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FACULDADE DE SÃO BENTO FACULDADE DE FILOSOFIA IGOR RAFAEL DE SOUZA ANDRADE A INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO EDITH STEIN NA OBRA ESTRUTURA DA PESSOA HUMANA São Paulo 2018

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FACULDADE DE SÃO BENTO

FACULDADE DE FILOSOFIA

IGOR RAFAEL DE SOUZA ANDRADE

A INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO EDITH STEIN

NA OBRA ESTRUTURA DA PESSOA HUMANA

São Paulo

2018

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IGOR RAFAEL DE SOUZA ANDRADE

A INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO EDITH STEIN

NA OBRA ESTRUTURA DA PESSOA HUMANA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Faculdade de Filosofia de São Bento, como

pré-requisito para a obtenção do grau de

Licenciado em Filosofia.

Orientação: Profº Dr. Joel Gracioso.

São Paulo

2018

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Igor Rafael de Souza Andrade

A INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO EDITH STEIN

NA OBRA ESTRUTURA DA PESSOA HUMANA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Faculdade de Filosofia de São Bento, como

pré-requisito para a obtenção do grau de

Licenciado em Filosofia.

São Paulo, ____, de ____________ de _______.

Banca Examinadora:

_________________________________________________

Prof. Dr. Joel Gracioso (orientador)

_________________________________________________

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva (membro interno)

Faculdade de São Bento

_________________________________________________

Prof. Dom João Evangelista (membro interno)

Faculdade de São Bento

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DEDICATÓRIA

À Santíssima Virgem Maria, ao meu afilhado

Miguel Andrade e, sobretudo, ao meu pai, José

Leir de Andrade, ofereço o presente trabalho,

pela honra de ser o primeiro filho a lhe entregar

um diploma de graduação.

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AGRADECIMENTOS

À Santíssima Virgem Maria, pelas graças que me alcança com sua intercessão,

mesmo sem merecimento meu.

Ao meu pai, José Leir de Andrade, que com seu esforço, trabalho e verdadeira

paternidade me incentivou a iniciar os estudos e me apoiou durante toda a trajetória

até aqui e me manteve motivado nos momentos mais difíceis.

Aos professores que me ensinaram rigorosamente e me deram acesso a uma

ampla cultura, em especial ao Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, cujo

apostolado me alcançou e despertou em mim o desejo ao conhecimento filosófico.

Aos amigos que estiveram ao meu lado durante o tempo da graduação e que

me ajudaram, nomeadamente, o Vitor Matias, que me conseguiu alguns livros de

Stein; o Dr. Joel Gracioso, que me emprestou boa parte dos livros consultados; e o

Junior Masters, que me ajudou na tradução do resumo para o inglês.

Aos amigos Thiago Gehrmann e Lui Caroline que me foram solícitos e

contribuíram financeiramente para eu concluir o último ano da graduação. Também a

Fernando Gomes e Letícia Tomovski, que também me ajudaram, sobretudo quando

estive doente.

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EPÍGRAFE

“Edith Stein descobrira a verdade, não a

verdade da filosofia, mas a verdade em uma

pessoa, o "Eu" vivo de Deus. Edith Stein

procurara a verdade e encontrara a Deus” –

São João Paulo II

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RESUMO

O presente trabalho visa explicar como se dá a individuação no âmbito da estrutura

da pessoa humana, como Edith Stein o trabalha. O discurso é iniciado com análise

das diversas antropologias presentes na época da autora, o que nos possibilita extrair

mais do raciocínio ontológico acerca da individuação do homem. O homem é

abordado, primeiro como ente material, depois como coisas viva e, por fim, como

animal. A autora trata da comparação entre os métodos científico e filosófico e chega

ao assunto da origem das espécies, seguindo com a relevância do fator material para

a individuação, como é possível o surgimento de uma nova espécie, a relação de

necessidade e contingência na estrutura da espécie, a relação entre espécie e forma

primeira, a relação entre os gêneros do ser e o resumo das reflexões sobre a teoria

da descendência. Isso é feito para justificar a existência do homem como um processo

de desenvolvimento.

