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FALA DAS CORES

Cláudia Gersen Alvarenga

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Cláudia Gersen Alvarenga

Fala das Cores

Belo HorizonteInstituto René Rachou - FIOCRUZ

2019

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Este lvro foi produzido com financiamento do Edital 2018 de Divulgação Científica no campo da saúde da Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação (VPEIC) da Fiocruz.

Catalogação-na-fonte

Rede de Bibliotecas da FIOCRUZ

Biblioteca do IRR

CRB/6 1975

Revisão: Felipe Magalhães

Ilustrações: Gabriel Assis

Diagramação: Gabriel Assis, Lucas Barbi

Impressão e Encadernação: Artes Gráficas Formato

Tiragem: 400 exemplares

A473f 2019 Alvarenga, Cláudia Gersen.

Fala das Cores / Cláudia Gersen Alvarenga – Belo Horizonte: Instituto René Rachou, 2019.

110 p il.: 210 x 148mm.

ISBN: 978-85-99016-38-1

1. Educação em Saúde 2. Materiais Educativos e de Divulgação 3. Áreas de Pobreza 4. Vulnerabilidade Social. I. Alvarenga, Cláudia Gersen. II. Título

CDD – 22. ed. – 361.25

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“Ouvir e valorizar a favela, um caminho para reduzir a desigualdade no Brasil”.

Raull Santiago

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PREFÁCIO

Fala das Cores mostra a luta e a esperança na vida de mulhe-res, homens, jovens e idosos. São relatos contados pela auto-ra, a partir de sua experiência em um projeto que se propu-nha, inicialmente, a trabalhar com jovens de comunidades de Belo Horizonte, mas que se expandiu, envolvendo outras pessoas, amigos e parentes, que se interessaram pela iniciati-va. Nas histórias desses personagens, narradas através da voz própria da autora, vários elementos nos fazem pensar sobre preocupações e desejos comuns, como criar os/as filhos/as, conciliar a rotina doméstica com o trabalho, apaixonar-se, aspirar a uma profissão. Em alguns relatos, são cores vivas que colorem o texto, noutros são tons esmaecidos, vozes que expõem solidões, opressões cotidianas, ausências de amigos e familiares que pesam as vivências. Com leveza, a autora apresenta ao leitor os personagens, que narram suas experi-ências e nos levam por seus caminhos. Relatos que revelam resignação e conformidade, estados que ao mesmo tempo são consequências e conformidades quanto às desigualdades sociais que estruturam nossa sociedade. Tais histórias provo-cam desconforto no/a leitor/a, incômodo necessário para se pensar em um projeto de sociedade mais justo e atento às diferenças, de forma a não (re)produzir desigualdades e violências. Esse é o convite que Fala da Cores nos incita, um texto, de certa forma, impertinente nas linhas e entrelinhas.

Paula Dias Bevilacqua Instituto René Rachou | Fiocruz Minas

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AUTORA

Cláudia é bióloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e servidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde atua desde 1989. Iniciou suas atividades no Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) trabalhando com vetores da Leishmaniose. No ano 2000, atuou na Secretaria de Saúde de Araxá, onde coordenou o Centro de Testagem e Aconselhamento em DST/HIV-aids e hepatites e iniciou o trabalho de prevenção em HIV-aids com adolescentes, criando o projeto Adolescente Seguro nas escolas. Posteriormente, já no Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) da mesma cidade, desenvolveu o Projeteen, que aborda a sexua-lidade em sala de aula. Em 2009 retornou ao Instituto René Rachou, local em que concluiu seu projeto de mestrado, investigando a prevenção de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e gravidez por preservativo feminino. Nos anos de 2016 e 2017 desenvolveu a pesquisa sobre a construção de projeto de vida com adolescentes de uma comunidade na região oeste de Belo Horizonte, que inspirou a redação desse livro. Finalmente, em 2018, teve sua proposta de projeto de divulgação científica com o tema “violência” aprovada no edital da Vice-Presidência de Ensino, Informação e Comuni-cação da Fiocruz.

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APRESENTAÇÃO

O livro Fala das cores reúne histórias de vida de residentes de três favelas das regiões norte e oeste de Belo Horizonte e foi construído a partir de entrevistas com pessoas sensibilizadas pela proposta do livro. Fala das cores dá voz às pessoas que estão dentro das favelas, mulheres, homens, jovens, adoles-centes que, com confiança, compartilharam suas alegrias, dores e sonhos. Com muito respeito foram ouvidas e com muita responsabilidade serão exteriorizadas as vivências desses indivíduos. Com o cuidado de preservar a identidade de meninas e meninos, mulheres e homens, foi solicitado a cada um dos participantes que escolhesse um codinome para o personagem do seu relato. Esta pesquisa, desenvolvida em 2016 e 2017, se baseou na iniciativa “Educação em saúde para a construção de projetos de vida entre adolescentes”, cujo grupo de interesse estava na faixa etária de 10 a 14 anos. A criação de um projeto de vida pode servir como orienta-ção para que adolescentes descubram suas potencialidades e limitações. Quanto mais o indivíduo se conhece, experi-menta suas competências e descobre aquilo que sente prazer em fazer, maior será sua capacidade de elaborar seu projeto de futuro. Além disso, quanto mais ele conhece a realida-de em que vive, compreende o funcionamento da sociedade, com suas políticas de inclusão e exclusão, e tem consciência da sua grandeza de possibilidades, maiores serão as chan-ces de construir e de realizar seu projeto. Durante a convi-vência entre autora e participantes, na realização das ativida-des da pesquisa, o vínculo foi sendo formado e o afeto fez parte dos encontros. Essa relação revelou seres em formação com histórias riquíssimas, mostrando faltas e carências que acabam impactando a vida de todos e todas, uma vez que difi-

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cultam o acesso de cidadãos aos serviços a que têm direito, como saúde, educação, trabalho, lazer e cultura. Esse cenário configura uma forma de violência que impede a construção e a caminhada desses indivíduos rumo ao futuro com quali-dade de vida. Em 2018 a proposta de escrever as histórias de vida dessas pessoas, relatando essa violência, foi aprovada no edital da Fiocruz. As instituições participantes, presentes nas comunidades, foram contatadas e deram o aceite para a pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Fiocruz. A princípio apenas os alunos e alunas foram convidados a participar, no entanto, durante o desenvolvimento do estudo, outras pessoas foram se identificando com a ideia do livro e manifestaram inte-resse em participar também. Nas entrevistas, foram ouvidos meninos e meninas, que contaram sobre seus relacionamen-tos com a família, amigos e parentes, sobre como eram suas casas, muitas vezes construídas no quintal dos avós, onde moravam junto os tios, as tias, os primos e as primas, sobre a ausência que sentiam, geralmente do pai. Diziam, também, da angústia com o desemprego e a fome. Apresentaram casos de evasão escolar, em que uns, por não saberem ler nem escrever, sentiam-se desmotivados para frequentar as aulas, outros abandonavam os estudos porque precisavam conse-guir dinheiro para ajudar em casa, muitas vezes exercendo trabalho infantil ou sendo aliciados pelo tráfico.

Adolescentes escondendo os cortes no braço na tentativa de abafar o bullying, a dor da negligência e da solidão. A gravidez anunciada por mulheres com pouca ou muita idade, todas sem ter se preparado para ela. A abordagem policial injusta e amedrontadora. O medo da bala perdida. O sonho de ser bombeiro, jogador de futebol, modelo, médica e advo-gada. As crianças sonhando com o futuro e, enquanto isso,

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brincam nos espaços possíveis, já que parque, praça, quadra e área verde não são visíveis. Estes são relatos com os quais nos deparamos. Mas o morro não tem só violência. Na favela tem vida, tem pessoas esperançosas, lutadoras, que querem mudar as regras. A comunidade abriga também empreen-dedores, exemplos de transformação da favela e do futuro de seus moradores. Essas questões precisam ser mostradas e discutidas com toda a sociedade, na tentativa de romper com a ótica preconceituosa de que a violência é um atributo dos pobres. Moradores das favelas, mesmo ignorados por muitos, demonstram ao longo da história o potencial produtivo e criativo, a efervescência cultural, a força do trabalho e a resi-liência. É preciso desconstruir os estigmas que o imaginário popular carrega sobre esses espaços para que as barreiras que separam morro e asfalto sejam reduzidas, objetivo propos-to neste livro. É preciso insistir na juventude, pensando em alternativas para combater a vulnerabilidade social, e discu-tir, junto àqueles que elaboram as políticas públicas, sobre o papel das políticas sociais na construção de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária.

Cláudia Gersen Alvarenga Contato: [email protected] / [email protected]

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AGRADECIMENTOS

Este livro foi construído a muitas mãos.Agradeço

Aos meninos e às meninas, aos homens e às mulheres que tão abertamente falaram de suas vidas, problemas e esperan-ças, sem os quais esse trabalho teria sido impossível.

À Beth Ivo, psicóloga que esteve sempre junto, se dispondo a contribuir para que as entrevistas acontecessem.

À Liz Vitor, psicóloga que generosamente possibilitou a realiza-ção das entrevistas em sua unidade. À Janete Evangelista pela confiança, parceria e incentivo para desenvolver a pesquisa.

Ao Lucas Barbi pelas transcrições das entrevistas e pelo suporte durante toda a trajetória.

À Andréa Gersen pela revisão nas histórias e apoio constante.

Ao Gustavo Alvarenga pelas ricas discussões e sensatas opini-ões.

Ao Gabriel Assis por compartilhar seu talento, traduzindo a essência das histórias na arte do livro.

À Paloma Coelho e Fernanda Rezende pela preciosa cola-boração no texto final.

À Thephi Santos por motivar pessoas para as entrevistas.

Às instituições e suas equipes que apoiaram a realização da pesquisa auxiliando no estudo.

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Às colegas do Serviço de Apoio a Projetos da Fiocruz pelo suporte na coordenação do orçamento, nas compras e na contratação de serviços.

À Nuzia Santos pelo suporte catalográfico.

À Aline Sodré, por estar sempre disposta a atender e resolver qualquer demanda.

Ao Instituto René Rachou pelo suporte da estrutura física e amparo à pesquisa.

À Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunica-ção da Fiocruz por ter assegurado os recursos financeiros que permitiram a elaboração deste trabalho.

Aos meus filhos, à minha mãe, aos meus irmãos e aos meus amigos por acreditarem no meu projeto.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram com informações e apoio necessários para a construção deste livro

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INSPIRAÇÃO

O sol nasceu para todos (Alan Mano K., 2018). Curta-me-tragem em que os personagens apresentam uma comunida-de confiante, sem deixar de mostrar suas dificuldades, mas, especialmente, revelam que as periferias não podem ser vistas apenas como o lugar da transgressão, mas como lugar de resistência, solidariedade e preservação cultural.

Quarto de despejo: Diário de uma favelada é um livro de 1960 escrito por Carolina Maria de Jesus. “O Brasil preci-sa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome, personagem fantasma que assombra. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças.”

Cafarnaum (Nadine Labaki, 2018). Filme interpetado por Zain (Zain Al Rafeea), um garoto de doze anos, o verda-deiro adulto da casa, que trabalha e se submete a situações degradantes para sustentar seus irmãos e seus pais negligen-tes. Vítima de uma sociedade injusta, vive uma vida de misé-ria e de exploração, que ele não escolheu viver, de um Estado que não ampara seus habitantes.

Banho de sol (Talita Braga, 2018). Ao longo de um ano, quatro professoras de teatro ocuparam um complexo peni-tenciário feminino durante as duas horas do banho de sol. Esta obra é sobre este encontro. Expõe a humanidade de todas as mulheres em situação de cárcere, com o propósito de fazer a sociedade lembrar que atrás de muros que encarce-ram existem mulheres com histórias diversas e que na maio-ria das vezes o que esta condição esconde é a falta de opor-tunidades na vida. “A arte como possibilidade de liberdade.”

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Baronesa (Juliana Antunes, 2017). Filme que evidencia a violên-cia das marcas. No espaço domiciliar mulheres passivas, à espera dos personagens masculinos ausentes daquela comu-nidade, cujos destinos dos homens é a prisão ou a morte prematura.

No coração do mundo (Gabriel Martins, 2019). Filme que mostra gente que luta diariamente contra os ditames de um mundo perverso e da estrutura social que separa e dá status e poder àqueles com sucesso financeiro. A criminalidade se apresenta como possibilidade de solução dos problemas e concretização dos sonhos num mundo sem oportunidades.

Wikifavelas Dicionário de Favelas Marielle Franco (2019). Plataforma virtual de acesso público para a coleção e produ-ção de conhecimentos sobre favelas, de forma aberta. Visa estimular e permitir a coleta e construção coletiva do conhe-cimento existente sobre as favelas, por meio da articulação de uma rede de parceiros que já se dedicam a este tema, tanto nas academias quanto nas instituições produtoras de conhe-cimentos existentes nas próprias favelas. Serve como facili-tador para o resgate da memória e das identidades coletivas dos moradores das favelas como parte do compromisso com a expansão da cidadania e do direito à cidade. “Quem nos transforma em bandidos é o meu estado, é o seu estado. A favela dentro da cidade. A favela é a cidade”(Sônia Fleury).

Dicionário Feminino da Infâmia – Acolhimento e Diag-nóstico de Mulheres em Situação de Violência (Elizabeth Fleury e Stela Meneghel, 2015) obra de referência que intro-duz normas e procedimentos no atendimento a mulheres em situação de violência e coloca em discussão importantes noções sobre conceitos de liberdade, direitos humanos, justi-ça, aspectos da educação masculina que levam à prática da violência e outros temas.

