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FAJOPA – FACULDADE JOÃO PAULO II CURSO DE TEOLOGIA O EXERCÍCIO DO MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS NA PERSPECTIVA CONCILIAR E PÓS-CONCILIAR: “Uma nova eclesiologia sobre o laicato” Elenir Agustini MARÍLIA 2010

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FAJOPA – FACULDADE JOÃO PAULO II CURSO DE TEOLOGIA

O EXERCÍCIO DO MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS

NA PERSPECTIVA CONCILIAR E PÓS-CONCILIAR:

“Uma nova eclesiologia sobre o laicato”

Elenir Agustini

MARÍLIA

2010

ELENIR AGUSTINI

O EXERCÍCIO DO MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS

NA PERSPECTIVA CONCILIAR E PÓS-CONCILIAR:

“Uma nova eclesiologia sobre o laicato”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do Título de Bacharel em Teologia pela Faculdade João Paulo II.

Orientador: Prof. Ms. Edenilson Roberto Pinto

MARÍLIA

2010

ELENIR AGUSTINI

O EXERCÍCIO DO MÚNUS SACERDOTAL NA PERSPECTIVA CONCILIAR E PÓS-CONCILIAR: “Uma nova eclesiologia do laicato”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do Título de Bacharel em Teologia, pela Faculdade João Paulo II.

Parecer do Examinador

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Nota: ________________

______________________________ Avaliador

Marília,____/____/_____

Às Irmãs de Jesus Bom Pastor - Pastorinhas

com quem partilho o carisma pastoral.

Às jovens chamadas a continuar a revelar

o rosto de Jesus bom Pastor junto ao Povo de Deus,

como Pastorinhas.

A todos e todas que se preocupam

em favorecer aos fiéis leigos

o resgate de sua identidade

para assumirem com consciência

e dinâmica fidelidade

o múnus sacerdotal na Igreja hoje.

Agradeço

ao Pai

que me chamou a participar do ministério pastoral

de Jesus, o Bom Pastor

e, como comunidade Pastorinha

colaborar na edificação de comunidades cristãs

em corresponsabilidade com os Pastores da Igreja

e o Povo de Deus.

Agradeço a Equipe Provincial e às Irmãs da comunidade local

que me possibilitaram este tempo de aprofundamento.

Gratidão especial ao Professor-tutor Ms. Edenilson Roberto Pinto que

com atenção, paciência e sabedoria me orientou na definição do tema,

na pesquisa e desenvolvimento do trabalho que tenho a alegria de

apresentar.

Sou grata ainda, a todas e todos que me incentivaram,

favoreceram a reflexão e aprofundamento deste importante tema para o

momento atual,

e colaboraram na finalização da minha proposta.

Os fiéis leigos são “os cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” São “homens da Igreja no coração do mundo, e homens do mundo no coração da Igreja” (cf. LG, 31) (DA, 209).

A condição do discípulo brota de Jesus Cristo como de sua fonte, pela fé e pelo batismo, e cresce na Igreja, comunidade onde todos os seus membros adquirem igual dignidade e participam de diversos ministérios e carismas. Desse modo, realiza-se na Igreja a forma própria e específica de viver a santidade batismal a serviço do Reino de Deus (DA, 184).

RESUMO

Em resposta às novas exigências pastorais tomamos como ponto de partida a

identidade dos leigos na Eclesiologia do Vaticano II onde a Igreja se reconhece Povo de

Deus, e, em Cristo, Povo Sacerdotal e Messiânico, chamado a conduzir todos à salvação.

Atualizando-o na América Latina em Medellin a Igreja descobre o submundo dos pobres e

o múnus sacerdotal dos fiéis se concretiza em comunidades. Em Puebla se expressa na

comunhão e participação em fidelidade ao Evangelho e proclamação da dignidade

humana. Constata-se valorização do laicato à luz das primeiras comunidades cristãs. Em

Santo Domingo, o múnus sacerdotal passa pela missionariedade marcada pela promoção

humana e inculturação. Na proximidade do Novo Milênio com a busca do sagrado, cresce

nova cultura marcada pelo individualismo religioso. A Conferência de Aparecida realizada

neste contexto revela preocupação em articular todas as forças vivas na pastoral orgânica e,

como “discípula”, oferecer Jesus Cristo ao Mundo. A vivência do sacerdócio comum se

expressa no discipulado e missionariedade. A vitalidade da Igreja passa pela conversão

pastoral no exercício do múnus profético, sacerdotal e régio em comunidade e incide na

transformação do mundo em favor da vida e na promoção do Reino de Deus.

Palavras-chave: Povo

Múnus sacerdotal dos fiéis

Comunidade

Discípulo

Evangelização

Opção pelos pobres

Missionariedade

RIASSUNTO

Come risposta alle nuove esigenze pastorali, abbiamo preso come punto di partenza

l’identità dei laici nell’Ecclesiologia del Vaticano II, dove la Chiesa si riconosce Popolo di

Dio e, in Cristo, Popolo Sacerdotale e Messianico, chiamato a condurre tutti alla salvezza.

Attualizzando il Concilio per l’America Latina, a Medellin, la Chiesa scopre il mondo dei

poveri e l’ufficio sacerdotale dei fedeli che si concretizza in comunità. A Puebla si esprime

nella comunione e partecipazione in fedeltà al Vangelo e nella proclamazione della dignità

umana. Si constata la valorizzazione del laicato alla luce delle prime comunità cristiane. In

Santo Domingo, l’ufficio sacerdotale passa attraverso l’impulso missionario, reso visibile

dalla promozione umana e dall’inculturazione. Avvicinandoci al Nuovo Millennio, con la

ricerca del sacro, cresce una nuova cultura segnalata dall’individualismo religioso. La

Conferenza di Aparecida, avvenuta in questo contesto, rivela la preoccupazione di

articolare tutte le forze vive nella pastorale organica e la Chiesa, come “discepola”, offre

Gesù Cristo al Mondo. Il sacerdozio comune si esprime per mezzo del discepolato e

dell’impulso missionario. La vitalità della Chiesa passa attraverso la conversione pastorale

nell’esercizio dell’ufficio profetico, sacerdotale e regale nella comunità e incide nella

trasformazione del mondo a favore della vita e della proclamazione del Regno.

Parole-Chiave:

Popolo

Ufficio Sacerdotale dei fedeli

Comunità

Discepolo

Evangelizzazione

Opzione per i poveri

Impulso missionario

SIGLAS

AA - Decreto Apostolicam actuositatem CEBs - Comunidades eclesiais de base CDC - Código de direito canônico CELAM - Conselho episcopal latino-americano ChL - Exortação apostólica christifideles laici CIC - Catecismo da Igreja Católica CT - Catechesi tradendae DA - Documento de Aparecida DI - Discurso inaugural EN - Evangelii nuntiandi GS - Constituição pastoral Gaudium et spes LG - Constituição dogmática Lumen gentium Med - Documento de Medellín P - Documento de Puebla PP - Populorum Progressio SC - Constituição Sacrosanctum concilium SD - Documento de Santo Domingo

SUMÁRIO

SUMÁRIO ____________________________________________________________ 10

INTRODUÇÃO ________________________________________________________ 11

1 O MÚNUS DOS FIÉIS NA PERSPECTIVA CONCILIAR

O POVO DE DEUS ________________________________________________ 16

1.1 O Novo Povo de Deus___________________________________________ 19

1.2 O que significa ser Povo de Deus? ________________________________ 20

1.3 Povo Sacerdotal _______________________________________________ 22

1.4 Missão do Povo de Deus ________________________________________ 27

2 O MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS NA IGREJA LATINO-AMERICANA CONFERÊNCIAS LATINO-AMERICANAS DE MEDELLIN E PUEBLA ___ 32

2.1 Conferência Latino-Americana de Medellin _________________________ 33

2.2 Conferência Latino-Americana de Puebla ___________________________ 37

3 O MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS NAS CONFERÊNCIAS DE SANTO DOMINGO E DE APARECIDA________________________________________42

3.1 Conferência Latino-Americana de Santo Domingo ___________________ 42

3.2 Conferência Latino-Americana de Aparecida _______________________ 49

4 O SACERDÓCIO COMUM E A VIDA ECLESIAL ______________________ 55

4.1 O Pós-Concílio _________________________________________________ 56

4.2 Caminhada após Medellín e Puebla _______________________________ 58

4.3 De Santo Domingo a Aparecida ___________________________________ 59

4.4 Pistas ou intuições pastorais _____________________________________ 62

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________ 65

6 REFERÊNCIAS ____________________________________________________ 74

INTRODUÇÃO

A mudança de época em que vivemos e as grandes conseqüências que traz para a

vida em todas suas dimensões nos coloca frente ao desafio de encontrar novos caminhos.

A cultura pós-moderna privilegia a tecnologia, o lucro, impulsiona à competição e

define o lugar social de cada um a partir do grau de consumo que ocupa. A felicidade

prometida com o individualismo, hedonismo e consumismo geram também o

indiferentismo e relativismo que conduzem ao vazio existencial e paradoxalmente ao

desejo de Deus. As relações humanas e com Deus são manipuladas e, minadas pela

competição limitam a participação e produzem o passivismo, o que não permite ao homem

realizar sua identidade-vocação-missão de filho de Deus, irmão entre irmãos, senhores e

curadores do mundo, a casa de todos. A Igreja “santa e pecadora”, “humana e divina”

também sofre essa influência em sua vida interna e em relação ao mundo que exige

respostas diferentes.

Sente-se certa desarticulação e a Paróquia não está mais atingindo o povo.

Perguntamo-nos: como formar lideranças, comunidades, se o pessoal está caminhando para

outros rumos, não se sente Igreja e não está despertado nem tem espaço para participar na

edificação da Igreja? Somos desafiados a conhecer mais profundamente esta realidade,

como chegamos a esta situação na Igreja, e as possibilidades que temos para resgatar a

identidade e ajudar a ser sujeito da caminhada.

Sem pretender esgotar tão vasto tema, neste trabalho tomaremos como ponto de

partida a Eclesiologia proposta pelo Vaticano II: a Igreja Povo de Deus, focalizando

especialmente a identidade dos leigos, como participantes do múnus profético, real e

sacerdotal de Cristo. Percorrer a trajetória da compreensão e expressão dos leigos no

Concílio Vaticano II e nas Conferências Episcopais de Medellin, Puebla, Santo Domingo e

Aparecida, poderá nos permitir visualizar a raiz da realidade eclesial atual e encontrar

pistas para a caminhada.

Constata-se que a Igreja há tempo está longe da experiência inicial. Deixando-se

influenciar e comandar pela ideologia do Império e esquivando-se de dialogar com as

Ciências e o homem nos diferentes momentos históricos, por longos séculos colocou o

jurídico como eixo principal e se distanciou do objetivo de sua existência e de sua missão.

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Em todo tempo o desejo e a busca de mudança geraram luta por liberdade e autonomia, por

sociedades democráticas, e movimentos de renovação, sonhos de cidadania também na

vida eclesial. A profética ousadia do Papa João XXIII ao convocar o Concílio Ecumênico

Vaticano II, trouxe esperança e colocou novamente a Igreja diante de si mesmo e trouxe

esperança de abertura a mudanças.

Há mais de quarenta anos do final do Concílio Vaticano II e provocados pela

realidade atual sentimo-nos chamados a olhar por dentro a Igreja e como assumiu a

proposta de resgatar sua identidade e missão no mundo. Vamos considerá-la a partir dos

documentos Conciliares: a Constituição Lumem Gentium (LG) e do decreto Apostolicam

Actuositatem (AA) e das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano que se

seguiram.

Com o título “O Povo de Deus” consideraremos a dimensão teológica da

compreensão da Igreja sobre si mesmo. Dentre toda riqueza com que se apresenta,

partiremos do segundo capítulo da Constituição Lumem Gentium, onde se identifica como

“Povo de Deus” e indica as características deste povo messiânico, que embora pequeno

rebanho é para toda humanidade um germe fecundíssimo de unidade, de esperança e

salvação.

Com o decreto Apostolicam Actuositatem na esteira do sacerdócio comum, define

a comum dignidade e responsabilidade de cada batizado que, atuando como fermento na

dilatação do Reino indicando o caminho, revelando a verdade e promovendo a vida em

todas as instâncias permitam que a Igreja concretize o objetivo de sua existência: conduzir

à salvação todos os homens e mulheres, destinados a conhecer e deixar-se acolher pelo

amor misericordioso do Pai e viver na comunhão com o Filho na unidade do Espírito

Santo.

A atualização do múnus sacerdotal dos fiéis na Igreja latino-americana será

abordada, em primeiro lugar, através dos documentos conclusivos das Conferências Gerais

do Episcopado Latino-Americano de Medellin e Puebla.

Em Medellin, a Igreja procurou compreender o momento histórico “à luz da

Palavra, que é Cristo” e deixar-se iluminar para a missão que é chamada a realizar. A

“libertação” se torna a palavra de ordem que deverá nortear a vida de todos os homens sem

exceção, em todas as suas dimensões, e permite o desabrochar da “Teologia da

Libertação”.

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Constata-se que até aí “a Igreja contou com uma pastoral conservadora, baseada

na sacramentalização...”(Med [6.1]). Assinala a necessidade da presença criativa dos leigos

e estabelece a medida de sua atuação como participantes do Povo Sacerdotal em Cristo

profeta, sacerdote e pastor e no processo de transformação do Continente.

Puebla dá as coordenadas para solidificar o caminho iniciado. Já se constata

crescimento na valorização e participação do laicato na vida eclesial e do sentido de

pertença à Igreja. Houve preocupação em resgatar a herança das primeiras comunidades,

envolvendo a todos na edificação da Comunidade pela Palavra, Eucaristia, oração, partilha

e opção preferencial pelos pobres, com ação incisiva na transformação da realidade.

O exercício do sacerdócio dos fiéis realiza-se, entre outras possibilidades, na vida

solidária e oferecida, no anúncio da Boa Nova, no serviço da comunhão, pelo testemunho

de vida e no respeito e promoção da dignidade humana.

As orientações emanadas pela Conferência de Santo Domingo e Aparecida serão

consideradas no terceiro capítulo.

A abertura da Conferência de Santo Domingo coincidiu com os 500 anos do início

da Evangelização no Novo Mundo e sinalizou a caminhada em direção à Nova

Evangelização estendendo atenção especial à promoção humana e à inculturação.

A convocação do Sínodo extraordinário para celebrar os 20 anos do final do

Concílio (1985) e a publicação de duas “Instruções” sobre a Teologia da Libertação

repercutiram profundamente na IV Conferência e culminaram na mudança de rumo da

eclesiologia latino-americana. Pede-se que neste novo tempo a Evangelização seja “nova

em seu ardor, em seus métodos e em sua expressão”. Agora a vivência do múnus

sacerdotal, passa pela missionariedade que envolve a todos os convocados a trabalhar com

ardor na vinha do Senhor, pela vida de oração, louvor e ação de graças.

Chama a atenção a grande freqüência do chamado à mística, à espiritualidade e à

santidade, expressa em muitas formas e lembrada, sobretudo, com referência à fecundidade

da missão e ao testemunho da Igreja. É inclusive recomendado, que a dimensão

contemplativa e a santidade, sejam prioridade em todos os planos Pastorais.

Por outro lado os Bispos recomendam investir na Paróquia. Que venha a ser

“comunidade de comunidades e movimentos”, e a Igreja se compromete a trabalhar “o

protagonismo dos LEIGOS e, entre eles, dos JOVENS” (SD, 302).

À luz do tema: Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos

povos tenham vida. “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6), a Conferência de

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Aparecida é celebrada com o mesmo espírito que animou as Conferências que a

precederam, tendo diante de si o desafio de dar novo impulso à evangelização.

A América Latina e o Caribe são profundamente marcados pela diversidade

cultural dos povos, que coexistem em condições desiguais com a chamada cultura

globalizada, por isso considerar o exercício do sacerdócio comum e ministerial exige

lançar um olhar sobre a realidade marcada pela mudança de época que atinge

profundamente a vida social e eclesial do Povo de Deus.

À luz da palavra do Papa João Paulo II considera-se que “a evangelização do

Continente não pode realizar-se hoje sem a colaboração dos fiéis leigos” (DA, 213), a

palavra de ordem em Aparecida é ser discípulo missionário de Jesus Cristo e o Povo de

Deus o concretiza em continuidade com a caminhada pós-Vaticano.

Após ter retomado as orientações e expressões do múnus sacerdotal nos

documentos conciliares e das Conferências Latino-Americanas, estaremos focalizando a

vida eclesial pós-conciliar com perspectiva pastoral. Tendo o mundo passado por

profundas transformações sócio-política-culturais e econômicas e mais uma vez em

transição, perguntamo-nos: como a Igreja expressa sua identidade de Povo Sacerdotal nesta

mudança de época? Com esta motivação retomaremos a vivência no pós-Concílio e as

Conferências Gerais da América Latina em busca de pistas para caminhar na fidelidade à

vocação de discípulos-missionários de Jesus Cristo.

Constata-se que o Concílio, com a Constituição Lumem Gentium, propôs

mudanças, mas manteve a estrutura anterior ao Concílio. Com as Conferências de Medellin

e Puebla houve certa abertura e os leigos começaram a participar ativamente e com maior

consciência na vida eclesial e assumir seu lugar na sociedade. O solo fértil regado pela

Palavra de Deus favoreceu o desabrochar das Comunidades Eclesiais de Base e da

Teologia da Libertação. O Sínodo Extraordinário (1985) e as “Instruções” sobre a Teologia

da Libertação, que precederam a Conferência de Santo Domingo provocaram uma ruptura

no caminho empreendido em Medellin e reforçado em Puebla e culminaram na condenação

da Teologia da Libertação. No caminho que se seguiu pouco se falou de Povo de Deus e o

foco foi colocado na eclesiologia da comunhão.

Na proximidade da virada do Milênio vimos o despertar do fenômeno da busca do

sagrado. Enquanto a Igreja mantém sua organização e serviços centralizados nas

Paróquias, muitos se voltaram a outras Igrejas, a filosofias esotéricas, reunindo-se em

Movimentos de animação espiritual que se multiplicaram, novas Comunidades de Aliança,

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e outros grupos afins enquanto a mídia se encarrega de propagar nova “cultura religiosa”

que alimenta o “individualismo religioso”.

No Documento de Aparecida transparece a preocupação em articular todas as

forças vivas na edificação da Igreja e em oferecer a resposta que o mundo não pode dar: o

conhecimento e experiência de Jesus Cristo. Os Bispos convocam todos os membros do

Povo Sacerdotal a serem discípulos missionários.

Diante dessas provocações, sem retomar as propostas do Documento

partilharemos algumas intuições que nos parecem possíveis para o resgate da originalidade

eclesial. Cremos que nas trilhas do Concílio e de Aparecida a vitalidade da Igreja se gesta

nas pequenas comunidades, que unidas sob a guia de bons pastores, exercitam o múnus

profético, sacerdotal e régio e, ao mesmo tempo estabelecem parcerias para conseguir

transformar o mundo com políticas públicas em favor da vida: oferenda agradável ao Pai

unida à oferta do Filho, Jesus, o bom Pastor, na unidade do Espírito Santo.

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CAPÍTULO I

O MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS NA PERSPECTIVA CONCILIAR

1 O POVO DE DEUS

Nossa realidade está profundamente marcada pelo mal, sofrimento, desrespeito à

dignidade humana. Em nome do progresso, de organização e solução de impasses

econômicos criam-se estruturas e leis que legitimam a opressão e exploração de inúmeros

cidadãos.