Palavras-chave: Individuação. Antropologia. Ontológico. Pessoa humana. Espécie.

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ABSTRACT

The present work aims to explain how individuation occurs within the structure of the

human person, as Edith Stein works it. The discourse begins with an analysis of the

various anthropologies present at the time of the author, which allows us to extract

more from the ontological reasoning about the individuation of man. Man is

approached first as a material being, then as living beings, and finally as an animal. It

deals with the comparison between scientific and philosophical methods and deals with

the subject of the origin of the species, following with the relevance of the material

factor for the individuation, since it is possible the emergence of a new species, the

relation of necessity and contingency in the structure of the species, the relation

between species and first form, the relationship between the genera of being and the

summary of the reflections on the theory of descent. This is done to justify man's

existence as a process of development.

Keywords: Individuation. Edith Stein. Ontological. Species.

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Sumário

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 ............................................................................................................. 15

1.1 Edith Stein e seu contexto ............................................................................ 15

1.2 O problema da individuação na história da filosofia – suas fontes e

influências .............................................................................................................. 16

1.3 Estrutura da obra ......................................................................................... 18

1.4 O método fenomenológico ........................................................................... 19

CAPÍTULO 2 ............................................................................................................. 21

2.1 A antropologia steiniana ............................................................................... 21

A. O homem como objeto da educação ........................................................ 21

B. A antropologia da ciência natural .............................................................. 22

C. A Investigação do ser humano individual pelas ciências humanísticas .... 23

D. O homem como pessoa espiritual em sua individualidade ....................... 25

2.2 O homem como coisa material e como ente vivo ......................................... 26

A. A figura...................................................................................................... 26

B. Configuração desde dentro (forma interior) .............................................. 27

C. O processo vital aponta para além do indivíduo: a espécie e a “ideia de

planta”. ................................................................................................................ 29

2.3 O homem como animal ................................................................................ 30

A. Espécie e individualidade no homem e no animal .................................... 30

B. Revisão do exposto até aqui e próximo tema ........................................... 32

C. O problema da Espécie – ideia – indivíduo em relação com o problema da

origem das espécies e dos âmbitos do ser. ........................................................ 33

CAPÍTULO 3 ............................................................................................................. 37

3.1 O problema da origem das espécies. Gênero, Espécie, Indivíduo. .............. 37

3.2 Os métodos .................................................................................................. 37

A. O ponto de partida do tratamento biológico e do tratamento filosófico.

Problema da espécie .......................................................................................... 39

B. As possibilidades das relações entre a espécie e o indivíduo. Categorias

de universalidade: gênero, espécie e indivíduo (exemplar). ............................... 42

B. I. Observações sobre a forma vazia ...................................................... 46

C. Possibilidades de informação da matéria. Problema da origem do

indivíduo e da espécie. ....................................................................................... 48

D. A origem dos indivíduos por geração ........................................................ 50

3.3 A matéria e os gêneros do ser ..................................................................... 51

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A. A relevância do fator material para a individuação da espécie ................. 51

B. A origem de uma nova espécie: modificação ou mescla de formas? ....... 52

C. A necessidade e a contingência na estrutura da espécie. Variedades

específicas. Indivíduo. ........................................................................................ 55

D. Espécie e forma primeira (ideia) ............................................................... 57

E. A relação existente entre os gêneros do ser ............................................. 57

F. Resumo das reflexões sobre a teoria da descendência ............................... 58

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 63

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por assunto principal o princípio de individuação

segundo Edith Stein na obra Estrutura da Pessoa Humana e almeja não postular uma

teoria acerca deste princípio conforme trabalhado pela autora, mas sim explicar, na

medida do possível, como ela constrói seu argumento a esse respeito – e, por isso,

acompanharemos sua argumentação também em pontos que aparentam ser

irrelevantes, mas não o são.

