família contenporânea

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros OLIVEIRA, NHD.  Recomeçar : família, filhos e desafios [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 236 p. ISBN 978-85-7983-036-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Família contemporânea Nayara Hakime Dutra Oliveira

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  • SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

    OLIVEIRA, NHD. Recomear: famlia, filhos e desafios [online]. So Paulo: Editora UNESP; So Paulo: Cultura Acadmica, 2009. 236 p. ISBN 978-85-7983-036-5. Available from SciELO Books .

    All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste captulo, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de este captulo, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Famlia contempornea

    Nayara Hakime Dutra Oliveira

  • 2FAMLIA CONTEMPORNEA

    Famlia & famlias: confi guraes familiares na sociedade contempornea

    Como j observamos, possvel verifi car que as transformaes ocorridas com o incio da industrializao, o advento da urbanizao, a abolio da escravatura e a organizao da populao provocam alteraes nas feies familiares e sociais. A expanso da economia acelerou o processo de retirada da produo de casa para o mercado, e a presso pelo consumo de bens e servios, caractersticas inerentes ao capitalismo, anteriormente produzidos no espao domstico, passa a apertar os oramentos familiares, e o trabalho assalariado passa a ser um instrumento tambm utilizado pelas mulheres.

    Apesar de todas as transformaes, a nova famlia conjugal con-serva traos tpicos da famlia anterior: o de controlar a sexualidade feminina e preservar as relaes de classe.

    Ressaltamos que os costumes que marcaram poca podem ou no estar distantes de nossos costumes, pois, como mencionamos anteriormente, os conceitos evoluram ou, at mesmo, mudaram de denominao, mas, se estudarmos esses conceitos atualmente, poderemos verificar que, muitos deles, ainda esto presentes na sociedade, ainda que de forma oculta.

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    Nessa perspectiva, Lvi-Strauss (1956, p.309) coloca que [...] a famlia baseada no casamento monogmico era considerada ins-tituio digna de louvor e carinho, fato esse que ainda permanece em nossa realidade. Podemos at afi rmar que existem diversifi cados e inovados arranjos familiares, novas formas de constituir-se famlia dentro da sociedade, mas percebemos que permanece ainda a forma de organizao nuclear da famlia, ou seja, o casamento monogmico ainda o que predomina atualmente.

    Ainda Lvi-Strauss (1956, p.309) afi rma que os antroplogos, contrariando o conceito de que a famlia resultante de uma evoluo lenta e duradoura, inclinam-se ao oposto dessa convico, ou seja:

    A famlia, consistindo de uma unio mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre um homem, uma mulher e seus fi lhos, constitui fenmeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade.

    Nessa perspectiva, encontramos ainda opinies diversifi cadas sobre as formas de organizao familiar. Apesar de adentrarmos no sculo XXI, ainda podemos encontrar opresso feminina de ma-neiras diversifi cadas, ocultadas, especialmente dentro da instituio que busca sua modernizao, preservando seu conservadorismo a famlia. Preservar as relaes de classe dentro do prprio lar signifi ca tambm preservar a ordem e a relao de poder, que, por diversas maneiras, pode ser expressa, inclusive no silncio do prprio olhar.

    Atualmente, podemos encontrar uma diversidade de modelos de famlias, sendo que

    tornou-se impossvel classifi car e principalmente julgar os bons e maus planos de famlia como poderamos dizer de um plano de carreira. Alguns encontram o seu equilbrio numa relao estvel e fechada, uma clula voltada sobre si mesma que eles fortifi cam contra agresses e mudanas de qualquer tipo. Eles exigem muito dos seus parentes mas em troca se prontifi cam a dar muito de si mesmos. Outros, ao contrrio, nada querem sacrifi car da sua aventura pessoal,

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    preferem uma frmula de famlia personalizada, sem constran-gimentos e sem obrigaes, onde os indivduos vem basicamente recarregar as suas baterias antes de sarem mais uma vez pelo mundo afora. (Collange apud Jos Filho, 1998, p.45, destaque do autor)

    As transformaes sociais, construdas na segunda metade do sculo XX e reconstrudas nesse incio do sculo XXI, redefi niram tambm os laos familiares. A afi rmao da individualidade pode sintetizar o sentido de tais mudanas, com implicaes nas relaes familiares.

    Na sociedade contempornea, a conjugalidade, muitas vezes, no verdadeira. O que encontramos a busca pela estabilidade fi nan-ceira, a satisfao pessoal e a realizao de um sonho: casar-se, o que acaba conduzindo a um casamento no qual os projetos individuais so esquecidos, em que um se anula em relao ao outro.

    A difi culdade est em compatibilizar a individualidade e a reci-procidade familiares, pois, ao abrir espao para tal individualidade, renovam-se as concepes das relaes familiares. O impacto desses desafi os infl uencia o cotidiano dessas relaes.

    Podemos observar que existe uma radical mudana na compo-sio familiar, nas relaes de parentesco e na representao de tais relaes na famlia. Tal representao tem seu fundamento direto na transformao da confi gurao familiar e tambm nas relaes sociais, ocasionando impacto profundo na construo da identida-de de cada componente no interior da famlia. Essa construo da identidade ir rebater nas relaes sociais ampliadas, no somente no seio familiar. Nesse contexto encontramos a nova famlia, que se caracteriza pelas diferentes formas de organizao, relao e em um cotidiano marcado pela busca do novo. Os arranjos diferenciados podem ser propostos de diversas formas, renovando conceitos prees-tabelecidos, redefi nindo os papis de cada membro do grupo familiar.

    Segundo Ferrari & Kaloustian (2002, p.14),

    A famlia, da forma como vem se modifi cando e estruturando nos ltimos tempos, impossibilita identifi c-la como um modelo

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    nico ou ideal. Pelo contrrio, ela se manifesta como um conjunto de trajetrias individuais que se expressam em arranjos diversifi cados e em espaos e organizaes domiciliares peculiares.

    Tais arranjos diversifi cados podem variar em combinaes de diversas naturezas, seja na composio ou tambm nas relaes familiares estabelecidas. A composio pode variar em unies con-sensuais de parceiros separados ou divorciados; unies de pessoas do mesmo sexo; unies de pessoas com fi lhos de outros casamentos; mes sozinhas com seus fi lhos, sendo cada um de um pai diferente; pais sozinhos com seus fi lhos; avs com os netos; e uma infi nidade de formas a serem defi nidas, colocando-nos diante de uma nova famlia, diferenciada do clssico modelo de famlia nuclear.

    Temos como consequncias dessas mudanas as transformaes das relaes de parentesco e das representaes dessas relaes no interior da famlia. Cada vez mais, so encontradas famlias cujos papis esto confusos e difusos se relacionados com os modelos tradicionais, cujos papis eram rigidamente defi nidos. As relaes, comparadas com as estabelecidas no modelo tradicional, esto mo-difi cadas, os prprios membros integrantes da nova famlia esto diferenciados, a composio no mais a tradicional, as pessoas tambm esto em processo de transformao, no sentido da forma de pensar, nos questionamentos, na maneira de viver nesse mundo em processo de mudana.

    Alice Granato & Juliana De Mari (1999, p.269) comentam que:

    A mudana nesse padro tem resultado em novos e surpreenden-tes quebra-cabeas familiares: fi lhos de pais que se separam, e voltam a se casar, vo colecionando uma notvel rede de meios-irmos, meias-irms, avs, tios e pais adotivos.

    Nessa afi rmao podemos visualizar um novo conceito sobre as novas confi guraes familiares com a terminologia quebra-cabeas familiares, que, por profi ssionais da rea de psicologia so denomi-nadas tambm de famlia mosaico.

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    Nesse processo de mudanas, o que ocorre que temos o modelo tradicional internalizado operando, enquanto temos as novas manei-ras de ser famlia, revelando novos conceitos aos preestabelecidos, ocasionando certas contradies no prprio contexto familiar, balan-ceando o que h de prs e de contras nas duas formas aqui estudadas.

    certo que h uma herana simblica transmitida entre as gera-es que revela tais modelos e orienta a socializao dos segmentos sociais. A tendncia atual de que a convivncia familiar se torne socializada e visualizada como um local onde existe a mudana, evoluindo por meio do dilogo. O mundo familiar mostra-se em uma variedade de formas de organizao, com crenas, valores e prticas desenvolvidas na busca de solues para os desafi os que a vida vai trazendo.

    No Brasil, as novas estruturas de parentesco colocam os profi ssio-nais que trabalham com famlia e os prprios membros da instituio familiar em busca de novas denominaes ou de tentar compreender socialmente tais mudanas.

    Desde a legalizao do divrcio, com o incio de uma nova dis-cusso referente aos papis sociais de cada composio familiar, tm ocorrido mudanas que levam a questionamentos sobre o valor do casamento indissolvel e inquestionvel. Esse um dos indcios de que alteraes mais profundas na estrutura da famlia brasileira esto iniciando seu processo.

    No podemos negar o fato de que, aps institudo o divrcio, a lei passou a permitir quantos divrcios e posteriores novos casamentos o homem e a mulher desejassem, o que ocasionou transformaes profundas no mbito familiar.

    Observamos que internamente encontramos alteraes impor-tantes nos padres familiares. Refl etindo com Bilac (1995, p.35):

    Pode-se especular sobre as implicaes e signifi cados das sepa-raes e recasamentos e sobre as concepes de famlia e parentesco, pois surgem novos status familiares, aos quais correspondem novos papis e que ainda no dispem de nominao em nossa classifi cao de parentesco.

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    Nessa afi rmao podemos verifi car que, apesar de muitas denomi-naes atuais sobre famlia, como famlia reestruturada, reconstituda, reorganizada, nova famlia, no h um conceito novo de famlia, pois embutidos na famlia, existem vrias possibilidades de novas confi -guraes, no fi cando exclusivamente em um nico modelo. Mesmo com todos os estudos sobre famlias existentes, ainda h a difi culdade dos autores de conceituar e denominar tais confi guraes familiares.

    Essas novas famlias esto cada vez mais presentes e comeam a ter visibilidade, pois fazem parte do cotidiano das pessoas e no podemos neg-las. Apesar de fazer parte do cotidiano das pessoas, no podemos afi rmar que so socialmente aceitas, pois o embate entre a realidade e a ideologia existente no permitiu ainda sua superao por toda a populao.