Nesta mudança de época em que as pessoas querem conduzir-se por si mesmas e

buscar o que mais satisfaz, sutilmente são envolvidas na busca de sempre novos produtos

que revelem poder e satisfaçam, mesmo que momentaneamente seus sonhos. Muitos

colecionam produtos de “marca” e buscam estar em dia com a última moda em todas as

dimensões. O desejo de Deus que nasce do vazio existencial é preenchido com migalhas de

experiências em diferentes espaços “sagrados” escolhidos segundo a emoção do momento

nas mais diferentes igrejas ou grupos marcados pelo esoterismo, magia ou buscam uma

religião que não exija compromisso e continuidade. Cada um basta-se a si mesmo. Não

precisa de outros e muito menos do Outro. Por trás está o desejo de comandar a própria

vida.

A realidade sócio-político e eclesial vai por outro caminho. A pessoa humana,

dentro das estruturas econômicas atuais é expropriada de seus direitos fundamentais e

grande número de pessoas são literalmente destituídas da capacidade de pensar, discernir e

decidir a própria vida. A grande maioria é excluída de toda participação sócio-política e

vista apenas como consumidora. Quem não tem capacidade para consumir, não é contado,

simplesmente não existe.

Além disso, a necessidade de multiplicar as horas extras exige empenho total das

energias para garantir um mínimo de sobrevivência ou sustentar a fachada de uma vida

abastada, mesmo quando não mais poderia manter-se nela. A maioria empenha-se numa

vida de luta para ter sempre mais, embora possa exigir privar-se de meios que poderiam

conduzi-las ao verdadeiro valor e cultivo pessoal. Não há disposição para participar, dar-se

ao luxo de alimentar anseios de alteridade nem relacionar-se com o Absoluto. Até as

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relações com Deus são manipuladas em função da alienação e consumismo. A saída,

explorada, sobretudo por igrejas que alimentam a teologia da prosperidade, é invocar as

forças do alto para solucionar os estragos de uma sociedade injustamente organizada.

Historicamente a pessoa humana atingiu o máximo de consideração na chamada

virada antropológica onde as Ciências passaram a influenciar até na própria Teologia e a

considerar o homem como ser-no-mundo, segundo o esquema de Martin Heidegger (1889-

1976), “sujeito” de sua história e com direito a ter primado sobre o objeto. O homem e a

mulher como seres transcendentes, se realizam enquanto agem dentro da história, como

adultos, conscientes e livres, criando cultura, dominando e humanizando o mundo. A

cultura pós-moderna, porém, privilegia a técnica, o lucro, o possuir, e produz relações de

domínio do homem sobre o homem, o que não lhe permite realizar sua identidade e sua

vocação-missão de filho de Deus, irmão entre irmãos diferentes, mas unidos entre si,

senhores e curadores do mundo, a “casa de todos”.

A Igreja, nascida de pequenos grupos de seguidores do Caminho, empenhados na

transformação da realidade em favor do bem comum e vida digna para todos, afastando-se

de suas raízes primeiras colaborou para manter o homem alienado e passivo, portanto

“não-sujeito” distante de sua identidade livre e autônoma originária. Esquivando-se de

dialogar com as Ciências e o homem nos diferentes momentos históricos, a Igreja

personificada pela hierarquia, permitiu a radicalização do dualismo “sagrado-profano”,

“espiritual-material”, “clero-leigo” e a alienação frente ao mundo político, social,

econômico e religioso.

Este espaço não me permite percorrer todo processo histórico, em que a hierarquia

foi acumulando poderes e, para mantê-los foram criando normas e leis que mantiveram o

povo, os governos e a própria sociedade sob sua dependência. A Cristandade vigorou por

longo tempo, mas suas raízes continuam a produzir novos brotos ainda em nossos dias.

O texto de Comblin pode ilustrar a origem desta realidade e a influência do

neoplatonismo na teologia e filosofia medieval, marcada pelo dualismo espírito-matéria

sobre a instituição Igreja. A finalidade da vida estava em voltar à unidade, afastar-se da

matéria para aproximar-se de Deus, o UM primordial. Com raízes nos antigos impérios do

oriente, a ideologia do UM penetrou no império romano: “um só Deus, um só mundo, um

só império, um só imperador” (COMBLIN, 2002, p.55). O Imperador é o representante do

Deus UM para o mundo. Ele recebe tudo de Deus e nada deve aos súditos. Essa ideologia

foi aceita, reconhecida e transmitida para a Igreja cristã e orientou seus poderes desde

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Constantino e aos poucos se tornou dominante no período da Cristandade, onde o

pensamento do UM foi transformado em “um Deus, um Cristo, uma Cristandade, um

Papa” (COMBLIN, 2002, p.56).

A ideologia do Império influenciou muito a Igreja. Par a Comblin, na concepção

da Igreja como sociedade, o jurídico é o eixo principal e a hierarquia é elemento

constitutivo. Nas primeiras comunidades o conceito “povo” era dominante. Na Bíblia a

unidade vem da aliança entre vários: o Povo de Israel vem da aliança entre as doze tribos e

a Igreja está fundada no colégio dos doze apóstolos, a unidade vem da aliança de muitos e

diferentes.

Na antiga tradição cristã, o tema fundamental da Igreja é a aliança, a comunhão.

Este pensamento nos remete a Deus Trindade, Amor e Comunhão bastante presente,

sobretudo no epistolário paulino e joanino.

A Igreja, que está no mundo, mas não se esgota no mundo, tenta estar longe das

influências das Ciências e modernidades, mas sofre sua influência nas suas relações

internas e com o mundo, em todo seu significado e sua abrangência.

Em todo tempo o desejo e a busca de mudança geraram luta por liberdade e

autonomia, na vida sócio-política, por sociedades democráticas, ao mesmo tempo com

avanços e recuos, segundo maior ou menor controle da instituição, se multiplicaram

movimentos de renovação, sonhos de cidadania também na vida eclesial. A profética

ousadia do Papa João XXIII ao convocar o Concílio Ecumênico Vaticano II, realizado em

Roma entre 1962 e 1965 contando com a presença da grande maioria dos Bispos de todos

os continentes, trouxe esperança e colocou novamente a Igreja diante de si mesma e do

mundo, o que significou possibilidade de abertura a mudanças e a descortinar novos

horizontes.

A seguir vamos olhar por dentro a Igreja a partir do Concílio Vaticano II, que

embora não totalmente compreendido e aplicado, significou um novo começo para a Igreja,

e se constitui um marco divisor na vida da Igreja e do mundo.

19

1.1 O novo Povo de Deus

Com a Constituição Dogmática “Lumem Gentium”(LG), assinada aos 21 de

novembro de 1964, a Assembleia Conciliar apresenta o mistério da Igreja como a face que

resplandece Cristo, Luz dos Povos, a toda a humanidade. Chamada pelo Espírito de Deus, a

tornar presente no mundo o Reino de Deus que o Cristo Senhor, veio inaugurar, a Igreja

sente-se desafiada a retomar o ensino dos Concílios anteriores e se propõe a apresentar

com maior rigor a sua natureza e sua missão. Em Cristo é sacramento e instrumento da

união íntima com Deus Trindade e da unidade de todo gênero humano. Que todos

alcancem a unidade total em Cristo (LG,1).

Dentre toda riqueza com que a Igreja se apresenta em sua profunda e complexa

realidade, limitar-me-ei a considerar o segundo capítulo onde, após recordar as imagens

com que foi comparada no decorrer da história (LG, 6 e 7), a mesma e única Igreja, ao

mesmo tempo visível e espiritual, santa e pecadora, se identifica como “Povo de Deus”.

Como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto já é chamado Igreja de Deus (2Esd 13,1; cf. Nm 20,4; Dt 23,1ss) assim o novo Israel que caminha no presente tempo, busca a futura cidade perene (cf. Hb 13,14), também é chamado Igreja de Cristo (cf. Mt 16,18). Pois o próprio Cristo adquiriu-a com o seu sangue (cf. At 20,28), encheu-a de Seu Espírito e dotou-a de meios aptos de união visível e social. Deus convocou e constituiu a Igreja – comunidade congregada daqueles que, crendo, voltam seu olhar a Jesus, autor da salvação e o princípio da unidade e da paz – a fim de que ela seja para todos e para cada um o sacramento visível desta salutífera unidade (LG, 9).

O Concílio propõe à Igreja do século XX resgatar a consciência de que é herdeira

legítima da Nova Aliança selada com a oferta da própria vida de Cristo Jesus. Nova

Aliança que levou à plenitude a Antiga Aliança estabelecida entre Deus e o povo de Israel.

Tendo-o escolhido, em sua infinita misericórdia, Deus foi se revelando, instruindo e

preparando-o para assumir com consciência, não individualmente, mas formando com eles

um povo que o conhecesse e o servisse em santidade.

Encontramos já nas cartas de Paulo e de Pedro o chamado às primeiras

comunidades para a consciência de sua identidade de Novo Povo de Deus. A Lumem

Gentium (9) resgata essa realidade:

20

Foi Cristo quem instituiu esta nova aliança, isto é o novo testamento em seu sangue (cf.1Cor 11,25), chamando de entre os judeus e gentios um povo, que junto crescesse para a unidade, não segundo a carne, mas no Espírito, e fosse o novo Povo de Deus. Na verdade os que crêem em Cristo, os que renasceram não de semente corruptível, mas incorruptível pela Palavra do Deus vivo (cf.1Pd 1,23) não da carne, mas da água e do Espírito Santo (cf.3,5-6), são finalmente constituídos “em linhagem escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido... que outrora não era, mas agora são povo de Deus (1Pd 2,9-10).

Como o antigo Israel toda a Igreja é chamada a ser Povo de Deus, reino de

sacerdotes e nação santa. Deve ser fiel à aliança firmada com o sangue do Cordeiro

oferecido uma vez por todas e cada um dos seus filhos, mergulhados neste sangue redentor

pelo batismo tornem-se dignos da promessa: “... se ouvirdes a minha voz e guardardes a

minha aliança sereis para mim uma propriedade particular entre todos os povos... Vós

sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,5-6).

1.2 O que significa ser Povo de Deus?

Os Bispos definindo a Igreja como “Povo de Deus” (Lumem Gentium, LG,) e

considerando-a enviada com uma missão no mundo (Gaudium Et Spes, GS) dão as

coordenadas para resgatar a identidade de “Povo” e a superação do dualismo “clero-leigo”,

“sagrado-profano” recolocando a Igreja nos trilhos rumo às suas origens onde a

comunidade, querendo viver segundo o exemplo e a proposta de Jesus, “era um só coração

e uma só alma...” (At 4,32.34): inaugurava novas relações no interno da comunidade e com

o mundo sócio-político. Todos, sem distinção de raça, etnia, cor, língua, costumes..., são

incorporados em Cristo e constituídos membros do novo Povo de Deus. Consciente da

vocação de ser Igreja-povo, mais que Igreja-sociedade, estabelece novos horizontes em que

todos e cada um são chamados a ser sujeitos do novo processo evangelizador.

De geração em geração este tesouro é confiado aos que acolheram a proposta de

Cristo (1Cor 11,21-26). Cada batizado é sempre de novo convocado a renovar, em cada

celebração eucarística, em cada sacramento a Nova Aliança. Isto traz consequências para

21

sua existência e estabelece distinções entre a Igreja Povo de Deus e outras sociedades,

agrupamentos religiosos, étnicos, políticos ou culturais.

O Catecismo da Igreja Católica 1, à luz da Constituição Lumem Gentium (9) traz as

características da identidade da Igreja, Novo Povo de Deus:

• A Igreja é o Povo de Deus, não pertence a nenhum outro povo, mas a Deus que

o adquiriu para si. Fazem parte dela os que não eram povo, mas agora são “uma

raça eleita, um sacerdócio régio, uma nação santa” (1Pd 2,9).

• A pessoa torna-se membro deste povo não pelo nascimento físico em

determinado lugar, mas pelo “nascimento do alto”, “da água e do Espírito” (Jo

3,3-5), isto é, pela fé em Cristo e pelo Batismo.

• Este povo tem como Cabeça, Jesus Cristo (Ungido, Messias) que “foi entregue

por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação”. (Rm 4,25) E agora,

tendo conseguido um nome que está sobre todo o nome, reina gloriosamente

nos céus. Como membro do Corpo de Cristo, participa da mesma Unção, do

Espírito Santo, que flui da Cabeça para o Corpo, ele é “o Povo Messiânico”.

• A condição deste povo é a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos

corações habita o Espírito Santo como num templo.

• Todas as sociedades têm uma Constituição para conduzir sua vida. Para este

Novo Povo, a Lei, é o mandamento novo de amar como Cristo mesmo nos

amou. (Jo 13,34) É a Lei “nova” do Espírito Santo (Rm 8,2; Gl 5,25).

• Sua missão é ser o sal da terra e a luz do mundo (Mt 5,13-16). “Ele constitui para

todo o gênero humano o mais forte germe de unidade, esperança e salvação”.

• Sua meta é “o Reino de Deus, iniciado pelo próprio Deus na terra, a ser

estendido mais e mais, até que, no fim dos tempos, seja consumado por Ele

próprio, quando aparecer Cristo, nossa vida (Cl 3,4)”.

Pode-se dizer que o Povo de Deus subsiste na Igreja, mas não é idêntico à Igreja,

se tomarmos a Igreja como instituição visível da qual somos membros. O Povo de Deus vai

além da Igreja católica e todas as Igrejas cristãs. Este povo messiânico, embora pequeno

rebanho é para toda humanidade um germe fecundíssimo de unidade, de esperança e

salvação. É instrumento da redenção universal para o mundo inteiro. Esta é sua vocação-

missão, recebida como um selo ao ser admitido como filho de Deus pelo Batismo. Jesus

Cristo é o filho de Deus por natureza, mas todos os cristãos tornam-se, pelo batismo, filhos 1 Catecismo da Igreja Católica (CIC), n. 782

22

de Deus por graça. Por isso, todos os cristãos, seja qual for sua condição ou estado são

chamados à perfeição da santidade.

1.3 Povo Sacerdotal

Na Constituição Lumem Gentium, o Concílio coloca em evidência que a Igreja,

Povo de Deus é um “Povo Sacerdotal”. Pelo sacerdócio comum, todos os seus membros,

clero e fiéis, unidos pelo batismo, cada um a seu modo, participam do sacerdócio único de

Cristo.

Para melhor compreender o significado de ser Povo Sacerdotal que se refere a

“sacerdócio”, vamos considerar a origem deste termo segundo a reflexão de José

Ariovaldo da Silva (2003):

[...] ‘sacerdócio’ (que vem do latim: sacerdotium) deriva-se do substantivo latino sacerdos (sacerdote) que, por sua vez, vem da soma (ajuntamento) de duas outras palavras: sacer (do latim: sagrado, segregado, reservado, inviolável, intocável) + dot (do verbo grego dídomi (didwmi): dar, oferecer, entregar, fazer/realizar uma oferta – faz lembrar dote). Assim, sacerdote seria a pessoa que oferece à divindade coisas sagradas (= reservadas somente para Deus), os sacrifícios; também a pessoa que preside as cerimônias de um culto religioso em que se oferece à divindade as orações, homenagens, sacrifícios. E “sacerdócio” seria o exercício da função própria de quem é incumbido deste serviço.

Congar indica a vocação sacerdotal do povo de Israel:

É ele que se faz objeto da eleição pela qual Deus o colocou à parte, toma-o, consagra-o como Seu povo particular. [...] É um povo verdadeiramente de Deus, portanto santo. É um povo consagrado, um povo religioso, um povo de louvor e culto. Mas sua qualidade sacerdotal implica igualmente a idéia de um papel a desempenhar junto das nações: Israel ser-lhes-á testemunho, um revelador do verdadeiro Deus, um iniciador de seus louvores, um privilegiado celebrante de Seu culto (CONGAR, 1966, p. 163).

As comunidades cristãs bem cedo começaram a reler a vida e a ação de Jesus à luz

do AT, e chegaram a lhe atribuir a qualidade de um supremo sacerdócio. A morte de Jesus,

na visão do Apóstolo Paulo é vista como o sacrifício por excelência (1Cor 5,7; Ex 12), o

23

sacrifício do Servo de Iahweh (Fl 2,6-11; Is 53), e o sacrifício redentor do dia da Expiação

(Rm 3,24-25; Lv 16). Esta consideração da Igreja do primeiro século é contemplada na

Lumem Gentium onde se encontra o desdobramento do Sacerdócio comum.

Para o autor da carta aos Hebreus, Jesus, único sacerdote-mediador entre Deus e a

humanidade, entregando-se a si mesmo em favor do povo, ofereceu de uma vez por todas o

sacrifício que supera todos os outros sacrifícios (7,26-28). Desse momento em diante Jesus

se tornou para sempre o único intercessor (7,24 ss) e mediador da Nova Aliança (8,6-13;

10,12-18). Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens (Hb 5,1-5), fez do novo povo

“um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai” (Ap 1,6;5,9-10). Em Cristo, único sacerdote

verdadeiro, formando com Ele um só Corpo (1Cor 12,12-31), pelo batismo constituídos

membros do novo e verdadeiro “povo sacerdotal”, oferecem o único sacrifício que

realmente agrada a Deus: o sacrifício de Cristo e, em Cristo, toda sua vida cristã como

hóstia viva, santa, solidária com os irmãos e irmãs, na vida e na celebração Eucarística (LG,

10).

DA SILVA (2003) lembra que Jesus não é chamado de Sacerdote no Novo Testamento,

a não ser (curiosamente!) na Carta aos Hebreus (Hb 7,23-28; Hb 9,11-12; Hb 10,5-14). Por estes textos, dá para ver que o “sacerdócio de Jesus” é entendido não em sentido ritual, mas existencial. A saber, ele não é um 'separado dos demais', como acontecia tradicionalmente com os sacerdotes, mas se solidariza radicalmente com todos [...]. Ele mesmo, na total obediência ao Pai, 'se deixa sacrificar' até a morte e morte de cruz, até a última gota do seu sangue. Ele é visto como sacerdote, não colocando em prática ritos sagrados, mas na radical obediência ao Pai, entregando ('sacrificando') toda a sua vida a serviço das pessoas, sobretudo em sua morte, para a salvação do ser humano. Sua ressurreição é a marca definitiva de que este é o culto que mais agradou a Deus.

Em Cristo o Novo Povo constituído de todos os cristãos batizados, pela

regeneração e unção do Espírito Santo é consagrado como “pedras vivas” do edifício

espiritual e sacerdócio santo (1Pd 2,5). Como discípulos de Cristo, perseverantes na oração

e no louvor de Deus (At 2,42-47), através de toda atividade cristã são chamados a oferecer

sacrifícios espirituais e oferecer a si mesmos como hóstia viva e santa, agradável a Deus

(1Pd 2,5; Rm 12,1; LG,10). e a anunciar por toda parte, as razões de sua esperança na vida

eterna àqueles que se interessarem (1Pd 3,15).

24

Para São Leão Magno2 todos os cristãos são chamados a exercer uma função

sacerdotal:

Todos os que renasceram em Cristo obtiveram, pelo sinal da cruz a dignidade real e, pela unção do Espírito Santo, receberam a consagração sacerdotal. Por isso, não obstante o serviço especial do nosso ministério, todos os cristãos foram revestidos de um carisma espiritual que os torna membros desta família de reis deste povo de sacerdotes. Não será na verdade, função régia o fato de uma alma, submetida a Deus, governar seu corpo? E não será função sacerdotal, consagrar ao Senhor uma consciência pura e oferecer no altar do coração a hóstia imaculada de nossa piedade?