A edição usada para este trabalho é a edição espanhola, encontrada nas

Obras Completas, volume IV: escritos antropológicos e pedagógicos; traduzido do

manuscrito original alemão por Francisco Javier Sancho (Ordem do Carmelo

Descalço), José Mardomingo Constantino Ruiz Garrido, Carlos Díaz Alberto Pérez

(OCD) e Gerlinde Follrich de Aginaga.

Esta edição espanhola foi feita com base nos manuscritos originais da

Estrutura da Pessoa Humana, que Stein escreveu para o curso ministrado entre 1932

e 1933 para alunas aspirantes ao magistério – e conta, inclusive, com algumas notas

explicativas da própria autora, notas estas que são ignoradas em outras edições da

obra.

O objetivo do curso é tratar sobre a educação do homem. Stein desenvolve

uma reflexão que seja anterior ao estudo dos processos da educação propriamente

dita, ou seja, “enquanto leciona, traz como pauta a discussão: quem é o ser humano

enquanto sujeito e objeto da educação? O que dizem acerca da sua constituição?”1 –

Este é o contexto de fundo da obra à qual fazemos referência no presente trabalho.

Entendido o contexto da obra, resta entender a relevância deste tema (a

individuação e como ela se dá no homem).

O homem, segundo a fenomenologia da primeira geração, é trinitário, isto é,

possui três dimensões: corpo, alma e espírito, mas nem por isso deixa de ser

efetivamente uno – como observa Juvenal Savian Filho: “O ser humano é uma

1 SBERGA, Adair Aparecida. A formação da pessoa em Edith Stein: um percurso de conhecimento do núcleo interior. São Paulo: Paulus, 2014. p. 104-105.

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trindade de corpo-alma-espírito em uma unidade perfeita”2 – ou seja, é realmente

devido a uma unidade de sua forma substancial.

Essa imagem do homem como uma “trindade unitária” é comum entre os

fenomenólogos da primeira geração (talvez não tão claramente como aparece em

Stein em sua fase cristã); como observa Adair Aparecida Sberga,

“tanto Husserl quanto Stein constatam que os seres humanos são

constituídos por três dimensões: corpo, psique e espírito. Como todas as

pessoas possuem as mesmas dimensões, é possível conhecer, por meio das

vivencias, as bases fundamentais da estrutura da pessoa humana”3

Ademais, aqui se faz necessário elucidar, ainda que pouco, o que Edith Stein

entende por pessoa – embora não seja este o objeto do presente trabalho, não

podemos passar por cima desta noção sem ser desleal ao pensamento da autora

quanto à individuação.

Para Edith Stein, a pessoa humana é alguém que se toma como “eu” e toma

o outro “eu” como um “tu”, isto é, que se relaciona socialmente com as outras pessoas

humanas. O homem é capaz, ao contrário dos outros animais, de se aproximar de

outros homens e ter com eles uma relação pessoal, é capaz de ter em comum com

outro homem suas felicidades e dores (sentir a alegria e a dor do outro como sendo

sua).

Além disso, “a pessoa é o sujeito de uma vida atual do ‘eu’, um sujeito que

tem corpo e alma, que possui faculdades físicas e anímicas, que está dotado de um

caráter em permanente desenvolvimento”4.

O termo pessoa designa a individualidade de cada homem, naturalmente

marcado pela capacidade racional da espécie. A pessoa é o que há de mais perfeito

na natureza, porque nela há espírito e racionalidade, e, por isso, liberdade5.