    Contudo, como pontua a jurista Maria Berenice Dias (Souza & Dias, on-line, destaque do autor):

    Inexistem na Lngua Portuguesa vocbulos que identifi quem os integrantes da nova famlia. Que nome tem a namorada do pai? O fi lho mais velho do primeiro casamento o qu do fi lho da segunda unio? Madrasta, meio-irmo, so palavras que vm enchar-cadas de signifi cados pejorativos, no servindo para identifi car os fi gurantes desses relacionamentos que vo surgindo.

    Em meio a tantas diversidades de pessoas que compem essa nova famlia, precisamos refl etir sobre a maneira que tais componentes esto se sentindo diante dessa nova situao, desse novo mundo que vivencia, dessa nova maneira de ser famlia.

    As temticas sobre a famlia contempornea podem nos levar por diferentes realidades em transformaes, e por questes complexas, pois geralmente temos uma famlia ou um modelo familiar interna-lizado. Esta intimidade do conceito de famlia pode causar confuso entre as famlias com as quais pesquisamos e nossas prprias con-cepes sobre a confi gurao familiar.

    Nesse processo, muitas pessoas podem buscar essa construo no interior do cotidiano familiar, que carregado de subjetividade e cujas aes so interpretadas no prprio contexto dirio.

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    Para compreenso dessas transformaes, torna-se necessria uma mudana na maneira de visualizao da confi gurao da nova famlia, levando-se em conta que h o refl exo da sociedade, tanto na forma de se viver em famlia, quanto nas relaes interpessoais.

    Segundo Szymanski (2002, p.10),

    o ponto de partida o olhar para esse agrupamento humano como um ncleo em torno do qual as pessoas se unem, primordialmente, por razes afetivas dentro de um projeto de vida em comum, em que compartilham um quotidiano, e, no decorrer das trocas intersubjeti-vas, transmitem tradies, planejam seu futuro, acolhem-se atendem aos idosos, formam crianas e adolescentes.

    Conforme o autor pontua, as trocas afetivas no contexto familiar podem defi nir as direes do modo de ser com os outros afetivamente e tambm com as aes que cada membro realizar, confi gurando-se de diferentes maneiras, deixando marcas que carregaro para a vida toda, construindo, dessa forma, sua identidade.

    necessrio, ao analisarmos a maneira pela qual as pessoas con-cebem a famlia, considerarmos o sentido e a ideologia que as levaram escolher uma ou outra forma de organizao e constituio familiar, assim como a forma de relacionamento intrafamiliar. Precisamos considerar a questo histrica, que no se encontra dissociada das circunstncias do cotidiano, preciso tambm que compreenda-mos as escolhas que defi nem um ou outro rumo no pensar ou no vivenciar a maneira de ser famlia na sociedade contempornea. A estrutura organizacional familiar, porm, no signifi ca necessaria-mente um determinante da forma como se d a relao. Podemos encontrar duas famlias com a mesma composio que apresentam modos de relacionamento completamente diferentes. Nesse con-texto, o que se pode levar em conta so suas histrias e as questes socioculturais.

    As mudanas societrias afetam a dinmica familiar como um todo e, particularmente, cada famlia, conforme sua composio, histria e condies socioeconmicas.

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    No mundo governado pelo consumo excessivo, herana do ca-pitalismo acelerado, podemos verifi car que o que est realmente importando no o ser com o qual est se convivendo em famlia, mas o ter enquanto caracterstica principal do modo capitalista de produo.

    A situao atual da famlia tambm pode ser analisada a partir da transformao das formas da vida conjugal, dos modos de gesto da natalidade e no modo de compartilhar os papis na famlia e a maneira pela qual a mesma visualizada atualmente.

    Dessa forma, podemos constatar que essas transformaes podem se constituir em um questionamento do casamento tal como est de-fi nido, como instituio social. Muitas pessoas podem desejar viver em famlia conciliando-o com a liberdade individual. importante resguardarmos individualidades, pois estas so necessrias para a vida em sociedade. Precisamos, porm, pensar sobre a maneira pela qual as pessoas buscam essa liberdade individual. Pode ser que essa busca constante ocasione um individualismo e, como consequncia, as pessoas ao redor passem a no ter um signifi cado.

    As novas confi guraes familiares esto cada vez mais presentes, no podemos dizer que so socialmente aceitas. H o embate entre o real vivido e o que se idealiza.

    Tambm na Constituio de 1988, o que podemos verifi car que houve alargamento no conceito de famlia, pois as relaes monopa-rentais passaram a ser reconhecidas, assim como as unies estveis, apesar da lentido das regulamentaes em questes jurdicas e tambm de sua interligao ao conservadorismo que imperava na sociedade, que difi cultava a ampliao dos direitos j reconhecidos na Justia.

    Dentre as mudanas que afetam os laos familiares, encontramos as famlias monoparentais, que so aquelas onde as pessoas vivem sem cnjuge, com um ou vrios fi lhos solteiros. Famlia monopa-rental aquela na qual vive um nico progenitor com os fi lhos que no so ainda adultos.

    Instalam-se no interior das famlias, diversifi cadas maneiras de vivenciar a questo de gnero. As atualizaes ocorridas podem ter o

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    lado bom e o lado difcil, em que necessria a compreenso dessas relaes diversifi cadas. Segundo Souza & Dias (on-line):

    As famlias modernas ou contemporneas constituem-se em um ncleo evoludo a partir do desgastado modelo clssico, matrimo-nializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterosse-xual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Neste seu remanescente, que opta por prole reduzida, os papis se sobrepem, se alternam, se confundem ou mesmo se invertem, com modelos tambm algo confusos, em que a autoridade parental se apresenta no raro diluda ou quase ausente. Com a constante dilatao das expectativas de vida, passa a ser multigeracional, fator que diversifi ca e dinamiza as relaes entre os membros.

    Essa discusso remete-nos ao fato de que, diante dessas diver-sifi caes de papis e de modelos familiares, podemos afi rmar que houve avanos, evolues e conquistas, ao mesmo tempo em que est instaurado um grande desafio: viver em famlia no mundo contemporneo. No importa o modelo familiar no qual estamos inseridos. importante pensar nas facilidades a educao liberal, os avanos da modernidade e, por consequncia desses avanos nas difi culdades em relao questo das ausncias paterna ou materna, nas difi culdades em impor limites aos fi lhos e na confuso existente entre autoritarismo e autoridade parental, que pode ser necessria para os fi lhos.

    Historicamente, o homem vem passando por transformaes em decorrncia dos avanos sociais, e a mulher passa a assumir papis que, anteriormente, eram de exclusividade dos homens. Conforme Dalbrio (2007, p.46),

    Essa nova dimenso na qual o homem deve assumir tarefas domsticas cria em muitos deles uma situao de revisionismo de todas as ideologias que dizem respeito ao machismo. bvio que muitos ainda no esto entendendo essa nova situao, vivem como se a mulher ainda devesse prestar-lhe todos os servios e ainda lhe

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    ajudasse na manuteno das despesas familiares. Carregam ainda em conscincia as vises burguesas de famlia, cujo modelo o homem tem direitos, por manter a famlia.

    Diante dessa realidade, ressaltamos tambm o papel da mulher e suas conquistas, apesar de que ela ainda tenda a carregar a ideologia machista no que diz respeito aos afazeres domsticos. Essa carga de responsabilidade exclusiva pelas tarefas domsticas pode ser aceita consciente e inconscientemente, buscando, na maioria das vezes, amenizar alguns confl itos que podem ocorrer entre mulher e homem. Sem dvida, a mulher assume um papel extremamente importante no que diz respeito postura masculina, provocando um repensar nessa mesma postura (Dalbrio, 2007).

    O contexto social pode exercer grande infl uncia sobre a confi -gurao e a organizao familiar, expressando diversidades em suas relaes interiores. A famlia vem sendo infl uenciada pela manifes-tao da questo social, que, em nossa sociedade, escancarada pela imensa desigualdade social que vivenciamos.

    Segundo o Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica (IBGE), podemos verifi car, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio (PNAD), que, no ano de 2003, as famlias foram assim dis-tribudas: Famlia unipessoal; Casal com fi lhos (nuclear); Casal sem fi lhos; Me (Pai) sem cnjuge, dentre outras formas de organizao.

    Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios de 2005, esses indicadores foram novamente identifi cados, sendo que a classifi cao continuou sendo a da distribuio de 2003.

    O documento de Puebla (Conferncia Geral do Episcopado Latino-americano, 1979, on-line, destaque do autor) traz a seguinte afi rmao:

    a realidade da famlia j no uniforme, pois, em cada famlia infl uem de maneira diversa independentemente da classe social fatores su-jeitos a mudanas, como sejam: fatores sociolgicos (injustia social, principalmente), culturais (qualidade de vida), polticos (dominao e manipulao), econmicos (salrios, desemprego, pluriemprego), religiosos (infl uncias secularistas) entre tantos outros.

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    Diante dessas transformaes, vrias questes precisam ser me-lhor refl etidas. Apesar de todos os avanos familiares, a desvaloriza-o do trabalho da mulher ainda ocorre nitidamente, principalmente entre as pessoas que no possuem acesso s polticas pblicas, escola e s condies dignas de sobrevivncia, fatos estes que propiciam mulher a m remunerao por sua mo de obra. Paralelamente m remunerao, existe tambm a m formao para as tarefas a serem realizadas, justamente pelos fatores anteriormente citados.

    Desvalorizada no mercado de trabalho, ao chegar em casa, a mu-lher continua esse processo, a dupla ou a tripla jornada de trabalho pode ocasionar um desgaste mulher, que no tem seu potencial de dona de casa, esposa, me e profi ssional reconhecidos.

    H ainda, na sociedade contempornea, o questionamento sobre a capacidade da mulher em cuidar de sua famlia, gerando sustento, e a capacidade do homem em administrar, com maior independncia, havendo um estigma de que famlias monoparentais femininas no possuem condies de oferecer cuidados e proteo a seus membros. Esse pensamento, porm, est sendo redefi nido, existem inmeras famlias em que a mulher exerce papel central na economia doms-tica. So as famlias chefi adas por mulheres (Soares, 2002).

    Pode-se observar que a monoparentalidade masculina signi-fi cativamente menor que a feminina. Desta forma, tem tido pouca visibilidade, pois sabemos pouco sobre estas famlias, e, no estu-dando sobre elas temos nosso senso crtico e senso comum, podendo vir a reforar a ideia de que os homens no so capazes de cuidar de uma famlia.