Segundo Congar, o sacerdócio dos fiéis é uma realidade extremamente rica que

não se esgota em um só aspecto, nem em uma só afirmação. Coloca em evidência que, com

o processo histórico e o desenvolvimento da tradição, nos diversos momentos, as obras

completas trazem a riqueza e a complexidade dos aspectos do sacerdócio dos fiéis.

Elencamos a seguir, expressões do sacerdócio dos fiéis apontados por Congar com

a sua garantia, de que “todos esses aspectos pertencem autenticamente ao depósito da

Tradição” (CONGAR, 1966, p. 178-184):

Há um sacerdócio moral, que consiste em cumprir os atos de uma alma sacerdotal em um espírito de religião; há um sacerdócio real, mas interior, espiritual, o da oração, da vida ascética; há um sacerdócio de referência e de valor sacramentais, ligado não somente à vida santa, mas à consagração batismal e cujo ato supremo se cumpre na participação da oferta na Eucaristia (CONGAR, 1966, p. 183).

• O Novo Testamento apresenta o sacerdócio dos fiéis em termos de hóstias vivas, santas, sacrifícios espirituais agradáveis a Deus (Rm 12,1; Flp 3,3; 1Pd 2,5);

• Sacrifício de louvor, fruto dos lábios (Hb 13,15) e confissão de fé (1Pd); • Obras de misericórdia na linha dos profetas de Israel: a caridade, a partilha, a

esmola (Hb 13,16); • Obras de misericórdia espirituais:

o ensino, a comunicação da verdade salutar, pela palavra3: São Paulo emprega para o ministério do Evangelho expressões cultuais muito fortes: não apenas diaconia, mas litúrgico, sacrificador, oferenda (Rm 15,16-31); o serviço passa de uma oferta de coisas em um templo

2 Catecismo da Igreja Católica, nota 1407, p.226 3 CONGAR, 1966, nota 46 p.179: São João Crisóstomo chama o exercício do ministério da palavra de “o maior, o mais augusto dos sacrifícios”.

25

material para a construção, na fé dos fiéis, de um templo espiritual em que o próprio homem vivo se oferece livremente em sacrifício.

• “No Batismo, diz São João Crisóstomo, tu te fizeste rei, sacerdote e profeta...

sacerdote quando ofereceste a ti mesmo a Deus, imolaste teu corpo e foste tu

mesmo imolado”. “Se morremos com ele, com Ele viveremos” (Rm 8,13).

• Diz Santo Agostinho: o sacerdócio e o sacrifício dos fiéis consistem em

ordenar-se para Deus [...].

• “O Sacerdócio dos fiéis comporta duas aplicações diferentes: uma na ordem da

vida santa ou da oferta de si, outra na ordem sacramental e singularmente o

culto eucarístico” (CONGAR, 1966, p. 256).

• Apresenta uma conclusão: “o culto, os sacrifícios dos fiéis e, portanto, o

sacerdócio que corresponde a eles, são essencialmente os de uma vida santa,

religiosa, de oração, consagrada, caridosa, misericordiosa, apostólica”

(CONGAR, 1966, p. 180). As hóstias, o sacerdócio dos fiéis são “espirituais” em

seu sentido bíblico, não só moral. O sacerdócio dos fiéis deve ser antes

chamado de espiritual-real. Mas ele não é da ordem da celebração do culto

público e sacramental da Igreja, confiado aos ministros ordenados para esse

serviço.

Na medida em que Cristo comunica a homens o poder de com Ele celebrar o culto de seu sacerdócio [...]. Ele os consagra e os delega para essa celebração, fazendo-os participar do seu sacerdócio”. “Esse culto é o culto de Cristo na e pela Igreja; é, portanto, eclesial, isto é, social e comunitário em sua própria estrutura. Todo corpo é seu celebrante com Cristo, seu chefe [...] (CONGAR, 1966, p. 191).

No seio deste Povo, o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial

ordenam-se um ao outro, diferenciando-se na essência.

Na esteira do sacerdócio comum, todos os batizados, fiéis leigos e os ungidos para

o exercício ministerial participam do sacerdócio único de Cristo. Cada um vive a dignidade

e a cidadania de membro do povo sacerdotal, como sujeito livre e ativo segundo o seu

lugar e o dom recebido. O sacerdócio ministerial que alguns recebem confere-lhes o poder

sagrado do governo pastoral e o da presidência da Eucaristia. Torna-se “ministro” para, em

nome do Povo, oferecer a Deus o sacrifício eucarístico. Os fiéis participam da oblação

eucarística, oferecendo-se também, como oferta agradável a Deus. Toda a Comunidade

26

sacerdotal exerce seu sacerdócio na oração e ação de graças, por uma vida santa, e na

prática da caridade (LG,10). Os sacramentos são o lugar privilegiado para a participação do

Sacerdócio de Cristo (LG, 10-11):

• Pelo sacramento do Batismo que os incorpora a Cristo, os fiéis renascem como

filhos de Deus, recebem o caráter que os delega ao culto cristão e a professar a

fé que pela Igreja receberam de Deus.

• Pelo sacramento da Confirmação, vinculam-se perfeitamente à Igreja e recebem

especial vigor do Espírito Santo. Com essa graça comprometem-se seriamente a

ser testemunhas verdadeiras de Cristo e a difundir e defender a fé.

• Participando do sacrifício eucarístico, ponto culminante de toda vida cristã,

oferecem a si mesmos como vítima divina. Pela oblação e pela comunhão,

leigos e ministros ordenados exercem seu sacerdócio de maneira diferente.

Fortificados com o corpo de Cristo na sagrada Comunhão manifestam de forma

concreta a unidade do Povo de Deus.

• Pelo sacramento da Penitência, dispõem-se a acolher a misericórdia de Deus e,

ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja que continuamente chama à

conversão.

• Pela Unção dos Enfermos e a oração dos sacerdotes toda a Igreja recomenda os

doentes ao Senhor, e os exorta a se unirem livremente à Paixão e morte de

Cristo (Rm 8,17; Cl 1,24) e a contribuírem assim para o bem do Povo de Deus.

• Os chamados a receber as Ordens Sacras, são destinados a apascentar a Igreja

em nome de Cristo, com a palavra e a graça de Deus.

• Os esposos cristãos, pelo sacramento do Matrimônio, que faz com que eles

sejam símbolos do mistério da unidade e do amor fecundo entre Cristo e a

Igreja e participam do mesmo mistério (Ef 5,32), ajudam-se mutuamente a

conseguir a santidade da vida conjugal e na aceitação e educação dos filhos,

gozam de um dom característico dentro do Povo de Deus (1Cor 7,7). Dessa

união procede a família, nascem os novos cidadãos e pela graça, os novos filhos

de Deus. A família pode chamar-se “Igreja doméstica” onde os pais sejam para

os filhos os primeiros arautos da fé e fomentem a vocação de cada um, em

especial a vocação sagrada.

27

1.4 Missão do Povo de Deus

Com o Batismo cada batizado passa a ser membro do Povo Messiânico e começa

a participar da missão profética, sacerdotal e real de Cristo. No Batismo de crianças o rito

de ungir com o santo Crisma e as palavras: “A partir de agora, você faz parte do povo de

Deus. Você é membro do Corpo de Cristo e participa da sua dignidade de sacerdote,

profeta e rei” é evidenciada também a dimensão do sacerdócio real. Todo povo sacerdotal

goza da comum dignidade e responsabilidade pela vida e missão da Igreja.

O Povo de Deus é marcado com o dom da universalidade. Toda a humanidade é

chamada a pertencer ao novo Povo de Deus. Por isso este povo, permanecendo uno e

único, deve estender-se a todo mundo e por todos os tempos. Cada cristão torna-se ponte

para que se realize o desígnio de Deus

que enviou seu Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas (cf. Hb 1,2) para que Ele fosse Mestre, Rei, Sacerdote de todos, Cabeça do novo e universal povo dos filhos de Deus. Para isso Deus enviou enfim o Espírito de seu Filho, Senhor e Fonte de vida. É ele que congrega toda a Igreja, cada um e todos os crentes. É ele o princípio de unidade na doutrina dos apóstolos, na fração do pão e nas orações (cf. At 2,42 grego) (LG, 13).

Todos, leigos e ministros ordenados, são chamados a exercerem no mundo o seu

apostolado, com entusiasmo e espírito cristão atuando, como fermento, em todos os lugares

e de diversas maneiras. Cada um colocando seus dons a serviço do todo da Igreja, colabora

para o crescimento da comunicação mútua e pelo empenho comum para alcançar a

plenitude da unidade e salvaguardar a diversidade. A Igreja conta com todos para dilatar o

Reino indicando o caminho, revelando a verdade e promovendo a vida em todas as

instâncias utilizando-se das inúmeras linguagens que as diversas realidades exigirem.

Todos são convidados, embora não todos estejam preparados, ou não se disponham a

aprofundar os conhecimentos da Verdade Revelada, ou a colocar-se à disposição da

comunidade eclesial.

Os Padres Conciliares, considerando a importância e urgência de convocar os

leigos ao apostolado, promulgaram o Decreto Apostolicam Actuositatem (AA), onde é

delineada a natureza, a índole e a variedade do apostolado dos leigos. Deixa claro que sua

missão é destinada a todos e por isso confiada a todos os batizados:

28

Nasceu a Igreja com a missão de expandir o Reino de Cristo por sobre a terra, para a glória de Deus Pai, tornando os homens todos participantes da redenção salutar e orientando de fato através deles o mundo inteiro para Cristo. Todo o esforço do Corpo Místico de Cristo que persiga tal escopo recebe o nome de apostolado (AA,2). Como participantes do múnus de Cristo sacerdote, profeta e rei, os leigos participam ativamente na vida e ação da Igreja. No interior das comunidades da Igreja sua ação é tão necessária que sem ela o próprio apostolado dos pastores não poderia, muitas vezes, alcançar o seu pleno efeito. Leigos de verdadeiro espírito apostólico, à maneira daqueles homens e senhoras que ajudavam a Paulo no Evangelho (At 18, 18-26; Rm 16,3) suprem o que falta a seus irmãos e reerguem o ânimo tanto dos pastores quanto do restante povo fiel (1Cor 16,17-18). Pois eles, nutridos pela participação ativa na vida litúrgica de sua comunidade, tomam parte de maneira solícita, nas suas obras apostólicas; trazem para a Igreja os homens que porventura dela se encontram afastados; colaboram intensamente na transmissão da palavra de Deus, em especial pela obra da Catequese; pondo à disposição sua competência, tornam mais eficaz a cura d’almas e a administração dos bens da Igreja (AA, 10).

Os Bispos reunidos exortam cordialmente os leigos, conforme a capacidade

intelectual de cada um e a sua formação, a que segundo o pensamento da Igreja, colaborem

mais diligentemente em explicitar, defender e aplicar devidamente os princípios cristãos

aos problemas de nosso tempo. Esperam que os cristãos

tenham [...] em alta estima a competência profissional, o espírito de família e de civismo, bem como aquelas virtudes que fazem parte das relações sociais, a saber, a honestidade, o espírito de justiça, a autenticidade, a afabilidade, a coragem , pois sem elas nem verdadeira vida cristã pode subsistir (AA, 4).

Com esta consciência, os leigos encontram inúmeras ocasiões para

exercerem o apostolado da evangelização e de santificação. O próprio testemunho de

vida cristã e as boas obras feitas com espírito sobrenatural têm força para atrair os homens

à fé e para Deus e lhes permite concretizar a proposta de Jesus: “Assim brilhe a vossa luz

diante dos homens, de modo que as vossas boas obras glorifiquem o vosso Pai que está no

céu” (Mt 5,16).

Cada um é chamado a participar segundo o dom recebido por graça de Deus:

Existe na Igreja diversidade de serviços, mas unidade de missão. Aos apóstolos e a seus sucessores foi por Cristo conferido o múnus de, em nome e com o poder d’Ele, ensinar, santificar e reger. Os leigos, por sua vez, participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, compartilham a missão de todo o Povo de Deus na Igreja e no mundo.

29

Realizam verdadeiramente apostolado quando se dedicam a evangelizar e santificar os homens e animar aperfeiçoar a ordem temporal com o espírito do Evangelho, de maneira a dar com a sua ação neste campo claro testemunho de Cristo e ajudar a salvação dos homens (AA, 2).

É preciso cultivar vínculos de comunhão entre todos os membros quanto às

riquezas espirituais, como à distribuição de operários apostólicos e dos recursos materiais,

para tornar vivo e dinâmico o caráter de universalidade e catolicidade que distingue o Povo

de Deus. Por este conduz a recapitular tudo em Cristo na unidade do Espírito Santo e

acolher todos os povos com sua diversidade e sua cultura e a variedade de cargos e

serviços promova o bem de todos, como bons administradores da multiforme graça de

Deus (LG, 13).

A união com Cristo Cabeça é origem e condição para os fiéis leigos exercerem o

apostolado. Diz o Decreto:

Os leigos derivam o dever e o direito do apostolado de sua união com Cristo-Cabeça. Pois, inseridos pelo batismo no Corpo de Cristo, pela confirmação robustecidos na força do Espírito Santo, recebem do próprio Senhor a delegação ao apostolado. São consagrados para formar o sacerdócio régio e o povo santo (cf. 1Pd 2,4-10), de sorte que, por todas as obras ofereçam hóstias espirituais, e por toda a parte apresentem o testemunho de Cristo. Pelos sacramentos, porém, particularmente pela Santíssima Eucaristia, comunica-se e alimenta-se aquela caridade que é como que a alma de todo apostolado (AA,3).

O texto destaca ainda que, da união vital com Cristo, depende a fecundidade do

apostolado:

É missão da Igreja salvar os homens pela fé em Cristo e por Sua graça. Por isso o apostolado da Igreja, e de todos os seus membros, se orienta antes de mais nada para a manifestação da mensagem de Cristo ao mundo por palavras e por atos como também para a comunicação de Sua graça. Isto se realiza principalmente pelo ministério da palavra e dos sacramentos, confiado especialmente ao clero, mas no qual também os leigos têm a realizar um papel de grande importância, para se fazerem “cooperadores da verdade” (3 Jo 8). Nesta linha, sobretudo completam-se mutuamente o apostolado dos leigos e o ministério pastoral (AA,6).

O Concílio Vaticano II renovou a concepção de participação eclesial dos leigos,

pois todo cristão é convocado à atividade missionária da Igreja, cujo objetivo é a

transformação das relações humanas, à luz dos princípios evangélicos. A realidade secular

é o palco privilegiado para os leigos exercerem e viverem em seus respectivos e diversos

30

apostolados. Daí a importância dos leigos na transformação social; por meio de seus

engajamentos na vida cívica, torna-se a motivação maior para a implantação do Reino de

Deus.

Acolhendo este mandato cada batizado, portador do múnus profético faz ecoar o

anúncio do Reino inaugurado por Jesus, continuado pelos Apóstolos e missionários de

todos os tempos. Dá testemunho de sua fé no cotidiano de sua vida pessoal, familiar e na

participação da vida secular, pela denúncia e luta contra toda forma de dominação e

injustiça.

Este povo messiânico exerce a missão profética de Cristo, oferecendo a Deus o

sacrifício de louvor e glorificando o seu nome (Hb 13,15) através do testemunho de sua

vida de fé e caridade. Sob a orientação do sagrado Magistério e na fiel obediência ao

mesmo, recebe não palavra humana, mas a Palavra de Deus (1Ts 2,13)... penetra a fé mais

profunda e convenientemente, e passa a vivê-la com maior intensidade (LG,12). Em sua

ação evangelizadora conjuga fé e vida nos espaços onde, muitas vezes, o sacerdote

ordenado não pode chegar. A Família, hoje bastante fragilizada, continua sendo lugar

privilegiado para o exercício profético da vocação cristã no interno da Igreja doméstica,

incidindo na formação dos filhos, e pelo testemunho dos valores do Reino junto à

comunidade eclesial, educativa e social.

Cristo lhe comunicou seu poder para governar, administrar o mundo que lhe foi

confiado. O leigo realiza esta incumbência colocando suas competências, sua cultura e

atividades na busca de aperfeiçoamento nas diferentes dimensões do trabalho humano, e

endereçando as descobertas tecnológicas e científicas ao benefício de todos. Através do

serviço empenha-se a conduzir os irmãos até Deus e colaborar para a edificação do Reino.

Que o mundo possa conhecer a fraternidade, a solidariedade, a justiça, a caridade e a paz

que Jesus veio inaugurar e se unir para construir nova ordem humana e social, segundo as

inspirações da Boa Nova de Jesus Cristo.

Cristo, Rei e Senhor do universo exerce sua realeza atraindo para si todos os

homens por sua morte e Ressurreição. Ele se fez servidor de todos. Por sua vez o cristão

realiza sua ‘dignidade régia’ vivendo em conformidade com esta vocação de servir com

Cristo particularmente “‘nos pobres e nos sofredores’ [...] nos quais a Igreja reconhece a

imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (CATECISMO, 1999, p. 226).

A Santíssima Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos, que vivendo na terra uma

existência igual à de todos, sempre intimamente unida a seu Filho e cooperou de uma

31

forma singularíssima, na obra do Salvador, reuniu os discípulos à espera do Espírito Santo

e os orientou na Igreja nascente, é apresentada como ícone da vida espiritual e apostólica.

Agora, Assunta ao céu, Maria cuida com amor materno e se empenha pelos irmãos de seu

Filho, que ainda peregrinam, até que sejam conduzidos à pátria. Todos são convidados a

prestarem culto e a encomendarem suas vidas e seus apostolados à solicitude maternal de

Maria (AA,4).

O Concílio Vaticano II recomenda a toda Igreja, leigos e ministros ordenados, que

unidos na comum dignidade sacerdotal, realizem no mundo sua vocação de Povo de Deus,

Povo Sacerdotal e Povo Messiânico. Com o exercício do múnus profético, sacerdotal e

régio levem a Igreja a concretizar o objetivo de sua existência: conduzir à salvação todos

os homens e mulheres, cristãos ou não, próximos ou distantes, sem distinção de raça, sexo,

cultura, condição social, nacionalidade. Todos são chamados a conhecer e deixar-se

acolher pelo amor misericordioso do Pai, para viver na comunhão com o Filho na unidade

do Espírito Santo.

32

CAPÍTULO II

O MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS NA IGREJA LATINO-AMERICANA

Os Bispos de todo o mundo reunidos em Concílio, colocaram toda Igreja diante de

si mesma resgatando as próprias origens. Este Povo de Deus vê em Jesus Cristo o único e

Sumo Sacerdote que ofereceu de uma vez por todas o sacrifício agradável ao Pai. Nele

cada batizado passa a constituir o Povo Sacerdotal, e em união com Ele se oferece como

sacrifício agradável ao Pai. O novo Povo de Deus reconhece em Jesus de Nazaré, o Cristo,

o Senhor, ungido e enviado a concretizar a profecia de Isaias: anunciar a Boa Nova aos

pobres; proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para

libertar os oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor (Lc 4,18-19). Nas águas

batismais este novo povo, morto e ressuscitado, é gerado para a vida nova em Cristo, torna-

se Povo Messiânico e participante do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo.

O Vaticano II declarou que toda Igreja: Pastores (Bispos, presbíteros, diáconos),

religiosos, religiosas, consagrados e leigos gozam da comum dignidade de Povo de Deus,

com responsabilidade pela missão comum de mostrar o rosto de Cristo, luz do mundo e a

servir a todos pela solidariedade e na caridade.

No primeiro capítulo consideramos a dimensão teológica da compreensão da

Igreja sobre a própria identidade, definida como Povo de Deus e ao mesmo tempo, em

Cristo, Povo Sacerdotal, Povo Messiânico.