Stein defende que na estrutura da pessoa humana há um determinado modo

de ser, o modo de ser individual; mas não parte disso como um pressuposto, ela

2 FILHO, Juvenal Savian. A Trindade como arquétipo da pessoa humana: a inversão steiniana da analogia trinitária. In. Faculdade Dehoniana - TQ Teologia em Questão. Taubaté: 2016. p. 299. 3 Sberga. Op. Cit. p. 105. 4 ZILLES, Urbano. Notas sobre o conceito de Pessoa em Edith Stein. In. Diálogos com Edith Stein: filosofia, psicologia, educação. Miguel Mahafould e Juvenal Savian Filho (orgs.) São Paulo: Paulus, 2017. p. 388. 5 Cf. Ibidem. p. 389.

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analisa o homem segundo o fenômeno homem se nos apresente: primeiro como coisa

material, depois como ente vivo, depois como animal e, por fim, como homem.

Além disso, não trata somente do indivíduo encerrado em si mesmo, senão

da relação dos indivíduos entre si, e também da relação entre indivíduo e espécie. É

neste ponto onde nossa atenção deve estar fixada para melhor compreensão do que

ela diz: na relação entre o indivíduo e a espécie de que ele é exemplar.

É necessária a discussão acerca da evolução das espécies por conta da

relevância da noção de espécie – dado que a compreensão da individuação só é plena

entendendo sua relação com a universalidade da espécie.

É possível dizer que nesta obra, Stein desenterra antiquíssimas discussões

filosóficas, como a relação entre forma e matéria, a querela dos universais, a querela

do realismo contra o nominalismo, etc.

Justamente por isso, podemos afirmar com absoluta certeza que Edith Stein

bebe de fontes da filosofia clássica, e nesta obra, sobretudo, ressaltamos pelo menos

quatro: o pensamento de Aristóteles, de Santo Tomás, de Duns Scotus e, ainda que

pouco apareça, o pensamento de Francisco Suárez.

Quanto ao pensamento de Santo Tomás, Stein o cita algumas vezes no

decorrer da obra (e inclusive diz deixar-se guiar por ele na eleição das questões6),

mas há uma polêmica quanto aos pontos de discordância entre ela e o Boi Mudo da

Sicília. É fato que a autora tem um pensamento próprio, ela não é só uma

comentadora e estudiosa, mas é verdadeiramente uma filósofa, então, aquilo que, ao

seu ver, não está suficientemente claro, é mudado despudoradamente.

Porém, devemos fazer uma ressalva, parece que Stein discorda mais dos

intérpretes tomistas que do próprio Santo Tomás, embora de fato ela não se detém

em repetir o que foi dito pelo Doutor Angélico – como, por exemplo, acontece com sua

concepção acerca do princípio de individuação: enquanto para ele, a individuação das

substâncias corpóreas se dá pela matéria7, para ela se dá pela forma vazia, um

6 Cf. STEIN, Edith. Escructura de la Persona Humana. In. STEIN, Edith. Obras Completas: Escritos Antropológicos y Pedagógicos. Vol. IV (F. J. Sancho, OCD et. al., trads. J. Urkiza, OCD, rev.). Burgos: Editorial Monte Carmelo (Original de 1932/33). p. 590. 7 Cf. AQUINO, Santo Tomás de. Cuadernos de anuario filosofico nº 85: Tomás de Aquino, Sobre el principio de individuación. Tradução de Paulo Faitanin. Navarra: 1999, p. 103.

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conceito próprio dela, que resulta de uma interpretação diferente acerca da querela

dos universais.

Como bem ponderou Urbano Zilles:

“Segundo a perspectiva fenomenológica, Edith Stein responde à pergunta

pelo que torna uma pessoa aquilo que ela é, dizendo que não é a matéria que

individua ou produz indivíduos, pois a matéria é comum a todos [os entes

compostos], mas é uma forma individual do ente, o modo individual de realizar

a forma da espécie humana”8.