    A monoparentalidade, de maneira geral, deve ser considerada na sequncia, em suas recomposies, permanncias e podem ser consideradas protagonistas de histrias peculiares marcadas nos novos contextos sociais.

    As famlias recompostas esto tambm presentes nesse novo con-texto. Pode ser que houve nova unio aps o trmino da outra unio conjugal e que, dessa unio, novos sujeitos histricos venham a existir.

    A transio, em nossa vida, traz uma reviso dos valores e metas que possumos, e isso pode ter seu lado positivo, assim como seu lado

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    negativo, pois em toda transformao existe tambm o processo de renncia aos modos anteriormente interiorizados e uma transcen-dncia daquilo que tnhamos como algo ideal, levando-nos a buscar a descobrir formas de melhorias de vida.

    Refl etindo sobre as dimenses dos diversos modelos de famlia, podemos pensar tambm sobre nossos prprios modelos familiares. Nesse aspecto, podemos perceber que:

    Entre todas as mudanas que esto se dando no mundo, nenhuma mais importante do que aquelas que acontecem em nossas vidas pessoais, na sexualidade, nos relacionamentos, no casamento e na famlia. uma revoluo que avana de uma maneira desigual em diferentes regies e culturas, encontrando muitas resistncias. Como ocorre com outros aspectos no mundo em descontrole, no sabemos ao certo qual vir a ser a relao entre vantagens e problemas. Sob certos aspectos estas so as transformaes mais difceis e perturba-doras de todas. (Giddens apud Vitale, 2002, p.60)

    A necessidade de discusses sobre a temtica famlia algo que perpassa pelos caminhos da sociedade. Muito tem-se afi rmado, v-rios conceitos evoluram ou, at mesmo, encontram-se novamente perceptveis em nossa realidade. Todas as questes que esto sendo refl etidas convidam-nos a um olhar diferenciado e especial a esta organizao. importante verifi carmos que as diferentes maneiras de confi guraes familiares so, em sua maioria, devidas s circuns-tncias da vida e no uma opo de vida.

    Na realidade, ainda carregamos resqucios do modelo patriarcal de famlia, que foi evoluindo at a constituio do modelo nuclear. Consideramos que os arranjos familiares, ou as novas maneiras de ser famlia no so contrapostos ao modelo nuclear de famlia. Nesse sentido, eles so apenas diferentes formas de expresso da famlia.

    certo que, se partirmos da perspectiva de anlise da totalidade, chegaremos concluso que a estrutura familiar est intimamente ligada conjuntura social.

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    Apesar de os conceitos de famlia terem sido aprimorados, ou ainda, inseridos dentro da realidade concreta de cada poca, atual-mente ainda encontramos determinados conceitos que se repetem com outra roupagem.

    Podemos dizer que atualmente os arranjos familiares esto muito presentes, e estes arranjos no se iniciam com o casamento, ou mesmo, as famlias monoparentais tambm no apresentam este tipo de composio, estando presentes somente a fi gura de um dos pais e dos fi lhos.

    No podemos negar que

    O modelo de famlia nuclear brasileira, que se estabeleceu como padro no ocidente, comeou a mudar, ainda que de forma desigual em suas diversas regies. Embora no tenha afetado todas as partes do mundo igualmente, de maneira geral aumentou a tendncia de famlias chefi adas por mulheres e de pessoas vivendo sozinhas. (Jos Filho, 2007, p.139)

    O que observamos, contudo, a existncia de grande parcela da populao que se separa, constitui uma nova famlia, com os mesmos padres da famlia nuclear, apesar de ser a segunda constituio. Geralmente, o ex-cnjuge busca constituir uma nova unio, sendo que dessa unio descendem os fi lhos do novo casal.

    As mudanas tecnolgicas e os efeitos da globalizao infl uen-ciam diferentemente a populao de determinadas classes sociais e a maneira que os arranjos domsticos so estabelecidos depender da maneira pela qual aquela famlia sofrer as mudanas (Jos Filho, 2007).

    certo que atualmente o modelo tradicional de famlia deu es-pao a uma infi nidade de outros modelos familiares que tm muitas diferenas do padro nuclear tradicional. Essas alteraes so partes de nossas histrias, partes de nossa sociedade, partes de nossas vidas.

    A situao em que estamos vivendo demonstra as possibilidades de reflexes acerca das famlias na sociedade contempornea. Famlias essas que podem ser constitudas por um grupo de pessoas

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    que residem juntas, pai, me, fi lhos, netos, sobrinhos, dentre outros integrantes. Famlias que nem chegam a ter o nmero de integrantes da famlia nuclear, sendo constitudas por casal sem fi lhos, ou irmos que residem juntos, ou uma pessoa sozinha. Enfi m, a famlia mudou, ou as famlias mudaram.

    No podemos negar a importncia da famlia no contexto social, em que esta continua sendo o cerne da sociedade, um lugar valori-zado para formar pessoas. Contudo, no podemos fi car parados em um conceito de famlia, mas situarmos a estrutura familiar na con-juntura em que estamos inseridos ou em que est inserida a famlia que estamos estudando. Tais refl exes sobre famlia do incio a um exerccio do pensar, com a relao de ideias que vo sendo construdas por tais refl exes. necessrio pensar a famlia, reaprender o que signifi ca ser famlia, entender que ela possui suas especifi cidades e suas complexidades.

    Para falar sobre famlia, segundo Jos Filho (2007, p.142)

    preciso levar em conta a famlia vivida e no a idealizada, ou seja, aquela na qual se observam diversas formas de organizao e de ligaes e na qual as estratgias relacionadas sobrevivncia muitas vezes se sobrepem aos laos de parentesco.

    preciso, sobretudo, considerar as experincias vividas por cada famlia, sendo que um modelo especfi co no deve se sobrepor a ou-tro. No podemos buscar o enquadramento da famlia a determinado modelo familiar ou mesmo a condenao dos integrantes de uma confi gurao familiar diferenciada.

    Atualmente, apesar de a famlia continuar sendo objeto de estudo e de idealizaes, impossvel admitir o pensamento de um modelo adequado. Conforme questiona Sarti (2007, p.25),

    No se sabe mais, de antemo, o que adequado ou inadequado relativamente famlia. No que se refere s relaes conjugais, quem so os parceiros? Que famlia criaram? Como delimitar a famlia se as relaes entre pais e fi lhos cada vez menos se resumem ao ncleo

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    conjugal? Como se do as relaes entre irmos, fi lhos de casamentos, divrcios, recasamentos de casais em situaes to diferenciadas? Enfi m, a famlia contempornea comporta uma enorme elasticidade.

    Alm de todos esses fatores, adicionamos tambm o nmero reduzido de fi lhos, a modifi cao do conceito de maternidade e o impacto dessas transformaes na sociedade. O fi lho e a maternidade so experincias diferenciadas para cada membro da populao.

    Em meio a tantas evolues, podemos afi rmar que a difuso e a socializao do exame de investigao de paternidade tm contribudo para diversifi cao das relaes sociais, sobretudo entre aquelas pes-soas que realmente no possuam nenhum tipo de contato com o pai e, caso os tivesse, com os irmos. Nesse sentido, a famlia passa a esta-belecer um vnculo, que tende a ser vivenciado de maneiras diversas.

    Compreendermos todas essas relaes possvel, por meio da rea-lidade que estamos inseridos. Esses inmeros modelos de confi gura-o familiar estabelecem, na sociedade, maneiras de se viver, maneiras de construo de identidades sociais. Segundo Sawaia (2007, P 40):

    Famlia conceito que aparece e desaparece das teorias sociais e humanas, ora enaltecida, ora demonizada. acusada como gnese de todos os males, especialmente da represso e servido, ou exaltada como provedora do corpo e da alma.

    Ao longo da Histria, especialmente em meados dos anos 60, ha-via uma crtica, com uma viso da famlia como contrria organiza-o popular e aos movimentos sociais. Relativamente perda de suas funes de educar e cuidar, a famlia foi analisada como uma espcie em extino. Como podemos verifi car, na sociedade contempornea, a famlia continua sendo espao para a formao e construo de identidades e de protagonistas no mundo em transformao.

    Se pensarmos juntamente com Losacco (2007, p.65), podemos verifi car que a famlia [...] construda por uma constelao de pessoas interdependentes, e sua estrutura reproduz as dinmicas scio-histricas existentes.

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    A acelerao do capitalismo, o advento da globalizao e a plura-lizao das relaes afetivas, modifi caram a maneira da famlia viver em sociedade. A famlia sofre infl uncias da sociedade, ao mesmo tempo em que exerce determinadas infl uncias na sociedade.

    Um fator presente atualmente o individualismo, conforme aponta Romanelli (2000, p.87):

    Conforme ocorrem tais mudanas, a vida domstica tende a se democratizar, criando condies para a emergncia e concretizao de interesses individuais. Consequentemente, o familismo tende a ser gradativamente deslocado e substitudo pelo individualismo.

    Mesmo assim, precisamos compreender a importncia da fam-lia na sociedade, independentemente da maneira que a mesma se constituiu. a relao interior, mesmo pautada nas infl uncias do individualismo, que parte principal da famlia.

    nesse cotidiano pautado pelas primcias do neoliberalismo que a famlia se desenvolve. Heller (2004, p.17, destaque do autor) afi rma que

    A vida cotidiana a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceo, qualquer que seja posto na diviso do trabalho individual e fsico. Ningum consegue identifi car-se com sua ativi-dade humano-genrica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrrio, no h nenhum homem, por mais insubstancial que seja, que viva to-somente na cotidianidade, embora esta o absorva preponderantemente.

    Apesar de vivenciar a cotidianidade, o homem vivencia a indivi-dualidade e seus sentidos e capacidades funcionam plenamente. Por no possuir tempo nem possibilidade de absorver-se inteiramente em nenhum desses aspectos, no possvel desenvolv-los em toda sua intensidade.

    Posteriormente, a autora afi rma que [...] a vida cotidiana , em grande medida, heterognea (p.18). Ela se refere ao contedo e im-

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    portncia das diversas atividades que realizamos, como por exemplo: a organizao do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, as relaes sociais. Defende tambm que, alm de heterognea, a vida cotidiana hierrquica, ou seja, existem as prioridades dentro da cotidianidade.

    no grupo que existe o amadurecimento para a cotidianidade, como famlia, escola, pequenas comunidades. Como pontua Heller (2004, p.19, destaque do autor):

    O homem aprende no grupo os elementos da cotidianidade (por exemplo, que deve levantar e agir por sua conta; ou o modo de cum-primentar, ou ainda como se comportar em determinadas situaes, etc.); mas no ingressa nas fi leiras dos adultos, nem as normas assimi-ladas ganham valor, a no ser quando essas comunicam realmente ao indivduo saindo do grupo (por exemplo, da famlia) capaz de se manter autonomamente no mundo das integraes maiores, de orientar-se em situaes que j no possuem a dimenso do grupo humano comunitrio, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, alm disso, mover por sua vez esse mesmo ambiente.