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Alfredo tinha onze anos e como toda criança gostava de brincar. Perto de sua casa tinham poucas praças, mas mesmo as pequenas serviam para o encontro com os amigos. Eles sentavam no meio-fio, conversavam, riam e de repente um gritava – “vamos brincar de escon-de-esconde?” E saíam todos correndo e sorrindo. Gostava também de jogar futebol na quadra de areia. Ele tinha um bom domínio de bola, e no time só tinha gente boa. No dia marcado para jogar, Alfredo caminhou até a quadra e estra-nhou um homem entrando e colocando um cavalo lá dentro. Ficou sem entender o que o animal fazia ali, na areia, se o bicho come mesmo é capim. Alfredo e os amigos, que esta-vam lá pra jogar bola, viram o cavalo na quadra e voltou cada um para sua casa chateado. Num domingo eles tiveram sorte, o sol estava quente e a quadra liberada pra garotada. Joga-ram a manhã inteira, e depois do placar de 5 x 3, Alfredo, cansado e com fome, foi pra casa. Sua mãe, muito cuidado-sa, mandou que ele tomasse banho. Alfredo tentou enrolar um pouco, mas sentiu uma coceira insuportável nas pernas e resolveu se lavar. A irritação foi séria, teve até que ir ao postinho de Saúde. O médico falou que era alergia. Lembrou logo do cavalo na quadra de futebol, e depois disso sua mãe proibiu ele de entrar lá. Voltando pra casa ele foi direto para o quarto, deitou na sua cama e ficou sentindo um aperto no

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peito. Toda vez que ia no postinho ou no hospital vinha na sua cabeça a imagem do seu tio doente. Teve um dia que seu tio começou a sentir uma dor forte na perna. Nada fazia ela passar. Não queria ir pro hospital, mas não teve jeito, foi levado à força. Ficou internado por uns dias e morreu. Como foi triste saber que nunca mais veria o seu tio, nem ouviria sua voz grossa contando piadas. Da outra vez foi seu avô, que andava com dificuldades porque tinha um problema no quadril. Aí ele estava mexendo num caminhão, e caiu uma peça grande em cima da perna dele. Precisou ir pro hospital também. Alfredo ficou preocupado. O avô ficou internado e tiveram que entubar. Logo depois ele morreu. Mais um dia triste. Com vontade de ficar sozinho, Alfredo resolveu passar o dia todo no quarto. Sua irmã abriu a porta de uma só vez, pulou na sua cama e perguntou se o gato comeu a língua dele. Ele foi pego de surpresa e no susto empurrou a irmã que caiu da cama. A danada saiu chorando e falando que ele tinha batido nela. O pai veio rápido, apareceu na porta e nem quis saber o que tinha acontecido – zap! Bateu em Alfredo com aquela mão enorme e pesada. Alfredo chorou, e foi tão bom porque pareceu que limpou o que sentia lá dentro.

Neste dia tinha aula de dança, e ele até animou a ir lá. Como era bom dançar! Só podia fazer a aula porque estudava na escola do bairro. Começou com balé e depois mudou para danças urbanas, uma vez na semana, começava às sete da noite e acabava às oito. Muito legal, mas só que com o proble-ma que tem agora no Morro, com o toque de recolher, acaba-va às sete e quarenta e cinco. Faz aula de percussão também, aos sábados, bom porque é de graça. Domingo Alfredo visi-ta a sua avó que mora lá no alto. A outra avó, a materna, é sua vizinha e ele vê todo dia. É ela que esquenta a comida o dia que seu pai não está em casa. Ele trabalha dia sim e dia não, e a mãe sai pro trabalho à tardinha e só volta de madru-gada. Ela trabalha numa fábrica. Mas não pense que a vida

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é fácil, não. A mãe deixa uma lista de tarefas para ele e a irmã fazerem. A louça do jantar quem lava é eles. Alfredo se distrai brincando com água e a espuma de sabão. Outro dia, varrendo a casa a pedido da mãe, Alfredo achou uma moeda. Pensou logo em colocar no cofre. Estava juntando dinheiro pra comprar uma bola nova. Pediu pra mãe o dinheiro, e ela olhou pra ele com um sorriso e disse – “pode ficar com ela”.

O menino tem muitos amigos, cada um de um canto: da escola, da dança, da percussão, da casa que tinha na comuni-dade pra crianças ficarem enquanto não estavam na escola. Só que os amigos eram espalhados, não se conheciam nem se visitavam. Até os amigos que moravam do lado da sua casa se falavam de cima da laje. As lajes eram vizinhas, mesma altu-ra, ficava fácil conversar, mas só trocavam um oi. Alfredo, pra fugir do calor, subia lá de vez em quando. Era bom ver o morro dali de cima. O pôr do sol, a Lua.

Alfredo era bom aluno, mas tinha dificuldades em algumas matérias, e sua mãe pagava sua prima pra dar aula particular pra ele não ficar muito atrasado na turma. Ela era professo-ra, só que depois que teve uma filha ela parou pra cuidar da menina que tem três anos, não trabalha mais não, só o mari-do trabalha. Ela ensinava bem, era boa professora, e Alfre-do se saiu bem nas provas. Um dia, voltando da escola, sua mãe perguntou por que ele estava de bico. Ele pensou se contava ou não contava, e acabou contando: “os meninos na escola ficam me zoando, falando que eu tenho mão gran-de e pé grande. Que sou esquisito”. O pai chegou perto e quis saber detalhes, e na semana seguinte pai e mãe foram na escola conversar lá pra eles resolverem isso, porque não esta-va certo. E a zoeira parou. Foi bom. Na escola Alfredo soube que o pai de um amigo foi preso. Nossa, ele ficou assustado. Queria consolar o amigo e não dava conta. Quando criou

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coragem pra perguntar como o pai estava, o menino disse que ele tinha ido pra Bahia. Só isso, foi pra longe. Será que nunca mais ele veria o próprio pai?

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BiAncA tinha dez anos, morava com a mãe e uma irmã mais velha que devia ter o dobro da sua idade. Quanto ao pai, ela conhecia, mas não conviviam. Sua mãe trabalhava fora e a irmã tinha um emprego que não pagava muito bem, o que era motivo de muita reclamação. Ela traba-lhava oito horas por dia, às vezes mais, e não recebia nem o salário mínimo. Bianca era vaidosa, gostava de se olhar no espelho, se arrumar e fazer as unhas que eram enormes e coloridas. Quando não estava estudando, ficava em casa mexendo no celular, porque sua mãe não gostava que ela ficasse andando sozinha nas ruas. Finais de semana ela e o primo iam para a praça perto da casa e brincavam de corri-da. Esse era o único esporte que fazia. Assistia a filmes de vez em quando, e os preferidos eram os românticos. Viu o da Barbie e amou. Um dia a professora chamou a mãe de Bian-ca pra conversar. A menina estava muito distraída na sala de aula, e uma vez dormiu debruçada sobre a carteira da esco-la. A professora perguntou que horas ela ia pra cama, e pra evitar o sono na aula orientou que o melhor seria se deitar às oito horas da noite, para descansar, porque nessa idade os adolescentes têm muito sono. Bianca acordava fácil e não tinha muito apetite pela manhã, só ia conseguir comer algu-ma coisa no recreio, depois almoçava e à noite jantava. Era magrinha e nem doce engordava Bianca, nem macarrão, nem biscoito, nem pizza, nem Toddy.

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Agora, pra ver Bianca irritada era mandar ela lavar as vasi-lhas que a irmã não lavou. Ela arrumava a casa e a irmã ia lá e bagunçava. Não era justo. Tudo se resolvia quando a mãe chegava em casa e depois de saber dos detalhes da discus-são ela defendia Bianca e brigava com a mais velha. As duas, mãe e caçula, eram muito unidas e até dormiam na mesma cama. Isso porque Bianca de repente começou a ficar arre-dia, com medo de tudo, pra dormir a luz tinha que ficar acesa, ficou sem fome, não queria sair de casa, começou a fazer xixi enquanto dormia. A mãe achou estranho, e a avó, que morava ao lado, preocupada. Conversaram com Bian-ca, observaram a menina mais de perto, descobriram o que estava acontecendo. Um homem da família que frequentava muito a casa, fez “carinhos” inconvenientes, tocou a menina como não deveria. A mãe falou com o avô de Bianca, pessoa que tinha muita autoridade, e o caso foi resolvido. O homem sumiu. Bianca voltou a ser a adolescente que gostava de se cuidar. Uma tarde, chegando da escola, o assunto na fave-la era que um menino foi morto por um policial. Não sabia explicar direito porque ninguém contava pra ela. O menino tinha quinze anos e parece que era inocente, ele estava na rua e aí eles mataram. Bianca não quis ver nada, saiu corren-do e se fechou em casa. Encontrava com os amigos somente na escola, mesmo aqueles que moravam na sua vizinhança, ninguém ia na casa de ninguém. Ela gostava da escola, se dedicava aos estudos porque queria ter condições de comprar uma casa com o dinheiro do seu trabalho. Teve um dia que passou por uns meninos que estavam na frente da cantina e, só porque apareceu uma espinha enorme na ponta do nariz dela, chamaram ela de bruxa. Que raiva! Chegou chorando e falou pra professora, mas não adiantou nada. Só tristeza. E quando tentava não pensar mais no assunto, passou um carro de som na maior altura tocando música funk, que Bian-ca odiava. Ela ficou mais irritada ainda. Queria tanto estar

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jogando peteca numa quadra, se tivesse uma, ou conversan-do com os amigos numa pracinha, melhor ainda se tivesse um parquinho. Outro dia Bianca ouviu sem querer que o pai da sua irmã foi preso por ter batido na sua mãe. Ela não entendeu muito bem a conversa, estavam falando baixinho, mas ficou pensando se o sumiço do pai dela foi pelo mesmo motivo. Bianca tinha uma bela voz e sempre que estava tris-te cantava. Quando estava feliz também. Queria ser cantora.

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BrunA nasceu na comunidade e cresceu no meio da música, tocando, participando dos projetos musi-cais da família. Os mais velhos formaram uma banda, e os instrumentos ficavam lá na casa da avó de Bruna, disponí-veis pra quem quisesse mexer, repinique, tarol, tocavam tudo quanto há. O tio era o dono da banda e morava na casa com sua mãe. No terreiro morava um tanto de gente, os sobri-nhos, os primos, os tios. Eles ficavam brincando, tocando, e o pai de Bruna sambava junto. Tinha cavaquinho, pandeiro, tantam, surdo, teclado, e quando um começava a tocar os outros acompanhavam e faziam a festa. Na fase de adoles-cência Bruna se dedicava aos estudos e não quis mais parti-cipar da banda da família. Nessa época, com quinze anos, queria dançar balé. Ficou sabendo que na igreja que frequen-tava tinha aula de balé clássico. Numa apresentação da dança, Bruna se encantou e pediu aos pais pra comprar a roupa e a sapatilha. Fez algumas aulas e viu que aquilo não cabia nela. Ainda na igreja descobriu o canto. Cantava que era uma beleza. Até chorava, de tão emocionante que era. Firmou pé no canto. Assim se sentia bem. Bruna estudou até concluir o ensino médio, e não tinha o sonho de ir pra faculdade. Trabalhava como secretária e tinha o seu dinheiro. Teve dois namoradinhos que não deram em nada, mas quando se apai-xonou foi de verdade, foi amor. Ela com quase vinte e ele

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completando dezoito anos. Dois meses depois de se conhe-cerem, descobriu que estava grávida, e eles resolveram morar juntos. Os pais de Bruna disseram que eles poderiam morar na casa deles se casassem. E assim fizeram, depois que Bruna perguntou para o noivo se ele tinha certeza do que estava fazendo, se era isso o que ele queria, porque ela era mais velha e ele um menino. Ele concordou e se esforçou. O rapaz deu um duro danado para conseguir emprego, trabalhava dobrado. Nos finais de semana com ajuda de um tio, cons-truíram um quarto, uma sala conjugada com a cozinha, um banheiro e mantiveram a lavanderia que a sogra utilizava em cima da casa dos sogros, na laje. Mudaram-se assim que foi possível, porque estava difícil morar com os pais de Bruna. O bebê recém-nascido chorava de madrugada, e até ela acor-dar, levantar e pegar ele, seu pai, que dormia no quarto ao lado, batia forte na parede pedindo silêncio. Eles não tinham liberdade nem privacidade. O dinheiro que recebiam do salá-rio gastavam com a construção da casa e com comida. Sua mãe preparava a alimentação dela, do marido e do irmão, e Bruna fazia pra ela e pro marido. Para compensar o emprés-timo do quarto, ela fazia a faxina na casa, lavava a louça toda e cansada subia para lavar as roupas.

A vida melhorou um pouco quando passaram a morar na casa deles. Os dois trabalhavam e o filho ficava na creche. Quatro anos depois Bruna engravidou do segundo filho. Como iriam fazer para pagar as contas? Era o que mais preo-cupava Bruna. A criança nasceu e a mãe do bebê ficou com o psicológico abalado. Estava constantemente cansada, encon-trava-se num estresse extremo, tinha que ir trabalhar, cuidar dos dois filhos. A sorte é que no seu trabalho autorizaram levar o bebê, que ficava quietinho no carrinho. Ele acordava, ela dava de mamar, trocava a fralda, e ele dormia de novo. Isso foi durante cinco meses até que passou num concurso público e foi chamada para trabalhar num serviço melhor.

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Bruna estava apreensiva de engravidar novamente, pois as duas vezes foram sem planejamento nenhum. O susto fez Bruna conversar com o marido, e ficou decidido que ele faria a vasectomia. Ele também estudava para passar num concur-so da guarda municipal. Como ele trabalhava o dia inteiro e não tinha como frequentar as aulas no cursinho, resolveu comprar um curso preparatório on-line. Chegava em casa, jantava, ficava com as crianças enquanto Bruna lavava as louças e, depois que todos dormiam, ele estudava. O casal se revezava no cuidado com os filhos e em levar e buscar na escolinha. Mesmo tendo um marido atencioso, Bruna se via sobrecarregada, pois o serviço todo da casa ficava por conta dela, e o pai dos filhos só brincava com as crianças. Bruna gostava de morar ali na comunidade, nunca tiveram proble-ma com a violência, talvez porque não saíam para quase nada. Do trabalho pra casa e da casa pro trabalho. Mas também faziam o possível para respeitar as regras, iam à padaria do território deles, cumprimentavam todos que encontravam e eram pessoas trabalhadoras e fiéis da igreja. Por conhecer muitas pessoas Bruna ficou sabendo, durante uma conver-sa com uma conhecida, de um projeto na comunidade que chamava “Dois toques na bola”. Nunca imaginava que seu filho iria gostar de futebol, porque ele demonstrava interes-se por música, tocava bateria. Quando o menino falou que queria jogar bola ela o matriculou e foi um sucesso, num piscar de olhos estava ele correndo atrás da bola, rindo feliz.