Antes de considerar a aplicação do Concílio à América Latina, queremos retomar

algumas expressões do sacerdócio dos fiéis, já consideradas no primeiro capítulo, e que

abre amplas possibilidades à vivência cristã na relação com Deus e com os irmãos:

• a participação da oferta do próprio Cristo ao Pai unindo a oferta de si mesmo na

Eucaristia;

• a oferta de si como hóstias vivas, santas, sacrifícios espirituais agradáveis a

Deus (Rm 12,1; Flp 3,3; 1Pd 2,5);

• o sacrifício de louvor, fruto dos lábios (Hb 13,15) e confissão de fé (1Pd);

• as obras de misericórdia na linha dos profetas de Israel: a caridade, a partilha, a

esmola (Hb 13,16);

• as obras de misericórdia espirituais: o ensino, a comunicação da verdade, da

Boa Nova;

33

• ordenar-se para Deus com a vida de oração, contemplação, consagração,

ascética;

• a santidade de vida e configuração com Cristo.

Congar assim sintetiza: “o culto, os sacrifícios dos fiéis e, portanto, o sacerdócio

que corresponde a eles, são essencialmente os de uma vida santa, religiosa, de oração,

consagrada, caridosa, misericordiosa, apostólica” (CONGAR,1966, p. 180).

Destacamos a seguir a atualização do múnus sacerdotal dos fiéis na América

Latina a partir dos documentos conclusivos das Conferências Gerais do Episcopado latino-

americano de Medellín e Puebla.

CONFERÊNCIAS LATINO-AMERICANAS DE MEDELLÍN E PUEBLA

2.1 Conferência Latino-Americana de Medellin

A II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, reuniu-se de 26 de

agosto a 04 de setembro de 1968 em Medellin (Colômbia). O objetivo primeiro era

encaminhar a aplicação do Concílio Vaticano II na América Latina e Caribe.

Nesta Conferência, todas as atenções se voltaram para o homem deste Continente

procurando compreender sua realidade e traçar projetos que o encaminhem a condições de

vida mais digna e mais humana. A Igreja procurou “compreender este momento histórico à

luz da Palavra, que é Cristo” e deixar-se iluminar para a missão que é chamada a realizar.

Dispõe-se a lutar pela superação do subdesenvolvimento e dependência que oprime os

latino-americanos e impede a realização de sua vocação primeira, de filho de Deus e

construtor da própria história.

Medellin revelou o rosto profético da Igreja que descobriu o submundo dos pobres

e a chave da situação de dependência e injustiça que os impede de viver sua originalidade

latino-americana. No primeiro capítulo que aborda o tema “Justiça” encontramos a

reveladora afirmação: “Não teremos um continente novo sem novas e renovadas estruturas,

mas, sobretudo, não haverá continente novo sem homens novos, que à luz do Evangelho

saibam ser verdadeiramente livres e responsáveis” (Med [1.3). A “libertação” se torna a

34

palavra de ordem que deverá nortear a vida de todos os homens sem exceção, em todas as

suas dimensões, e permite o desabrochar da “Teologia da Libertação”.

Consciente de que somente a luz de Cristo pode esclarecer o mistério do homem e

libertá-lo, “a Igreja quer servir ao mundo, irradiando sobre ele uma luz e uma vida que cura

e eleva a dignidade da pessoa humana (GS 41), consolida a unidade da sociedade (GS 42)”

(Med [1.5]). Só na liberdade e autonomia é possível viver a dignidade de adultos na fé como

participantes no múnus profético, régio e sacerdotal de Cristo.

Constata-se que até aí “a Igreja contou com uma pastoral conservadora, baseada

na sacramentalização e pouca preocupação com a evangelização” (Med [6.1]). Esse povo

sacerdotal, portador de dignidade e possibilidades vive uma religiosidade popular sem

conhecer nem participar ativamente do múnus sacerdotal de Cristo, recebido no Batismo e

Confirmação. Oferece seu sacrifício de louvor através de votos, promessas, peregrinações,

de um número infinito de devoções e na recepção dos sacramentos, em especial o Batismo

e a primeira Eucaristia (Med [6.2]).

Nota-se, sobretudo entre os jovens, que pela impossibilidade de participação na

vida de sociedade, sentem-se marginalizados também na Igreja. Falta-lhes a consciência de

ser Igreja e, muito menos, a de serem chamados à plena participação na comunidade

eclesial. A grande maioria do povo – jovens e adultos – identifica a Igreja com os Bispos e

sacerdotes (CELAM, 2004, p.60).

O Documento apresenta capítulos distintos para Sacerdotes e Leigos onde

esclarece a medida da participação do Sacerdócio de Cristo “profeta, liturgo e pastor,

estabelecendo com isso uma peculiar originalidade no ministério sacerdotal de sua Igreja”

(Med [11.13]). O ministério hierárquico da Igreja, “faz com que os sacerdotes atuem entre

os homens ‘in persona Christi’” (‘na pessoa de Cristo’, tradução nossa) (Med [11.12.]), o que

lhes atraiu privilégios e serem considerados superiores aos leigos e, em decorrência do

processo histórico, os manteve submissos.

Medellin abre caminho para o resgate da comunidade através da participação. No

capítulo sobre os Sacerdotes afirma:

Os presbíteros atuam na comunidade como membros específicos que compartilham com todo o Povo de Deus o mesmo ministério e a mesma e única missão salvadora. Os leigos, por seu sacerdócio comum, gozam na comunidade do direito e têm o dever de contribuírem com uma indispensável colaboração para a ação pastoral (cf. AA,3). (Med [11.16]).

35

Para conduzir a Igreja nesse caminho, entre as conclusões orientadoras coloca

como de “extraordinária importância dar vida aos ‘Conselhos Pastorais’ que são

inegavelmente uma das instituições mais originais sugeridas pelo Concílio e um dos mais

eficientes instrumentos da renovação da Igreja em sua ação de pastoral de conjunto” (Med

[11.24]).

O Capítulo sobre a “Colegialidade” retoma a proposta da Lumem Gentium (32)

onde a Igreja é descrita como “um mistério de comunhão”; “pela vocação da Palavra de

Deus e pela graça de seus sacramentos, particularmente a Eucaristia, todos os homens

podem participar fraternalmente da comum dignidade de filhos de Deus” e também

“compartilhar a responsabilidade e o trabalho para realizar a missão comum de dar

testemunho do Deus que os salvou e os fez irmãos em Cristo (LG, 17, AA,3)” (Med, [15.6]).

Esta peculiaridade que une todos os batizados exige que se unam em comunidade para,

juntos, em comunhão e solidariedade, atingirem a todos na missão que lhes foi confiada. O

texto é claro:

A comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve em seu próprio nível responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também do culto que é sua expressão. (Med [15.10]) Os membros destas comunidades, ‘vivendo conforme a vocação a que foram chamados, exerçam as funções que Deus lhes confiou: sacerdotal, profética e real’, e façam assim de sua comunidade ‘um sinal da presença de Deus no mundo’ (AG 15) (Med [15.11]).

O Documento assinalou ainda a necessidade da presença e atuação criativa dos

leigos no processo de transformação do Continente. O capítulo intitulado “Movimentos

Leigos”, aborda claramente a presença e missão dos leigos como membros da Igreja,

“exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus” (LG, 31). O seu compromisso

com o mundo, se expressa na linha da solidariedade, da promoção humana e, segundo a

Populorum Progressio4, por sua livre iniciativa busca “impregnar de espírito cristão a

mentalidade, os costumes, as leis e estruturas da comunidade em que vivem” (Med [10.9]).

Medellin coloca em destaque o ensino da Lumem Gentium (31 a 33), onde a Igreja

se constitui em unidade de missão e diversidade de carismas, serviços e funções de sorte

que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum. Os leigos, como

membros da Igreja, participam da tríplice função profética, sacerdotal e real de Cristo, em 4 Populorum Progressio, Carta Encíclica sobre o desenvolvimento dos povos, Papa Paulo VI, 26/03/1967 n.81.

36

vista da realização da sua missão eclesial. Eles a realizam especificamente no âmbito

temporal, em vista da construção da história, “exercendo funções temporais e ordenando-as

segundo Deus” (LG, 31). Neste serviço prestará sua ajuda aos desamparados de qualquer

tipo e ambiente social.

Nas recomendações pastorais o Documento sugere que seja

fomentada uma espiritualidade própria dos leigos, baseada em sua própria experiência de compromisso com o mundo, ajudando-os a se entregarem a Deus, entregando-se aos homens. Ensinando-os a redescobrir o sentido da oração e da liturgia como expressão e alimento dessa dupla e recíproca doação (Med [10.16]).

No momento atual da América Latina, como em todos os tempos, a celebração

litúrgica comporta e coroa um compromisso com o desenvolvimento e com a promoção da

realidade humana, coloca os leigos diante do desafio de um compromisso libertador e

humanizador.

O texto conclusivo destaca a necessidade de uma pastoral litúrgica e catequética

adequada que atinja a todo povo de Deus em sua realidade e suas aspirações. Sinaliza a

formação de comunidade como indispensável à maturidade cristã: permite unir-se em torno

de um objetivo comum e alcançar a salvação mediante a vivência da fé e do amor. Esta

meta só acontecerá à medida que seus membros adquirirem um sentido de pertença que os

leve a ser solidários numa missão comum, e consigam uma participação ativa, consciente e

frutificante, na vida litúrgica e na convivência comunitária, lugar e manifestação do ser

Povo Sacerdotal.

Para que a liturgia possa realizar, em plenitude seus objetivos, é necessário:

“Conduzir a uma experiência vital da união entre a fé, a liturgia e a vida cotidiana, em

virtude da qual chegue o cristão ao testemunho de Cristo” (Med [9.7]), no exercício de sua

missão. O texto é claro:

A liturgia é ação de Cristo, Cabeça e de seu Corpo, que é a Igreja”. (Med, [9.2]) “[...] ‘Nenhuma’ comunidade cristã se edifica se não tem sua raiz na celebração da santíssima Eucaristia, pela qual se inicia toda a educação do espírito da comunidade. Esta celebração, para ser sincera e plena, deve conduzir tanto às várias obras de caridade e mútua ajuda, como à ação missionária e às várias formas de testemunho cristão (Med [9.3]).

37

No processo formativo, voltando-se para todos os batizados em todo e qualquer

ambiente social, a Igreja buscará despertar para o “compromisso pessoal com Cristo e a

uma entrega consciente à obediência da fé” (Med [8.9]), e sua realização em comunidade.

Assim, também a pastoral voltada para as elites “deve orientar-se para a formação de uma

fé pessoal, adulta, interiormente formada, operante [...] ser relacionada aos sinais dos

tempos e realizada através do testemunho pessoal e comunitário” (Med [17.13]).

Em Medellin, foi possível constatar que o exercício do múnus Sacerdotal dos

leigos transparece de modo especial na sua relação com Deus, na liturgia (é sacerdote); na

participação na vida e missão evangelizadora da Igreja (é profeta); em seu compromisso

solidário e o empenho para o resgate da dignidade e identidade de cada pessoa e a

transformação das estruturas pela libertação de todo povo (é pastor).

2.2 Conferência Latino-Americana de Puebla

A III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em Puebla

de Los Angeles (México), de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979, dando continuidade

às orientações e caminhada empreendida em Medellin, e iluminada também pela Exortação

Apostólica “Evangelii Nuntiandi”5, promulgada pelo Papa Paulo VI.

Com o tema “A Evangelização no presente e no futuro da América Latina”,

Puebla foi uma releitura da “Evangelii Nuntiandi” assim como “Medellin” foi uma

releitura do Vaticano II para a América Latina e o Caribe (CELAM, 2004, p. 9).

Evangelizar é a missão essencial, a própria vocação e identidade mais profunda da Igreja. Por isso, “não existe garantia de ação evangelizadora séria e vigorosa, sem eclesiologia bem cimentada” (CELAM 2004, DI p.237).

A América Latina exigia opções pastorais marcadas pela fidelidade ao Evangelho

e a proclamação da dignidade fundamental da pessoa humana em contraposição à ideologia

da Segurança Nacional difundida em vários países. Por isso a palavra de ordem é

5 Evangelii Nuntiandi, Exortação Apostólica, promulgada aos 08 de dezembro de 1975.

38

“comunhão e participação na Igreja e na Sociedade para se chegar à autêntica

libertação” (CELAM, 2004 p. 11, grifo nosso).

A América Latina é destinada a viver a vocação do Povo de Deus: “O Povo de

Deus é um Povo universal. É a família de Deus na terra, povo santo, povo que peregrina na

história, povo enviado” (P 236) [...] destinado a ser “luz das nações (Is 49,6; Lc 2,32) (P,

237).

Dom Aloisio Lorscheider considera as comunidades eclesiais de base (CEBs)

como modelos da ação evangelizadora promovida em Puebla. O sacerdócio comum do

Povo de Deus passa pelo aprofundamento da fé, tornando-a mais operativa, assumindo esta

nova responsabilidade transformadora da América Latina, animada pelo espírito

missionário (CELAM, 2004, p.11).

Nas CEBs, reunindo-se em torno da Palavra e da Eucaristia unindo a formação em

suas múltiplas faces (humana, social, espiritual, cultural, litúrgica...) cresce entre os pobres

e simples a consciência de que por Cristo, único Mediador, é-lhe permitido participar do

mistério de comunhão com Deus e da transformação da realidade.

Por sua solidariedade conosco, nos torna capazes de vivificar, pelo amor nossa atividade, e transformar nosso trabalho e nossa história em gesto litúrgico, isto é, de sermos protagonistas com Ele da construção da convivência e das dinâmicas humanas que refletem o mistério de Deus e constituem sua glória que vive (P, 213). Por Cristo, com Ele e nele, passamos a participar da comunhão com Deus [...]. Vivendo em Cristo chegamos a ser seu corpo místico, seu povo, povo de irmãos, unidos pelo amor que derrama em nossos corações o Espírito. Esta é a comunhão à qual chama o Pai por Cristo e por seu Espírito. Para ela se orienta toda a história da salvação e nela se consuma o desígnio amoroso do Pai que nos criou (P, 214).

Esta consciência confere aos leigos coragem para assumir seu lugar na Igreja e na sociedade.

A Igreja convocou todos os seus filhos a serem fermento no mundo e a

participarem como construtores de uma nova sociedade. Devem ser germe, luz, força

transformadora (P 1133) e, por sua vida e ação possibilitar-lhe ser uma Igreja sacramento

de comunhão, uma Igreja servidora, missionária, evangelizadora, e transformadora da

sociedade em total fidelidade a Cristo e ao homem no Espírito Santo (P, 1302-1305).

Para cumprir sua missão a Igreja conta com a diversidade de ministérios

hierárquicos e leigos. Todos são chamados a colaborar no serviço à comunidade eclesial,

cada um segundo seu dom e sua função. A diversidade exige formas organizadas de

39

apostolado coordenado em vista da eficácia da ação pastoral em direção à pastoral orgânica

(P, 804.807).

Em Puebla já se constata o crescimento na valorização da participação do laicato

na vida eclesial e do sentido de pertença à Igreja. Este se expressa “não só pelo

compromisso eclesial mais estável, mas também por sua participação mais ativa nas

assembléias litúrgicas e nas tarefas apostólicas” (P, 125). Nesse caminho, Puebla pede

maior abertura à participação do leigo em todas as etapas, não só na execução, mas

também na planificação e nos organismos de decisão (P, 808).

Na segunda parte, com o título “O desígnio de Deus sobre a realidade da América

Latina” o Documento coloca a “Verdade a respeito da Igreja: O Povo de Deus sinal e serviço

de comunhão” entre os conteúdos da Evangelização. Fica claro que a celebração da fé na

liturgia e nos sacramentos é forma privilegiada de evangelizar. “Aí aparece o Povo de

Deus como Povo Sacerdotal, investido de um sacerdócio universal do qual participam

todos os batizados, mas se difere essencialmente do sacerdócio hierárquico” (P, 269).

A Igreja, identificada com o Povo de Deus e por isso, um Povo Santo, participante

da vida divina pelo batismo, e ungido pelo Espírito Santo, é revestido da Santidade da vida

divina recebida. Este povo messiânico oferece o empenho para a santidade como culto

agradável a Deus. Diz o texto:

Esta santidade recorda ao Povo de Deus a dimensão vertical constituinte da sua comunhão. É um povo que, não apenas nasce de Deus, mas também se orienta para ele, como povo consagrado, para render-lhe culto e glória. O Povo de Deus aparece assim como o seu templo vivo, morada de sua presença entre os homens. Nele, nós cristãos somos pedras vivas (P, 250). O culto que Deus nos pede – expresso na oração e na liturgia – prolonga-se na vida cotidiana através do esforço que se faz para converter tudo em oferenda e oblação. Como membros de um povo já santificado pelo batismo, somos chamados, nós cristãos, a manifestar esta santidade [...] que exige o cultivo tanto das virtudes sociais como da moral pessoal, (P, 252) [...] coração dócil, capaz de tornar seus os caminhos e o ritmo que a Providência indique (P, 279).

O exercício do sacerdócio dos fiéis, constitutivo da realidade da Igreja, realiza-se

na missão de anunciar e instaurar o Reino, que se expressa, entre outras possibilidades, na

vida solidária e oferecida.

O Continente precisa de homens conscientes de que Deus nos chama a atuar na aliança com Ele. Homens [...] especialmente capazes de assumir

40

a própria dor e a de nossos povos e convertê-los, com espírito pascal, em exigência de conversão pessoal, em fonte de solidariedade com todos os que compartilham este sofrimento e em desafio para a iniciativa e a imaginação criadoras (P, 279). (Este povo deve) caminhar na terra, mas como cidadãos do céu, com seu coração enraizado em Deus, através da oração e da contemplação [...] para uma entrega fecunda aos homens. Porque quem não aprendeu a adorar a vontade do Pai no silêncio da oração, dificilmente conseguirá fazê-lo quando sua condição de irmão lhe pedir renúncia, dor ou humilhação (P, 251).

Este povo por força de sua consagração batismal, profeticamente anuncia a Boa

Nova que pode conduzir outros povos a servir ao Reino.

É enviado como povo profético que anuncia o Evangelho ou faz discernimento das vozes do Senhor no coração da história. Anuncia onde se manifesta a presença do Espírito. Denuncia onde opera o mistério da iniquidade, mediante fatos e estruturas impedem a participação mais fraterna na construção da sociedade e no desfrutar dos bens que Deus criou para todos (P, 267).

A Igreja, povo a serviço da comunhão,

O Povo de Deus, como Sacramento universal de salvação está inteiramente a serviço da comunhão dos homens com Deus e do gênero humano entre si (LG,1). A Igreja é, portanto um povo de servidores. Seu modo próprio de servir é evangelizar; é um serviço que só ela pode prestar. Determina sua identidade e a originalidade de sua contribuição... (P 270) Dentro do Povo de Deus, todos – hierarquia, leigos, religiosos são servidores do Evangelho. Cada qual segundo seu papel e carisma [...] (P, 271).

Evangeliza pelo testemunho de vida e manifestação do amor e ação de Deus em

favor dos homens (P, 970).