    A individualidade necessria a todo homem no pode ser con-fundida com o individualismo que tende a conduzir a sociedade a atitudes egostas. Diante dessa realidade, necessrio compreender-mos o cotidiano das famlias na sociedade contempornea, para que possamos verifi car como se estabelecem as infl uncias da sociedade na famlia e o papel da famlia na sociedade.

    Um outro agravante desses novos tempos a questo da droga-dio, do consumo excessivo de lcool, muitas vezes, em decorrncia das experincias vivenciadas durante a histria de vida das pessoas. Esses fatores podem permanecer na vida das famlias, afetando as relaes entre os membros e agravando a questo social manifesta no cotidiano dessas relaes.

    Existe tambm, em decorrncia de inmeros fatores, a presena da violncia domstica que no est dissociada da questo do alco-olismo e da drogadio. As contradies sociais que vivenciamos

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    trazem um mundo novo no qual as famlias passam pela escalada da violncia urbana, deixando como consequncias o crime, a morte, o trfi co e outras manifestaes que podem aterrorizar a vida das pessoas. Muitas vezes, os pais no sabem como evitar que seus fi lhos adentrem nesse mundo e buscam a educao deles de diversifi cadas maneiras, e nem sempre obtm resultados positivos.

    Alguns fatores podem trazer o retrato da famlia na atualidade e podemos verifi car que a populao, de uma maneira geral, tem enve-lhecido, as crianas tm sido evitadas, com o controle de natalidade, e as pessoas tm cada vez mais se divorciado.

    Nos pases europeus, como podemos verifi car pelo Dossi Fides (Agenzia Fides, 2008, on-line), a populao europeia cresceu em torno de 19 milhes de pessoas no perodo de 1994 a 2006, mas isso ocorreu no pelos nascimentos naturais, pois estes diminuram, mas pelas imigraes ocorridas durante esse perodo. Quanto populao idosa, esta a grande maioria, pois houve um crescimento no nmero de pessoas idosas, em decorrncia da prpria qualidade de vida e uma diminuio da populao jovem. A cada 25 segundos, realiza-se um aborto nos pases europeus e dessa maneira a populao jovem tende a diminuir.

    No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica (IBGE), por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), realizada no ano de 2006, mostrou que a tendncia do envelhecimento da populao, como em anos anteriores, persistiu, e a taxa de fecun-didade diminuiu para 2,0 nascimentos por mulher.

    certo que o nmero de habitantes por domiclios vem diminuin-do e, com esse formato, podemos verifi car que o formato familiar tambm diminuiu. Vale ressaltar que, com relao aos rendimentos mensais familiares per capita no Brasil, temos: 27,3% de 0,5 a 1 salrio mnimo; 23,3% de 1 a 2 salrios mnimos e 16,4% de 0,25 a 0,5 salrio mnimo. O Brasil possui, dessa forma, a maioria de sua populao concentrada com no mximo 1 salrio mnimo per capita.

    As famlias que habitam o territrio brasileiro so, em sua maio-ria, famlias que possuem meios escassos de sobrevivncia e buscam no cotidiano da vida familiar, dividir no somente as emoes dos

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    laos familiares, mas tambm as angstias que a prpria vida coti-diana lhes apresenta.

    Podemos recorrer tambm ao conceito de Carvalho (2002, p.93):

    De fato, a famlia o primeiro sujeito que referencia e totaliza a proteo e a socializao dos indivduos. Independentemente das mltiplas formas e desenhos que a famlia contempornea apresente, ela se constitui num canal de iniciao e aprendizado dos afetos e das relaes sociais.

    Independentemente das mltiplas maneiras de se organizar, de se constituir enquanto famlia, ela possui um papel de socializao im-portante e primordial na vida das pessoas. Entend-la, como espao de construo da iniciao dos afetos e de todo aprendizado que esses afe-tos podem trazer a seus componentes, mpar na sociedade. Essas cons-trues rebatero na construo dos sujeitos histricos da sociedade.

    Pensarmos o Brasil enquanto pas que tambm vivencia as ma-nifestaes da questo social to presentes em seu cotidiano faz-nos reportar ao fato de que as famlias brasileiras precisam de melhorias em suas condies de vida, em suas construes cotidianas, em seus componentes. A manifestao cotidiana da desigualdade social pre-sente traz o retrato da nova famlia em um novo cenrio, que, cada vez mais, a aparta do acesso ao mnimo de sobrevivncia. Diante desses efeitos da desigualdade, a famlia, na sociedade contempornea, modifi cada no s internamente, mas tambm externamente, possui o desafi o de sobreviver nessa sociedade em tempos de mudanas e de continuar exercendo seu papel.

    No podemos negar a importncia da famlia, em que os sujeitos desenvolvero suas primeiras experincias enquanto membros da sociedade. Como bem pontuam Ferrari & Kaloustian (2002, p.11):

    A famlia brasileira, em meio a discusses sobre a sua desagrega-o ou enfraquecimento, est presente e permanece enquanto espao privilegiado de socializao, de prtica de tolerncia e diviso de responsabilidades, de busca coletiva de estratgias de sobrevivn-

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    cia e lugar inicial para o exerccio da cidadania sob o parmetro da igualdade, do respeito e dos direitos humanos. A famlia o espao indispensvel para a garantia da sobrevivncia de desenvolvimento e da proteo integral dos fi lhos e demais membros, independente-mente do arranjo familiar ou da forma como vem se estruturando.

    essencial para as refl exes sobre famlia, a desconstruo de nossos conceitos prontos, buscando o desprendimento dos preconcei-tos para podermos entender as novas confi guraes familiares. Para abordarmos questes referentes ao contexto na qual a famlia est inserida, assim como quais as possibilidades e os desafi os existentes na construo de um trabalho com famlias, torna-se necessria uma refl exo aprofundada sobre as questes referentes s polticas de atendimentos a essas famlias e a ao profi ssional do assistente social nesse espao de atuao.

    Este desafi o de poder buscar refl exes sobre os conceitos de fam-lia traz para ns uma experincia enriquecedora e, ao mesmo tempo, cumula-nos de expectativas para aprofundarmos em determinados temas que no so somente polmicos, mas esto presentes em nosso cotidiano.

    O trabalho social com famlias: possibilidades, desafi os e repercusses

    Breve trajetria das polticas sociais

    Historicamente, podemos perceber que o agravamento da crise do mundo do trabalho trouxe como necessidade o aprofundamento de refl exes acerca do trabalho social realizado com famlias.

    Alguns fatores contriburam para a construo dessa histria do trabalho social com famlias e das polticas de atendimento a suas necessidades.

    Podemos verificar que o expansionismo do capitalismo teve sinais de esgotamento no fi nal da dcada de 1960, com inmeras

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    consequncias, especialmente nas ltimas dcadas do sculo XX. Tais sinais repercutiram drasticamente na vida das pessoas de um modo geral e houve, dessa maneira, um rompimento com o pleno emprego keynesiano-fordista, to propagado como uma das princi-pais caractersticas do Estado de Bem-Estar Social1. A crise trouxe, juntamente com os ideais neoliberais, o desenho socialdemocrata das polticas sociais, sendo que houve mudanas das polticas sociais nos planos internacional e nacional (Behring & Boschetti, 2007).

    Compreendendo todo o aparato neoliberal, podemos afi rmar que houve desestruturao do Welfare State nesses novos tempos, infl uenciada plenamente por seus ideais.

    Enquanto no Estado de Bem-Estar Social havia a mediao ativa do Estado, o neoliberalismo, que, segundo Anderson, in: Behring & Boschetti (2007), surgiu aps a Segunda Guerra Mundial, buscando combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes, buscando o pre-paro do terreno para o capitalismo duro e impetuoso. Os neoliberais avanam entre os anos de 1969-1973, e para eles, a crise resultava do poder excessivo dos sindicatos, movimento operrio, e afi rmavam que esses corroeram as bases da acumulao e do aumento dos gastos sociais do Estado. Alm de defenderem a tese de que o Estado no devia intervir na regulao do comrcio exterior nem nos mercados fi nanceiros, entendendo que o livre movimento de capitais garantiria maior efi cincia na redistribuio dos recursos internacionais. Sus-tentavam tambm a estabilidade monetria como meta suprema, o que seria assegurado mediante a conteno dos gastos sociais e com a manuteno da taxa de desemprego, alm das reformas fi scais e da reduo dos impostos para os altos rendimentos.

    Como consequncias do neoliberalismo, temos os efeitos destru-tivos para as condies de vida da classe trabalhadora, provocando o aumento do desemprego, e tambm, em determinadas situaes, a destruio dos postos de trabalho noqualifi cados. Assim, ocorre tambm a reduo dos salrios em funo do aumento da oferta de mo de obra, alm das redues de gastos com as polticas sociais.

    1 Sobre o Estado de Bem-estar Social ver Behring & Boschetti, 2007.

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    Nesse sentido, o Estado transfere para a famlia a responsabili-dade de seu prprio sustento, sem, contudo, lhe oferecer meios para essa sobrevivncia. A famlia sofre escancaradamente os efeitos da poltica neoliberal.

    Caracterizando alguns princpios da poltica neoliberal, Behring & Boschetti (2007) trazem a seletividade e a distributividade na presta-o de servios, apontando para a possibilidade de instituir benefcios que so orientados pela discriminao positiva, no se referindo apenas aos direitos assistenciais, mas permitindo a seletividade dos benefcios das polticas de sade e de assistncia social, contradizendo o princpio da universalidade do acesso aos bens e servios.

    A assistncia social vem sofrendo para defi nir-se enquanto pol-tica pblica e superar caractersticas que lhes so intrnsecas, como a morosidade em sua regulamentao como direito; a reduo em sua abrangncia; a manuteno e o reforo do carter fi lantrpico, com a presena das entidades privadas em diversos servios; a permanncia de apelos e aes clientelistas; a nfase nos programas de transferncia de renda, de carter compensatrio (Behring & Boschetti, 2007).