8 ZILLES, Urbano. Op. Cit. p. 381.

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CAPÍTULO 1

Nesta parte trataremos sobre o contexto histórico no qual Edith Stein está

inserida; sobre o problema da individuação na história da filosofia (quais são as fontes

e influências da autora neste assunto); sobre a estrutura da obra ora trabalhada; sobre

o método adotado; e sobre o trecho desta obra que tomamos por base deste trabalho.

1.1 Edith Stein e seu contexto

Edith Stein (Breslau 12/10/1891 - Auschwitz 09/08/1942) foi uma filósofa e

teóloga católica que viveu na região da atual Polônia (na época, Alemanha). Embora

de origem judaica, Stein serviu a Alemanha na Primeira Guerra como enfermeira,

donde tirou parte da inspiração de sua tese de doutorado sobre a empatia.

Foi aluna e assistente do filósofo Edmund Husserl (que também orientou sua

tese de doutorado). Em agosto de 1916, conquistou o título de doutora em um tempo

considerado recorde para a época (4 anos), e com apenas 25 anos de idade.

Converteu-se ao catolicismo alguns anos mais tarde (em 1921), fato que a marcou

profundamente e que foi um ponto marcante nos seus escritos (ela passou a defender,

a partir de então, a possibilidade de uma filosofia cristã).

Em sua época, foi ferrenha defensora da dignidade das mulheres (defendia

que as mulheres, embora diferentes dos homens, têm tanta capacidade quanto para

as atividades intelectuais e para exercer e exigir os direitos cívicos na medida em que

são seres humanos) e seu trabalho é de grande importância para os campos da

psicologia, filosofia e teologia, e, além disso, nos debates sobre a dignidade da pessoa

humana.

Por ser mulher e judia na Alemanha, onde o nazismo estava em ascensão,

não foi aceita para lecionar no meio universitário (perdera uma vaga para Martin

Heidegger, “por acaso” filiado ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores

Alemães [partido Nazista]), o que a levou a dar aulas num colégio católico para moças

e ministrar cursos livres, dos quais a Estrutura da Pessoa Humana fez parte.

Em 1933, aos 42 anos, Edith Stein foi admitida no Carmelo de Colônia, na

Alemanha, onde assumiu o nome religioso de Teresa Benedita da Cruz. Uma vez no

convento, foi convencida pela Madre (sob o poder da santa Obediência) a escrever

uma obra de filosofia – e com isso nasceu sua maior e mais complexa obra de filosofia:

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Ser Finito e Ser Eterno. 1933 também foi o ano em que Adolf Hitler foi nomeado

Chanceler Alemão – a doutrina nazista era criticada pro Stein desde meados dos anos

20.

Com o nazismo em alta, não demorou muito para que começasse a

perseguição dos judeus (Edith Stein abandonara a crença judaica ainda na juventude,

mas era de ascensão hebreia). Chegou ao conhecimento do partido que havia uma

judia no Carmelo de Colônia e a Irmã Teresa Benedita da Cruz foi capturada e levada

ao campo de concentração de Auschwitz, onde foi morta em agosto de 1942, aos 51

anos de idade.

Um importante fenomenólogo do século XX que sofreu influência de Stein foi

Karol Wojtyła (São João Paulo II), responsável por sua beatificação e canonização,

além de ressaltar a importância do estudo de sua obra, que permanece imortal, ainda

que pouco conhecida e pouco comentada nos dias atuais.

Filosoficamente, Stein pertence à primeira geração da Escola

Fenomenológica, fundada por Edmund Husserl – e isto significa profunda diferença

dos demais fenomenólogos e do próprio Edmund Husserl, em certos assuntos. Seus

interlocutores (no assunto aqui tratado) são outros fenomenólogos, os positivistas (e

cientificistas), os espiritualistas e os psicologistas (como ficará claro mais à frente).