A missão evangelizadora é de todo o Povo de Deus. Esta é sua vocação primordial, “sua identidade mais profunda” (EN,14) [...] O Povo de Deus com todos os seus membros, instituições e planos existe para evangelizar [...] (P, 348). A Igreja evangeliza, em primeiro lugar, mediante o testemunho global de sua vida. Assim, na fidelidade à sua condição de sacramento, trata de ser mais e mais sinal transparente e modelo vivo da comunhão de amor em Cristo que anuncia e se esforça por realizar [...] (P, 272). Os verdadeiros cristãos [...] por suas obras, testificam o amor que o Pai tem para com os homens, o poder salvador com que Jesus Cristo liberta do pecado, e o amor neles infundido pelo Espírito que neles habita e que é capaz de criar verdadeira comunhão com o Pai e os irmãos (P, 968).

41

Em Jesus Cristo se fundamenta a dignidade do ser humano que a Igreja é chamada

a evidenciar em seu meio e a defender entre os destinatários de sua missão. Exerce sua

missão no respeito e promoção da dignidade humana:

Em Jesus Cristo descobrimos a imagem do “homem novo” (Cl 3,10) à qual fomos configurados pelo batismo e pela qual fomos assinalados pela confirmação - imagem também daquilo que todo homem é chamado a ser, fundamento último de sua dignidade. Ao apresentar a Igreja mostramos como nela tem de se expressar e realizar comunitariamente a dignidade humana. Em Maria encontramos a figura concreta em que culmina toda libertação e santificação na Igreja. Estas figuras têm que robustecer hoje os esforços dos fiéis latino-americanos em sua luta em prol da dignidade humana” (P,333)

Puebla convoca a revalorizar a liberdade que é ao mesmo tempo dom, e tarefa.

Significa a capacidade de dispor de si mesmo a fim de ir construindo comunhão e

participação na construção do Reino, que passa pela “relação do homem com o mundo

como senhor, com as pessoas como irmão e com Deus como filho.” (P,322) Aos leigos são

confiados serviços importantes na vida eclesial: no plano da Palavra (múnus profético), da

liturgia (múnus sacerdotal) ou da direção da comunidade (múnus real, pastoral).

Nas conclusões houve preocupação em fundamentar a vida eclesial na Palavra de

Deus, Tradição e contexto continental resgatando a herança das primeiras comunidades,

envolvendo a todos na edificação da Comunidade pela Palavra, Eucaristia, oração, partilha

e opção preferencial pelos pobres, com ação incisiva em direção à transformação da

realidade.

Em síntese podemos dizer que Puebla pautou suas orientações em continuidade

com o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellin, atualizando-o para o hoje da

América Latina.

Ficou claro que nesse tempo a vivência cristã e o exercício do sacerdócio comum

na América Latina passam pela comunhão e participação na missão da Igreja que se

compromete com os pobres e busca transformar a realidade à luz de Cristo.

42

CAPÍTULO III

O MÚNUS SACERDOTAL DOS FIÉIS NAS CONFERÊNCIAS DE SANTO

DOMINGO E APARECIDA

3.1 Conferência Latino-Americana de Santo Domingo

A IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em Santo

Domingo (República Dominicana), de 12 a 28 de outubro de 1992.

A data de abertura da Conferência coincidiu com os 500 anos do início da

Evangelização no Novo Mundo por isso sinalizou a caminhada em direção à Nova

Evangelização e, a pedido do Papa João Paulo II, estendeu atenção especial à promoção

humana. A vivência da cidadania foi apontada como requisito para uma efetiva comunhão

e participação libertadora. Para que haja autêntica promoção humana é preciso ter em conta

as diferentes culturas da América Latina e do Caribe.

O Papa João Paulo II, no discurso inaugural chama a atenção para a importância

da promoção integral do homem como fundamento para o desenvolvimento dos povos

latino-americanos, pois, segundo seu pensamento expresso anteriormente, o progresso de

um povo advém, sobretudo da “formação das consciências, do amadurecimento das

mentalidades e dos costumes. O homem é o protagonista do desenvolvimento, não o

dinheiro e ou a técnica” (Redemptoris Missio, n.58) 6 A Igreja “despertando as consciências

com o Evangelho” contribui para resgatar as energias adormecidas, a fim de dispô-las a

trabalhar na construção de nova civilização.

Segundo Dom Aloísio Lorscheider, a parte principal do documento se encontra

nas linhas prioritárias de Pastoral colocadas ao final, que apontam para o compromisso de

trabalhar em uma nova Evangelização dos povos latino-americanos; uma promoção

integral desses povos; e uma evangelização inculturada. “Se em Medellin, a palavra-chave

era a libertação, em Puebla, comunhão e participação, em Santo Domingo era

inculturação” (CELAM, 2004, p. 11).

6 Redemptoris Missio (RMi), Carta Encíclica sobre a validade permanente do mandato missionário – Papa João Paulo II, 07/12/1990.

43

Antes de considerar o documento final da Conferência, embora sem aprofundar

todo seu conteúdo e significado, precisamos ter presente o Sínodo extraordinário

convocado para celebrar os 20 anos do final do Concílio e os acontecimentos que

culminaram na mudança de rumo da eclesiologia e repercutiram profundamente na

América Latina.

O Sínodo extraordinário convocado para celebrar os 20 anos do final do Concílio

realizou-se em Roma de 24 de novembro a 08 de dezembro de 1985. Tratava-se de rever os

temas conciliares de modo especial a eclesiologia. Este foi precedido pela publicação da

“Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação” assinada pelo Cardeal

Ratzinger aos 06 de agosto de 1984. Esta significou a condenação da Teologia da

Libertação, e a caminhada empreendida a partir de Medellin e Puebla consideradas como

má interpretação do Concílio. Esta provocou forte reação e indignação em certos setores do

episcopado o que mereceu uma carta do Papa. Para compensar e completar a primeira

Instrução foi promulgada uma segunda “Instrução sobre a Liberdade cristã e a libertação”

aos 22 de março de 1986, que manteve a mesma perspectiva7.

Segundo Comblin “o conceito de Povo de Deus era uma séria ameaça à

centralização romana” (COMBLIN, 2002, p. 113) e o Sínodo extraordinário significou uma

virada radical na orientação da Igreja que se afastava dos rumos indicados pelo Concílio.

(COMBLIN, 2002, p.118) Para ele “o sinal mais claro da virada foi a substituição do tema

Povo de Deus pelo da comunhão como centro da eclesiologia” (COMBLIN, 2002, p. 118). A

Igreja é vista como o Corpo de Cristo. Essa virada significou uma mudança que

influenciou toda mensagem conciliar e a caminhada da Igreja, em especial na América

Latina e no Caribe.

Vemos a influência dessa nova visão eclesial em Santo Domingo. O documento

faz pouca referência ao tema Povo de Deus e a vivência do múnus sacerdotal, passa pela

missionariedade que envolve a todos os convocados a trabalhar com ardor na vinha do

Senhor. Na “Mensagem aos povos da América Latina e do Caribe” ao final da IV

Conferência, os Bispos deixam muito clara a preocupação central que permeou os

trabalhos e indicam a direção a ser pautada nos próximos anos por toda Igreja latino-

americana:

7 Para maior clareza ver COMBLIN, 2002, O Povo de Deus, p. 108ss, especialmente o capítulo IV “A virada do Sínodo”.

44

A IV Conferência quis traçar as linhas fundamentais de um novo impulso evangelizador, que ponha Cristo no coração e nos lábios, na ação e na vida de todos os latino-americanos é esta a nossa tarefa: fazer com que a verdade sobre Cristo, a Igreja e o homem penetre mais profundamente em todas as camadas da sociedade, em busca da sua progressiva transformação. A NOVA EVANGELIZAÇÃO foi a preocupação do nosso trabalho (CELAM, 2004, p. 619)8.

Em sintonia com a palavra do Papa, os Bispos afirmam: que os fiéis leigos

devem sentir-se parte viva e responsável desta tarefa, chamados como são a anunciar e

viver o evangelho a serviço dos valores e das exigências das pessoas e da sociedade (DI

n.27).

Todos são chamados a construir a civilização do amor neste Continente da esperança [...]. Chegou o momento de empenhar todas as forças eclesiais na nova evangelização e na missão ad gentes. Nenhum crente em Cristo, nenhuma instituição da Igreja se pode esquivar deste dever supremo: anunciar Cristo a todos os povos (RMi,3). Este momento chegou também para a América Latina. É dando a fé que ela se fortalece (DI n.28).

O documento rememora o caminho, que a Igreja percorreu desde o princípio de

sua história: “fez-se presente e operante não apenas mediante o anúncio explícito do

evangelho de Cristo, mas também e, sobretudo através da irradiação da vida cristã” (DI n.

29). Este caminho que passa pelo testemunho e a santidade de vida, continua válido no

momento atual:

... fiéis e pastores, congregados pelo Espírito Santo em torno à Palavra de Deus e à mesa da Eucaristia, são por sua vez, enviados a proclamar o Evangelho, anunciando Jesus Cristo e dando testemunho de amor fraterno (SD, n.11). Não se pode esquecer que a primeira forma de evangelizar é o testemunho (cf. Redemptoris Missio,42-43), isto é a proclamação da mensagem da salvação através das obras e da coerência de vida, levando assim a cabo a sua encarnação na história cotidiana dos homens[...]. Por isso, a nova evangelização exige coerência de vida, testemunho sólido e unitário de caridade, sob o signo da unidade, para que o mundo creia (cf. Jo 17,23) (DI n. 29). (Na Igreja) deve resplandecer a santidade de vida, a que todo evangelizador é chamado, dando testemunho de intensa vivência do mistério de Jesus Cristo, sentido e experimentado fortemente na Eucaristia, na escuta assídua da Palavra, na oração, no sacrifício, na entrega generosa ao Senhor, que nos sacerdotes e demais pessoas consagradas se exprime de modo especial pelo celibato (DI n. 29.

8 Mensagem aos Povos da América Latina e do Caribe, n.3

45

A coerência de vida com a vivência da fé nas pequenas comunidades é condição

para a eficácia da nova Evangelização e passa pela prática (SD, 48):

A Nova Evangelização tem como finalidade formar pessoas e comunidades maduras na fé e dar respostas à nova situação que vivemos, provocada pelas mudanças sociais e culturais da modernidade. (SD, 26) A Evangelização promove o desenvolvimento integral, exigindo de todos e de cada um o pleno respeito a seus direitos e a plena observância de seus deveres, a fim de criar uma sociedade justa e solidária, a caminho de sua plenitude no Reino definitivo (SD, 13).

A Igreja, comunidade de irmãos, é chamada a ser o laboratório para garantir a

dignidade de cada um que, por sua vez é chamado a ser instrumento de Jesus Cristo na

Evangelização e proclamar por palavras e ações “o Evangelho da justiça, do amor e da

misericórdia”(SD, 13). a serviço da transformação da realidade.

Em Santo Domingo é clara a referência à aliança do Povo de Deus com o Senhor:

“Nos povos da América, Deus escolheu para si um novo povo, incorporou-o ao seu

desígnio redentor, fazendo-o participar do seu Espírito. Mediante a Evangelização e a fé

em Jesus Cristo, Deus renovou sua aliança com a América Latina”(João Paulo II, DI n.3).

Nesta porção do Povo de Deus, desde o início, “a obra evangelizadora inspirada pelo

Espírito Santo [...] foi obra conjunta de todo o Povo de Deus, dos Bispos, sacerdotes,

religiosos, religiosas e fiéis leigos”(SD, 19), incluindo também os próprios indígenas

batizados, que se tornaram catequistas entre seus irmãos.

Declaram os Bispos:

O sujeito da Nova Evangelização é toda a comunidade eclesial segundo sua própria natureza: nós os Bispos, em comunhão com o Papa, nossos presbíteros e diáconos, os religiosos e religiosas, e todos os homens e mulheres que constituímos o Povo de Deus (SD, 25).

Neste novo tempo a Evangelização deve ser “nova em seu ardor, em seus métodos

e em sua expressão”. Isto “supõe fé sólida, caridade pastoral intensa e forte fidelidade que,

sob a ação do Espírito, gere uma mística, um entusiasmo incontido na tarefa de anunciar o

Evangelho e capaz de despertar a credibilidade para acolher a Boa Nova da Salvação” (SD,

28).

A função profética de Cristo é participada por todo o “povo santo de Deus” e este

a exerce, em primeiro lugar “difundindo seu testemunho vivo, sobretudo com a vivência de

46

fé e de caridade”(LG, 12). A Igreja é chamada a uma vida santa alimentada em Jesus Cristo,

única fonte de onde pode gerar os frutos que Deus espera dela. Só participando de seu

Espírito em santidade de vida pode transmitir aos homens a autêntica Palavra de Deus e

orientar à verdadeira promoção humana e cultura cristã (SD, 31). Ela é comunidade santa

(1Pd 2,9), em primeiro lugar, pela presença nela do Cordeiro que a santifica por seu Espírito

[...] por isso seus membros devem esforçar-se cada dia por viver, no seguimento de Jesus e

em obediência ao Espírito, pois “a santidade ‘é a chave do ardor renovado da Nova

Evangelização” (SD, 32).

A profecia da Igreja realiza-se no anúncio de Jesus morto e ressuscitado, o

querigma, “raiz de toda Evangelização”, e também na catequese:

A Igreja, comunidade santa, convocada pela Palavra, tem como uma da suas principais tarefas a de pregar o Evangelho (LG, 25) [...] Este ministério profético da Igreja compreende também a catequese que atualizando incessantemente a revelação amorosa de Deus manifestada em Jesus Cristo, leva a fé inicial à sua maturidade e educa o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo (cf. CT 19) (SD, 33). Parte necessária de toda pregação e de toda catequese deve ser a Doutrina Social da Igreja, que constitui a base e o estímulo da autêntica opção preferencial pelos pobres (SD, 50).

Os Bispos reconhecem também o ministério profético dos teólogos, que enraizado

na Palavra de Deus e realizado no diálogo com os pastores e plena fidelidade ao

magistério, favorece ao Povo de Deus a inculturação da fé e a evangelização das culturas,

impulsiona a ação em favor da justiça social, dos direitos humanos e da solidariedade com

os mais pobres (SD, 33).

A vivência do múnus sacerdotal da Igreja na América Latina passa ainda pela vida

de oração, louvor e ação de graças.

... a liturgia é a ação do Cristo total, Cabeça e membros, e, como tal deve expressar o sentido mais profundo de sua oblação ao Pai: obedecer, fazendo de toda sua vida a revelação do amor do Pai pelos homens. [...], assim. Também os que louvam a Deus reunidos em torno do Cordeiro, são os que mostram em suas vidas os sinais testemunhais da entrega de Jesus (Ap 7, 13s). Por isso, o culto cristão deve expressar a dupla vertente da obediência ao Pai (glorificação) e da caridade com os irmãos (redenção), pois a glória de Deus é que o homem viva. Com o qual longe de alienar os homens, os liberta e os faz irmãos (SD, 34). O serviço litúrgico, assim realizado na Igreja, tem por si mesmo, valor evangelizador que a Nova Evangelização deve situar em lugar de grande destaque [...]. Sustenta o compromisso com a promoção humana, enquanto orienta os fiéis a assumir sua responsabilidade na construção do

47

Reino, “para que se ponha de manifesto que os fiéis, sem ser deste mundo, são a luz do mundo” (SC, 9)9 (SD, 35).

Santo Domingo convida a zelar para que todos os membros do povo de Deus

assumam a dimensão contemplativa de sua consagração batismal e “aprendam a orar”,

imitando o exemplo de Jesus Cristo (Lc 11,1), de maneira que a oração esteja sempre

integrada com a missão apostólica da comunidade cristã no mundo (SD, 47).“A celebração

comunitária deve ajudar a integrar em Cristo e em seu mistério os acontecimentos da

própria vida, deve fazer crescer na fraternidade e na solidariedade, deve atrair a todos” (SD,

52).

Com o subtítulo “Os fiéis leigos na Igreja e no mundo” [1.3.4], o Documento

destaca o lugar dos fiéis leigos, que é a grande maioria do Povo de Deus. Por seu batismo

são chamados por Cristo como Igreja, agentes e destinatários da Boa Nova da Salvação, a exercer no mundo, vinha de Deus, tarefa evangelizadora [...]. Como consequência do batismo... estão inseridos em Cristo e são chamados a viver o tríplice ministério sacerdotal, profético e real. Esta vocação deve ser fomentada constantemente pelos pastores das Igrejas particulares (SD, 94).

O grande número de leigos comprometidos com a Igreja e que exercem diversos

ministérios, serviços e funções nas comunidades eclesiais de base ou atividades nos

movimentos eclesiais, é visto como sinal dos tempos. Cresce sempre mais a consciência de

sua responsabilidade no mundo e na missão ad gentes. Os pobres evangelizam os pobres (SD, 95).

Por outro lado chama nossa atenção a constatação de que “a maior parte dos

batizados ainda não tomou plena consciência de sua pertença à Igreja. Sentem-se católicos,

mas não Igreja” (SD, 96). Por isso deixam de cumprir o mandato de governo e

transformação da realidade à luz do evangelho, inerente à vocação batismal. Como

conseqüência, vemos a incoerência entre a fé que dizem professar e o compromisso real

com a vida, portanto o mundo das ciências, da política, da economia, da comunicação e da

sociedade, incluindo a família e a educação sofre essa dicotomia (SD, 96) e o momento

presente da América Latina reclama. “Que todos os leigos sejam protagonistas da Nova

Evangelização, da promoção humana e da cultura cristã.” Por isso “é necessária a

9 Sacrosanctum concilium, (SC) Documento do Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia.

48

constante promoção do laicato, livre de todo clericalismo e sem redução ao intra-eclesial”

(SD, 97).

O Documento recomenda investir na Paróquia. Que venha a ser “comunidade de

comunidades e movimentos”, onde “acolhe as angústias e esperanças dos homens, anima e

orienta a comunhão, participação e missão” (SD, 58). Os Bispos consideram necessário

“ratificar a validade das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), fomentando nelas o

espírito missionário e solidário [...]”(SD, 63).

Para chegar a um novo dinamismo sugere entre as principais linhas pastorais:

“renovar a Paróquia a partir de estruturas que permitam setoriar a pastoral, mediante

pequenas comunidades nas quais apareça a responsabilidade dos fiéis leigos”. Que a

Paróquia favoreça a “formação e participação dos leigos, capacitando-os para encarnar o

Evangelho nas situações específicas onde vivem ou atuam” (SD, 60). O documento é claro:

Incrementar uma vivência da Igreja-comunhão, que nos leve à corresponsabilidade na ação da Igreja. Fomentar a participação dos leigos nos Conselho Pastorais, nos diversos níveis da estrutura eclesial. [...] impulsionando-os a penetrar os ambientes socioculturais e a serem eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja (SD, 98). O grande desafio é “promover e formar o laicato para exercer no mundo sua tríplice função: a profética, no campo da Palavra, do pensamento, de sua expressão e valores; o sacerdotal no mundo da celebração e do sacramento, enriquecida pelas expressões da arte, e da comunicação; a régia no universo das estruturas sociais, políticas, econômicas (SD, 254).

Entre as linhas pastorais prioritárias “a Igreja na América Latina e Caribe se

compromete a trabalhar o protagonismo dos LEIGOS e, entre eles, dos JOVENS” (SD,

302).

Tendo percorrido as conclusões de Santo Domingo com o olhar voltado para o

exercício do múnus sacerdotal, constata-se que a eclesiologia fundada sobre o Povo de

Deus, assumida pelo Concílio Vaticano II e aplicada em Medellin e Puebla, continua

latente no documento. É expressa, sobretudo em relação à missão comum assumida por

este Povo Sacerdotal e, revela orientação mais espiritual. Pode-se constatar a mudança de

foco, sobretudo como os leigos podem revelar o rosto e a atuação da Igreja.