    O Sistema nico de Assistncia Social (Suas), institudo a partir de 2004, prope algumas alteraes nesse quadro da assistncia, trazendo alguns avanos que merecem destaques, tais como a descen-tralizao e a participao, considerando a dimenso territorial, forta-lecendo as dimenses da Lei Orgnica da Assistncia Social (Loas), no que diz respeito a articulao entre Planos, Fundos e Conselhos. Algumas atribuies so colocadas s famlias e s organizaes sem fi ns lucrativos o terceiro setor, na busca da substituio da poltica pblica (Behring & Boschetti, 2007).

    Dessa maneira, podemos verifi car que a poltica social no tem conseguido diminuir o quadro de pobreza e de excluso no Brasil, ao contrrio, podemos observar que h um aumento signifi cativo das taxas de desigualdade social, com concentrao de rendas nas mos de poucos.

    Existe ainda o fato de que as aes so expressivamente de carter tutelar e assistencialista, alm de serem fragmentadas na forma de direitos individuais.

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    Carvalho (2002, p.95) afi rma que a ateno famlia se tornou perifrica. Quando existente, no era ela o alvo, mas sim a mulher, o trabalhador, a criana. Ao obter a identidade de carentes de bens e servios e de afetos, a famlia inseria-se nos programas de assistncia social. Ela defende tambm (2007, p.267):

    ambas visam dar conta da reproduo e da proteo social dos grupos que esto sob sua tutela. Se, nas comunidades tradicionais, a famlia se ocupava quase exclusivamente dessas funes, nas comunidades contemporneas so compartilhadas com o Estado pela via das po-lticas pblicas.

    Ultimamente, o que podemos verifi car que a famlia vem sendo cada vez mais essencial e tambm responsvel pelo desenvolvimento dos cidados, desfazendo a tese de que a famlia, no estado de direitos, seria prescindvel e substituvel.

    Se retomarmos a experincia brasileira, podemos observar que as polticas sociais, aps a dcada de 1970, tiveram uma ateno especial mulher no grupo familiar, ofertando-lhe condies e desenvolvi-mento de habilidades e atitudes para melhor gerir o lar (idem, 2007).

    A autora afi rma que, na dcada de 1990, o olhar da poltica pblica foi voltado para as crianas na famlia, com o advento da Consti-tuio brasileira e do Estatuto da Criana e do Adolescente, cujo slogan da poca ressoava Lugar de criana na famlia, na escola e na comunidade.

    Enquanto nos anos dourados do Welfare State, com pleno emprego e oferta de polticas sociais universais a famlia parecia como uma unidade descartvel, atualmente, esta tem um carter primordial na sociedade capitalista. Naquele contexto, o Estado parecia sufi cientemente forte para assegurar as polticas sociais e partilhar a riqueza, assim como para conter os apelos selvagens do capital e garantir pleno emprego (Carvalho, 2000b).

    Na dcada de 1990, o Estado de Bem-Estar Social tornou-se uma juno entre Estado, iniciativa privada e sociedade civil Welfare Mix. (idem, 2000b).

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    Dessa maneira, observamos o surgimento das iniciativas do ter-ceiro setor e das redes familiares de proteo como apoio s funes do Estado, em um processo de desresponsabilidade que insiste em continuar.

    Continuando essa discusso, Carvalho (2000b, p.17) afirma: [...] a famlia retoma um lugar de destaque na poltica social. Ela ao mesmo tempo benefi ciria, parceira e pode-se dizer uma mini-prestadora de servios de proteo e incluso social.

    Alm do papel de socializao de seus membros, particularmente as crianas e adolescentes, o que percebemos tambm um grande nmero de famlias que possui uma capacidade de acolhimento no somente dos membros gerados em seu seio, mas tambm advindos de diversas situaes, como, por exemplo, as famlias estendidas pais, mes, avs, primos, sobrinhos, irmos, parentes de diversas formas que passam a coabitar na mesma residncia.

    Retomarmos a famlia, enquanto essencial na sociedade, no signifi ca retomarmos conceitos conservadores familiares, pois houve realmente uma transformao em sua confi gurao, expressa nos diversos tipos de confi guraes familiares hoje existentes. Signifi ca, sim, reconhecermos que as possibilidades de proteo, socializao e criao de vnculos so presentes e essenciais aos indivduos.

    A centralidade da famlia nas polticas sociais

    A trajetria das polticas sociais demonstra que a famlia est no centro da ateno e da proteo social. Se h algumas dcadas estvamos acreditando no modelo de Estado de Bem-Estar Social, que era capaz de atender as demandas de proteo, atualmente, nesse novo contexto em que vivemos, podemos verifi car que vrios fatores contriburam para derrubar as expectativas e exigir solues para Estado e sociedade.

    Atualmente, o que existe na sociedade um crescimento nas demandas de proteo social, que so postas pela prpria contem-poraneidade. No somente a classe que no tem acesso aos bens

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    e servios, mas a maior parte dos cidados necessita dessa proteo social.

    A mesma sociedade, que traz tantos avanos tecnolgicos e trans-formaes produtivas e mantm a populao conectada, a que a deixa extremamente vulnerabilizada no que diz respeito a seus vnculos relacionais (Carvalho, 2007).

    Os novos desafi os esto postos: a partilha na responsabilidade de proteo social, que justifi cada pela pobreza, pelo desemprego, pelo envelhecimento populacional; a partilha de responsabilidades formativas, diante do individualismo presente, da perda de valores, da inefi ccia dos educadores institucionais na socializao de crianas e adolescentes; o descrdito e o descarte de solues institucionali-zadas de proteo social, como internatos, orfanatos, manicmios (idem, 2007).

    Como enfatizamos anteriormente, o que est presente e com fora total na atualidade o Welfare Mix, combinando recursos e meios mobilizveis do Estado, do mercado, das organizaes no governamentais (ONGs), das organizaes sociais sem fi ns lucrati-vos e da rede de solidariedade existente nas famlias, nas igrejas, na prpria populao local. As polticas sociais apresentam-se com as responsabilidades partilhadas.

    H a tendncia das polticas de sade e de assistncia social in-troduzirem servios voltados famlia e prpria comunidade. Dessa forma, temos notado que os servios de atendimento co-letivo das polticas sociais esto buscando combinar vrias pos-sibilidades de atendimento que esto com o apoio da famlia e da comunidade.

    Um exemplo dessa inovao nas polticas sociais a questo da internao hospitalar. Hoje, podemos verifi car o quanto diminuiu o tempo de recuperao das pessoas que submeteram a algum proce-dimento hospitalar. H um trabalho voltado para a internao do-miciliar, para o mdico familiar, o cuidador, os agentes comunitrios de sade, o programa sade na famlia, dentre outros.

    Com relao s polticas de combate pobreza, podemos veri-fi car, segundo Carvalho (2007, p.270): A conscincia geral de que

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    a pobreza e a desigualdade castigam grande parcela da populao brasileira est a exigir polticas pblicas mais efetivas e comprome-tidas com sua superao.

    Os diversos programas criados so voltados para a populao vulnerabilizada pela pobreza e desassistida em suas necessidades bsicas. Os programas existentes de renda mnima visam garantir ao grupo familiar recursos para a alimentao bsica e manuteno dos fi lhos na escola.

    Apesar de reconhecermos que esse um recurso necessrio para a populao, podemos perceber que necessrio repensar as aes emancipatrias, que aparecem de maneira descontnua e sem pers-pectivas de grande visibilidade. Esses programas, como o de estmulo ao microcrdito, acesso habitao, gerao de renda, programas socioeducativos e culturais, dentre outros, so tambm exemplos de aes para o enfrentamento da questo social.

    A sociedade atual pautada em uma perspectiva moderna, mas em seu interior, necessita da famlia, seja ela confi gurada da maneira como se apresenta. Diante dessa realidade, podemos verifi car que a famlia uma maneira da vida privada se expressar, lugar de intimi-dade, de construes individuais e coletivas e um espao signifi cativo para a expresso dos sentimentos, que, nessa modernidade, podem ser esquecidos diante da correria contempornea. Nesse sentido, ela torna-se imprescindvel na sociedade. Os vnculos familiares podem assegurar ao indivduo a segurana de pertencimento social. Confor-me Carvalho (2007, p.272) [...] o grupo familiar constitui condio objetiva e subjetiva de pertena, que no pode ser descartada quando se projetam processos de incluso social.

    A famlia, na sociedade contempornea, vem sendo bastante pesquisada e valorizada, como espao de relaes horizontais e de crescimento de pessoas, pois compreendida como um importante espao para a construo de identidades.

    Ainda no estamos conseguindo, porm, pelos trabalhos realiza-dos na esfera pblica, dar voz s famlias, pois estas fi cam merc dos programas sociais, que so escassos, fragmentados e no conseguem atingir toda a demanda.

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    Precisamos trabalhar com essas famlias em uma perspectiva emancipatria, pois programas sociais que atendem famlias no tm a perspectiva de buscar essa emancipao, que seria to necessria para que as famlias pudessem ser fortalecidas em todas as suas capacidades.

    Nessa perspectiva, Carvalho (2007, p.273) tece uma crtica ao olhar da poltica pblica:

    eleger apenas a mulher na famlia como porta de relao e parceria;

    pensar idealizadamente num padro de desempenho da fa-mlia, que ostenta diversas formas de expresso, condies de maior ou menor vulnerabilidade afetiva, social ou econmica, ou ainda fases de seu ciclo vital com maior vulnerabilidade, disponibilidade e potencial;

    oferecer apenas assistncia compensatria, com escasso inves-timento no desenvolvimento da autonomia do grupo familiar.

    A poltica social, nesse contexto neoliberal e capitalista, ainda tem muito a crescer. Enquanto ela no atinge seus objetivos centrais, a famlia vem buscando diversas estratgias de sobrevivncia, sem o mnimo necessrio para sobreviver. Fica complicada a situao das famlias, quando estas no possuem o trabalho necessrio para garantir a subsistncia. Nesse contexto, a luta pela sobrevivncia, no que se refere principalmente as condies materiais, impe-se como preocupao central da famlia (Jos Filho, 2007).

    A pobreza e a misria no Brasil vm se instaurando cada vez mais. A preocupao com esse quadro contnua. A famlia em situao de precariedade econmica um local onde se manifesta a desigualdade social, que foi sendo construda na dcada de 1980 e consolidou-se em 1990. Torna-se necessrio, diante dessa situao, a criao de programas que atendam famlia em sua totalidade, na maneira tal como ela est confi gurada. importante o fortalecimento cotidiano das famlias, polticas sociais consistentes e de atendimento integral de suas necessidades.