1.2 O problema da individuação na história da filosofia – suas fontes e

influências

Edith Stein deixa claro que seu pensamento é aberto àquilo que a tradição

filosófica perpetuou na história, e por isso se vale do conhecimento já adquirido para

chegar a conclusões mais avançadas. Não tenta “reinventar a roda”, mas insere-se

numa tradição e almeja resolver questões que, a seu ver, não foram suficientemente

resolvidas e voltaram com todo seu ímpeto no contexto em que a autora está

localizada.

A discussão acerca do problema da individuação remonta ao modo como

Aristóteles enxergava a relação entre Forma e Matéria, defendendo que, em vez de

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as Ideias serem independentes das coisas individuais, elas seriam ligadas a cada

indivíduo aos quais elas dão identidade9.

Na eleição dos problemas abordados na obra Estrutura da Pessoa Humana,

Stein se deixa guiar, na maior parte das vezes, por Santo Tomás de Aquino, para

proteger-se de unilateralidades e dispor de certa garantia de não passar

superficialmente por pontos essenciais10, o que nos ajuda a conhecer os pressupostos

de alguns pontos-chave de seu pensamento acerca da individualidade e a

compreender sua linha de raciocínio, já que suas teorias e conclusões não são fruto

de uma fértil mente alemã, mas sim de um rigoroso trabalho decorrente de seu

desenvolvimento em uma escola de pensamento. (Vale ressaltar que Santo Tomás

de Aquino tradou deste problema em diversos pontos de sua obra, dos quais enuncio

aqui com destaque o texto “De Principio Individuationis” em sua tradução espanhola

promovida pela Universidade de Navarra).

Ao falar sobre individuação, Stein “resgata”, por assim dizer, a filosofia de

outro pensador medieval: Duns Scotus. Diz Juvenal Savian Filho: “a formulação

segundo a qual o ser individual de um ente não pode der definido com a referência ao

conteúdo de outro ente é uma formulação ipsis litteris scotista”11.

Em “Ser finito y Ser eterno”, Stein reafirma essa influência scotista em seu

pensamento: “se compreendo corretamente, essa é a mesma posição de Duns

Scotus: ele considera o princípio de individuação como algo positivo do ser, aquilo que

distingue entre a forma individual da essência e a forma essencial geral”12.

Outra fonte de que Stein bebe é Francisco Suárez, autor da Escolástica Tardia

(e de quem os comentadores não costumam falar). Sua influência no pensamento

steiniano pode não ser direta, mas existe – o que se comprova pelo uso que Stein faz

do termo virtualidade. Desta influência não trataremos tão profundamente senão por

um comentário isolado que almeja explicar um pouco sobre tal termo.

9 Cf FILHO, Juvenal Savian. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein: uma nova fundação da antropologia filosófica. Prefácio. Tradução de Clio Tricarico. São Paulo: Perspectiva, 2014.p. XLI 10 Cf. STEIN, Edith. Op. Cit. p. 590. 11 FILHO. Op. Cit. p. XLVII. 12 STEIN, Edith. Ser Finito y Ser Eterno. Parte VIII, parág. 2, item 6, nota 887. In. STEIN, Edith. Obras Completas: Escritos Filosóficos (Etapa de pensamentos cristianos 1921-1936). Vol. III. Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2002. p. 1074.

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1.3 Estrutura da obra

Como dito na Introdução do presente trabalho, o objetivo do livro Estrutura da

Pessoa Humana é tratar sobre a educação do homem. Para levar a cabo tal objetivo,

Edith Stein inicia seu discurso tratando do objeto desta educação, isto é, do homem.

Por este motivo, no primeiro capítulo Stein trata da “ideia de homem como

fundamento da pedagogia e do trabalho educativo” – e é justamente nesta “ideia de

homem” que estão algumas das bases para nossa discussão acerca da individuação

na estrutura da pessoa humana.

No segundo capítulo, Stein trata das diversas antropologias presentes em sua

época, e, embora trate da “Antropologia como Fundamento da Pedagogia”, podemos

extrair mais do raciocínio steiniano acerca da individuação do homem. É neste

capítulo em que ela fala do método que elege como o mais adequado para tratar a

questão tratada: o método fenomenológico.