Finais de semana gostavam de sair com os filhos para tomar sol e estar mais em contato com a natureza. Iam à Praça da Assembleia, Parque Municipal e Praça da Saúde. Domingo fechavam com cones a rua perto da comunidade, e o espaço ficava livre pra garotada andar de bicicleta e jogar bola. Num desses dias Bruna encontrou uma vizinha da sua idade rode-ada pelos seis filhos. Percebeu que a mulher olhava pra longe,

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perdida, o que fez Bruna se sentir triste. Lembrou do que sua mãe contou sobre a vizinha, que tinha sido abandonada pelo pai das crianças, criava todos sozinha. Deve ser difícil. Imagina o filho perguntar pelo pai e a mãe não saber o que dizer? Criar seis crianças sem ajuda de ninguém e ainda ter que trabalhar como faxineira pra sobreviver. Bruna disfar-çava, olhava pra ela e só via tristeza, falta de cuidado com ela mesma, cabelo amarrado com um trapo de pano, chine-lo de dedo e aparência até doente. Vai ver não tinha tempo nem disposição para ir ao médico. Bruna se identificou com a mulher pois, apesar de não ter seis filhos, os dela a deixa-vam exaurida, mesmo contando com a ajuda do marido e de vez em quando da sua mãe. Bruna aproximou-se da conhe-cida que estava cabisbaixa, os filhos brincando na frente, e a mãe era um desalento só. Bruna apanhou uma flor no jardim, chegou perto e entregou pra conhecida. Apertou a mão dela, olhou nos olhos e disse: “Cuida de você”.

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cArlos nasceu na época em que a comu-nidade estava sendo formada. Morava com os pais e, por algum motivo que não se recorda, morou uns tempos com a avó, num outro bairro, voltando pra casa com dez anos. Até que gostava de estudar, mas não pôde continuar na escola porque tinha que trabalhar. Estudou até a quarta série. Na época os pais não tinham condição de bancar os filhos, e ele e as duas irmãs tinham que dar um jeito pra se calçar e se vestir. Começou lavando carros, e por ser muito comuni-cativo conquistou os moradores da região e foi conseguindo algumas coisinhas. Quando completou dezoito anos levaram ele para uma empresa metalúrgica, e teve a carteira assinada. Depois saiu e foi fazer serviços gerais em hospitais, traba-lhou como mestre de obra em construção, passou por merce-arias e comércios, lanchonetes, vários lugares. Conheceu a esposa quando tinha vinte anos, namoraram um pouco e casaram. Já fizeram quase quarenta anos juntos. Eles tiveram três filhos, e criaram todos com muita conversa. Percebia que tinha um filho que era diferente do outro e tal, mas ele achava que conversando bastante ficava todo mundo igual, e assim não partia para o lado errado. Carlos repetia o que a mãe falava – “Se alguém te oferecer alguma coisa, se alguém te chamar pra alguma coisa errada você não vai, não. Meni-nos, ó, presta atenção”. Quando Carlos era pequeno, se seu

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pai visse ele na rua ou num lugar que não era bom, já dava um sinal pra ele sair fora, ele entendia e vazava. Acreditava que não podia dar folga pro filho, se desse folga aí eles acha-vam uma brecha e saíam pro lado do crime. Pra morar na comunidade, Carlos aprendeu a se defender e sabia proteger sua família disso tudo também, pois viu muita coisa acon-tecer e tinha experiência de como se livrar daquilo que não achava que era certo.

A esposa trabalhava como diarista, e assim conseguiram construir a segunda casa pra família. A primeira foi no quin-tal da mãe de Carlos, a família era pequena, só ele e a esposa, e nessa época trabalhava em obra, era armador de laje. Quan-do os filhos nasceram, ficou apertado, e juntando o dinheiro do salário e do que recebia das apresentações musicais fez a outra casa onde mora hoje. Carlos adorava música, cantava, tocava e sambava que era uma beleza. O pessoal fazia festas nas esquinas, nas ruas, fazia festas nas casas. Aí ele come-çou a ficar popular, conhecido na comunidade e convida-do para alegrar as festas. Ganhava um trocado que ajuda-va bastante. Aos sessenta anos trabalhava em casa, montou uma pequena empresa e era autônomo. Um amigo que veio do interior era trabalhador, pobre mesmo que nem os cole-gas, com o tempo comprou a empresa que ele trabalhava. O tal colega um dia virou pro Carlos e falou que agora estava podendo, e se Carlos quisesse gravar um CD das músicas que compôs, ele pagaria. Pagou pra fazer, e fizeram treze músicas. O amigo não tocava nem cantava, mas gostava de dançar forró, então era de dentro da música e dava valor. Carlos, quando compunha, pensava nos amigos, nas pessoas que cumprimentava todos os dias e encontrava no bar e nas festas e a história nascia dessa forma, alguém da comunida-de que se fazia diferente, ficava conhecido de todos e vira-va letra de música. Carlos era feliz onde morava, gostava de

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parar e conversar com os amigos, ficar tomando uma bebi-da, encontrar pessoas pra trocar experiências e ficar conhe-cido. Se fosse conhecido era respeitado, ele e sua família e, de uma certa forma, protegidos lá dentro. Não tinha vonta-de de mudar da comunidade porque era um lugar que não prejudicava eles, não tinha envolvimento ruim, a vida era tranquila naquele lugar, podiam andar sem se arriscar de alguém estranhar. Imagina chegar num lugar onde a pessoa não te conhece, a pessoa não sabe a história da sua famí-lia? Carlos conhecia todo mundo na comunidade, viu todo mundo crescendo ali, todo mundo junto, e era bom estar misturado com o povo. Pensava que se um dia fosse mudar seria para o interior, pra ficar tranquilo lá. Agora o que deixa-va Carlos preocupado era com o tanto de conhecido sem emprego, sem estudo. Às vezes a pessoa não estudou não foi porque não quis, não, foi porque foi obrigado a não estudar. Muitos trabalhavam procurando uma forma de sobreviver, nem entrava na mente estudar. Sabia que tinha muita gente que não tinha emprego, porque tinha os que foram dispen-sados, alguns tinham o seguro desemprego, mas na hora que acabava vinha o aperto e não achava outro emprego fácil. Aí podia ver o número de ladrão aumentado. Não é que a pessoa é ladrão, mas tem muita gente que está precisando desapertar, e aí vai e desaperta ué, porque não está achando emprego. Você olha a polícia correndo atrás do ladrão, mas não quer saber o que está acontecendo do outro lado, com quem está correndo na frente. Carlos percebia e ouvia do pessoal da comunidade que eles estavam precisando traba-lhar, de carteira assinada e com todos os direitos garantidos. Ele tinha vontade de terminar os estudos, mas acreditava que teria que estudar uns três, quatro anos para conseguir concluir, e sem emprego não tem nada, aí não consegue e fica tudo embaraçado. Carlos ficou muito tempo sem trabalhar porque ninguém encomendava nada, estava preocupado, a

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esposa trabalhava, eram só os dois, não pagavam aluguel, mas ela teve que diminuir o ritmo das faxinas por causa da idade e das dores. O dinheiro extra que ele tentava conse-guir era para ajudar a criar os netinhos. Carlos sonhava e dizia – “Bom seria se montassem uma empresa pra garantir um emprego pras pessoas dessa comunidade. Podia fabricar bloco, porque o pessoal interessado ia fazer fila na porta”, e para Carlos os colegas tinham capacidade e vontade pra trabalhar. De repente ele deu um pulo e entendeu que esse seria o próximo tema da música que iria compor.

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felicidAde despertou com os gritos de sua avó. Levantou assustada, meio dormindo, meio acordada, e foi ver o que estava acontecendo. Saiu no frio da manhã e soube da tragédia com o seu pai na hora que sua avó conta-va, sentada num banco improvisado. Na noite anterior, ele chegou do trabalho bem tarde, como de costume, estava escuro, e antes de entrar em casa, ao atravessar a ponte que eles fizeram com um tronco de árvore, escorregou, caiu e bateu a cabeça no fundo do barranco. A mãe dele, avó de Felicidade, que morava na casa ao lado, no mesmo terreno, saiu para alimentar os porcos que criavam no quintal e se deparou com o corpo dele caído no buraco. Reconheceu o filho pela roupa. Foi um dia triste, e Felicidade, na época com onze anos, passou a não gostar da madrugada, porque parecia que ela trazia mau agouro. Sem a ajuda financeira do pai, a família, que se reduzia à mãe e três filhos, começou a sofrer com a fome. O pai era funcionário público, e por falta de informação a família não recebeu a pensão por morte a que tinha direito. A viúva não tinha emprego nem ajuda dos irmãos, porque, como ela, eles passavam dificuldades. Além de que não gostavam da família do pai de Felicidade por causa da cor da pele. E pra não passarem fome, sua avó, uma mulher vivida, mandava os netos procurarem no quintal aberto o que pudessem encontrar pra comer. Os meninos

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traziam broto de samambaia, chuchu, ora-pro-nóbis, e aos domingos comiam arroz, comprado com o dinheiro que a mãe recebia do seu trabalho como empregada doméstica. Felicidade, como filha mais velha, queria muito ajudar, fazer alguma coisa, só não sabia como e nem o que. Sua avó apro-veitou o período de férias escolares da menina, agora com doze anos, e a levou para trabalhar como babá numa casa de família. Por ser novinha, sua função era brincar com a filha da dona. Para isso ela tinha que tomar banho, passar álcool no corpo todo, prender os cabelos, cortas as unhas e colocar roupa limpa para depois entrar na casa. Recebia uns troca-dos pelo serviço, e o que mais chateava Felicidade era ter que dormir longe de casa. Não tinha ninguém para buscá-la e levá-la diariamente, por isso passava todos os dias das férias longe dos amigos, da família, brincando com uma criança por quem ela não tinha nenhum afeto. Conseguiu manter-se no emprego porque gostava muito de livros e, para distrair a menina, lia pra ela histórias infantis. A pequena adorava, e Felicidade se consolava com a distração.

Voltando às aulas, Felicidade se dedicava aos estudos, gosta-va de escutar a professora, perguntava, fazia as tarefas e era ótima aluna. Quando estava para completar dezessete anos, conheceu um rapaz por quem se apaixonou. Ninguém tinha olhado pra ela daquele jeito, ele dava um abraço tão gostoso, lembrava o que ganhava do seu pai, daqueles bem aperta-dos. O rapaz tinha acabado de servir o exército, encontrava com Felicidade depois da escola, e ela não pensava em mais nada. Quando o via suas pernas tremiam, a boca ficava seca e seu coração disparava. Sonhava com ele todas as noites, em segredo. Sua mãe não podia saber, sua irmã ia rir dela e não confiava nas amigas. Na verdade Felicidade se sentia só. O namorado veio dar todo o carinho que ela sempre quis e sentiu falta. E foi cada vez mais se envolvendo, aceitando

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os avanços de um namoro proibido. Descobriu que estava grávida. Por vergonha abandonou a escola. Ao comunicar o fato ao pai da criança, ouviu da boca dele que não era o pai, depois disse que ele era muito novo, não poderia assu-mir. Felicidade criou o filho sozinha, sem o pai da criança, com ajuda da mãe e da avó. Assim que desmamou o bebê começou a trabalhar na mesma escola que um dia estudou. Foi faxineira, cozinheira e estudava à noite. Levou tempo, mas conseguiu concluir o ensino médio com o magistério. Aprendeu com o pai que valorizava os estudos e se lembra-va do tanto que ele cobrava as boas notas dos filhos. A mãe também, ela não deixava os meninos sem ir à escola, não. Aos trinta e um anos se apaixonou novamente. Dessa vez aceitou as condições de um homem casado. Sabia que ele tinha famí-lia: mulher e filhos. Mas se era esse o preço a pagar para ter a sua família, ela estava disposta. Engravidou pela segunda vez de outro menino. O seu filho mais velho já estava casado e era pai de uma menina. Mais uma vez não pôde contar com a ajuda do pai da criança para criá-lo, se contentando apenas com o registro na certidão de nascimento. O caçula cresceu em melhores condições, pois ela era mais velha, experiente, tinha salário e para completar a renda fazia artesanatos que aprendeu com sua vizinha.

Ela recordava da época em que o primogênito era criança, na mesma comunidade que mora hoje, da vaquinha que na verdade era uma carroça conduzida por um vendedor que buzinava e todo mundo que quisesse comprar leite ia pra rua com o litro na mão. Vendia pão também, bisnaga. Água era na cisterna. Não tinha asfalto nas ruas, nem tinha rua, era caminho no meio do mato. Sem iluminação. Para ir ao super-mercado tinha que atravessar para o outro lado da cidade. Hoje tudo é mais fácil. Os anos foram passando, Felicidade ia do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Pouco saía,

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porque além de estar desiludida com os homens não podia gastar dinheiro nem para ir ao centro da cidade. O seu gran-de sonho na vida era conseguir comprar uma casa. Se inscre-veu no programa do governo e foi contemplada. Dois terços do salário iam para o pagamento da prestação de um finan-ciamento de cinco anos, e seu filho caçula contribuía com uma pequena parcela. Ele não recebia um bom salário, pois era aprendiz e prometeram assinar a carteira futuramente. A vantagem é que podia economizar por não ter que pagar passagem, uma vez que o trabalho era a um quarteirão da sua casa, onde moravam mãe e filho. Felicidade sabia que a nova moradia precisava de alguns ajustes que em breve ela preten-dia fazer. O filho estava namorando e com planos de se casar em breve, pois com vinte e seis anos queria ser pai. Felicidade fala que sofreu muito, aprendeu, cresceu e se vê vitoriosa por ter superado as dificuldades. Voltando ao passado, se pudesse fazer diferente, não engravidaria tão cedo, não teria caído na lábia do soldado. Mas entende que o que passou é passado. Tudo na vida passa. Hoje se sente uma pessoa feliz.

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João não se lembrava da cidade que tinha nascido, só que não morou lá por muito tempo. Sua mãe brigou com seu pai por causa de muita cerveja que ele bebia, e com a separação mãe e filho foram pra comunidade onde já moravam seus avós, tia e primos. João tinha oito anos na época, e sua mãe, trabalhando como faxineira, conseguiu construir alguns cômodos em cima da casa da tia. Depois da casa pronta soube que estava em área invadida, não podiam viver ali porque ficava debaixo da alta tensão. Na casa de três andares morava no térreo um primo com a namorada chata, que se fazia de santa, mas era uma capeta. O que mais indig-nava João, com seus onze anos, era o tanto que a moça não deixava o primo em paz. Todo lugar que ele ia ela subia na moto e ia também. Era um grude. No segundo andar mora-vam sua tia e um primo. Esse era um companheirão, um pouco mais velho, mas adorava jogar Sonic no computador com ele. Todo dia quando estava em casa sem nada pra fazer descia as escadas e ia entrando, sentando e jogando. Era a segunda casa de João. Sua mãe chegava lá pelas seis horas da tarde, e como ele já tinha ido à aula particular e feito as tare-fas, estava livre pra brincar sem briga nem grito da mãe. Nos finais de semana visitava os avós que eram mais ou menos vizinhos ou então encontrava seu pai. Ele casou de novo, mas não tinha filho, João era o único. Gostava de brincar de

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Playstation com o pai. João pensava em estudar até o nono ano, ou seja, terminar o ensino fundamental. Ele começou a gravar vídeos, tinha um canal, queria ser youtuber. Sua mãe não se envolvia muito, na verdade ela não entendia nada do que ele fazia. Ficava olhando de longe, via que era coisa de jogo e deixava. Teve um dia que ele foi ao cinema com o padrasto assistir Como treinar o seu dragão. Foi legal, mas ele foi embora, separaram, sua mãe estava sozinha de novo. João comia muito, muito mesmo. Talvez por isso, na esco-la, chamavam ele de baleia. Nossa, como magoava João. Ele chegou a pedir ajuda pra professora, não aguentava mais, mas nada mudou. Como alguém podia dizer alguma coisa pro outro rindo, sabendo que estava machucando? Ele não entendia. Resolveu não ligar, nem ouvia, não sofria mais. Se não fosse pelo lanche nem saía da sala de aula na hora do recreio. Não gostava muito de estudar, fazia o que sua mãe pedia, ir às aulas, prestar atenção e ter boas notas. João era um bom menino, de pouca fala, alguns amigos e um coração enorme. Numa sexta-feira depois da escola, João entrou em casa, sua mãe não tinha chegado do trabalho, ele tinha comi-do um sanduíche na esquina lá embaixo, viu que o primo não estava em casa e ele não sabia o que fazer, pois estava mais uma vez sozinho.