    Auferir para as famlias a diviso de responsabilidades sem dar a elas as mnimas condies de suportar o fardo de ser corresponsvel

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    por sua subsistncia mais uma transferncia de responsabilidades do que uma diviso, pois quando h algo para se dividir, ambos fi cam com certa parte. No que diz respeito famlia como centralidade nas polticas sociais, o que podemos verifi car que a famlia fi cou com a parte pior: a de sobreviver sem os mnimos meios de consegui-lo.

    O Servio Social e o trabalho com famlias

    A trajetria histrica do Servio Social permite-nos refl etir sobre seu surgimento na sociedade. Inicialmente, como uma ajuda aos necessitados, como resposta s necessidades de uma determinada demanda. Inicialmente, pensando na funo da assistncia, espe-cialmente populao que no possua uma integrao ao restante da sociedade. Houve muita infl uncia europeia e norte-americana na maneira de ser e no agir profi ssional.

    A partir do movimento de Reconceituao do Servio Social, ocorrido em 1960, cujo rebatimento veio a ocorrer mais precisamente na dcada de 1980, o que estava em pauta era a busca de uma refl exo terico-metodolgica, a partir da realidade latino-americana, o que resultou em estratgias profi ssionais que fossem adequadas s neces-sidades especfi cas da Amrica Latina, deixando de lado a infl uncia norte-americana e europeia (Silva & Silva, 2007).

    A expresso das tendncias de renovao da profi sso (Netto, 1991) tem seu desdobramento em trs vertentes:

    1. A vertente modernizadora: sua maior infl uncia ocorreu do perodo de 1967 at os anos 70, e era caracterizada pela neces-sidade de incorporar a poltica desenvolvimentista da poca, com forte infl uncia na maneira de pensar dos profi ssionais, cuja meta era modernizar, trazer novos mtodos e tcnicas para a profi sso, e com isso alcanar o status profi ssional. A corrente que infl uenciava essa perspectiva era a funcionalista, caracterizando o consenso na sociedade, por meio da atuao do profi ssional, que tinha o carter neutro em sua prtica, no

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    fazendo nenhuma crtica ao modelo societrio e instituio na qual trabalhava.

    2. A vertente de reatualizao do conservadorismo: o perodo de infl uncia dessa vertente foi no ano de 1968, quando sua maior referncia, Ana Augusta de Almeida escreveu a obra Possibilidades e Limites da Teoria do Servio Social, cujo emba-samento terico foi especialmente a corrente fenomenolgica, tendo como principal caracterstica a marca da subjetividade, com conceitos que eram contrrios tradio positivista e s referncias do pensamento crtico-dialtico marxiano. Segun-do essa vertente, o profi ssional tinha trs pressupostos tericos para atuar: o dilogo, a pessoa e a transformao social. Havia o embasamento do dilogo na proposta psicossocial, e esse poderia ser concebido como gerador da transformao social, no sentido do trabalho com o homem para que ele consiga ser transformado e assim tenha uma possibilidade de transfor-mao social. A pessoa era o homem total, sendo um sujeito racional e livre, deixando de ser entendido como alienado, oprimido e desajustado.

    3. A vertente de inteno de ruptura: sua infl uncia questio-nadora teve uma coletivizao nos anos 70, e atingiu sua hegemonia nos anos 80. Havia a preocupao com o com-promisso profi ssional do Servio Social quanto s injustias que estavam ocorrendo na estrutura social. Infl uenciada pela corrente marxista e por um engajamento poltico-partidrio, percebia o Estado como instrumento das classes dominantes e as instituies como aparelhos ideolgicos do Estado (Althusser, 1998). Dessa maneira, buscou-se um trabalho alternativo, fora das instituies. Inicialmente, sofreu infl un-cias dos cristos de esquerda (juventude catlica), da rea da cultura e da educao. O marco do processo de ruptura com a proposta do Servio Social tradicional foi o Mtodo Belo Ho-rizonte caracterizado pela proposta profi ssional alternativa ao tradicionalismo do Servio Social, cujas preocupaes cen-trais estavam em utilizar os critrios tericos, metodolgicos,

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    interventivos. Todo esse questionamento deu margem a um novo projeto de formao profi ssional, com avano na produ-o cientfi ca dos assistentes sociais. Havia, nesse contexto, o esforo de construo de respostas profi ssionais s demandas postas para a profi sso em diferentes conjunturas.

    Essas tendncias trouxeram, naqueles contextos determinados, reflexes sobre a famlia e sua importncia na prxis do Servio Social (Silva & Silva, 2007). certo que o assistente social, em sua atuao ter contato com a famlia, pois esta parte de seu cotidiano profi ssional.

    Em meio s expresses da questo social no mundo contempo-rneo, podemos verifi car que houve um exponencial aumento da desigualdade cujos efeitos na vida da populao atendida pelo Servio Social so extremamente devastadores.

    Diante da crise no mundo do trabalho, cujas principais carac-tersticas podemos verifi car na atualidade, como o desemprego, o fi m do emprego, a tripla jornada de trabalho, a ao profi ssional polivalente, dentre outras, a abordagem com famlias constituda de novos contornos e especifi cidades (Guimares & Almeida, 2007).

    Nesse sentido, podemos verifi car que a excluso social no Brasil vivenciada de maneira mais grave e aguda. necessrio ter um olhar crtico para a realidade e, ao mesmo tempo, buscar ser realista e pro-positivo na elaborao de polticas e programas sociais, considerando a real necessidade das famlias que so a demanda do cotidiano de trabalho. preciso ter conhecimento continuado, baseado em uma ao metodolgica e em uma avaliao permanente, para a garantia de melhores resultados nas aes interventivas com as famlias.

    Recorrendo s autoras Guimares & Almeida (idem, p.130), podemos verifi car que

    Essas famlias esto diante do desafi o de enfrentar, sem nenhuma proteo social, carncias materiais e fi nanceiras. Convivem, alm disso, com graves confl itos relacionais. Essas difi culdades j so sufi cientes para caracterizar a situao por elas vivida como de vio-

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    lncia social. A essas difi culdades somam-se episdios cotidianos de violncia urbana, originados pelos grupos do narcotrfi co e do crime organizado, compondo um quadro de acmulo e potencializao da violncia familiar.

    As famlias com as quais o Servio Social trabalha esto mar-gem da sociedade, onde as manifestaes da questo social em seus cotidianos se mostram escancaradas e de formas variadas, fato este que traz para o profi ssional um desafi o no sentido de conseguir obter respostas s demandas contemporneas que lhes so apresentadas no contexto brasileiro.

    A atuao profi ssional no mundo contemporneo precisa buscar sua interveno pautada no conhecimento do que realmente a ao diante das situaes de pobreza e excluso, ou seja, efetivar o trabalho do Servio Social com famlias.

    Ao buscar metodologias de trabalho especfi cas para famlias que vivenciam esta situao, podemos afi rmar que o Servio Social se apropria de sua demanda de trabalho: as famlias em situao de pobreza e (ou) de excluso social.

    Ao contrrio de atuar somente nos aspectos imediatistas, nos quais as famlias que vm ao nosso encontro esto em situaes de extrema necessidade, existe atualmente a possibilidade de se pensar na efetivao de um trabalho que busca aes preventivas, de abor-dagens grupais e individuais, diante das situaes de excluso social que essas mesmas famlias esto inseridas.

    Fortalecidas, as famlias que so acompanhadas pelo Servio Social, juntamente com profi ssionais de reas afi ns, podem ter instru-mentos de enfrentamentos das situaes que permeiam seu cotidiano familiar e social.

    Ao serem fortalecidas, essas famlias podem apresentar as poten-cialidades de seus integrantes, medida que podem criar, construir relaes que auxiliam os membros mutuamente, rumo ao cresci-mento coletivo familiar.

    O trabalho com famlias deve ser sistemtico, fugindo do prag-matismo ou da abordagem aleatria. Dessa maneira, podemos con-

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    quistar um vnculo com as famlias atendidas pelo Servio Social, e obter um avano na proposta profi ssional.

    Atuando dessa forma, podemos afi rmar que as famlias passam a ser parceiras na elaborao dos programas e das polticas sociais, juntamente com os profi ssionais de Servio Social e reas afi ns, e no somente utilizadoras desses programas e polticas.

    De um modo geral, o trabalho realizado com famlias busca a garantia de sua proteo. Por mais difcil que seja a situao que de-terminada famlia esteja enfrentando, preciso que os profi ssionais, juntamente com as famlias, busquem meios de favorecer o acesso a seus direitos sociais.

    Fazer que as famlias atendidas pelo Servio Social tenham voz, a voz calada pelas decepes que sofreram no decorrer de sua exis-tncia, tarefa desafi adora, mas necessria. preciso ter um olhar transcendente para compreender que no pelo fato de estarem nas situaes de pobreza e excluso, que essas famlias no possuem direitos a serem conquistados.

    Outro fator importante a ser refl etido se refere aos programas de transferncias de rendas. Apesar de serem considerados como avan-os, com o objetivo primordial de assegurar a subsistncia imediata da populao, preciso ainda percorrer a trilha da demanda que necessita de uma maior qualidade de vida. Pensar em propostas de melhorias das condies de habitao, de qualifi cao profi ssional e de educao, ainda um desafi o. A necessidade imediata supera as necessidades mediatas e o que as polticas sociais esto buscando, na atual conjuntura, o atendimento das necessidades imediatas.

    Nesse assunto, Acosta et al. (2007, p.159) afi rmam:

    Para estas, preciso dar uma ateno diferenciada. Precisa-se investir em seu projeto de futuro. Ainda no o tm. Esto perdidas em seu momento presente de projetos frustrados. Para esse grupo de famlias, uma renda mnima jamais poder durar doze meses. E jamais poderia ser-lhes oferecido apenas uma renda. preciso favorecer sua integrao em processos de apoio psicossocial, de for-talecimento de vnculos relacionais, de formao profi ssionalizante, e, sobretudo, possibilitar novos horizontes.

  • RECOMEAR 97

    As autoras supracitadas colocam importante refl exo acerca dos programas sociais existentes na sociedade e sobre o trabalho com famlias. Realmente, a renda uma das maneiras pelas quais essas famlias devem complementar a subsistncia. Quanto a seu desenvol-vimento, outras necessidades devem ser trabalhadas, como elas bem citam, para ampliar as possibilidades de conquistas dessas famlias.