Chama a atenção a grande freqüência do chamado à mística, à espiritualidade e à

santidade, expressa em muitas formas e lembrada, sobretudo, com referência à fecundidade

da missão e ao testemunho da Igreja. É inclusive recomendado, que a dimensão

49

contemplativa e a santidade, sejam prioridade em todos os planos Pastorais “a fim de que a

Igreja possa fazer-se presença de Deus para o homem contemporâneo que tem tanta sede

dele” (SD, 144).

Nessa direção encontramos ainda o compromisso de “promover uma liturgia viva,

participativa e com repercussão na vida”. E o chamado para o “testemunho de vida e

caridade, espírito de serviço, capacidade de acolhida, sobretudo em momentos de dor e

crise” (SD, 145).

3.2 Conferência Latino-Americana de Aparecida

A V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe reuniu-se no

Brasil, de 13 a 31 de maio de 2007, em Aparecida-SP, Brasil. SS. o Papa Bento XVI, com

sua presença e incentivadoras palavras, confirmou os Bispos em sua missão e orientou seus

trabalhos em resposta às urgências do Povo de Deus que lhes foi confiado.

Em continuidade com as Conferências que a precederam: Rio de Janeiro, (1955),

Medellin (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), esta Conferência é celebrada com

o mesmo espírito que as animou, tendo diante de si o desafio de dar “novo impulso à

evangelização e recordar aos fiéis deste Continente que, em virtude de seu batismo, são

chamados a serem discípulos e missionários de Jesus Cristo” (CELAM, 2009, p. 12). À luz

do tema escolhido pelo Papa: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele

nossos povos tenham vida. “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). 10 desejam

que estes povos sigam crescendo e amadurecendo em sua fé, para serem luz do mundo e

testemunhas de Jesus Cristo hoje.

Os países latino-americanos e Caribenhos, gerados à luz do Evangelho e com uma

história marcada por luzes e sombras, são também herdeiros da tradição católica como

marca fundamental de sua identidade, originalidade e unidade (CELAM, 2009, introdução, p.

12). Os Bispos reconhecem que as maiores riquezas desses povos são “a fé no Deus amor e

a tradição católica na vida e na cultura” (CELAM, 2009, Introdução, p. 11).

Sua originalidade se revela na fé madura de muitos cristãos e na piedade popular

que expressa 10 Rumo à V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, Documento de Participação, p.6.

50

o amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e o amor profundo ao Senhor na Eucaristia e à Santíssima Virgem. A caridade e a solidariedade para com os mais necessitados e desamparados e a consciência da dignidade da pessoa são também traços fortes do Povo de Deus latino-americano e do Caribe (CELAM, 2009, Introdução, p. 11).

Considerar o exercício do sacerdócio comum e ministerial na América Latina e do

Caribe exige lançar um olhar sobre a realidade, mencionada no primeiro capítulo e tão bem

pontualizada por esta Conferência11 que, segundo o método VER-JULGAR-AGIR, iniciou

seus trabalhos debruçando-se sobre a realidade Latino-Americana com os olhos de Jesus

Cristo ressuscitado.

“Conhecer a Jesus Cristo pela fé é nossa alegria; segui-lo é uma graça, e transmitir este tesouro aos demais é uma tarefa que o Senhor nos confiou ao nos chamar e escolher. Com os olhos iluminados pela luz de Jesus Cristo ressuscitado, podemos e queremos contemplar o mundo, a história, os nossos povos da América Latina e do Caribe, e cada um de seus habitantes” (CELAM 2009, Introdução, p.17).

Sem percorrer todas as expressões desta complexa realidade aí expressa, limitar-

nos-emos a recordar umas características da mudança de época que atinge profundamente a

vida social e eclesial do Povo de Deus.

A América Latina e o Caribe são profundamente marcados pela diversidade

cultural dos povos, que coexistem em condições desiguais com a chamada cultura

globalizada. Essas culturas são dinâmicas e estão em interação permanente entre si e com

as diferentes propostas culturais, “exigem reconhecimento e oferecem valores que

constituem uma resposta aos anti-valores da cultura que se impõe através dos meios de

comunicação de massas: comunitarismo, valorização da família, abertura à transcendência

e solidariedade” (DA, 57).

Os povos da América Latina e do Caribe participam da mudança de época que se

identifica como “globalização” e afeta o mundo todo provocando mudanças a partir das

ciências e tecnologia que capacita a criar rede de comunicações de alcance mundial (DA,

34). “O Papa, em seu discurso inaugural vê a globalização como um fenômeno ‘de relações

de nível planetário’, considerando-o ‘uma conquista da família humana’ porque favorece o

acesso a novas tecnologias, mercados e finanças” (DA, 60). Afirma que vivemos uma

mudança de época, e seu nível mais profundo é o cultural (DA, 44). Alerta que este grande 11 Para maior clareza da realidade, ver Documento de Aparecida, a partir do Capítulo II “O Olhar dos Discípulos Missionários sobre a realidade” ( n. 33 e ss).

51

avanço “comporta também o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor

supremo” (DA, 60). Verifica-se hoje, “uma espécie de nova colonização cultural pela

imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e com tendências a impor

uma cultura homogeneizada em todos os setores” (DA, 46). Essa cultura se caracteriza pela

supervalorização da subjetividade individual e a

auto-referência do indivíduo, que conduz à indiferença pelo outro, de quem não necessita e por quem não se sente responsável [...] As relações humanas estão sendo consideradas objetos de consumo, conduzindo a relações afetivas sem compromissos responsáveis e definitivos” (DA, 46). A afirmação exasperada de direitos individuais, subjetivos é pragmática e imediatista, sem preocupação com critérios éticos “resulta em prejuízo da dignidade de todos, especialmente daqueles que são mais pobres e vulneráveis (DA, 47).

Como consequência temos ainda o enfraquecimento dos vínculos comunitários, a

fragmentação e limitação de horizontes e a radical transformação do tempo e do espaço,

gerando inconsistência e instabilidade. Crescem a lógica do individualismo pragmático e

narcisista, que geram crise de sentido da vida Com preocupação a Conferência reconhece

que as novas gerações são as mais afetadas por essa cultura do consumo em suas

aspirações pessoais mais profundas (DA,, 51).

A globalização se manifesta também como “profunda aspiração do gênero

humano à unidade” (DA, 60), por isso a Conferência propõe:

Frente a essa forma de globalização, sentimos forte chamado para promover uma globalização diferente, que esteja marcada pela solidariedade, pela justiça, e pelo respeito aos direitos humanos, fazendo da América Latina e do Caribe não só o Continente da esperança, mas também o Continente do amor como propôs Bento XVI no discurso inaugural desta Conferência (DA, 64).

O Papa João Paulo II considera que a evangelização do Continente não pode

realizar-se hoje sem a colaboração dos fiéis leigos, o que exige abertura por parte dos

pastores e que sejam levados em consideração com espírito de comunhão e participação,

pois, por seu Batismo e Confirmação são discípulos e missionários de Jesus Cristo (DA,

213).

No seguimento de Jesus e na paixão por anunciá-lo, a Igreja Católica no decorrer

da história tem oferecido seu serviço de caridade principalmente aos mais pobres no

52

esforço de promover sua dignidade. Tem ajudado a dar orientações prudentes e promover a

justiça, os direitos humanos e a reconciliação dos povos. Como consequência de seu

empenho e sua luta pela dignidade de cada ser humano, em muitos casos, sofreu

perseguição e até a morte de alguns de seus filhos. Estes são considerados testemunhas da

fé, santos, pois se identificaram com Cristo e com Ele se ofereceram como oferta agradável

ao Pai assumindo o seu Batismo até as últimas consequências (DA, 98).

Em Aparecida, os Bispos reconhecem o sacerdócio comum que une o Povo de

Deus na única missão. Essa missão não se limita a um programa ou projeto, mas significa

compartilhar a experiência do acontecimento do encontro com Cristo e testemunhá-lo e

anunciá-lo de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins

do mundo (cf. At 1,8) (DA,145).

Junto com todos os fiéis e em virtude do batismo somos antes de tudo, discípulos e membros do Povo de Deus. Como todos os batizados e junto com eles, queremos seguir Jesus, Mestre de vida e verdade, na comunhão da Igreja [...] (DA, 186). O Senhor nos chama a promover por todos os meios a caridade e a santidade dos fiéis (DA,187).

Todos os batizados da América Latina e do Caribe, “através do sacerdócio comum

do Povo de Deus, são chamados a viver e a transmitir a comunhão com a Trindade, pois a

evangelização é um chamado à participação da comunhão trinitária” (DA, 157). “A Igreja

que celebra a Eucaristia é “casa e escola de comunhão”, onde os discípulos compartilham a

mesma fé, esperança e amor a serviço da missão evangelizadora” (DA 158).

“A Eucaristia é o lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cristo.” “Existe estreito vínculo entre as três dimensões ,da vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Jesus Cristo, de tal modo que a existência cristã adquira verdadeiramente forma eucarística. Em cada Eucaristia, os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando nele” (DA, 251).

No capítulo V: A comunhão dos Discípulos Missionários da Igreja, o documento

especifica o espaço em que fiéis leigos e leigas poderão exercer o sacerdócio comum na

Igreja: Os leigos também são chamados a participar na ação pastoral da Igreja, primeiro como testemunho de vida e, em segundo lugar, com ações no campo da evangelização, da vida litúrgica e outras formas de apostolado, segundo as necessidades locais sob a guia dos pastores. Estes estarão dispostos a abrir para eles espaços de participação e confiar-lhes

53

ministérios e responsabilidades em uma Igreja onde todos vivam de maneira responsável seu compromisso cristão (DA, 211).

Na realidade latino-americana atual o exercício do múnus sacerdotal passa pelo

discipulado e missionariedade para a transformação da realidade. Em continuidade com a

Lumem Gentium, Aparecida recorda que, incorporados a Cristo pelo batismo, marcados

com o selo do múnus sacerdotal, profético e régio todos os membros do Povo de Deus,

segundo suas vocações específicas, são convocados à santidade na comunhão e na missão.

Para continuar a ser a voz dos que não tem voz nem vez, nas pegadas de Cristo devem

penetrar e transformar esta realidade. Os cristãos “são os homens da Igreja no coração do

mundo, e homens do mundo no coração da Igreja” (DA, 209).

Os Bispos vêem como sinal de esperança o fortalecimento de associações leigas,

comunidades eclesiais, caminhos de formação cristã, as novas comunidades e reconhecem

o valor e a eficácia dos Conselhos paroquiais, Conselhos diocesanos e nacionais de fiéis

leigos, porque incentivam a comunhão e a participação na missão evangelizadora da Igreja

e sua presença ativa no mundo. Vêem que “a construção da cidadania, no sentido mais

amplo, e a construção de eclesialidade nos leigos, é um só e único movimento” (DA, 215).

O exercício do múnus sacerdotal passa ainda pelo encontro com Cristo através dos

pobres, e a opção por eles. Esta é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo

(DA, 257). Nessa vivência o discípulo missionário há de ser um homem ou uma mulher que

torna visível o amor misericordioso do Pai, especialmente para com os pobres e pecadores.

“Ao participar dessa missão, o discípulo caminha para a santidade. Vivê-la na missão o

conduz ao coração do mundo” (DA, 148).

Bento XVI recorda que

Discipulado e missão são como as duas faces da mesma moeda: quando o discípulo está apaixonado por Jesus Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só ele salva (At 4,12) [...]. Essa é a tarefa essencial da evangelização, que inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção humana integral e a autêntica libertação cristã (DA, 146).

“Eles têm o dever de fazer crível a fé que professam, mostrando autenticidade e

coerência em sua conduta”, (DA, 210) em toda sua vida familiar, na educação dos filhos, no

trabalho profissional, no mundo, que é o espaço próprio de sua atividade evangelizadora

que se estende à política, à realidade social à economia, a cultura, as artes, enfim à vida

54

internacional, dos ‘mass media’, e outras realidades abertas à evangelização. “Sua missão

própria e específica se realiza no mundo de tal modo que seu testemunho e sua atividade,

contribuam para a transformação das realidades e para a criação de estruturas justas

segundo os critérios do evangelho” (DA, 210).

A realidade exige a presença de leigos e leigas preparados para atuar como

discípulos e missionários no mundo, na perspectiva do diálogo e da transformação da

sociedade (DA, 283). Com sua presença profética saibam levantar a voz em relação a

questões de valores e princípios do Reino de Deus; com sua presença ética e coerente

devem iluminar a todas as dimensões da vida e da sociedade, semeando os valores

evangélicos nos ambientes e nos novos areópagos: o mundo das comunicações, a

construção da paz, o desenvolvimento e a libertação dos povos, sobretudo as minorias, a

promoção da mulher, das crianças, a ecologia, a proteção da natureza, tudo o que está

ameaçado pela exploração ou dominação em favor de alguns (DA, 491).

Portador do múnus régio o cristão é chamado, a ter maior presença nos centros de

decisão da cidade, nas estruturas administrativas como nas organizações comunitárias,

profissionais... para velar pelo bem comum e promover os valores do Reino (DA, 518j).

A Virgem Maria, através de sua fé e obediência à vontade de Deus é vista como a

máxima realização da existência cristã, como discípula perfeita do Senhor que permitiu

conduzir à plenitude a esperança dos pobres e o desejo de salvação.

(Ela teve) uma missão única na história da salvação concebendo, educando e acompanhando seu Filho até o sacrifício definitivo. Do alto da cruz Jesus lhe confiou seus discípulos e ela, perseverando em oração junto aos discípulos, cooperou com o nascimento da Igreja missionária, imprimindo-lhe um selo mariano que a identifica profundamente (DA, 267). Maria é a grande missionária, continuadora da missão de seu Filho e formadora de missionários (DA, 269).

A palavra de ordem em Aparecida é ser discípulo missionário de Jesus Cristo e o

Povo de Deus o concretiza em continuidade com a caminhada pós-Vaticano:

• Assumindo o seu lugar de discípulo missionário no Povo de Deus.

• Celebrando e vivendo a eucaristia unindo a doação da própria vida com Cristo.

• Sendo solidário e defendendo os direitos das pessoas, com especial predileção

pelos mais pobres e excluídos.

55

• Acolhendo o chamado, à ética e coerência de vida, à santidade na vida pessoal,

profissional e social como testemunho cristão.

• Empenhando-se no mandato comum para iluminar com os valores cristãos a

vida sócio-política, a economia, os meios de comunicação, enfim o mundo.

Em síntese, à luz do múnus sacerdotal pudemos ver que em Aparecida o

Episcopado Latino-Americano e do Caribe sentiu-se mais uma vez desafiado a continuar

na trilha missionária incentivada em Santo Domingo, mas com uma característica marcante

que só a Igreja pode dar ao mundo: anunciar Jesus Cristo Caminho, Verdade e Vida “como

discípula”, isto é, como seguidora e testemunha da proposta que pode transformar a

realidade atual marcada pelo individualismo, alienação exploração... e outras expressões e

consequências negativas da globalização e, a partir das descobertas positivas, orientar o

Povo de Deus, à comunidade que se edifica e fortalece pela fraternidade, partilha,

solidariedade, corresponsabilidade, doação... Sinais do Reino.

CAPÍTULO IV

O SACERDÓCIO COMUM E A VIDA ECLESIAL

Após considerar, ainda que brevemente, a identidade da Igreja e sua missão a

partir da Constituição Lumem Gentium do Concílio Vaticano II e verificar sua atualização

para a América Latina, desejamos ver o hoje do Povo de Deus com perspectiva pastoral.

Depois de mais de quatro décadas do início dessa caminhada e tendo o mundo

passado por profundas transformações sócio-político-culturais e econômicas e mais uma

vez em transição, perguntamo-nos: o que estamos colhendo do que foi plantado neste

tempo? Como a Igreja expressa sua identidade de Povo Sacerdotal nesta mudança de

época? Esta motivação inicial nos conduzirá à reflexão sobre a vivência no pós-Concílio e

Conferências Gerais da América Latina em busca de pistas para caminhar na fidelidade à

vocação de discípulos-missionários de Jesus Cristo.

56

4.1 O Pós-Concílio

Ao propor o Concílio Ecumênico o Papa João XXIII convocava toda Igreja a uma

visão otimista diante da sociedade contemporânea, a abrir-se ao diálogo e a enfrentar o

desafio de anunciar o evangelho ao mundo moderno (COMBLIN, 2002, p. 7).

O Vaticano II resgatou o lugar do leigo na Igreja com a possibilidade de

compartilhar essa responsabilidade junto à hierarquia. Declarou que o leigo é constitutivo

da Igreja, Povo de Deus chamado a ser luz das Nações. Todos os povos são destinatários e

convidados a participar do banquete do Reino e os cristãos – “os que não eram, mas agora

são um povo” (1Pd 2,4-9), em Cristo são chamados a ser sujeito e comunidade atuante no

desempenho da missão que lhe foi confiada como Povo Sacerdotal (AA, 2; 3; LG, 33).

Comblin afirma: “o Vaticano II põe fim a 150 anos de predomínio da distinção

entre ecclesia discens e ecclesia docens (“Igreja discente e Igreja docente”, tradução nossa).

Os leigos são reconhecidos como membros ativos” (COMBLIN, 2002, p.50). Os que antes

exerciam os “tria munera” (“três múnus”, tradução nossa) atuando especialmente no mundo,

agora são chamados a estabelecer o diálogo entre a Igreja e o mundo (GS 43; AG 21). Agora

sua dupla vocação-missão se estende tanto à Evangelização como à promoção da dignidade

humana e transformação da realidade (LG, 35;36; AA, 5; 9). O mesmo autor aponta a grande

crise de civilização que sacudiu o Primeiro Mundo em 1968 como um fato que acelerou a

reação anticonciliar: o maio de Paris foi o símbolo da revolução cultural que deu início à

pós-modernidade. Essa crise abalou também a Igreja e “os adversários aproveitaram a

coincidência histórica para atribuir ao Concílio os fenômenos da crise – por exemplo, a

crise sacerdotal – que se deviam à mutação cultural” (COMBLIN, 2002, p.8).

Verifica-se que os documentos aprovados são claros, mas passar à prática exige

romper com o modelo vigente e ir dando passos em direção à meta proposta. Como

caminhar se os Documentos Conciliares não são homogêneos e às vezes até contraditórios?

Sabe-se que no Concílio estavam presentes Bispos e assessores com concepções

eclesiológicas opostas, caracterizados por historiadores como “conservadores ou

tradicionais” e “progressistas ou liberais”. Diz Comblin que “muitas vezes os documentos

são o resultado de compromissos entre o apelo à renovação e os temores dos conservadores

apegados a fórmulas do passado” (COMBLIN, 2002, p.6).

57

Constata-se que o Concílio propôs mudanças estruturais, mas manteve o Código

de Direito Canônico intato. Apenas em 1983 foi promulgado o novo Código alinhado à

nova visão eclesiológica, e mesmo assim deixando espaço à opção da hierarquia quanto à

participação do leigo. Na elaboração do novo Código está presente a igualdade

fundamental de todos os fiéis como Povo de Deus, e regulamentado o seu lugar e

participação; seus deveres e direitos nos serviços eclesiais. O texto, em relação aos leigos

retoma pontos basilares da Lumem Gentium. Vejamos algumas expressões:

Fiéis são os que incorporados a Cristo pelo batismo, foram constituídos Povo de Deus e assim feitos participantes a seu modo, do múnus profético e régio de Cristo, são chamados a exercer, segundo a condição própria de cada um a missão que Deus lhe confiou para a Igreja cumprir no mundo (CÓDIGO, 1983, can. 204). Entre todos os fiéis por sua regeneração em Cristo, vigora no que se refere à dignidade e atividade uma verdadeira igualdade pela qual todos, segundo a condição e o múnus próprios de cada um cooperam na construção do Corpo de Cristo (CÓDIGO, 1983, can. 208). Em virtude do Batismo e da Confirmação os fiéis leigos são testemunhas da mensagem evangélica, mediante a palavra e o exemplo de vida cristã, podem também ser chamados a cooperar com o Bispo e os presbíteros no exercício do ministério da Palavra (CÓDIGO, 1983, can. 759).