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JucA com oito anos fazia muita arruaça e era conhecido como o terror do morro. Junto com sete amigos saía atirando pedra nos telhados das casas, roubava as gali-nhas dos vizinhos e no centro da cidade ia pedir um tiqui-nho de dinheiro no sinal para ajudar dentro de casa, e nesse momento era humilde. Na época era ele, sua mãe, quatro irmãs e um irmão que infelizmente morreu matado. Tinha um pai que era da vida do crime e não tratava dos filhos, não. Era só o nome de ser pai mesmo. Ele morava sozinho, mas tinhas umas quatro, três famílias, vinte e tantos filhos dentro da favela. Ele era pagodeiro, gostava de festa, de tocar e morreu com cinquenta e poucos anos. Sua mãe sempre foi sozinha pra cuidar dos filhos, era uma guerreira, chegou até ir pro centro da cidade roubar pra família não morrer de fome. No bairro de rico onde ele pedia dinheiro e vigiava os carros estacionados conheceu um coronel. Esse coronel fez carteirinha pra todo mundo, era uns seiscentos e trinta meninos mais ou menos que tinha naquela região, vigiando carro, na porta da loja pedindo uma ajuda ou então carre-gando as compras pros moradores ali pertinho. Ele mudou o modo dos meninos trabalhar ali, porque era informal e se não tivesse cadastrado os homens da FEBEM aparecia e catava. Aí o coronel falava pra eles apresentarem a carteiri-nha pros policiais.

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Fora da favela teve contato com meninos que desfilavam elegância, via aquela situação de tênis bonitinho, bermu-da bonita e querendo ou não foi ficando com vontade de ter também. Enquanto admirava o estilo dos meninos, Juca foi aliciado pelo tráfico. Não raciocinou muito, tinha cabe-ça dura e nem pensou no que sua mãe diria, entrou achando que seria uma maravilha. Hoje sabe que podia ir pro sinal vender uma bala, uma água e dava pra ganhar dinheiro. Ele lembrava do dia que sua mãe ligou pra ele e falou: “Ô meu filho, para de ir naquele trem lá, pelo menos por uns quinze dias, que eu tô sentindo um aperto no coração”. Juca levan-tou noutro dia, enrolou um cigarrinho, foi lá e, quando pensa que não, um amigo aparece na porta e fala – “Nossa senho-ra, eles estão descendo aí, a polícia”. Juca saiu correndo e caiu dentro do terreiro que tinha mais de quarenta quilos de maconha e foi preso. Ele tinha quase dezoito anos. Depois desse susto e do assassinato do irmão foi vendo que aqui-lo ali não prestava, não era pra ele, que queria fazer dife-rente e a duras penas conseguiu sair do tráfico. Aí come-çou a trabalhar informalmente, fazia um bico aqui, arrumou os documentos e com vinte e dois anos tinha emprego com carteira assinada. Trabalhou de ajudante de pintor, serven-te de pedreiro, ajudante de carpinteiro, jardineiro, fiscal de loja, estoquista. Uma grande ajuda que ele teve quando crian-ça na rua do centro da cidade foi de uma assistente social. Ela chegou pra ele, se apresentou, fez perguntas e pediu o endereço da casa dele pra conversar com a mãe. Apareceu lá, disse que trabalhava no centro de ensino infantil, que rece-bia crianças de oito até dezessete anos e dava cursos profis-sionalizantes. A mãe de Juca autorizou e ele foi junto com os irmãos e aí tudo melhorou, porque ganhava leite, sopa enla-tada, verdura, e enquanto estava lá eles ensinavam a fazer carrinho de madeira, caixinha, pano de prato, e vendiam na feirinha. Eles ganhavam uma porcentagem da venda e conti-

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nuaram fazendo curso de pintura, curso de silk, e depois Juca entrou pro agente jovem. Recebia uma bolsa de sessen-ta e cinco reais fazendo curso de desenho, convivendo com outros jovens, tendo diálogo. Mais uma vez por ter cabeça dura deixou de estudar na sexta série. Não quis ir mais pra escola. As coisas estavam difíceis, ele queria ter as coisas e tinha a desculpa de ter que trabalhar, mas no fundo era vaga-bundagem mesmo, queria ficar mais na rua e foi nesse tempo que entrou pra vida do crime. Esses ensinamentos da vida foram construindo Juca, que no fundo era grato à assistente social e ao coronel que deram oportunidade para fazer dife-rente. E como desde criança sempre quis cortar cabelo dos outros, pensou em fazer um curso pra trabalhar numa barbe-aria de um amigo. Entusiasmado ele foi fazendo o curso e treinando o corte nos cabelos dos sobrinhos, dos irmãos e de quem se atrevesse a pedir. Com isso ganhou prática. O compadre, dono da barbearia, chamou ele pra trabalhar lá, e assim tudo foi caminhando pro bem.

Junto com os vizinhos da mesma idade tiveram a ideia de construir uma horta num terreno que a prefeitura desapro-priou porque ficava debaixo da antena de alta tensão. Capi-naram, conseguiram sementes e equipamentos da prefeitura, adubos da EMATER, orientações de plantio dos idosos e a admiração das crianças. A horta ficou linda e tinha de tudo lá: mamão, ervas de chá, beterraba, maracujá, cenoura, berinjela, couve, alface, salsinha, cebolinha, rúcula, coentro, orégano. Tinha galinheiro e tinha peixe também que era criado dentro da caixa d’água. Tinha minhocário e eles faziam compos-tagem com os restos de casca de verdura, menos de laranja e mexerica que é ácida. Jogava lá dentro, fazia a composta-gem, descia um caldo que é um fertilizante natural, orgânico e regavam as plantas. Aprendeu com sua mãe e seu pai que plantavam dentro do terreiro da casa que moravam, tinha

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pé de uva, café, couve, mandioca, chuchu. Juca precisava era disso, se sentia sobrecarregado na favela e estava precisando de um espaço verde pra mexer na terra e descarregar aquela energia. Era tão gratificante quando chegava uma pessoa na horta comunitária querendo salsinha, mamão, e tudo funcio-nava através da troca ou então pagava um valor mais barato que o sacolão. A pessoa podia trocar por um pacotinho de semente ou pagar com dinheiro. Na horta tinha também um tambor que foi transformado num fogão e acendiam para fazer chá e bolo, ali perto tinha um mirante com uma paisa-gem linda. Era bom ficar calminho, no meio das plantas, tudo fresquinho, dava uma paz. Mas a horta cresceu muito e a barbearia começou a ter muitos clientes e ficou difícil pro Juca conciliar tudo de uma vez. Tratava todo mundo muito bem, uma vez no mês cortava cabelo de graça na praça e saía decorando a comunidade com calças vivas. Pegava uma calça velha, enchia de terra, plantava e pendurava por vários luga-res na favela. Era bonito ver as calças floridas, ou com ervas de chá ou com temperos. Quem quisesse podia colher e ele fazia a manutenção.

Além do trabalho na barbearia e na horta, estava construin-do uma casinha pra ele no terreno da mãe. Estava meio deva-gar porque o dinheiro entrava, mas saía rápido, ele e amigos é que construíam nos finais de semana ou no fim de um dia mais tranquilo. A sua filha morava com a mãe na casa da sogra. Não estar mais perto da menina deixava Juca tris-te. Ele tentava acelerar a obra pra buscar elas pra morarem juntos, fazia o possível e enquanto esperava saía com a filha nos domingos. Em um desses encontros, a menina de 5 anos falou pro pai: “Pai, essa música tem palavrão, não pode falar não, né?” Era funk. Na verdade a música inteira era palav-rão e sexo. Juca ficou nervoso porque não era isso que queria

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mostrar pra ela e sim o respeito pelas pessoas, o valor da amizade e muitas coisas. Passou a ficar atento aos lugares que frequentava com a filha. Concordou com ela, deram as mãos e foram ver as flores que Juca tinha plantado.

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Júlio tinha dez anos quando seus pais se separaram e foi o momento mais difícil da sua vida. Seu irmão não aceitou a separação, por ser muito próximo do pai, entrou em depressão, pois a distância cortou de vez o vínculo entre pai e filho. Sua irmã também ficou muito sentida, mas era guerreira e deu conta de continuar os estudos, se formar e desde então trabalhava e ajudava com as despesas de casa. Júlio, depois de aceitar a separação e ausência do pai, come-çou a trabalhar, estudava e ia em casa somente pra dormir, com isso não se envolvia e não sabia o que se passava na família. Sua mãe que nunca trabalhou fora de casa teve que aceitar uma vaga de salgadeira numa lanchonete. Enquanto estavam no processo de divórcio, Júlio tentou seguir com sua vida. Voltando pra casa depois do trabalho entrou no ônibus, encontrou um lugar no canto e acabou dormindo. Acordou assustado com o grito do motorista – “dez minutos” – num lugar estranho. Após uns instantes descobriu que estava no ponto final da linha. Olhou pros lados e viu um lugar horrí-vel, barracos mal construídos, um povo esquisito e teve medo. Lembrou com alívio do lugar que morava. “Nunca vou morar num lugar desses”, pensou. A família morava num bairro tranquilo, num condomínio fechado. O apartamento era espaçoso e cada filho tinha o seu quarto, mas com a sepa-ração eles tiveram que se mudar, e foi difícil ter que deixar

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tudo pra trás. Como era o único bem do casal, o imóvel teve que ser vendido e nos bastidores seu pai deu um jeito de dimi-nuir o valor declarado de venda e entregou quase um terço do valor para a esposa, mãe de Júlio, que esperava receber o dinheiro da partilha para comprar um imóvel pra morar com os filhos. Depois de muito procurar acabou comprando uma casa menor, num bairro mais distante do centro. Quando os filhos foram conhecer a nova residência, Júlio quase teve um ataque do coração, pois era justamente no bairro do fim da linha do ônibus que ele conheceu por acaso. O menino quase chorou. Chegou a ficar revoltado, mas não queria dar este desgosto pra sua mãe. Dividia o quarto com seu irmão, e nos finais de semana, pra não ficar convivendo com os vizi-nhos, ia pra casa da tia cuidar dela, que era diabética e tinha machucado o pé, e da filha, prima de Júlio, que tinha síndro-me de down e estava resfriada. Ele foi cuidando sem muita experiência, e a tia só elogiando a atenção e a delicadeza que ele demonstrava ao fazer um curativo, ao dar o medicamento pra filha, e o rapaz aos poucos se deu conta de que era isso que ele faria. Matriculou-se no EJA à noite, e nos finais de semana começou um curso de cuidador de idosos.

À medida que foi convivendo mais de perto com as pesso-as da comunidade, foi fazendo amigos e com isso mudou a opinião que tinha deles. Os vizinhos da rua eram próximos, cumprimentavam, davam bom dia, chamavam pra tomar café, pediam açúcar emprestado e estavam sempre à dispo-sição para ajudar. Já no condomínio de luxo que moravam, ninguém via ninguém, não se cumprimentavam, não sabiam o que se passava na vida do outro. Na comunidade se sentiu acolhido. Sentia-se tão bem lá que gostaria de fazer alguma coisa pra melhorar o lugar onde morava. Viu que as crian-ças não tinham lugar para atividades culturais e artísticas e pensava num projeto que proporcionasse aula de dança, aula

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de luta ou algum outro esporte. Os coordenadores do proje-to poderiam descobrir talentos e também mostrar oportu-nidades melhores para o futuro dos jovens da comunidade. Anos atrás a prefeitura construiu um espaço para realiza-ção de esportes, mas lá agora só tinha mato e muito foco do mosquito da dengue. As possibilidades iam surgindo, e Júlio ficou num dilema, pois ao mesmo tempo em que queria deixar pras pessoas da comunidade algo que mudasse a vida delas, tinha vontade de sair do Brasil. Seus amigos tentaram a sorte em Portugal e se deram muito bem. Diziam que lá eles tinham qualidade de vida, podiam ser livres, andar sem medo de ser assaltado ou agredido pela opção sexual dife-rente da imposta pela sociedade. Com ajuda dos amigos e da sua família Júlio decidiu se aventurar e quanto mais se apro-ximava do dia da viagem que iria mais uma vez mudar a sua vida, mais ele agradecia o amor da sua mãe, que deu forças a ele pra buscar um novo recomeço. Sua irmã também era uma referência forte, pois aprendeu com ela a ser guerreiro, a enfrentar os desafios e ser leve, se descobrir, gostar dele mesmo e ser feliz.