    O trabalho do Servio Social com famlias nas situaes de pobre-za e excluso social exige dos profi ssionais uma formao especfi ca e crtica com relao ao processo poltico, econmico e social vigente. preciso avanar no que diz respeito ao reconhecimento da popu-lao atendida. Como as autoras Acosta et al. (idem, p.161) trazem [...] trabalhar com famlias na superao da pobreza exige focalizar melhor os diversos grupos/expresses de pobreza com estratgias e objetivos especfi cos. A partir desse conhecimento, possvel plane-jar programas de temticas especfi cas sobre as diferentes expresses de pobreza, a fi m de que essas possam ter um espao especfi co para a discusso de como cada famlia, em sua individualidade, vivencia sua pobreza especfi ca, alm de outras discusses que podem ampliar a viso dos benefi cirios da assistncia social.

    Atualmente, o que podemos verifi car tambm diversifi cao nas confi guraes familiares, conforme j abordamos no captulo 2, Item 1, das famlias na sociedade contempornea. necessrio que os profi ssionais de Servio Social que atuam nessa sociedade possam despir de conceitos predeterminados sobre famlias para que possa atuar na realidade. Infelizmente, o que observamos que existem profi ssionais que atuam diretamente com famlias e que acabam rotulando-as erroneamente (Jos Filho, 2007).

    No somente compreender, mas conhecer e respeitar as diferentes maneiras de ser famlia na atualidade requisito indispensvel para o profi ssional que atuar nessa rea.

    Para Jos Filho (idem, p.144, destaque do autor),

    A famlia como lcus privilegiado de interveno do Servio Social tem aparecido nos ltimos anos como preocupao de rgos internacionais e governamentais de mbito nacional, estadual e

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    municipal. Isso se d a partir da Constituio Federal de 1988, que dedicou um captulo especfi co artigo 226 e fi xou a famlia tem especial ateno do Estado inovando consideravelmente os tratos poltico e social de famlia.

    Ocorre que mesmo estando preconizadas essas preocupaes na Constituio, atualmente podemos verifi car que h um distancia-mento entre o que est contido na Constituio Federal e a real situa-o social das famlias no Brasil. Nesse contexto, o Servio Social pro-cura desenvolver estratgias de atuao junto s famlias brasileiras.

    Utilizando instrumentos tericos e metodolgicos, o Servio Social pauta sua ao sob a infl uncia advinda do movimento de Re-conceituao, do materialismo histrico dialtico, especifi camente a teoria marxiana. Sendo a dialtica um movimento contnuo, parte da prtica concreta para as formulaes terico-refl exivas. Dessa forma, a concepo de homem e de mundo que o profi ssional de Servio Social possui deve enxergar o homem como um ser em contradio e em transformao na realidade. , ao mesmo tempo, sujeito de sua prpria histria, construda, compreendida dentro da realidade.

    Acreditamos que a relao entre os membros da famlia possibilita a vivncia de fatos marcantes na vida dos sujeitos, dentre esses fatos podemos citar: a ternura, a sexualidade, os afetos, os nascimentos, as mortes. Se observarmos os fatos de cada situao vivenciada, podemos afi rmar que a famlia sempre esteve presente em todos ou em quase todos.

    O Servio Social, enquanto profi sso contempornea, no pode ter uma viso de famlia carregada de limitaes. Ou ento modelo de famlia nuclear ideologizado (idem, 2007).

    necessrio observar que os trabalhos com famlias so carrega-dos de individualizaes de cada usurio do Servio Social, voltados ao que se denominava de reatualizao do conservadorismo, con-forme citamos no incio deste captulo. Existe por trs dessa forma de trabalho a perspectiva de equilbrio e funcionalidade do sistema (idem, 2007), em que o atendimento fragmentado, deixando de considerar a famlia enquanto totalidade.

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    Ao superar a forma de referncia de famlia como somente o modelo nuclear, o Servio Social pode ter uma viso ampliada da famlia que trabalhar. A abrangncia do conceito de famlia permite a compreenso das vrias confi guraes que existem na sociedade.

    Podemos afi rmar que, ao compreender a famlia como ela , o Servio Social atua com ela em suas diversifi cadas confi guraes, que esto intimamente relacionadas com a conjuntura social, cultural e poltica existentes. A famlia, nesse contexto, pode ser cobrada por seus padres de comportamento e desempenho, e o trabalho com famlias deve ser pautado no compromisso tico-poltico, possibili-tando a estas a viabilizao do acesso a seus direitos.

    Vale ressaltar que a maioria das famlias que so atendidas pelo Servio Social se encontra em precrias condies socioeconmicas, sendo totalmente excludas do acesso aos bens e servios. Muitas dessas famlias no possuem sequer o acesso informao sobre seus direitos e, nesse aspecto, o Servio Social possui um papel de extrema importncia: informar aos usurios de seus servios sobre quais as possibilidades que os mesmos possuem de insero nos programas sociais e quais as polticas pblicas que existem para a populao atendida.

    Segundo Jos Filho (2007, p.150, destaque do autor),

    a famlia tem que ser entendida enquanto uma unidade em movimen-to, sendo constituda por um grupo de pessoas que, independente de seu tipo de organizao e de possuir ou no laos consanguneos, busca atender:

    s necessidades afetivo-emocionais de seus integrantes, atravs do estabelecimento de vnculos afetivos, amor, afeto, aceitao, sentimento de pertena, solidariedade, apego e outros;

    s necessidades de subsistncia-alimentao, proteo (habitao, vesturio, segurana, sade, recreao, apoio econmico);

    s necessidades de participao social, frequentar centros recrea-tivos, escolas, igrejas, associaes, locais de trabalho, movimento, clubes (de mes, de futebol e outros).

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    Concordamos com o autor no sentido de priorizar o acesso da famlia a suas necessidades afetivo-emocionais, de subsistncia-alimentao e de participao social, pois dessa maneira, poderemos obter a concepo da famlia enquanto totalidade, e no somen-te parcialmente em suas necessidades fragmentadas. Atuarmos nessa concepo permite avanarmos nas questes referentes s famlias.

    Os projetos de atendimentos s famlias precisam compreender a famlia enquanto grupo social, que possui caractersticas contradi-trias e dinamicidade incomparvel. Assim, as pessoas que passam pela famlia no so eternas, podem ser variveis, de acordo com sua prpria individualidade, mas no perdendo a caracterstica da coletividade.

    Nessa perspectiva, o Servio Social constri sua identidade no tra-balho com famlias (Jos Filho, 2007). Essa identidade construda na prpria ao profi ssional, em que este, conhecendo a realidade, se apropria dela e pode legitimar sua identidade profi ssional.

    No podemos negar a importncia dos fatores sociais, culturais e polticos existentes na sociedade, pois estes so essenciais, ao per-mitirem que os indivduos compartilhem suas experincias de vidas e ofeream oportunidades de relaes sociais coletivas.

    Ao trabalharmos com famlias, importante refl etirmos sobre aspectos que fazem parte do cotidiano da vida das pessoas que esta-mos atendendo e tambm pensarmos na incluso de alguns fatores que esto distantes das famlias atendidas pelo Servio Social, tais como o lazer, a cultura, a educao, a capacitao profi ssional, o di-reito sade, alimentao e habitao de qualidade. Nesse sentido, estaremos superando alguns desafi os presentes em nosso cotidiano profi ssional.

    Precisamos pensar na conquista da autonomia familiar aos usu-rios do Servio Social, ou mesmo na emancipao desses usurios. Sabemos que os enfoques assistencialistas e paternalistas j esto ultrapassados, pois na atualidade o que devemos primar a luta pelo fortalecimento das famlias, para que estas possam trilhar seus caminhos com segurana, conquistando seus direitos sociais.

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    Existem diversas metodologias de trabalhos com famlias, con-forme a rea especfi ca de atuao. Geralmente, h uma aproximao inicial dessas famlias, por meio de atendimentos emergenciais, como o que ocorre no Planto Social, espao no qual as famlias chegam para atendimentos de necessidades imediatas e eventuais. H tambm o trabalho de orientao sistemtica, como os servios na rea psicossociojurdica, sade e de assistncia social geral, que so caracterizados pela escuta, refl exo conjunta com os usurios, orientaes e prestao de informaes, apoio populao em suas necessidades.

    Diante da realidade apresentada, conforme a demanda que o solicita, o profi ssional de Servio Social faz seu planejamento da ao profi ssional, buscando, em seu cotidiano, atender a seu compromisso profi ssional institucional, assim como a seu compromisso profi ssional com a populao usuria.

    Segundo Jos Filho (2007, p.152, destaque do autor),

    Todo processo de orientao continuada envolve articulao com servios que variam de acordo com a necessidade principal (sade, habitao, cultura, educao...). A orientao tem sempre um com-ponente psicossocial (espao de escuta, construo de identidade e autoestima) e um componente de educao popular e integrao nas lutas coletivas/comunitrias.

    A continuidade de orientaes no trabalho do Servio Social com famlias algo extremamente importante, pois nesse espao sero construdos os vnculos profi ssionais com estas famlias, as possi-bilidades de transformaes no coletivo das famlias, as estratgias especfi cas de aes e das lutas comuns entre a populao usuria. As possibilidades de crescimento familiar em espaos coletivos e em trabalhos que tm uma continuidade so nicas, pois sem o acompanhamento familiar, pode ser que aes imediatas se percam no caminho.

    Passar do atendimento das necessidades individuais para as familiares no tarefa simples e imediata. necessrio pensarmos

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    sobre nossas prprias concepes de famlia, de homem e de mundo, de necessidades sociofamiliares.

    Diante dessa nova realidade na qual estamos inseridos, preciso que construamos um trabalho com famlias capaz de atender s ne-cessidades da realidade atual na qual esse trabalho se desenvolver. Tambm necessrio realizar refl exo acerca dos modelos nos quais esse trabalho desenvolvido, buscando sempre a emancipao dessas famlias rumo cidadania.

    A ao profi ssional do assistente social pode ser confi gurada como prtica social, partindo do pressuposto de que, atualmente, essa ao deve estar pautada no projeto tico poltico profi ssional.

    Diante de todo o processo histrico da profi sso, o assistente social veio construindo um caminho rumo ruptura com o con-servadorismo, rumo a construo de um projeto profi ssional que buscasse o resgate da liberdade como valor tico central, em um compromisso com a autonomia, emancipao e plena expanso dos indivduos sociais.