Nota-se que ao mesmo tempo em que oficializa a proposta da Lumem Gentium,

reconhecendo que os leigos “são juridicamente hábeis” para assumir alguns ofícios

participando nos “tria munera”, mantém a estrutura anterior ao Concílio, com a clara

distinção entre a participação do leigo e a considerável porção reservada ao ministro

ordenado. De um lado afirma a possibilidade de o leigo assumir seu lugar na diversidade

dos ministérios não-ordenados que a comunidade vai necessitando – como a catequese

(CÓDIGO, 1983, can.774), o ministério da Palavra (idem, can. 759); do Batismo (ibidem, can.

861, 2), da Eucaristia (ibidem can.835,1) – de outro, pode-se ver que os leigos “podem”

colaborar no exercício do múnus “regendi” (régio), no poder de governo (LG, 36;CÓDIGO,

1983, can. 129,2,) no Conselho de Pastoral como também no cuidado da Paróquia (idem, can.

512,1; 577, 2). Admiti-lo ou não depende da opção da hierarquia.

A Igreja em geral continuou trilhando o caminho anteriormente demarcado com o

apoio e empenho dos que não compartilhavam a mesma posição da Lumem Gentium. Já no

período final do Pontificado do Papa Paulo VI e durante o longo Pontificado de João Paulo

II, verifica-se distanciamento do caminho apontado pelo Concílio, promovendo o

fortalecimento da Cúria Romana e centralização (COMBLIN, 2002, p.345). A nomeação de

58

bispos segundo essa eclesiologia e a formação, centralizadora do clero colaborou para

diminuir o espaço de participação dos leigos, favorecendo a dependência e passivismo e,

ao mesmo tempo esvaziando a orientação para a formação de comunidades, onde o leigo

poderia ter maior espaço de ação.

Essa realidade ocidental atingiu também a América Latina onde se pode perceber

traços de rostos diferentes que foram se delineando na caminhada da Igreja. Passaremos a

olhar mais de perto essa realidade levantando algumas características que foram se

firmando, com a consciência de que não são etapas estanques e que os avanços e recuos se

misturam com destaques próprios a cada tempo e lugar.

4.2 Caminhada após Medellin e Puebla

Vimos no segundo capítulo que a Igreja latino-americana com o apoio dos Bispos

reunidos em Medellin e Puebla colocou-se a caminho sob as coordenadas do Concílio

Vaticano II. Nas Conferências Gerais tomou consciência da realidade e das raízes

geradoras das desigualdades, com a supervalorização do capital gerando desrespeito e

expropriação dos direitos do homem latino-americano e da sua cultura. A Igreja sentiu-se

provocada a colaborar para transformar essa realidade e se colocou do lado dos sem voz

nem vez, proporcionando-lhes conscientização e formação com método participativo.

Os horizontes despontados com o Concílio despertaram a esperança. Houve certa

abertura e os leigos começaram a participar ativamente e com maior consciência na vida

eclesial e assumir seu lugar na sociedade. O solo fértil regado pela Palavra de Deus

favoreceu o desabrochar das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da

Libertação. Alimentando-se com a seiva da Igreja primitiva, passaram a celebrar a vida, a

partilhar o pão, refletir a Palavra, a promover a alfabetização de adultos, a formar

cooperativas, organizar compras e outras expressões comunitárias.

Com a colaboração de profissionais, biblistas e exegetas os pobres puderam

participar de comunidades e aí tiveram acesso à formação humana, espiritual, social,

receberam as chaves para o conhecimento da Palavra e começaram a ler a Bíblia em

comunidade, à luz da realidade e relacionando-a com a própria vida. A leitura vivencial da

Palavra de Deus exigiu tomada de posição e busca de soluções para suas necessidades e

59

resgate da dignidade humana. Com o crescimento da autonomia começaram a despontar

lideranças e a unir-se no exercício de cidadania embora as condições político-sociais ainda

estivessem bloqueadas pelo regime ditatorial.

José Ernane Pinheiro afirma que as CEBs “expressam um novo modo de ser

Igreja, superando a dicotomia hierarquia-laicato (novo status eclesiológico) e assumindo,

como Igreja, uma missão especial: os pobres evangelizando os pobres” (PINHEIRO, 1994,

p.111).

O método de análise e metodologia participativa na busca de transformação social

foi visto como desvio da proposta evangélica e ameaça à ordem estabelecida. Provocou a

oposição e condenação desse caminho, personificado em alguns Bispos e Teólogos da

Libertação. Os que apoiavam esse caminho foram chamados de marxistas e deveriam ser

combatidos com todas as armas. Em alguns países os cristãos, incluindo padres chegaram

ao enfrentamento político. Isso foi utilizado pelos conservadores como prova dos erros de

interpretação do Concílio e mereceram a condenação da Igreja (COMBLIN, 2002, p.115ss).

Esta situação trouxe descrédito, insegurança e começou a minar as forças dos que

ensaiavam uma nova etapa na história da Igreja e da sociedade Latino-Americana.

4.3 De Santo Domingo a Aparecida

Antes da Conferência de Santo Domingo, segundo abordamos, foi convocado o

Sínodo Extraordinário para avaliar os 20 anos do final do Concílio (1985). As orientações

daí emanadas provocaram uma ruptura no caminho empreendido em Medellin e reforçado

em Puebla. A Exortação Apostólica “Christifidelis Laici”, do Papa João Paulo II,

documento final do Sínodo sobre a “Vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo”

(1988), apontaram a mesma direção.

No caminho que se seguiu pouco se falou de Povo de Deus, categoria que tinha a

força de resgatar a dignidade e incentivar o exercício da missão comum a leigos e pastores

como profeta, sacerdote e rei/pastor. O foco foi colocado na eclesiologia da comunhão. Os

cristãos leigos são o Corpo de Cristo e cada um tem seu lugar e sua função (1Cor 12,27),

regidos pela Cabeça, Cristo e seus representantes, o Papa, os Bispos e Presbíteros.

60

Todos são convocados à Nova Evangelização com “novo ardor, novo método,

novas expressões” para a edificação do Reino de Deus. A Igreja latino-americana foi

chamada ao cultivo da vida espiritual e à busca da santidade considerada imprescindível à

fecundidade da sua missão.

No decorrer do caminho, reforçando a oposição, condenação e combate à Teologia

da libertação e às Comunidades Eclesiais de Base, consideradas muito sociais, as

mudanças geradas pelo avanço tecnológico e o pós-modernismo prepararam o solo para o

crescimento de Movimentos espirituais, e o fortalecimento de uma religião massiva,

coincidindo com o florescimento e expansão de Igrejas Evangélicas Pentecostais ao lado

de inúmeras seitas espiritualistas geradoras de alienação e fortalecimento do

individualismo religioso. Segundo Comblin, o triunfo dos neo-pentecostalismos e dos

movimentos carismáticos, é sinal visível e evolução para o individualismo religioso (COMBLIN,2002, p. 139).

Na proximidade da virada do Milênio houve o despertar do fenômeno da busca do

sagrado. Enquanto a Igreja mantém sua organização e serviços centralizados nas

Paróquias, muitos se voltam para filosofias esotéricas, a movimentos de animação

espiritual, ou Igrejas fundadas na teologia da prosperidade com promessas de solução

imediata dos problemas e necessidades. Cresce a migração para outras instituições

religiosas em busca de acolhimento e de uma religião líquida, moldada ao próprio gosto,

que não exija compromissos. A mídia promove a propaganda e adesão a essa nova “cultura

religiosa” onde as “Missas show” e pregações reúnem multidões alimentando o

“individualismo religioso”, enquanto atinge a pessoa pela emotividade e lhe oferece a

sensação de fidelidade à Igreja.

O crescente apoio aos Movimentos, unido à sede de participação e a necessidade

de relacionar-se e comprometer-se, favorece o surgimento e aprovação por parte da Igreja

para as Novas Comunidades de Aliança que assumem um caminho espiritual na

radicalidade e com dedicação a trabalho solidário e fraterno de inspiração evangélica.

Diante de todo esse caminho percorrido é preocupante ver que os documentos e a

pregação falam de ministerialidade, de participação e colaboração dos leigos enquanto que

a prática continua ressaltando a dignidade e superioridade do ministro ordenado e mantém

a centralização. Verifica-se que junto com a centralização nas Paróquias e diminuição do

incentivo à vida nos pequenos núcleos ou setores, cresce a desmotivação e dificuldades à

participação, decorrentes da globalização e do crescimento da indiferença religiosa; o

61

medo junto com o limitado relacionamento entre vizinhos, aos poucos vai desarticulando

as pequenas comunidades, círculos bíblicos ou grupos de rua ou de novena.

A situação atual é gritante. Há tempo se fala da inadequação da estrutura

paroquial para a realidade atual. A Paróquia, em geral limita-se a oferecer serviços

religiosos e burocráticos aos que a buscam. Muitas Paróquias e dioceses tentam enfrentar a

migração de fiéis e prover a animação paroquial abrindo espaço e confiando sua missão a

grupos de Movimentos. Estes com sua vida própria, sua dinâmica, seus métodos, sua

espiritualidade, conduzindo-se segundo os grupos ou países de origem, em geral não se

preocupam com o caminho comum. Atuam junto à classe média e se alimentam de uma

espiritualidade que responde mais às aspirações pessoais que às comunitárias (PINHEIRO,

1994, p.112-113).

Por ocasião da V Conferência nota-se que o percurso feito conduziu a uma Igreja

sem um rosto definido, com certo esvaziamento da estrutura paroquial, pela multiplicidade

de grupos justapostos, mas não envolvidos em um caminho comum. Os Bispos

preocupados se dirigem aos diferentes grupos e comunidades, em especial às

Comunidades Eclesiais de Base – reconhecidas, como sinal de vitalidade da Igreja – para

que juntamente com os Movimentos eclesiais e as Novas Comunidades de Aliança, possam

contribuir para revitalizar as paróquias, e com organização pastoral orgânica corresponder

aos desafios dos tempos atuais (DA, 162; 179). Todos são convocados à vivência cristã

como discípulo missionário.

Hoje, percebem-se diferentes atitudes diante da Igreja: os que receberam

formação e experimentaram a alegria de formar comunidade e se sentem excluídos, mas

continuam aí aproveitando as pequenas brechas que surgem para assumir seu lugar e sua

missão. Os que continuam fiéis mantendo os serviços que a Comunidade sempre realizou.

Os que se viram empurrados à antiga situação de submissão e obediência, se afastam ou

emigram para outras Igrejas, os que não compreendem o que está acontecendo e

permanecem firmes nas devoções populares, muitas vezes sem vitalidade, os pobres e

simples se sentem excluídos, sem lugar nessa Igreja, outros abandonam a Igreja para

saciar-se em outras fontes. Cresce o número dos que se dizem ateus. Mesmo as CEBs que

continuam vivas, diminuíram sua ação social e muitas vezes passam a ser “mini-

paróquias”. A geração mais jovem que não teve a experiência da Igreja como comunidade

viva e dinâmica não encontra sentido em permanecer numa Igreja que desconhece.

62

Mas, por onde caminhar para que a Igreja possa resgatar sua originalidade e

oferecer as respostas que a humanidade busca hoje?

Destacaremos a seguir algumas pistas ou intuições colhidas no decorrer do

trabalho que possibilitem enfrentar os desafios que se apresentam.

4.4 Pistas ou intuições pastorais

Em Aparecida, é clara a preocupação em articular todas as forças vivas na

edificação da Igreja e em oferecer a resposta que o mundo não pode dar: o conhecimento e

experiência de Jesus Cristo.

O próprio Documento refletindo os diferentes temas em cada capítulo vai

indicando o caminho. Merece um estudo aprofundado para se tirar as consequências

possíveis. Não é nossa intenção entrar por esta via. Sem pretensão de esgotar todas as

possibilidades, queremos partilhar nossa reflexão e possíveis pistas para a renovação

pastoral e resgate da vitalidade da Igreja. Buscamos inspiração nas exigências que a

própria realidade apresenta para superar as consequências negativas da pós-modernidade

como o individualismo, consumismo, ganância, acomodação, depressão, vazio existencial

e outros.

Cremos que, em oposição ao individualismo, indiferença pelo outro,

descompromisso até a exclusão, o caminho para o resgate da originalidade eclesial passa

em primeiro lugar pela vida de comunidade. A vitalidade da Igreja se gesta nas pequenas

comunidades e grupos de círculos bíblicos, grupos de novena ou da reza do terço, de

leitura orante da Palavra, de trabalhos solidários, ou outros. Comblin diz que “a Igreja é

vida comunitária, é povo. Ela salva os indivíduos humanos por sua integração num povo

[...]” (COMBLIN, 2004, p. 141). Oferecer formação e criar espaços de participação a partir

das bases poderá favorecer o crescimento da consciência da própria dignidade e igualdade

fundamental de filhos e irmãos, membros do Povo Sacerdotal. As CEBs que se

mantiveram vivas, ainda que combatidas, foram consideradas em Aparecida e receberam o

incentivo da 48ª Assembleia Geral da CNBB12 que reconheceu nelas o lugar onde se

12 CNBB:“Mensagem ao povo de Deus sobre as Comunidades Eclesiais de Base” documento assinado, em Brasília aos 12 de maio de 2010.

63

possibilita a formação e se gesta a vitalidade e o dinamismo da Igreja. É nas Comunidades

que são geradas as lideranças e onde se pode exercitar o ser profeta-sacerdote-rei/pastor e

ao mesmo tempo estabelecer parcerias para conseguir políticas públicas em favor da vida e

transformar o mundo: oferenda agradável ao Pai, unida à oferta do Filho, Jesus, o bom

Pastor.

Aparecida sugere a necessidade de conversão pastoral que envolve ministros

ordenados e fiéis. Da parte dos ministros ordenados é preciso ir além da função

administrativa e de sacramentalização que lhe é confiada. A Igreja precisa de pastores que

se preocupem com a realidade dos fiéis e estejam dispostos a ir ao seu encontro e torná-lo

participante do seu ministério. Requer resgatar a consciência e vivência de Povo

Sacerdotal. Através da catequese e da liturgia favorecer ao leigo tomar consciência e

experienciar sua dignidade, seus direitos e deveres tornando-se discípulo missionário

consciente e ativo na Igreja. Incentivar a fazer a diferença, assumindo os valores cristãos

como normativos para sua vida pessoal e comunitária e ir ao encontro dos que se afastaram

da Comunidade. Todos são chamados a sair do comodismo e individualismo e evangelizar

com o testemunho e zelo pelos pobres. As visitas missionárias são um meio privilegiado

para conduzir a Igreja ao encontro dos afastados e indiferentes.

Para caminhar junto é indispensável planejar. O planejamento participativo

fundado sobre a realidade é um instrumento formativo que oferece espaço para cada um

assumir consciente e livremente sua parcela na edificação da comunidade, Paróquia, Igreja

Particular. Comblin afirma:

O que faz a unidade da Igreja são os trabalhos assumidos em comum, as lutas comunitárias, os confrontos assumidos em comum, as tarefas comunitárias, os movimentos que procuram transformar o mundo num trabalho comum (COMBLIN, 2002, p.148).

Em muitos lugares há espaço e incentivo, mas o caminho é truncado pelo próprio

método escolhido. Ninguém quer apenas executar. Todos querem sentir-se integrados e

participar da escolha, da preparação e execução, e é preciso aprender a avaliar o que se fez,

para alegrar-se com os avanços, aprender com os próprios erros e, quando possível colher

os frutos. É preciso retomar o empenho para a formação dos leigos e abrir espaço,

possibilitando-lhe discernir, sugerir, participar na planificação, decisão e execução dos

projetos eclesiais e pastorais.

64

Percorrer este caminho exige uma mística. A liturgia do quinto domingo da

Páscoa, Ano A, oferece boa oportunidade para refletir e despertar à vivência da vocação de

“Povo Sacerdotal”. Aí está clara a atenção dos Apóstolos às necessidades da comunidade e

abertura à participação do povo na solução de problemas surgidos com a expansão da

Igreja (Atos 6, 1-7). A partir daí há distribuição de “serviços” para maior harmonia e melhor

atendimento, sobretudo aos mais carentes. Surgem os “diáconos”, os servidores da

Comunidade. Com a Carta de Pedro (1Pd 2,4-9) recorda-se que a Igreja, comunidade dos

cristãos é feita de “pedras vivas” edificadas sobre Jesus Cristo. No seguimento de Jesus

Cristo deixam de ser sem direitos, marginalizados e, movidos pelo Espírito se tornam

“povo que é de Deus” chamado a instaurar o Reino de Deus, ser missionário e fermento de

transformação do mundo. Este é o sacrifício agradável que, como povo sacerdotal é

chamado a oferecer constantemente ao Pai.

Viver esta realidade exige entrar por Jesus, o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo

14,1-12). Ele é o Caminho que revela o Pai conduzindo à consciência de filhos e irmãos. É

a Verdade, a realidade plena do dom gratuito do Pai. Tem em si a Vida e a dá a quem nele

crê. Como filhos no Filho, a comunidade é chamada, como novo Povo de Deus, a

manifestar a gratuidade do Pai e, no seguimento de Jesus, o bom Pastor que veio para que

todos tenham vida plena (Jo 10,10), dá-lo a conhecer e a promover a vida, instaurando

assim, desde já o Reino neste mundo.

O desafio está lançado. Na Conclusão do Documento de Aparecida os Bispos

indicam o caminho:

Para nos converter em uma Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados e fiéis discípulos. [...] Todos os batizados são chamados a “recomeçar a partir de Cristo”, a reconhecer e seguir sua presença com a mesma persuasão e esperança, que teve seu encontro com os primeiros discípulos [...]. Só graças a esse encontro e seguimento, [...] somos resgatados de nossa consciência isolada e saímos para comunicar a todos a vida verdadeira, a felicidade e a esperança que nos tem sido dada a experimentar e a nos alegrar (DA, 549).

65

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Provocados pela complexa realidade atual nos encontramos frente ao desafio de

redimensionar a vida eclesial e percorrer novos caminhos pastorais.

Em breves lances caracterizamos a realidade de mudança de época em que

vivemos e que, alimenta a auto suficiência e a conseqüente rejeição da autoridade e

instituições que representam, legitima a expropriação de direitos fundamentais, limita a

participação e conduz ao passivismo. A cultura pós-moderna privilegia a tecnologia, o

lucro, impulsiona à competição, ao consumismo, e favorece o individualismo e o

hedonismo, como fontes de felicidade. Ao mesmo tempo verifica-se o crescimento do

indiferentismo e relativismo que conduzem ao vazio existencial e, paradoxalmente ao

desejo de Deus. As relações humanas e com Deus são manipuladas e não permitem ao

homem pós-moderno realizar sua identidade-vocação-missão de filho de Deus, irmão entre

irmãos, senhor e curador do mundo, a casa de todos. A Igreja que está no mundo, mas não

se limita a ele, sofre essa influência em sua vida interna e em relação ao mundo e se depara

com o desafio de ser fiel à sua missão.

