que o leitor fica sabendo. Existe uma intenção especial em fazer isso?

Quando escrevo, tenho muito pouco previamente definido sobre os personagens,

que vou “descobrindo” à medida que a narrativa avança. Foi assim com o Brito e com o

Anísio. Eu diria que tudo que sei sobre eles está no livro.

Outro ponto que tento defender no meu trabalho é que os matadores, apesar

de serem os agentes da violência - são eles que matam efetivamente - são apenas peças de um ambiente marcado pela corrupção, pela violência, por jogos de poder... Tanto que em Matadores, n'O Invasor e no Cabeça a Prêmio, chega uma hora em que o leitor percebe que o personagem está em um esquema tão fechado, com tantos envolvidos, que percebe que será muito difícil escapar... Você concorda com isso? Até onde vai a “culpa” dos matadores?

A maioria dos matadores que entrevistei me contou que não contemplam a culpa

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naquilo que fazem. Para eles, aquilo é apenas um trabalho. Concordo que esses

personagens atuam na linha de frente, como executores, mas ocupam posição

secundária numa teia maior, dos grandes criminosos que se utilizam dos seus serviços

para atingir objetivos.

E como é para você como escritor ter um personagem que elimina outros

personagens da trama? Imagino que quando se está escrevendo um romance, você fica meses, talvez mais de ano, trabalhando com um círculo de personagens, de histórias...

Uma das questões que surgiu durante as conversas com a orientadora é justamente sobre isso, esse recurso, que de certa forma “limpa as mãos” do autor - é claro que, como você é quem cria as personagens, a rigor dá na mesma, seria mais em um sentido figurado isso que estou dizendo... mas tem alguma diferença para você eliminar um personagem que foi morto “pelo autor”, em uma circunstância qualquer da narrativa e ter um matador/personagem que “resolve” essa questão?

Uma vez um jornalista fez uma resenha do livro Faroestes (2001) e teve a

paciência de contar os cadáveres. Fiquei estarrecido, pois, embora estivesse consciente

da natureza violenta daquelas historias, os tais “faroestes” do cotidiano, não tinha

pensado no assunto por esse ângulo. Nunca tive problema de nenhuma natureza em

eliminar os personagens de uma trama. Personagem faz aquilo que tem de fazer para que

a história possa ser contada. É assim que vejo.

E como está o Como se o Mundo Fosse um Bom Lugar? Tem previsão de lançamento, está pronto?

Rapaz, interrompi por um tempo a escrita do romance Como se o Mundo Fosse um

Bom Lugar, no qual vinha trabalhando nos últimos quatro anos. É que, inesperadamente,

“esbarrei” numa outra história, que me pareceu muito mais urgente. Então estou me

dedicando a colocá-la no papel, com a previsão de que o livro, que ainda nem titulo tem,

seja lançado no segundo semestre do ano que vem.

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