    Esse projeto est vinculado a um projeto societrio que prope a construo de nova ordem social, na qual no poder existir a ex-plorao de classe, gnero ou etnia.

    Conforme Netto (1999, p.105),

    A partir destas escolhas que o fundam, tal projeto afi rma a de-fesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbtrio e dos preconceitos, contemplando positivamente o pluralismo tanto na sociedade como no exerccio profi ssional.

    Por meio de nossa atuao enquanto prtica social, ser possvel atender s necessidades das famlias com as quais atuamos, em uma perspectiva de conceber a famlia enquanto sujeito histrico, e que deve ser pensada em sua totalidade.

    Ao nos posicionarmos a favor de uma ao que busque o aten-dimento das necessidades das famlias em sua totalidade, podemos afi rmar que estamos trabalhando em perspectiva da universalizao do acesso aos bens e servios relativos aos programas e polticas

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    sociais (Netto, 1998). Diante desse acesso, podemos verificar a consolidao da cidadania, aspecto fundamental para a garantia dos direitos da classe trabalhadora.

    Buscar o trabalho com as famlias na perspectiva de totalidade signifi ca consider-la como sujeito histrico e, assim sendo, vivenciar as manifestaes da questo social no cotidiano de suas vidas. Ten-tar atuar com famlias nessa perspectiva , sobretudo, no fi carmos presos s questes iniciais que chegam ao Servio Social por meio das prprias famlias, mas buscarmos ir alm do aparente que est posto, adentrando na essncia existente por trs de uma solicitao, e todas as questes que essa famlia, em seu contexto, vivencia (desemprego estrutural, violncia, fragmentao de polticas pblicas, escassez de recursos sociais, precarizao do servio de sade e de educao).

    O que podemos perceber que denomina-se trabalho com famlias o que, na verdade, um trabalho com representantes de famlias. Esse fato comum aos servios de assistncia social. H uma apresentao dos trabalhos como se fossem executados com famlias, grupos, quando, na verdade, nesses contextos esto presentes usurios que representam uma famlia. Isso no signifi ca, porm, que com esses representantes de famlias no seja possvel trabalhar dentro da perspectiva de totalidade. possvel, ainda que no seja o ideal na meta do coletivo, trabalhar com representantes de famlias em uma perspectiva de totalidade. A difi culdade est no que diz respeito aos recursos necessrios para desenvolver tais trabalhos.

    No que se refere universalizao do acesso aos bens e servios relativos aos programas sociais, o assistente social atua na contra-dio das instituies j concebidas como aparelhos ideolgicos do Estado, por Althusser (1998) as quais no possuem, em sua maioria, capacidade de atendimento para toda a demanda existente e para a populao que necessita de seu atendimento, cujas etapas da existncia j esto marcadas pelas inmeras vezes que no conseguiu acesso a seus direitos. Diante dessa duplicidade de realidade, o as-sistente social pode estar caminhando no sentido contrrio da ordem burguesa, tentando, por todos os meios existentes, conseguir o acesso de determinada populao aos bens e servios.

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    Ainda em suas refl exes, Netto (1999, p.105) traz como afi rmao que a dimenso poltica do projeto claramente enunciada: ele se posiciona a favor da equidade e da justia social. Ao posicionar-se a favor da universalizao dos direitos, adere justia social, aparen-temente to distante de nossa realidade.

    Se houvesse a equidade, com certeza, a justia social estaria esta-belecida e as famlias estariam vivenciando sua cidadania plena. realmente necessrio lutar pela conquista da cidadania, diante do fato de que ela inexiste plenamente em nossa realidade, pois se existisse, por si s estaria garantida.

    Ao discutir a ao profi ssional, o projeto tico-poltico do Servio Social traz em sua estrutura bsica, conforme Netto (1999, p.105):

    Do ponto de vista estritamente profi ssional o projeto implica o compromisso com a competncia, que s pode ter como base o aprimoramento intelectual do assistente social. Da a nfase numa formao acadmica qualifi cada, alicerada em concepes terico-metodolgicas crticas e slidas, capazes de viabilizar uma anlise concreta da realidade social formao que deve abrir o passo preocupao com a (auto) formao permanente e estimular uma constante postura investigativa.

    Independentemente do modelo de famlia com o qual o profi ssio-nal ir atuar, assim como a rea na qual o profi ssional estar inserido, conforme prev nosso projeto tico-poltico, o importante que o profi ssional tenha um compromisso real com a competncia. Para atingi-la, o assistente social necessita de uma formao continuada, que o leve a ter uma viso ampliada da realidade social e a propor aes slidas, crticas, com base na fundamentao terica e me-todolgica que poder ser adquirida em um processo de formao constante e uma postura investigativa.

    Ao adquirir postura investigativa, h compromisso selado com a populao usuria. A partir do momento em que o profi ssional toma posse de seu saber, ele no pode fi car estagnado diante das injustias sociais que permeiam a vida de seus usurios. Nosso

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    maior compromisso est em tentar garantir por meio dos recursos (escassos) existentes na sociedade, o acesso da populao usuria ao atendimento de suas necessidades.

    Em tempos neoliberais, deparamo-nos, em nosso cotidiano de trabalho, com famlias que no possuem as mnimas condies de sobrevivncia . Diante dessa realidade, podemos afi rmar que apesar de difcil, a instalao do projeto no impossvel, justamente por tentar aprofundar no debate contrrio poltica neoliberal, por tentar oferecer populao usuria, aquilo que lhes negado no cotidiano de suas vidas.

    Por se confi gurar uma prtica social, a ao profi ssional do Servio Social deve estar embasada em uma viso de homem e de mundo, sendo que para cumprir seus papis reais, cujos rebatimentos recaem sobre a sociedade, deve estar articulada s demais prticas que bus-cam a mesma direo. Precisamos ter conscincia daquilo que nossa prtica traz de efeitos para a sociedade. necessrio que tenhamos a clara concepo de nossa ao profi ssional, que no e nem pode ser neutra (Carvalho, 2000b).

    A realidade que diante das mudanas contemporneas, ao profi ssional de Servio Social exige-se uma nova postura, em uma sociedade marcada pelas profundas e constantes transformaes sociais, que rebatem diretamente no trabalho com famlias.

    A famlia realmente sofreu transformaes tanto em sua confi gu-rao quanto em suas relaes e o assistente social que estagnou sua viso de famlia mediante sua formao e seu exerccio profi ssional e no mais buscou a formao continuada pode no conseguir atuar de acordo com as proposies contidas no projeto tico-poltico do Servio Social.

    Concebermos a famlia por um nico modelo, sem o qual essa famlia encontra-se desestruturada ou desorganizada, pode ser fruto de uma viso fechada de famlia. Ampliar horizontes um de-safi o contemporneo ao Servio Social, como bem afi rma Iamamoto (2006, p.17):

    O momento em que vivemos um momento pleno de desafi os. Mais do que nunca preciso ter coragem, preciso ter esperanas

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    para enfrentar o presente. preciso resistir e sonhar. necessrio alimentar os sonhos e concretiz-los dia a dia no horizonte de novos tempos mais humanos, mais justos, mais solidrios.

    Se realmente sonhamos com uma sociedade diferenciada, na qual exista a justia social, a garantia de direitos, precisamos iniciar nossa ao profi ssional de maneira concretamente diferenciada. Como poeticamente afi rma Iamamoto, na refl exo acima, os sonhos devem ser alimentados e concretizados no dia a dia, ou seja, no cotidiano da ao profi ssional. na prpria ao profi ssional que o assistente social exercer a ampliao de seu horizonte, na efetivao de novos tempos mais justos e humanos. , portanto, diante daquela famlia que o assistente social estar atendendo, que os sonhos e ideais pro-fi ssionais podero ser concretizados. O reconhecimento da populao usuria do Servio Social que dar legitimidade ao profi ssional.

    O que ocorre no cotidiano de trabalho do assistente social o crescimento da demanda por servios sociais, assim como existe um processo crescente da seletividade com relao s polticas sociais. H a diminuio dos recursos pblicos e, concomitantemente, uma diminuio dos salrios. A populao tem cada vez menos acesso aos direitos sociais.

    Ainda, segundo Iamamoto (2006, p.19),

    Pensar o Servio Social na contemporaneidade requer os olhos abertos para o mundo contemporneo para decifr-lo e participar da sua recriao. [...]. esse o sentido da crtica: tirar as fantasias que encobrem os grilhes para que se possa livrar deles, libertando os elos que aprisionam o pleno desenvolvimento dos indivduos sociais.

    O olhar crtico ao profissional de Servio Social deve sempre existir. preciso que o profi ssional, por meio de suas concepes, possa decifrar o mundo real, possa constru-lo e reconstru-lo. Olhar para a realidade sem fantasias, tal como ela . Qual a famlia que o Servio Social atua? Como realmente ela ? Quais as suas reais necessidades? O que pensa essa famlia?

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    Acreditamos que o ponto de partida para o trabalho com famlias o conhecimento da realidade, sem mscaras, descortinada. Por intermdio da realidade, pode-se construir uma ao rumo ao pleno desenvolvimento dos indivduos.

    Como j afi rmamos anteriormente, a famlia, independentemente de sua forma ou confi gurao, pode ser um local para a construo da identidade pessoal e social. J a ao profi ssional, pode propiciar aos membros dessa famlia a construo dos indivduos sociais.

    A perspectiva coletiva de ao e no somente o pensar em uma ao individualizada, na qual so desconsiderados aspectos impor-tantes da famlia enquanto totalidade extremamente importante para o aprofundamento da ao do Servio Social com famlias, em uma perspectiva crtica, como bem traa nosso projeto tico-poltico.

    O assistente social com esse olhar ampliado e diferenciado pode propor novas formas de ao para o atendimento da demanda, as-sim como pode realizar diferentes maneiras de abordagens com as famlias atendidas, para que estas possam, efetivamente, ser sujeitos de suas prprias histrias.

    No podemos fi car parados e alheios s mudanas contempor-neas. preciso resistir aos apelos advindos do capital, do pensamento neoliberal, e lutar rumo a uma sociedade diferenciada, na qual nossos usurios possam ter acesso real aos direitos sociais, que so materia-lizados em forma de polticas pblicas.

    Nesse sentido, o profi ssional que atua com famlia no deve jamais perder a esperana da construo de um mundo melhor, de um local onde as famlias tenham ao menos acesso educao, habitao, alimentao, aos vesturios, ao lazer e cultura.