Na busca de compreender o momento atual da Igreja, sem pretensão de expressar

toda abrangência de sua história consideramos a trajetória eclesial que, por longo tempo,

afastando-se de suas raízes primeiras e esquivando-se de dialogar com as Ciências e o

homem nos diferentes momentos históricos, com o sistema de Cristandade colaborou para

manter o homem alienado e passivo, portanto “não-sujeito”.

Iniciamos considerando o Concílio Ecumênico convocado pelo Papa João XXIII,

onde a Igreja foi chamada a retornar às suas raízes primeiras. Identificou-se como Povo de

Deus, herdeira legítima da Nova Aliança selada com a oferta da própria vida de Cristo

Jesus. Nova Aliança que levou à plenitude a Antiga Aliança estabelecida entre Deus e o

povo de Israel e inaugurava novas relações no interno da comunidade e com o mundo

sócio-político.

Os Bispos conciliares definindo a Igreja como “Povo de Deus” (Lumem Gentium,

LG) e considerando-a enviada com uma missão no mundo (Apostolicam Actuositatem, [AA] e

Gaudium Et Spes [GS]) dão as coordenadas para resgatar sua identidade de “Povo” e

superando o dualismo “clero-leigo”, recolocar a Igreja nos trilhos rumo às suas origens.

66

Entre as características da identidade da Igreja, destacamos que a Igreja é o Povo

de Deus “uma raça eleita, um sacerdócio régio, uma nação santa” (1Pd 2,9). Seus membros

nascidos pelo batismo, tem como Cabeça, Jesus Cristo (Ungido, Messias) e participam da

mesma Unção, do Espírito Santo, que flui da Cabeça para o Corpo, é “o Povo Messiânico”.

Tem como condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações

habita o Espírito Santo como num templo. Rege-se pela Lei do mandamento novo (Jo

13,34) com a missão de ser o sal da terra e a luz do mundo (Mt 5,13-16). Sua meta é “o

Reino de Deus, iniciado pelo próprio Deus na terra, a ser estendido mais e mais, até que,

no fim dos tempos, seja consumado por Ele próprio, quando aparecer Cristo, nossa vida (Cl

3,4)”. Em Cristo, único sacerdote verdadeiro, formando com Ele um só corpo (1Cor 12,12-

31) pelo batismo, fomos por graça de Deus, constituídos membros do novo e verdadeiro

“Povo Sacerdotal”.

A partir do Novo Testamento e dos Santos Padres colhemos algumas expressões

do sacerdócio dos fiéis que, segundo Congar é uma realidade extremamente rica que não se

esgota em um só aspecto, nem em uma só afirmação. Todos os cristãos são chamados a

oferecer sacrifícios espirituais e oferecer a si mesmos como hóstia viva e santa, agradável a

Deus e a anunciar por toda parte, as razões de sua esperança na vida eterna àqueles que se

interessarem (1Pd 3.15; Rm 12,1; LG,10).

No seio deste Povo, o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial

ordenam-se um ao outro, diferenciando-se na essência. Toda a Comunidade sacerdotal

exerce seu sacerdócio na oração e ação de graças, por uma vida santa e na prática da

caridade (LG,10). Os sacramentos são o lugar privilegiado para a participação do

Sacerdócio de Cristo (LG,10-11). As hóstias, o sacerdócio dos fiéis são “espirituais” em seu

sentido bíblico, não só moral, por isso chamado de espiritual-real.

Colhemos a especificação do apostolado dos leigos no Decreto Conciliar

Apostolicam Actuositatem (AA), onde deixa claro que sua missão é destinada a todos,

portanto confiada a todos os batizados. A união com Cristo Cabeça é origem e condição

para os fiéis leigos exercerem o apostolado e d’Ele depende a fecundidade do seu

apostolado.

Em síntese, o Concílio Vaticano II recomenda a toda Igreja, leigos e ministros

ordenados, unidos na comum dignidade sacerdotal, que realizem no mundo sua vocação de

Povo de Deus, Povo Sacerdotal e Povo Messiânico. Com o exercício do múnus profético,

sacerdotal e régio conduzam a Igreja à concretização do objetivo de sua existência:

67

conduzir à salvação todos os homens e mulheres sem distinção de raça, sexo, cultura,

condição social ou nacionalidade. Todos são chamados a conhecer e deixar-se acolher pelo

amor misericordioso do Pai, para viver na comunhão com o Filho na unidade do Espírito

Santo.

A Santíssima Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos, que vivendo na terra uma

existência igual à de todos, intimamente unida a seu Filho e cooperando de uma forma

singularíssima na obra do Salvador, é apresentada como ícone da vida espiritual e

apostólica dos cristãos.

Com o segundo capítulo abordamos a atualização do múnus sacerdotal dos fiéis

na América Latina, em primeiro lugar a partir dos documentos conclusivos das

Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Medellin, Puebla.

Medellin revelou o rosto profético da Igreja que descobriu o submundo dos pobres

e a chave da situação de dependência e injustiça que os impede de viver sua originalidade

latino-americana e a realização de sua vocação primeira, de filho de Deus e construtor da

própria história.

Constata-se que até aí “a Igreja contou com uma pastoral conservadora, baseada

na sacramentalização e pouca preocupação com a evangelização” (Med [6.1]). Esse povo

sacerdotal, portador de dignidade e possibilidades vive uma religiosidade popular sem

conhecer nem participar ativamente do múnus sacerdotal de Cristo, na comunidade

eclesial.

Medellin abre caminho para o resgate da comunidade através da participação.

Retoma a proposta da Lumem Gentium onde a Igreja é descrita como “um mistério de

comunhão” e todos os batizados “... podem participar fraternalmente da comum dignidade

de filhos de Deus” e também “compartilhar a responsabilidade e o trabalho para realizar a

missão comum de dar testemunho do Deus que os salvou e os fez irmãos em Cristo (LG,

17; AA,3)” (Med, [15.6]). Em Medellin, constatou-se que o exercício do múnus sacerdotal

dos leigos transparece de modo especial na sua relação com Deus na liturgia (é sacerdote);

na participação na vida e missão evangelizadora da Igreja (é profeta); em seu compromisso

solidário, o empenho para o resgate da dignidade e identidade de cada pessoa e a

transformação das estruturas pela libertação de todo povo (é pastor). Essa dinâmica

permitiu o desabrochar da “Teologia da Libertação”.

68

Com o tema “A Evangelização no presente e no futuro da América Latina”,

Puebla foi uma releitura da “Evangelii Nuntiandi” assim como “Medellin” foi uma

releitura do Vaticano II para a América Latina (CELAM, 2004, p. 9).

A América Latina exigia opções pastorais marcadas pela fidelidade ao Evangelho

e a proclamação da dignidade fundamental da pessoa humana em contraposição à ideologia

da Segurança Nacional difundida em vários países. Por isso a palavra de ordem é

“comunhão e participação na Igreja e na Sociedade para se chegar à autêntica

libertação” (CELAM 2004, p. 11, grifo nosso).

Em Puebla já se constata crescimento e valorização da participação do laicato na

vida eclesial e do sentido de pertença à Igreja, pelo compromisso nas tarefas apostólicas. É

solicitada ainda maior abertura à sua participação não só na execução, mas também na

planificação e nos organismos de decisão (P, 808). Reunindo-se em torno da Palavra e da

Eucaristia, unindo a formação em suas múltiplas faces, nas Comunidades Eclesiais de Base

- CEBs cresce entre os pobres e simples a consciência de que por Cristo, único Mediador,

é-lhe permitido participar do mistério de comunhão com Deus e lhe confere coragem, para

assumir seu lugar na Igreja e na sociedade.

A vivência cristã e o exercício do sacerdócio comum na América Latina, em

Puebla, passa pela comunhão e participação na missão da Igreja que se compromete com

os pobres e busca transformar a realidade à luz de Cristo.

Em continuidade, no terceiro capítulo consideramos o exercício do múnus

sacerdotal dos fiéis em Santo Domingo e Aparecida.

Segundo Dom Aloísio Lorscheider, “Se em Medellin, a palavra-chave era

libertação, em Puebla, comunhão e participação, em Santo Domingo era inculturação” (CELAM 2004, p. 11).

O documento de Santo Domingo rememora o caminho, que a Igreja percorreu

desde o princípio de sua história e afirma que esse caminho passa pelo testemunho e

santidade de vida. A coerência de vida com a vivência da fé vivida em pequenas

comunidades é condição para a eficácia da nova Evangelização que passa pela atuação na

realidade.

O Sínodo extraordinário (1985) e as “Instruções” sobre a Teologia da Libertação,

que precederam a IV Conferência repercutiram profundamente e definiram a mudança de

rumo da eclesiologia latino-americana. Neste novo tempo a Evangelização deve ser “nova

em seu ardor, em seus métodos e em sua expressão”. Isto “supõe fé sólida, caridade

69

pastoral intensa e forte fidelidade que, sob a ação do Espírito, gere uma mística, um

entusiasmo incontido na tarefa de anunciar o Evangelho [...]” (SD, 28). A vivência do

múnus sacerdotal da Igreja na América Latina passa pelo empenho evangelizador e ainda

pela vida de oração, louvor e ação de graças.

Interessante constatar que os Bispos reconhecem também o ministério profético

dos teólogos, que favorece ao povo de Deus a inculturação da fé e a evangelização das

culturas, impulsiona a ação em favor da justiça social, dos direitos humanos e da

solidariedade com os mais pobres (SD, 33).

Santo Domingo convida a zelar para que todos os membros do povo de Deus

assumam a dimensão contemplativa de sua consagração batismal e “aprendam a orar”,

imitando o exemplo de Jesus Cristo (Lc 11,1), de maneira que a oração esteja sempre

integrada com a missão apostólica da comunidade cristã no mundo (SD, 47).

A Conferência de Aparecida é celebrada com o mesmo espírito que animou as

Conferências anteriores, tendo diante de si o desafio de dar “novo impulso à evangelização

e recordar aos fiéis deste Continente que, em virtude de seu batismo, são chamados a

serem discípulos e missionários de Jesus Cristo” (DA, 10).

À luz do tema escolhido pelo Papa: Discípulos e missionários de Jesus Cristo,

para que nele nossos povos tenham vida. “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo

14,6), a V Conferência se realiza partindo de profunda análise da realidade marcada pela

cultura pós-moderna. Essa cultura se caracteriza pela supervalorização da subjetividade

individual e a auto-referência do indivíduo, que conduz à indiferença pelo outro. As

relações humanas consideradas objetos de consumo, conduzem a relações afetivas sem

compromissos e trazem como consequência o enfraquecimento dos vínculos comunitários;

verifica-se a fragmentação e limitação de horizontes e a radical transformação do tempo e

do espaço. Cresce a lógica do individualismo pragmático e narcisista, que gera crise de

sentido da vida (DA, 38). As novas gerações são as mais afetadas por essa cultura do

consumo em suas aspirações pessoais mais profundas.

Constata-se que o caminho percorrido nos últimos tempos conduziu a uma Igreja

sem um rosto definido, com certo esvaziamento da estrutura paroquial, pela multiplicidade

de grupos justapostos, mas não envolvidos em um caminho comum.

Em Aparecida os Bispos reconhecem o sacerdócio comum que une o Povo de

Deus na única missão que passa pelo discipulado e missionariedade e que a opção pelos

pobres é considerada dimensão constitutiva da fé (DA, 257). Convocam todos os membros

70

do Povo Sacerdotal a serem discípulos missionários. Vêem como sinal de esperança o

fortalecimento de associações leigas, as comunidades eclesiais, as Novas Comunidades e

reconhecem o valor e a eficácia dos Conselhos de fiéis leigos, porque incentivam a

comunhão e a participação na Igreja e sua presença ativa no mundo. “Ao participar dessa

missão, o discípulo caminha para a santidade. Vivê-la na missão o conduz ao coração do

mundo” (DA, 148).

No Documento final aparece clara a preocupação em articular todas as forças

vivas na edificação da Igreja e em oferecer a resposta que o mundo não pode dar: o

conhecimento e experiência de Jesus Cristo.

No quarto capítulo, percorrendo o caminho pós-conciliar com perspectiva pastoral

constatou-se que, com a Constituição Lumem Gentium a Igreja propôs mudanças, mas

manteve o Código de Direito Canônico intato. Na elaboração do novo Código oficializa a

igualdade fundamental de todos os fiéis como Povo de Deus, porém mantém a estrutura

anterior ao Concílio. Com as Conferências de Medellin e Puebla houve certa abertura e os

leigos começaram a participar ativamente e com maior consciência na vida eclesial e a

assumir seu lugar na sociedade a partir das Comunidades Eclesiais de Base e iluminados

pela Teologia da Libertação.

As orientações emanadas pelo Sínodo Extraordinário (1985), as Instruções sobre a

Teologia da Libertação e a condenação da Teologia da Libertação provocaram uma ruptura

na mudança empreendida em Medellin e reforçada em Puebla. Embora a eclesiologia da

Lumem Gentium continue latente no documento, no novo caminho proposto pouco se falou

de Povo de Deus, categoria que tinha a força de resgatar a dignidade e incentivar o

exercício da missão comum a leigos e pastores como profeta, sacerdote e rei/pastor. O foco

foi colocado na eclesiologia da comunhão. A vivência do múnus sacerdotal, passa pela

missionariedade que envolve a todos.

Chama a atenção a grande freqüência do chamado à mística, à espiritualidade e a

recomendação que a dimensão contemplativa e a santidade sejam prioridade em todos os

planos Pastorais (SD, 144).

Considerando o momento atual da Igreja, à luz do múnus sacerdotal pudemos ver

que em Aparecida o Episcopado Latino-Americano e do Caribe sentiu-se, mais uma vez,

desafiado a continuar na trilha missionária incentivada em Santo Domingo, mas com uma

característica marcante que só a Igreja pode dar ao mundo: anunciar Jesus Cristo Caminho,

Verdade e Vida como discípula. Podemos traduzi-lo como um voltar o olhar a Jesus de

71

Nazaré e a proposta assumida pelos primeiros seguidores. Somos novamente chamados a

retomar o caminho abandonado e que pode conduzir às fontes: ser discípulos, sujeitos

livres e comprometidos com a causa do Reino de Deus.

Na Americana Latina o exercício do múnus sacerdotal passa pelo discipulado e

missionariedade para a transformação da realidade. Em continuidade com a Lumem

Gentium, Aparecida recorda que, incorporados a Cristo pelo batismo, marcados com o selo

do múnus sacerdotal, profético e régio todos os membros do Povo de Deus, segundo suas

vocações específicas, são convocados à santidade na comunhão e na missão assumindo o

empenho comum para iluminar com os valores cristãos a vida sócio-política, a economia,

os meios de comunicação, enfim o mundo, para continuar a ser a voz dos que não têm voz

nem vez. Nas pegadas de Cristo devem penetrar e transformar esta realidade.

A linha mestra em Aparecida é ser discípulo missionário de Jesus Cristo. Mas,

por onde caminhar para que a Igreja possa concretizar essa proposta, resgatar sua

originalidade e oferecer as respostas que a humanidade busca hoje?

O documento sugere ao Povo de Deus assumir o seu lugar de discípulo

missionário no Povo de Deus, celebrando e vivendo a Eucaristia unindo a doação da

própria vida com Cristo; dando testemunho da vida cristã sendo solidário e defendendo os

direitos das pessoas, com especial predileção pelos mais pobres e excluídos, vivendo com

ética e coerência, buscando a santidade na vida pessoal, profissional e social.

Finalizando nossa abordagem destacamos algumas pistas que nos parecem

possíveis para o resgate da originalidade eclesial.

Cremos que em oposição ao individualismo, indiferença pelo outro,

descompromisso até a exclusão presentes na realidade atual, o caminho para o resgate da

originalidade eclesial passa pela vida de comunidade. Cremos que a vitalidade da Igreja se

gesta nas pequenas comunidades. Oferecer formação e criar espaços de participação

poderão favorecer o crescimento da consciência da própria dignidade e igualdade

fundamental de filhos e irmãos, membros do Povo. As CEBs que se mantiveram vivas,

ainda que combatidas, são reconhecidamente o lugar onde se gesta a vida e o dinamismo

da Igreja. É nas Comunidades que, unidas e guiadas por bons pastores são geradas as

lideranças e onde se pode exercitar o ser profeta-sacerdote-rei/pastor e ao mesmo tempo

estabelecer parcerias para conseguir políticas públicas em favor da vida e transformar o

mundo: oferenda agradável ao Pai, unida à oferta do Filho, Jesus o bom Pastor que dá a

vida livremente,

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Para se chegar à descentralização e constituir Paróquias como comunidade de

comunidades, como a Igreja pede desde Puebla, é preciso abertura por parte dos ministros

ordenados e que sejam dispostos a ir além da função administrativa e de sacramentalização

que lhe é confiada. O Documento de Aparecida pede conversão pastoral que, entre outras

pode acontecer pela presença de bons pastores que se preocupem com a realidade dos fiéis

e estejam dispostos a torná-lo participante do seu ministério sem medo de perder seu lugar

na Igreja. Através da formação, da catequese e da liturgia favorecer ao leigo tomar

consciência e experienciar sua dignidade, seus direitos e deveres. Por sua vez, como povo

sacerdotal os fiéis são chamados a tornar-se discípulos missionários conscientes e ativos na

Igreja. Exige romper com o fechamento, comodismo e abrir-se ao novo.

Para caminhar juntos e favorecer a participação de todos é indispensável planejar.

O planejamento participativo fundado sobre a realidade é um instrumento formativo que

oferece espaço para cada um assumir consciente e livremente sua parcela na edificação da

Comunidade, Paróquia, Igreja Particular. É preciso retomar o empenho para a formação

dos leigos e abrir espaço, possibilitando-lhe discernir, sugerir, participar na planificação,

decisão e execução dos projetos eclesiais e pastorais.

Percorrer este caminho exige uma mística. Sugerimos valorizar a liturgia do

quinto domingo da Páscoa, Ano A, para refletir e despertar à vivência da vocação de “Povo

Sacerdotal”. Aí está clara a atenção dos Apóstolos às necessidades da comunidade e

abertura à participação do povo (Atos 6,1-7). Recorda-se que a Igreja, comunidade dos

cristãos é feita de “pedras vivas” edificadas sobre Jesus Cristo, chamados a ser fermento de

transformação do mundo (1Pd 2,4-9). Viver esta realidade exige entrar por Jesus, o

Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,1-12). Como filhos no Filho, a comunidade é chamada,

como novo Povo de Deus, a manifestar a gratuidade do Pai e, no seguimento de Jesus, dá-

lo a conhecer e a promover a Vida, instaurando assim, desde já, o Reino neste mundo.

A V Conferência se propõe “à grande tarefa de proteger e alimentar a fé do povo

de Deus e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude de seu batismo, são

chamados a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo” (PP. Bento XVI, DI,3).

Permanecem, ainda interrogações que exigem maior aprofundamento, coragem e

empenho comum para dar o passo possível: como resgatar a confiança e despertar os leigos

a retomarem o caminho iniciado e há tempo abandonado? Como suscitar a adesão dos que

ainda não conhecem essa proposta? Como repensar a vida das paróquias para se tornarem

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comunidade de comunidades e devolver aos fiéis leigos seu lugar junto aos ministros

ordenados, como sujeitos da vida e missão da Igreja?

O desafio está lançado e a direção indicada. A vivência do múnus sacerdotal dos

fiéis na América Latina exige conversão pastoral, superar o racionalismo, o individualismo

religioso e acomodação, ouvir muito o povo e a realidade e, no seguimento de Jesus criar

novas possibilidades para expressar sua identidade de Povo Sacerdotal como discípulos e

missionários.

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REFERÊNCIAS

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