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KátiA tinha dez anos, morava com o pai e dois irmãos, um com quatorze e o mais velho com dezoito anos. A casa tinha apenas dois quartos, o pai dormia sozi-nho desde a morte da mãe de Kátia, e os três filhos dividiam o segundo quarto. O pai dos meninos prometeu construir no andar de cima um quarto para a sua caçula, assim Kátia teria um canto todinho seu. O cômodo estava quase pronto, e ela não via a hora de poder dormir sem o cheiro de chulé dos irmãos. Eles eram muito bagunceiros. Ela gostava de se arrumar, mas tinha dificuldade de se olhar no espelho. Pare-cia ser uma outra pessoa, não se reconhecia na imagem à sua frente e por isso a evitava. Kátia era uma menina feliz, tinha amigas, gostava de brincar na rua e na praça de pega-pega na linha, jogava videogame com o irmão e quando não estava na sua vez de jogar assistia à televisão. Andava longas distân-cias, adorava andar, visitar as amigas, as tias e as primas. E era na companhia das tias que frequentava a igreja, já que seu pai e irmãos não tinham fé. Lá ela ajoelhava, fechava os olhos e conversava com sua mãe. Era um momento das duas. Ninguém atrapalhava. De olhos fechados via sua mãe senta-da esperando por ela, que chegava perto, abraçava e ia para o colo. Toda a tristeza acabava ali. Acordava com o sacolejo da tia chamando para irem embora. Ia pra casa e ao chegar seu pai perguntava pelas tarefas da escola, como tinha se saído

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nas provas. Era bom saber que seu pai se preocupava com os estudos dela. Isso era amor. O pai trabalhava e o irmão mais velho também, e quando o chefe da casa chegava à tardinha lá ia o cozinheiro fazer o jantar. A comida era bem gostosa: arroz, feijão, salada e carne. Kátia comia junto com todos, ajudava a lavar a louça e ia dormir para conseguir acordar cedo no outro dia. Seu irmão levantava primeiro, chamava os dois irmãos e antes de saírem comiam pão com manteiga e leite com café.

Quando perguntavam pra Kátia o que a deixava irritada, ela prontamente dizia que era não respeitarem a sua opinião. Se ela falava que era “não”, por que diziam “sim”? Um dia na escola um menino começou a mexer com ela, enchendo o saco, cutucando, ela falava pra ele parar, e ele não parava. Então bateu nele. Ela é até muito calma, mas não mexam com ela não. E outra coisa é quando falavam mal da mãe dela. Isso deixava Kátia tão triste. Ela não entendia o que causou a morte da sua mãe, parece que era segredo de famí-lia, e seu pai não gostava de falar sobre isso. Ela não via maneira de perguntar, respeitava a dor do pai, e pra ela ficava aquele vazio, sem explicação.

A escola ficava no final da rua e ela ia andando sozinha até lá. Gostava de escutar a professora, encontrar as amigas e aceitava as orientações para não seguir o caminho do crime, não queria se dar mal. Tinha planos de ser médica, e sua melhor nota era em matemática. Tinha facilidade com os números. Uma vez, brincando na praça com as amigas, um menino gritou pra ela – “macaca”. Ela ficou tão ofendida, não compreendeu porque ele chamou ela de macaca se eles nem se conheciam. Perto da sua casa começaram a construir um hospital. O povo todo ficou feliz em ter atendimento ali pertinho, e de um dia pro outro sumiram todos os homens

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que trabalhavam na obra. Parou tudo. Está lá, fechado e inacabado. Imagina ela se formar em medicina, trabalhar perto de casa e cuidar de todos os vizinhos, amigos e paren-tes? Seria uma benção. Quem sabe um dia os homens voltam pra terminar o hospital e até lá ela já seja médica?

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lídiA tinha treze anos, morava com a mãe, os dois irmãos, duas tias, um tio e a avó. Não moravam todos juntos, era no mesmo terreno, cada família tinha a sua casa. A dela foi sua mãe que construiu, com o salário de empregada doméstica e a ajuda dos patrões. Lídia dividia o quarto com sua irmã, acordava cedo, ia pra escola e depois chegava na casa de assistência do bairro pra almoçar e passar a tarde. Às segundas e quartas-feiras, no final do dia, fazia aula de balé e boxe. Gostava de ler, fazer esportes e tinha paixão por fute-bol. Brincava de queimada também, na rua com os amigos, na escola, mas o futebol era do que mais gostava. Tentou formar um time feminino, mas não conseguiu número sufi-ciente de jogadoras e ficou no misto mesmo, mais masculino que feminino.

Com três meses de namoro se viu apaixonada. O rapaz tinha a mesma idade que ela e morava na parte de cima da comuni-dade, lá no alto, perto da UPA. Eles namoravam nos finais de semana em casa, como mandava a mãe de Lídia. Ainda bem que o namorado não achava ruim dela jogar futebol, porque senão terminaria o relacionamento. Já pensou em ser médi-ca, mas o que queria mesmo era jogar futebol profissional. Lídia ficou sabendo de um clube que treinava jogadores de futebol iniciantes e tinha vaga pra meninas. Ela correu pra

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pedir pra mãe, quase de joelhos, fazer a matrícula dela, que apesar de ser gratuito tinha que ter autorização do responsá-vel. A partir desse dia até começar o treino, Lídia se via feliz sem saber com o quê. Estava constantemente sorrindo. Sua mãe foi muito legal por deixar ela treinar futebol, porque na verdade ela não merecia. Outro dia deu um susto danado na mãe, saiu para ir à casa da amiga e não queria voltar pra sua nem avisar onde estava. A noite foi chegando, escurecendo, a mãe da amiga nervosa, preocupada, mandando Lídia embora até que apareceu o seu pai. Nossa como ele era bravo, ainda mais quando bebia. Ele bateu na porta, perguntou pela filha, foi entrando e puxando a menina pelo braço. Lídia ficou caladinha, melhor não piorar a situação. Fez o caminho pra casa todo em silêncio. No instante que viu a cara da sua mãe se arrependeu do que tinha feito. A mãe estava transtornada, com o rosto inchado de tanto chorar. “Coitada, pensou que eu fui sequestrada, estuprada ou morta, sei lá”. Lídia passou ao lado da mãe sem olhar nos olhos, pediu desculpa num sussurro e entrou no seu quarto. Lembrou que seu avô, pai da sua mãe, estava internado com pneumonia e sua mãe esta-va muito preocupada com ele, que já era idoso, tinha quase setenta anos. Ela deveria ter pensado nisso antes de dar uma de doida. Mas na casa dela estava tudo tão ruim. Ninguém conversava com ninguém, a mãe só sabia trabalhar pra ganhar dinheiro e cuidar dos outros. Sobrava pouco tempo para cuidar de Lídia, fazer trança no cabelo dela, espremer as espinhas, brincar de jogar baralho. Sentia falta da mãe perto dela, só pra ela. Sabia que não era mais criança, que os irmãos eram menores, que a mãe trabalhava muito pra dar conforto pros filhos e mesmo assim era difícil aceitar a ausência. Uma vez teve um sonho. Sonhou que estava brincando sozinha e de longe viu sua mãe. Olhou pra ela, sorriu e correu pra dar um abraço nela. Foi tão bom que quando ela acordou entendeu que a mãe também podia estar sozinha e querendo

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abraço. Resolveu que dali pra frente toda vez que saísse ou chegasse em casa iria se despedir ou cumprimentar sua mãe com um abraço, pras duas ficarem abastecidas de amor.

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lineu morava com a mãe, o pai e mais dois irmãos. Ele era o filho do meio e tinha dez anos. Um dia, chegando da rua, entrou distraído em casa e presenciou seu pai pelado em cima da sua irmã, também sem roupa. Ele, a princípio, pensou não ter visto direito, podia ser outra pessoa. Saiu pra fora e entrou de novo e nada mudou. Ele saiu correndo e foi chamar a mãe. A mãe chorando come-çou a bater no marido e logo em seguida chamou a polícia. O pai de Lineu foi preso e o filho ficou arrasado por ter sido ele o causador do sofrimento do pai de quem ele tanto gosta-va. A família mudou de cidade e foi pra uma comunidade onde a avó materna morava. A mãe começou a fazer faxina por indicação das mulheres vizinhas, e os meninos foram para a escola. Parecia que a vida nova iria proporcionar uma oportunidade para todos, mas ainda assim era estranho para Lineu que não era mais o mesmo. Aos doze anos ele não sabia ler nem escrever. Era agressivo, perdia o controle da sua raiva e saía batendo nos colegas. Quando estava calmo era um líder, todos gostavam e respeitavam ele. Era comuni-cativo, gostava de jogar bola, soltar pipa com os amigos. A irmã foi acolhida pelo serviço de saúde e teve atendimento psicológico. O filho mais velho era calado e trabalhava para ajudar nas despesas da família, pois assumiu o papel do chefe da casa. Lineu não teve ajuda de ninguém. Na vida corrida

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achavam que ele era assim porque era adolescente rebelde, que era culpa dos hormônios. Ele se juntava aos grupos de jovens com mais de dezessete anos, e pra fazer parte do grupo começou a fumar e iniciou a vida sexual. Não usava camisi-nha, não tinha namorada, era quem aparecesse e se encantas-se por ele, que era um sedutor. Lineu saía da escola, passava em casa para comer alguma coisa e saía pra rua sem hora pra voltar. Sua mãe ficava preocupada com ele, mas não sabia o que fazer nem o que falar. Um dia, durante a aula, por estar com muito sono, se debruçou na mesa e dormiu. A profes-sora chamou, ele respondeu com palavrão e foi levado até à diretora, que deu suspensão de três dias. Lineu saiu batendo as portas da escola e foi pra casa. Entrou no seu quarto, bateu a porta, deitou na cama e ficou encarando o teto. Sentiu uma lágrima caindo do canto dos olhos e pensou: “como gostaria que meu pai estivesse aqui comigo!”

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luz namorou e noivou durante seis anos. Compraram juntos um apartamento, e nas vésperas do casa-mento resolveu ir até lá limpá-lo. Ao abrir a porta deparou-se com o noivo na cama com outra mulher. Na hora terminou o compromisso. Passou a ser uma mulher livre, mas levou um tempo pra aceitar a traição. Trabalhava num escritório, e o chefe era muito atencioso, preocupado com a volta dela pra casa à noite, ter que pegar ônibus cheio, e por isso ofere-cia carona. O envolvimento foi crescente até que Luz desco-briu que estava grávida. Com o resultado positivo na mão, comunicou que se casariam. Ele aceitou. Luz tinha medo da reação dos pais quando soubessem da notícia, mas para o seu espanto e alegria os dois apoiaram, seus irmãos também, os parentes não. Ela foi criada numa família muito religiosa e não queria ser vista com indiferença pela sociedade e nem pensou na possibilidade de assumir a filha sem oficializar a união. Casaram e com vinte e sete anos foi mãe de sua filha muito querida. Luz continuou trabalhando, e a sogra fica-va com a menina. Por sorte ou azar, numa tarde chegaram para buscar a filha e encontraram as duas na sala em fren-te à televisão, a avó deu um tapa na criança que olhava pro teto descascado, chorando e ouvindo a outra falando brava: “Chora não, senão o teto vai cair na sua cabeça”. Mãe, pai e filha saíram de lá rapidamente, e no caminho de casa o mari-

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do decidiu que a esposa não trabalharia mais no escritório: “Vou te mandar embora, eu não quero mais você trabalhan-do, minha mãe não tem condições que ficar com nossa crian-ça”. E assim foi feito. Luz fazia o serviço de casa e cuidava da filha que ficou anos sem conseguir olhar pra cima.

O casamento foi uma coisa muito boa, tiveram mais dois filhos, tudo escadinha, um depois do outro. Luz desde jovem era louca por criança e agora tinha as suas. Com a rotina dos três filhos, ela percebeu que precisava fazer alguma coisa para não ter um quarto bebê, pois a situação econômica estava complicada, e foi evitando, tomava remédio e as dificuldades foram aparecendo. O marido ficou desempregado, ela sem trabalhar, cuidando de três filhos. O homem da casa recebeu um dinheiro do acerto da empresa pelos anos trabalhados, e com a orientação dos pais de Luz compraram um apar-tamento. Mudaram-se e as contas continuaram chegando e preocupando Luz: era condomínio, mensalidade das esco-las, água, luz, telefone. Ela era professora formada e sentiu necessidade de ajudar e pensou em arranjar um emprego. O marido era muito orgulhoso, não permitia que os filhos usas-sem chinelos de borracha, porque isso era coisa de favelado. Luz tinha a consciência de que o marido era negro e tinha preconceito com as pessoas negras. Ele era muito diferen-te dela – ele muito nariz em pé, ela muito simples. Ela ia tolerando, aguentando, engolindo e suportando o pai dos seus filhos. Não falava nada, não discutia, nem quando ele não cumprimentava os vizinhos, o que a matava por dentro. Luz não queria viver naquela situação, mas sua mãe sempre passou pra ela que casar e morrer é uma vez só. Luz come-çou a ficar inquieta e pensar com o que ia trabalhar pra poder ajudar. Um dia sua vizinha bateu na porta do apartamento de Luz e falou que precisava arrumar uma empregada, uma pessoa pra trabalhar com ela, porque iria mudar pra uma casa

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grande e precisava de ajuda. Luz se encheu de esperança e perguntou: “Você quer que eu vá pra você?” “Que isso Luz, você trabalhar comigo, trabalhar de empregada? Você é uma professora”. Luz explicou que era professora formada, mas tinha só o diploma, pra voltar a dar aula tinha que estudar, se atualizar e com três crianças pequenas não tinha condições nem dinheiro pra isso. Propôs fazer uma experiência e deu tão certo que ficou lá dois anos e meio.