No terceiro capítulo, trata do homem como coisa material e como organismo

– isto é, começa com a argumentação propriamente dita acerca da estrutura da

pessoa humana a partir do método escolhido: fenomenologicamente, o que primeiro

percebemos do homem é seu ser material; e, logo em seguida, percebemos que se

move a si mesmo, isto é, que possui um princípio interno de movimento, que é vivo.

Em decorrência desta análise, segue-se a análise do homem como animal, no

quarto capítulo, pois o homem, além de material e vivo, possui sensações. Assim,

Stein analisa minuciosamente cada aspecto deste modo de ser.

No capítulo quinto, podemos dizer que se encontra o auge da discussão

acerca da querela dos universais e da individuação do livro Estrutura da Pessoa

Humana, porque, nele, a autora aborda o problema da origem das espécies,

analisando os conceitos de gênero, espécie e indivíduo. Antes de adentrar no

problema propriamente dito, Stein faz uma recapitulação do método escolhido,

comparando-o com o método positivista.

Em seguida, trata do animal do homem e do especificamente humano; da

alma como forma (do corpo) e como espírito; do ser social da pessoa; e da passagem

da consideração filosófica do homem para a consideração teológica, tornando, aqui,

clara sua concepção de filosofia cristã.

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No presente trabalho, tomamos por base apenas os capítulos que

enxergamos como essenciais para a discussão sobre o princípio de individuação e os

trabalhamos na medida em que nos fornecem material para a discussão – uma vez

que Stein trabalha, nesta obra, diversos assuntos para melhor entender (e explicar) o

homem, objeto próprio da obra Estrutura da Pessoa Humana.

1.4 O método fenomenológico

Francesco Alfieri diz que, por conta da insuficiência das ciências positivas, os

vários ramos do saber “têm insistido na urgência de explicitar, para si mesmos e para

o corpo social, os fundamentos filosóficos implicados em toda concepção de

conhecimento”13. Ainda, “se não se dá esse esclarecimento, corre-se o risco de

construir uma investigação pretensamente exata, mas sem correspondência com a

complexidade da experiência”14, ainda mais no que diz respeito ao homem.

Stein rejeita as diferentes antropologias de sua época por toma-las como

insuficientes, e, por isso, adota o caminho sistemático do método fenomenológico, que

significa fixar a atenção nas coisas mesmas e ir construindo o discurso sobre esta

base na medida em que for possível. Este método consiste em reduzir os conceitos

duvidosos daquilo que já é consolidado por um conhecimento científico ou pela

experiência natural.

Cabe a observação sobre a importância de partir das coisas e não das ideias

ou conjecturas descoladas da realidade. Sua eleição do método fenomenológico se

deve ao princípio elementar do referido método: fixar nossa atenção nas coisas

mesmas, e não interrogar alguma teoria acerca das coisas.

Embora utilize o método fenomenológico, é não só possível como necessário

afirmar que Edith Stein produziu algo novo, uma teoria que é fruto de seu próprio

trabalho, e não fruto única e simplesmente do método descoberto por Husserl – como

observa Angela Ales Bello:

“é interessante notar que se os resultados alcançados por Stein [no tocante

à empatia] são quase iguais àqueles obtidos por Husserl, embora a aluna

13 ALFIERI, Francesco. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein: uma nova fundação da antropologia

filosófica. Tradução de Clio Tricarico. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 19. 14 Loc. Cit.