Quando seu filho do meio adoeceu com problema de depres-são, a amiga patroa falou que preferia que ela saísse pra cuidar do filho. “Ele precisa de você agora”, ela disse. “Quando você quiser, depois que ele melhorar, você volta”. Como o menino de quatorze anos não ia mais à escola e ficava deitado debaixo das cobertas até com a cabeça coberta, suando, não saía pra canto nenhum, matava aula pra ficar dentro de casa deitado, Luz viu que não tinha outra opção. Depois que começou a trabalhar o inferno de Luz começou. Não era somente a depressão sem diagnóstico do filho, as agressões do marido começaram. Ele não aceitava que a esposa trabalhava fora, e muito menos como empregada doméstica. Como ele ia falar pros amigos que ela era faxineira? Mas o marido não enten-dia que Luz tinha o maior orgulho do que fazia, pra ela era um trabalho honesto como muitos outros. O homem come-çou a chegar tonto em casa, a agredir os filhos, a implicar com eles. Os meninos ficavam assustados. Numa ocasião o pai descontente deu um chute na virilha do menino depri-mido que mijou sangue na hora. Luz ligou pros seus pais e pediu que ficassem com o menino. Eles acolheram o neto, e quando chegou na roça o pai de Luz perguntou o que tinha acontecido pra o menino urinar sangue. Aí ela teve que falar que foi agressão do pai. A avó tratou com chás e deu resulta-do. As coisas acalmaram e o menino voltou pra perto da mãe. Mas não voltou igual, ele tinha raiva, ódio do pai. A filha

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com seus dezesseis anos, vendo tudo isso, se revoltou porque a mãe tratava bem o homem que maltratava todos na casa. Luz dizia que sentia raiva na hora, não sabia guardar rancor da pessoa, é bobeira ficar guardando essas coisas. As agres-sões continuaram, os tapas nos meninos feriam Luz que se transformava numa leoa para defender seus filhos. Até que a irmã de Luz a convidou para trabalhar no seu bufê e Luz aceitou prontamente. Na proximidade do dia a dia come-çou a desabafar sobre as agressões do marido, o medo nos olhos dos filhos, a raiva deles e ela sem poder fazer nada porque casamento era pra sempre. Ela ouvia ele dizendo aos gritos que ela não prestava pra ele, que não era boa esposa, e dava um tapa, outro dia um chute. Luz aparecia de braço roxo, perna roxa, e quando perguntavam ela dizia que estava limpando a casa e esbarrou, era muito estabanada. Os filhos viam e não falavam nada, e o que não viam ela não contava. Luz não deu parte do marido. Uma vez, mais uma agressão começou e dessa vez ele partiu pra bater na filha, e o caçula saiu correndo, passou pela janela aberta, pela greta na grade, foi até a portaria do prédio e chamou a polícia, porque o pai dos meninos queria matar a mãe que entrou no meio pra salvar a filha. A polícia chegou e era a filha que teria que dar parte do pai, por ser maior de idade. Mas a menina era apaixonada por ele. Luz entendeu o silêncio da filha. A irmã, dona do bufê, perguntou por que ela não se separava. Depois de muito pensar Luz chegou pro marido e falou que queria se separar, ele aceitou numa boa. Essa decisão não foi pela conversa com a irmã, foi porque os filhos chegaram perto dela e falaram: “Mãe, nós não aguentamos mais, separa do meu pai”. Era o que Luz esperava ouvir da boca dos filhos. Conversando sobre o processo de separação, o marido disse que não abria mão do apartamento. Luz argumentou que o imóvel ficaria para os meninos. O marido então fez a propos-ta, assumiu que tinha uma namorada e, como condição para

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aceitar a separação, Luz teria que ir morar com a família dela, e a moça chegaria e cuidaria dos meninos. Quando Luz foi firme e disse que não sairia do apartamento, o pai dos filhos aceitou vender, e com a parte da esposa foi comprada uma casa numa comunidade perto de onde Luz foi criada. Ela se sentiu em casa, os filhos ficaram mais tranquilos, apesar de não terem gostado do lugar. Luz sabia conviver, fazia bolo e dava pra vizinha, dava bom dia pra todo mundo, sempre com um sorriso no rosto, um abraço apertado, muito diferen-te da convivência no condomínio que morou. Lá ninguém cumprimentava ninguém.

Os anos passaram, Luz continuava no bufê da irmã, os filhos começaram a trabalhar e já tinham se acostumado com a nova vida, fizeram amigos. Luz reparou que já tinha alguns dias que o seu caçula parecia inquieto. Luz sabia que tinha que ter uma conversa com o garoto. Perguntou se ele tinha alguma coisa pra falar pra ela. Rapidamente disse que não. Luz insistiu. O rapaz disse que tinha medo dela xingar ele. Ela queria saber o que estava acontecendo. “Mãe, eu sou gay, eu não gosto de mulher”. Luz, com o coração transbordan-do de amor de mãe disse: “Você não vai deixar de ser o meu filho por isso não. Eu te amo. Me dá um abraço aqui. Olha, eu não aceito a sua condição de ser gay, mas eu respeito, porque eu sou uma pessoa muito católica e na bíblia fala, homem com mulher, mulher com homem, e desde que o mundo é mundo eu prego o respeito. O respeito cabe em qualquer lugar, você respeitando as pessoas cria um ambiente muito bom. O desrespeito mata, machuca”. Depois dessa conversa o rapaz ficou bem mais aliviado e alegre. Já o filho do meio saiu da escola na oitava série, fazia alguns bicos e conseguiu controlar a depressão. O dia que estava nervoso demais é porque não tinha fumado um. Quando ele fumava, ficava numa calma que dava até tristeza de ver a calma que ele fica-

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va. Mas ele tinha um bom coração, era uma pessoa boníssi-ma. A filha mais velha estudou, fez faculdade, trabalhava, ajudava em casa. Era a única que tinha contato com o pai. E Luz analisando sua vida lembrou-se das brigas com o mari-do, e tudo começou porque ela resolveu trabalhar para ajudar com as despesas da família. E se ela não tivesse começado a trabalhar ela teria vivido mais tempo com ele, mas pra quê?

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MArcelA nasceu há vinte e sete anos na Santa Casa de Belo Horizonte, e diziam na época que nascer lá era considerado uma sorte, pois a outra maternidade públi-ca da cidade tinha má fama. Nela mulheres morriam devido às infecções e complicações no parto, e crianças não sobrevi-viam. Marcela era a filha do meio de cinco meninas, depois sua mãe teve mais dois filhos homens, um deles já falecido. Contava sua mãe, com lágrimas nos olhos, que aos treze anos teve uma filha. O rapaz tinha dezesseis anos, já era homem feito e não quis assumir a criança. Contava ainda que ela e a criança por pouco não foram abandonadas na maternida-de. A adolescente não sabia voltar para casa, não sabia onde morava, e por isso esperou a mãe ir buscá-la. Isso só foi acon-tecer três dias depois, ela apareceu para pegar o bebê, uma menina, e levar embora. No dia seguinte voltou, chegou na enfermaria, olhou para a filha e disse – “vamos”. A mãe de Marcela perguntou pela filha e soube que foi dada pra adoção. Guardou o choro e acompanhou a mãe. Logo depois se casou com um homem que mal conhecia, mais velho, com quem teve sete filhos. Quando Marcela nasceu a família morava numa casa de lata, e toda vez que chovia lá fora chovia dentro também. Sua infância teve momentos difíceis, pois quando o que tinha para comer era um biscoito delicioso e caro vendi-do na padaria, Marcela sabia que as coisas não estavam boas,

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porque tinham pegado no lixo. Foram muitos anos recolhen-do coisas do lixo pra comer, muitos mesmo. Como sua mãe era uma pessoa trabalhadora e fazia de tudo que aparecesse, conseguiu aos poucos comprar um terreno, foi construindo e sete meses depois se mudaram. Marcela lembra pouco do pai dentro de casa, chegando do trabalho no final do dia, perguntando como estavam, levando os filhos para visitar a avó, os tios, os primos. Isso era só na imaginação, não acon-teceu de fato. O que ouvia eram os casos de traição do pai, a comunidade toda falava que ele era um mulherengo, e cansa-da dessa história a mãe de Marcela deu um basta, se separou e assumiu sozinha o cuidado com os filhos.

Marcela aprendeu a fazer de tudo numa casa com sua mãe. Ela e as irmãs faziam as tarefas da casa enquanto a mãe traba-lhava fora para ter dinheiro pra comida. A sorte é que após a separação dos pais, eles puderam continuar na casa que foi comprada com o sacrifício da mãe. Com o dinheiro que ela economizava, reformou o banheiro, trocou o piso da casa toda, colocou laje, janela, fez uma cozinha decente. À medi-da que os filhos foram ficando adultos e formando família, iam construindo suas casinhas no fundo do terreno. Marcela tinha pena da mãe que não sabia ler e escrever. Reconhecia apenas as letras dos nomes dos filhos. Por isso ela, Marcela, quis estudar, se formar e ser professora. A moça com seus vinte anos se encantou por um rapaz, e resolveram se casar. Com autorização da mãe, passaram a ocupar um quarto na casa. Um ano depois nasceu a filha de Marcela. Uma meni-na linda. O casal tinha planos de construir uns cômodos no andar de cima, mas o casamento acabou e Marcela continuou no quarto com a menina. Não queria viver a mesma vida da mãe, aguentando homem mulherengo, e assim, com esse pensamento, ficou mais fácil aceitar o fim do relacionamento. Durante alguns meses ela guardou a tristeza e resolveu

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voltar a viver, até mesmo porque tinha uma filha e o que ela mais queria era que a menina fosse feliz. Num domingo foi passear pela cidade: foi ao Parque Municipal, deu uma volta na Feira Hippie, lá ouviu músicas lindíssimas da Orques-tra que se apresentava. Foi um dia inesquecível, e sua filha chegou em casa com um sorriso enorme no rosto e pron-ta para dormir de tão cansada. Sair de casa era bom, mas o melhor era poder voltar para sua comunidade, cumprimentar as pessoas que via todos os dias no caminho de casa para o trabalho, conversar com os velhos que tinham histórias de vida para compartilhar. E mais uma vez Marcela se apaixo-nou. O casal alugou uma casinha e foram morar juntos os três. Um ano e meio nessa vida tranquila. Mas como estava muito bom pra ser verdade, o casal começou a discutir toda as vezes que o parceiro chegava tarde da noite meio agressi-vo, respondendo mal. Ela não entendia o que estava acon-tecendo. Tudo que fazia era pro bem dele. Dava a ele roupa lavada e passada, comida quentinha, não deixava sua filha incomodar além de todo o seu amor. Nada disso bastou e ele um dia saiu e não voltou.

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MAriA mudou-se ainda bebê pra comuni-dade com a sua família, moraram lá por uns anos depois o pai alugou uma casa noutro bairro. Mais um tempo depois, mudaram novamente pra outra casa construída pelo seu pai. Só voltou pra comunidade mais tarde, onde vive até hoje. Maria, aos dezessete anos, trabalhava em casa de família, e atendendo a um pedido da patroa foi ao supermercado. No caminho conheceu um pintor de placas. Do nada eles come-çaram a conversar, e toda vez que ela ia fazer compras, eles se encontravam e esqueciam da vida de tanto que o papo era bom. O rapaz perguntou onde ela morava, e um dia apare-ceu lá pra pedir autorização pra namorar a moça. Um ano depois estavam casados, e logo em seguida veio o primei-ro filho, depois o segundo. Como Maria sempre quis ter três filhos e era muito devota, pediu a Deus que lhe desse o terceiro como presente no dia das mães. Seu pedido foi aten-dido, e aproveitando o momento da consulta com o médico pediu que a ligasse, mesmo novinha, como ele disse, com 24 anos. “Ô doutor, eu preciso porque meu marido já teve internado no Galba, ele bebe, é irresponsável e eu já estou cansada de sofrer e eu não quero ter mais filho”. Aí foi onde ele falou que ia assinar o papel autorizando e pediu pra ela arrumar duas testemunhas. Maria morou em vários luga-res, se considerava cigana, morava de aluguel e não parava,

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estava sempre juntando as coisas, fazendo malas e saindo de um lugar para outro. Isso tudo porque o dono do barracão cobrava o aluguel, e como o marido era muito irresponsável e ausente, não pagava. Maria estava com três filhos e viven-do uma situação muito apertada, vida financeira difícil, pois ela não trabalhava fora porque cuidava dos filhos e o marido tinha sumido. Foi quando sua mãe mandou trazer ela e os meninos de volta pra comunidade. Maria não teve tempo pra pensar, ela não estava sozinha, tinha três crianças e já esta-vam passando fome. Na saída, antes de subir no caminhão, a dona do barracão não deixou levar o fogão e o botijão de gás, disse que ficaria como garantia da dívida. O combinado de Maria era que sua mãe olharia as crianças menores, pois ela não conseguiu vaga na creche, e Maria trabalharia fora como faxineira. Começou a trabalhar na casa de uma senho-ra muito chique e por ser caprichosa desempenhando o seu trabalho foi promovida à diarista. Não tinha carteira assina-da, o que recebia ainda era pouco, mas além de ter a certeza do dinheiro todo mês a dona ajudava por fora. Tanto que foi ela que mandou buscar o fogão que ficou pra trás na mudan-ça. Ela emprestou um vestido e embelezou Maria que foi lá pagar o que devia e autorizar a retirada do eletrodoméstico. Não queria que ela fosse humilhada novamente.

As crianças crescendo, a casa da mãe foi ficando pequena pra tanta gente, pois tinha um irmão morando com elas. Por esses motivos Maria reviu sua situação. Resolveu aceitar um emprego de faxineira num condomínio em um período e na casa da antiga patroa em outro. Queria construir sua casa no fundo do lote da mãe. Depois que chegava do trabalho e cuidava dos filhos, ia tirar o barranco sozinha. Cavava a terra até liberar espaço para a construção. Levou um tempo, primeiro cômodo, segundo, terceiro… conversou com seu pai que levantou o barraco pra ela. Aí, com quase tudo pronto

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achou o marido. Ele apareceu, fez a promessa de voltar, só que não voltou para casa, ele continuou irresponsável e Maria falou com ele pra ir embora de vez. Um dia ouviu uma amiga da patroa falando que precisava de uma passadeira pra traba-lhar na sua confecção. Ela, muito sem graça, no outro dia, disse que tinha interesse de trabalhar nessa confecção. Lá teria carteira assinada e gostava de passar roupas. A dona abriu mão de Maria, falou – “tudo bem, pode ir, se você acha que é melhor”. Na loja trabalhava muito. Passava um monte de roupas, fazia pequenos consertos e tudo tinha que ser rápi-do. Maria tinha o seu tempo, gostava de fazer bem feito, mas a gerente era durona e gritava alto no ouvido das funcioná-rias. Nesse passa roupa com vapor quente, senta pra conser-tar roupas e sai no tempo frio fez com que Maria tivesse uma paralisia facial. Os antigos falavam que era constipação. Não doía, simplesmente entortou o rosto, um olho era menor e vivia lacrimejando, a narina era menor, os lábios não junta-vam, não conseguia chupar de canudinho e o sorriso ficou com defeito. A fisioterapia não resolveu. Maria ficou muito tempo fazendo fisioterapia no Hospital da Baleia e a dona da confecção não estava gostando, ela disse que o serviço não estava rendendo, pois tinha muita roupa para passar e ela não estava dando conta. Maria cansou, saiu e voltou pra casa da patroa trabalhando como diarista. Muitas pessoas falaram que ela podia ter entrado na justiça porque foi acidente de trabalho, deveria correr atrás do seu direito. Maria não sabia como fazer, e pra ela era difícil mexer com os papeis, largou pra lá, não mexeu com isso, não. Achava que o bom era estar viva e poder continuar trabalhando, mas o rosto não ficou normal como era. Voltou pra patroa onde trabalhou por mais de dez anos e começou como faxineira de uma escola na sua comunidade. Depois de um tempo a prefeitura prometeu que os funcionários iriam ganhar um salário melhor, que não iam trabalhar sábado, Maria ficou animada, mas nada disso

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aconteceu. Continuou a trabalhar sábado e o salário igual dos outros, só que como cozinheira estava muito cansada, era um serviço muito pesado. Maria se achava lenta pra pensar. Na limpeza ela fazia tudo o que mandavam, era ágil, quan-do falavam – “quero assim” –, ela fazia do jeito que queriam porque Maria fazia de tudo para agradar as pessoas. Na cozi-nha tinha que pensar no cardápio, olhar a data de validade dos produtos, fazer muita comida e as vistas já não ajudavam muito, além de não saber fazer nada sob pressão.

Mesmo nessa correria de ter dois empregos e ainda os filhos para cuidar, Maria casou de novo. Conheceu seu segundo marido ao lado de sua casa. Era viúvo, calado e trabalhador. O único problema é que não frequentavam a mesma igreja, ele era católico, e ela crente, mas Maria tinha certeza que um dia o converteria. Seria a glória. Com a ajuda do marido e os filhos já crescidos diminuiu o ritmo do trabalho e por isso aproveitava mais os netos. Como eram lindos. Seu primo-gênito tinha uma menina. A sua segunda filha tinha quatro filhos do primeiro casamento e duas meninas do segundo. A casa dela tinha que ser grande pra tanta gente. Moravam nove pessoas: o casal, os primeiros quatro filhos e o mais velho que levou a namorada para conviver na família, além das duas meninas caçulas. Maria se sentia abençoada por ter essa família tão querida pra ela. Preocupada com o futuro dos netos, gostaria que na comunidade oferecessem cursos para que as pessoas tivessem condições de se capacitarem para ocupar o tempo e ter uma atividade pra tirar renda. Podia ser aula de computador, aula de bordado, tricô, bijuterias, corte e costura. O marido de Maria era bom companheiro e não a impedia de ir à igreja terça, quarta, sexta e todos os domingos. Ele não se impunha, não achava ruim. Maria acreditava no poder da oração, perto da sua casa tinha muitas igrejas, e o povo orava muito pela comunidade, orava muito pelos seus.

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nAtáliA tinha treze anos e cursava a oitava série do ensino fundamental. Era acordada pelo pai todos os dias, e enquanto ela levantava, trocava de roupa, arrumava o cabelo e se maquiava, seu pai chamava o outro filho e ia pra cozinha preparar o lanche. Os irmãos, na parte da manhã, ficavam na casa de assistência da comunidade. Depois do almoço passavam em casa para colocar o uniforme, pegar a mochila com os cadernos e o lanche que a mãe preparava. Esperavam o escolar na esquina de baixo, e Natália ia calada admirando a paisagem até chegar na escola. Não gostava de ficar em grupo grande de colegas, seus amigos eram resumi-dos. A amiga do coração conheceu há muito tempo, desde a UMEI. Natália gostava mais das conversas dos rapazes, na roda ela fazia alguns comentários, o pessoal ouvia e era onde se sentia bem. Durante o intervalo encontrava com sua amiga e uma colega que era sua vizinha. Acontece que a vizi-nha era meio maluca, fazia umas coisas estranhas, aprontava na escola, não estudava, cutucava os meninos, dava garga-lhada, matava aula. O interessante era ela fazer tudo isso sem ter medo de ser punida e ser suspensa da escola. Um dia, depois de muito insistir, Natália aceitou o convite da colega para faltar à aula. Combinaram no dia seguinte fingir que entravam na escola e correriam para o outro lado da rua em direção à praça do bairro. E assim fizeram. Natália sentia

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um misto de aventura e culpa. Queria um pouco de liberda-de porque em casa tinha que fazer tudo que os pais manda-vam, na escola os professores e na casa de assistência o que a educadora estipulava. Ficava difícil saber o que ela queria, ninguém perguntava, não queriam saber. E se ninguém perguntava, ela não pensava e não sabia dizer. Era confuso. Este dia na praça deu problema. Um professor passando por ali viu os meninos e identificou pelo uniforme, dedurou pra diretora que mandou buscar todo mundo. Aí no outro dia só entrava acompanhado dos pais. Uns bateram nos filhos, ficaram bravos – “onde já se viu fugir da escola”. O pai de Natália perguntou por que ela tinha feito isso, ela disse que foi porque a colega insistiu e ela queria ver como era. O pai explicou que perder aula complica os estudos. Que quando ela quiser conhecer um lugar, era só falar pra ele que ele leva-va ela. Deu um beijo e foi embora.

Natália gostava do jeito do pai, um brincalhão. Sua mãe era mais brava, gostava de tudo certinho. Mandava a filha arru-mar o quarto, cuidar das suas coisas, mas a menina tinha uma preguiça, preferia ficar deitada na cama dormindo. Não via necessidade de arrumar tanto. Para ela estava bom daquele jeito. E a vontade de ficar no quarto dormindo era constante. A casa silenciosa, o pai trabalhando, a mãe também, o irmão brincando sozinho e a avó, que morava ao lado, conversando com os vizinhos e com os passarinhos que criava presos na gaiola. Sentiu-se tão só! Doía lá dentro. Ela não sabia o que estava acontecendo e não queria contar pra ninguém. Não queria nada. E, assim, lutando para tentar se concentrar no livro, estudando pra prova, começou a se espetar com a ponta da lapiseira. Era bom ver a ponta fina afundando na pele. Marcava, ardia e a distraía. Às vezes até sangrava e sentia um certo alívio. A dor de dentro calava. Resolveu pegar o estilete. Foi cortando o braço, descendo e vendo a pele se separar

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depois olhava o sangue vermelho vivo escorrendo. Uma vez saiu tanto sangue que ela teve que sair correndo pro banhei-ro lavar na pia. A água caiu no machucado e ardeu. Foi bom. Começou a fazer isso quase todo dia, ou melhor, assim que cicatrizava ela rasgava de novo. Como sempre usava blusa de manga longa ninguém via. Porém, um dia, por descuido, a amiga viu e perguntou o que era aquilo. Natália pediu segre-do e contou. A amiga ficou assustada e na primeira oportu-nidade falou tudo pra mãe de Natália, que foi logo conversar com ela. Levou-a no Postinho, e o médico, depois de fazer o curativo, encaminhou pra um psicólogo. As conversas foram calmantes, mas o melhor foi saber que sua mãe se preocu-pava com ela e sua amiga também. A partir de então o pai começou a adular a filha, fazia tudo para deixar ela alegre. Pediu pra ela não fazer mais isso, que iria cuidar dela. Natá-lia se sentiu amada de novo. E quando na escola a professora perguntou para os alunos que profissão queriam ter, Natália levantou a mão e disse – “quero ser psicóloga pra ouvir as pessoas, dar a elas um voto de confiança”.

Outro dia apareceu com namorado em casa. O rapaz, um ano mais velho, pediu aos pais pra namorar a moça. Ela até gostava dele, mas sabia que conversar com os amigos da escola era motivo de ciúmes do namorado. Ele ficava embur-rado quando ficava sabendo. Isso incomodava. O rapaz ia à casa de Natália, e ela, por ter medo da avó dele, que tinha fama de ser doida, evitava ir na casa dele. Era o que diziam dela, coitada. Nunca viu mais gorda. E por causa desse boato, que ela nem sabia se era verdadeiro, não conhecia ninguém da família dele.

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Pedro tinha vinte e dois anos. Seus pais eram separados, e por um tempo ele morou com o pai numa comunidade distante da que sua mãe morava. Não gostava do padrasto, apesar de sentir falta do irmão de 10 anos. A convi-vência com o pai começou a ficar difícil, a ter muita briga e discussão. Pedro, aos dezesseis anos, soube que sua mãe se separou do pai do seu irmão, o tal padrasto, e foi logo pedin-do pra ir morar com ela. Na casa da mãe ele tinha um quarto seu, e ela dormia com o filho caçula na única cama. Pedro começou a trabalhar como menor aprendiz, recebia meta-de do salário mínimo e com isso perdeu a pensão paga pelo pai. Sua mãe trabalhou por muitos anos numa lanchonete, e atualmente não fazia nada além do serviço de casa. De vez em quando aceitava faxinar a casa de um vizinho, ganhava o dinheiro para comprar o jantar. Com dezoito anos Pedro começou a trabalhar como office boy, tinha carteira assina-da e gostava do que fazia, aprendia e tinha planos de crescer na empresa. Sua mãe tinha um irmão com mais ou menos cinquenta anos de idade que não era bom da cabeça e morava sozinho. Por morar numa área considerada de risco, foi obri-gado a sair. Como indenização recebeu da Urbel um aparta-mento pequeno, mas novo, que ele achou por bem alugar pra ter renda, e foi morar com sua irmã, mãe de Pedro. O combi-nado era ele ajudar nas despesas da casa, e como o dinheiro

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extra era importante pra família, Pedro foi obrigado a deixar o seu quarto para o tio e dormir com sua mãe e o irmão. De madrugada, quando perdia o sono, pensava em reformar a casa pra mãe, casa que seria dele um dia. Iria rebocar as pare-des, terminar o banheiro e a cozinha, colocar piso e cons-truir um quarto pra ele. Pretendia morar lá por muito tempo ainda, apesar de que o que prendia ele na comunidade eram os amigos. Achava o lugar muito perigoso, principalmente porque se você estava indo pra casa ou saindo pro trabalho e o policial abordava, fazia perguntas, pedia documentos e dependia do policial ir com a cara do sujeito pra liberar. Se o morador era negro pior, a abordagem era mais dura. Final de semana Pedro ficava em casa ou dava um role rápido com os colegas, evitava sair de casa. Parece que ouvia até hoje sua mãe gritando pra ele não brincar na rua. Era costume antigo, e as famílias faziam assim, não deixavam os filhos soltos na rua, era perigoso. Lá não tinha área de lazer, mas se tives-se ia ficar vazia, mãe nenhuma deixaria os filhos brincarem num parquinho correndo risco. Na comunidade tinha mais criança que adulto, sua tia tinha seis filhos, a vizinha tinha cinco e parecia que estava grávida de novo. Um lugar que Pedro gostaria de frequentar era o Centro Cultural, do outro lado do morro, mas ele chegava em casa depois do trabalho por volta das oito horas da noite e o lugar fechava mais cedo. O pessoal fazia capoeira, tinha o grupo do rap também, era bem legal, alegre. Na comunidade tinha um projeto social, Pedro conheceu vários amigos que saíram de lá, uns já esta-vam no crime, outros estavam trabalhando e outros já eram pais. Ele se inscreveu num curso de informática, só que nos dias de fazer o pagamento o cartão de crédito estava sem saldo e não pôde pagar o curso. No ano seguinte ia começar o curso de informática, quando machucou o joelho jogando futebol. O negócio foi feio, infeccionou e teve que ficar afas-tado do serviço pelo INSS por dois meses, e mais uma vez perdeu a oportunidade.

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Pedro não queria se envolver afetivamente com ninguém, até porque pra namorar tinha que gastar dinheiro que ele não tinha. Assim, ia ficando com as pessoas, sem compromis-so, conhecendo sem pensar em casamento, porque acredita-va que antes de casar tinha que estudar muito, ter um bom emprego, e ele tinha o sonho de comprar uma moto, daquelas bem grandes. A palavra casamento assustava Pedro, e prova disso foi saber que um amigo próximo conheceu e casou com uma moça em seis meses. Um absurdo, quem conhe-ce alguém completamente nesse curto período de tempo? Eles não tinham nem onde morar nem renda pra se manter. Muito doido. E por falar em trabalho, outro dia foi chegan-do em casa e sua mãe contou que iria vender MinasCap. Seus tios vizinhos também começaram a vender e dava um bom montante. Ele ficou tranquilo com essa ajuda, porque era ele sozinho pra manter a casa. O tio só dava dinheiro quando Pedro chegava bravo e ameaçava mandar ele embo-ra. Nem pensão o pai do irmão de dez anos pagava, e sua mãe com trinta e oito anos e saudável não trabalhava e ele não entendia o motivo. Mas também não conseguia conver-sar com ela sobre isso. Era problema dela. Pedro queria se dedicar ao seu trabalho, pois era muito grato por ter conse-guido o emprego. Estava na empresa há cinco anos e fez muitas amizades, era reconhecido como um bom profissio-nal e era bastante curioso, ficava sempre atento para ajudar e fazer o seu melhor. Agora, bom mesmo era se os moradores da comunidade mudassem certos hábitos. Pedro achava que tinha ali muitas pessoas ignorantes, e durante uma conver-sa, se ele não respirasse fundo, dava briga. O rapaz vivia um conflito entre quem ele era na comunidade e quem ele se tornou por causa das experiências no mundo lá fora. E quan-do descia do ônibus, subia a rua da sua casa, tudo o inco-modava: a rua esburacada, os becos cheios de casas inacaba-das, muitos cachorros vagando em busca de comida, alguns

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pontos com montes de lixo, música alta, o povo gritando, as meninas desfilando shortinhos, os homens desempregados bebendo no bar, o emaranhado de fios dependurados, a terra sujando seu tênis branco.

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rodney tinha onze anos, vários irmãos e um pai por quem ele tinha uma grande admiração. O pai trabalhava para o tráfico, porque ele tinha que manter a família como podia. Sua mãe era salgadeira e vendia os salgados na feira e nos pontos de ônibus. Rodney gostava de jogar bola, e o pai apostava nessa atividade como profis-são futura para o filho. Dizia – “moleque, faça o seu melhor no campo, não entre pra essa vida de bandido porque não é bom, e depois que entra a gente não sai. Não quero isso pra você”. Rodney entendeu a preocupação e o conselho, e por isso treinava bastante, queria ser o orgulho do pai. Um dia, logo depois do almoço, ouviu gritos vindos da rua. Saiu pra ver o que era e encontrou sua avó aos berros, que olhou pra ele e falou pra não descer, pois tinha acontecido uma tragé-dia. Ele não deu ouvido e correu pra onde estava a multidão. Lá no meio da rua jazia o corpo baleado do seu pai. Rodney entrou em choque. Ficou paralisado, depois tombou e não se lembrava de mais nada. Tudo ficou escuro. Quando acor-dou não conseguia entender nem chorar a perda. Guardou a dor e desistiu do futebol. Com o tempo Rodney aos poucos voltou a frequentar o grupo de amigos, e como ele era muito criativo começou a escrever letra de música e mostrou para os conhecidos, quase que de brincadeira. Cantava em busca de alívio. Numa dessas ocasiões um cara mais velho ouviu,

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gostou e propôs um contrato, uma parceria. Ele tinha uns quarenta anos, mais ou menos a idade do pai de Rodney. Ele levava o menino pra sua casa e lá ficavam até altas horas escrevendo, compondo e preparando para se apresentar na mídia como MC Rod. Rodney estava encantado porque começou a ficar conhecido, recebia um dinheiro que nunca pensou que iria receber, e com ele comprava roupas, tênis e boné de marca. Ajudava com as despesas em casa de vez em quando. O pessoal na rua olhava pra ele diferente, e ele adorava. Rodney se considerava um ídolo. Escolhia quem cumprimentar. Passou a fumar e a beber um pouco. Mulhe-res mais velhas foram aparecendo e se oferecendo. A mãe nada dizia. O pai não mais podia. E o menino de quatorze anos deslumbrado se perdeu.

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rosA tinha onze anos, não convivia com seu pai. Morava com a mãe, o namorado da mãe e com o irmão de dois anos. Não gostava de estudar, não, mas ir pra esco-la ela gostava. Conversava com os amigos, fazia bagunça e brincava. Uma vez uma menina implicou e deu um tapa na cara dela, do nada. Rosa não deixou por menos e soltou o braço em cima da abusada. As duas foram parar na diretoria e ficaram dois dias de suspensão. Antes de sair de casa pra escola, gastava grande parte do tempo se arrumando: pentea-va os cabelos, tomava banho, escovava os dentes, cuidava das unhas enormes e esmaltadas e passava batom. Só depois esta-va pronta. Pegava um biscoito na mesa posta e ia comendo pelo caminho. Final de semana ia pra igreja, nem lembrava qual era, sabia onde ficava e isso bastava. Às vezes ia sozinha. Frequentava o cinema muito de vez em quando e sempre para assistir filme de terror. Adorava. Não tinha celular, sua mãe não permitia, dizia que ela era muito nova e um celular era muito caro, o aparelho e a conta mensal. Rosa não conse-guia ficar quieta, estava sempre mexendo em alguma coisa, cutucando o irmão que estava dormindo, puxando o rabo do cachorro, colocando música no último volume, dançan-do no meio da sala. Adorava dançar, rodopiar, era quase mágico. Sua mãe trabalhava muito e o irmãozinho ficava na creche. O marido da mãe também trabalhava muito, e quan-

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do chegavam em casa, principalmente sexta-feira, iam abrin-do uma garrafa de cerveja, enchiam os dois copos e logo depois estavam fumando. Disso Rosa não gostava, não. Os dois ficavam rindo a toa, a mãe gritava quando ela dizia que estava com fome e o cheiro do cigarro era horrível, seu irmão não podia nem chegar perto que começava a tossir. A casa que eles moravam era boa, Rosa tinha um quarto só pra ela. Às vezes queria ter uma irmã por perto pra conversar até tarde e poder dividir com ela as tarefas de casa que sua mãe mandava ela fazer. Odiava lavar vasilha, seus dedos ficavam todos enrugados. Mas vai falar “não lavo, não” pra ver. Sua mãe colocava de castigo.

O bom de ir pra escola é poder encontrar os amigos, tinha um canto que era só deles, meio reservado, para conversa-rem à vontade, sem ninguém perturbar. Lá dentro não podia fumar, e alguns dos amigos acendiam um cigarro escondido e fumavam. Ela não fumava nem bebia, será que mudaria de ideia e iria experimentar um dia? E na comunidade era disso que gostava, dos amigos, porque morar ali não era muito bom, não. Tinha um córrego perto da sua casa que fedia muito. Nossa, como fedia no calor. Acontecia muita matança também. Rosa não saía de casa à noite com medo e porque as pessoas poderiam ser assaltadas. Por falar em assalto, uma vez seu tio estava trabalhando, aí pediram o carro dele empres-tado, ele emprestou, os homens fizeram um assalto e deixa-ram a arma dentro do carro. A polícia descobriu quem era o dono do carro e prendeu o tio. Foi uma complicação, mas o tio conseguiu sair da prisão. Apesar do susto Rosa admirava o poder da justiça, tinha planos de trabalhar como bombeira ou policial, queria um mundo com menos bandidos.

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rosângelA casou muito jovem e logo em seguida teve um filho que inspirava cuidados e por isso foi obrigada a deixar o emprego. O marido cansou, não supor-tou ter que trabalhar sozinho para manter a família, além de ter que dividir a atenção da esposa com o filho, e se foi. Morando com uma tia, Rosângela sobrevivia fazendo faxina. Sentia-se sozinha pra cuidar dela e do menino. O ex-mari-do não aparecia, não contribuía com dinheiro nem afeto. O menino cresceu, não tinha sucesso na escola, pois era muito difícil pra ele aprender no mesmo ritmo dos colegas, não conseguia memorizar, escrever era complicado. Com tudo isso, o filho já grande, com jeito de criança, foi perdendo a vontade de ir à escola. Não se interessava pelas aulas, não fazia tarefa, não se saía bem nas provas. A mãe batia. Queria com isso sacudir o filho para tirá-lo da preguiça. E na raiva, e no descontentamento, e na solidão, e na falta de dinhei-ro, batia mais. O menino não entendia, mas o corpo ficou marcado, porque não conseguia receber abraço nem ser toca-do. Ao perguntar o que gostava de fazer, ele sorria com cara inocente e dizia: “comer e dormir”. Quando conseguia um dinheiro de faxina, ela acalmava, pedia pra ver os cadernos, a tarefa do filho que mostrava a dúvida na matemática, que ela não sabia ajudar. O pai do seu filho teve outra mulher, que teve uma filha. Mais um motivo pra mágoa de Rosângela.

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E a vida se resumia em procurar faxina, ganhar dinheiro, pagar as contas, insistir com o filho pra deixar os jogos de videogame e estudar. Ele era sozinho, não tinha amigos. Era mais próximo do primo mais novo que ele, filho da tia. Ao ver a luta da mãe em conseguir dinheiro, resolveu traba-lhar. Fazia pequenos serviços de embalagem e entrega das compras de supermercado nas casas dos clientes. Ganhava uma gorjeta boa. Dava uma parte pra mãe e a outra ele guar-dava debaixo da cama que dividia com ela. Todos os dias ao sair da escola encontrava o primo e ficavam na porta do supermercado esperando alguém com as sacolas pesadas precisando de ajuda pra carregar. E o dinheiro que recebia fazia com que ele se sentisse muito feliz. Comunicou à mãe que sairia da escola e que ficaria direto na porta do supermer-cado. Poderia, com isso, conseguir dinheiro pra ajudar em casa. E Rosângela sem saber o que fazer. Conhecia as dificul-dades do filho, mas tinha esperança de conseguir na escola alguém para acompanhar ele na sala de aula para recuperar as notas e voltar. Por mais que falasse que escola era impor-tante, mais animado o menino ficava com a fonte de renda. Então ela entendeu que o estudo seria abandonado. E a tris-teza foi grande quando pensou na possibilidade dela morrer. Como ficaria o menino? O ex-marido tornou-se ex-pai. A tia não tinha condições de cuidar de mais um. Será que quan-do estivesse adulto ele daria conta de sobreviver de gorjetas? E num dia como outro qualquer, o gerente do supermerca-do acalmou a mãe preocupada dizendo que o menino era de bom coração e que estava de olho nele. Poderia proteger ele da fiscalização que não permitia o trabalho de menores e sem registro. Ela agradeceu com os olhos molhados. Até que enfim encontrou alguém pra ajudar com o menino. E o gerente pediu que fosse lá mais vezes para repassar a ela o dia a dia do filho. No final da tarde, com a desculpa de buscar o menino, encontrava com o gerente que a levava para

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o escritório. Lá dentro, sozinhos, conversavam e se enten-diam. Quando a porta era destrancada, ele fazia questão de entregar a ela alguns brindes da loja, produtos de promoção, comida. Rosângela, de sacola pesada, passava pro filho carre-gar e iam sorrindo a caminho de casa.

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VitóriA era uma menina que tinha todo o conforto proporcionado pelo pai. Morava num condomínio fechado, num apartamento enorme, bem decorado, tinha um quarto só pra ela e cada um dos irmãos tinha o seu. No dia a dia ela via o tratamento entre seus pais e ficava tentando entender o que se passava. Ele tinha um bom emprego e um ótimo salário, mas parece que isso não bastava para deixar o pai tranquilo. Sua mãe não trabalhava porque o marido disse que não precisava nem convinha, o papel dela era cuidar da casa e dos três filhos. E a rotina era o pai levantar com a mesa do café posta pela mãe de Vitória, os filhos todos arruma-dos, vestindo o uniforme impecável, Vitória com o cabelo liso, pranchado, e os irmãos menores com o corte de cabe-lo bem rente. Pai e filhos saíam, e a esposa e mãe limpava, lavava, passava, encerava, deixava tudo no lugar como exigia o chefe da casa. Um dia Vitória passou mal, não foi à escola e ficou na cama o dia inteiro. Quando o pai chegou e viu a menina com o cabelo anelado e com volume não quis nem saber se a filha estava melhor, foi direto até a mãe da meni-na, disse vários desaforos e deu um safanão que a machu-cou. Vitória presenciou tudo e ficou chocada. Entendeu que o pai ficou bravo e bateu na sua mãe por sua causa. E que a mãe apanhou também porque Vitória não estava apresentá-vel como ele gostava de ver. Vitória era muito comunicativa

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e gostava de estudar. Tinha boas notas e fazia o possível para ser o orgulho do pai, pois toda vez que ela mostrava o bole-tim, via o sorriso no rosto dele, sinal que ela estava fazen-do a coisa certa. Não tinha muito contato com os vizinhos, quase não se viam. Suas amigas eram do colégio. Não brinca-va muito com os irmãos, porque, além dela ser a mais velha, eles gostavam de jogos de computador e de luta, nada a ver com ela.

Por causa da crise na economia do país, seu pai teve diminui-ção no salário, mas os gastos mensais com a família conti-nuaram os mesmos: TV a cabo, clube, cinema, restaurantes, viagens de férias, van escolar pra eles não pegarem ônibus pra ir pra escola. O pai não aceitou diminuir o nível de vida, não queria perder o conforto e status que tinha e propor-cionava à família e começou a beber, a trair a mãe de Vitó-ria, a bater nela depois de gritar. Sua mãe discutia até certo ponto, e depois saía de perto. Após uma dessas brigas, a esposa comunicou que voltaria a trabalhar. Não seria profes-sora como antes, na época de solteira, mas como faxineira, que era o que sabia fazer e o que dava conta no momen-to. O pai de Vitória ficou vermelho de raiva e disse que de jeito nenhum. No dia seguinte os filhos foram informados da separação dos pais. Ele contratou um advogado e fez a espo-sa assinar a venda do apartamento que moravam. O valor foi dividido entre o casal, mas Vitória e sua mãe estranharam o montante que iriam receber, pois, por ser um apartamento de luxo, acreditavam que a metade do valor da venda daria para comprar um apartamento menor em outro bairro, mas não foi o caso. A mãe de Vitória não quis insistir nessa questão, e brigou na justiça apenas pela pensão do filho caçula. Em trinta dias eles teriam que se mudar. Com ajuda de amigos e parentes maternos compraram uma casa. Pelo menos teriam onde morar sem ter a despesa do aluguel. A mãe de Vitória

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começou a trabalhar como cozinheira, e Vitória numa loja de roupas do shopping. Os outros filhos estudavam e entra-ram para o programa menor aprendiz. Todos ajudavam, até que o irmão mais velho começou a ter crises de depressão. A mãe tentava cuidar, buscar ajuda profissional sem perder o dia de trabalho. Era uma luta. Com o tempo os medicamen-tos começaram a fazer efeito e tudo se acalmou. Uma noite, voltando da faculdade, na primeira semana na favela onde moravam, Vitória foi assaltada assim que desceu do ônibus. Ficou tão assustada que ao desabafar o acontecido com uma amiga, Vitória foi convidada a morar na casa junto da famí-lia dela. Avisou a mãe da sua decisão, e mesmo com o olhar de desagrado, Vitória foi embora. Na casa da amiga ela era tratada como filha, tinha todo o conforto, todo acolhimento e carinho. Os pais colocavam regras que a amiga e ela deve-riam seguir, como hora pra chegar em casa, ter bom rendi-mento escolar. Vitória cumpria tudo e se sentia bem com esse cuidado, mas às vezes se sentia culpada por não estar viven-do junto da sua mãe e irmãos as dificuldades que a vida apre-sentava a eles. Assim, estudava e trabalhava muito na tentati-va de ganhar mais pra tentar minimizar a culpa e alegrar sua mãe com o dinheiro extra. Vitória entregava praticamente todo o seu salário pra sua mãe, por não querer que ela sofres-se, assumindo para si essa função.

Quando entendeu que já tinha ficado tempo demais na casa da amiga, resolveu voltar pra casa. Não foi fácil, além do lugar ser completamente diferente do que estava acostuma-da, tinha que dividir o quarto com os irmãos. Saía cedo, ia para o trabalho e de lá para a faculdade. Tinha noite que dormia no espaço estudantil no campus para não ter que pegar ônibus tarde da noite e caminhar no escuro até a casa. Os irmãos também trabalhavam. O mais velho, por ter interrompido os estudos, não conseguia emprego de carteira

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assinada, não tinha estabilidade e vivia fazendo bicos. O irmão caçula trabalhava e estudava, mas gostava de andar de tênis de marca, com roupa da moda e cheiroso. O dinheiro que sobrava entregava pra mãe. Isso pra Vitória era injusti-ça e egoísmo do irmão, pois tudo o que queria comprar pra ela deixava pra depois, porque comer e sobreviver era mais urgente. E nessa rotina Vitória começou com um quadro de bulimia. Comia, vomitava e emagrecia. Às vezes chora-va sem motivo aparente. Sua mãe, sem poder perder o dia de trabalho e por achar que a filha era maior de idade e dava conta de resolver, não fez nada. Sem perceber, Vitória foi evitando voltar pra casa. Sempre uma desculpa de dormir na casa de amigas, ficou tarde vai ficar na faculdade mesmo. Queria se afastar das brigas em família. Não conseguia se fazer entender. E numa noite, durante uma festa, enquanto todos dançavam e cantavam, Vitória chorava num canto a parte. Lembrou do seu pai que nunca mais teve notícias. Não tinha certeza se estava com saudades. Na verdade não queria sentir nada por ele. E quando começou a chorar novamen-te, apareceu um rapaz meio perdido na festa, que assustado perguntou se estava tudo bem com ela. Vitória sentia tanta necessidade de colocar pra fora a sua dor que sem conhecer a pessoa, ou talvez justamente por ser um desconhecido, desa-bafou. Ele foi um bom ouvinte e isso despertou em Vitória um sentimento que ela nunca viveu – o amor.

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Cláudia Gersen Alvarenga

FALA DAS

CORES