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tivesse procedido de uma forma bastante autônoma, podemos deduzir que o

método utilizado demonstra ser válido, pois permite obter através de análise,

efetuada por pesquisadores diferentes, descrições coincidentes”15

No desenvolvimento do texto, a Filósofa faz uma descrição do método e

ressalta as diferenças que tem do empirismo – por exemplo, o empirismo não se volta

às essências das coisas, e a fenomenologia pressupõe que a intuição não é só a

percepção sensível de algo determinado e particular: há uma intuição de o que a coisa

é por essência, o que pode ter um duplo significado, etc. Explica:

“O ato em que se capta a essência é uma percepção espiritual, que

Husserl denominou intuição. Reside em toda a experiência particular como

um fator que não pode faltar, pois não poderíamos falar de homens, animais

e plantas, se em cada “isto” que captamos aqui e agora não captássemos

algo universal ao que nos referimos com o nome universal. [...]”16

Além disso, o método fenomenológico nos leva a distinguir três dimensões em

nós mesmos, como disse Juvenal Savian no prefácio do livro Pessoa humana e

singularidade em Edith Stein,

“uma na qual comungamos com a realidade física o mesmo modo de ser

(nosso corpo no aspecto material); outra na qual observamos o princípio de

vitalidade do corpo, permitindo-nos viver de maneira qualificada, ou seja,

emotivo-consciente (a psique ou a alma); e uma dimensão em que tomamos

consciência de nós mesmos, conhecemos e agimos livremente, podendo

inclusive analisar o modo de ser da consciência mesma (o espírito)”17

Dadas, pois, brevemente estas características do método fenomenológico,

compreendemos razoavelmente os motivos pelo qual ele foi escolhido, mas, como diz

Stein, “o conhecemos melhor quando o pomos em prática”18.

15 BELLO, Angela Ales. A fenomenologia do ser humano. Tradução de Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2000. p. 83 16 STEIN, Edith. Escructura de la Persona Humana. In. STEIN, Edith. Obras Completas: Escritos Antropológicos y Pedagógicos. p. 591. 17 FILHO. Op. Cit. p. XXXVIII. 18 STEIN. Op. Cit. p. 591.

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CAPÍTULO 2

2.1 A antropologia steiniana

A. O homem como objeto da educação

Edith Stein inicia seu discurso com um pressuposto sobre o homem e a ação

humana – a saber, algumas observações sobre o logos como uma “ordem e objetivo

dos entes”19, além de uma crítica das teorias educativas vigentes em sua época, as

quais, segundo a autora, possuem “falta de lógica e consequência”20. Parte, daí para

as “imagens do homem com repercussões para a pedagogia”.

Dentre as imagens analisadas (presentes em diversas escolas de

pensamento), aquela na qual Stein se debruça como sendo a mais acertada acerca

da abordagem do homem como um todo é a da metafísica cristã.

Desta imagem, o que nos importa para este trabalho é a seguinte observação:

“El hombre era originalmente bueno. En virtude de su razon era dueño de sus instintos,

y estaba libremente inclinado al bien. Pero cuando el primer hombre se apartó de Dios,

la naturaleza cayó de ese primer estado”21. Aqui temos um pressuposto necessário

para se compreender sua teoria sobre a relação entre o individual do homem e o

universal da natureza humana – e como esta afeta aquele –; além de possibilitar o

entendimento de cada homem como partícipe de uma comunidade humana e herdeiro

de uma natureza humana caída – sobretudo, o que julgamos mais importante para

esta discussão é justamente esta herança da natureza: como ela é possível e qual a

sua importância para compreender a individualidade humana?

Mais à frente, no texto, está posta outra base necessária para a discussão, a

saber, a noção de unidade:

“Así, pues, vemos por una parte a hombres que se agotan en la

lucha y por outra a hombres que dejan de luchar o nunca lo han hecho,

esto es, que se abandonan al caos, en ocasiones hasta tal punto que ya

no resulta visible la unidade de la persona. (Esa unidad, sin embargo,

19 STEIN, Edith. Op. Cit. p. 561. 20 Ibidem, p. 562. 21 Ibidem, p. 570.

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existe a pesar de que no lo parezca, puesto que cada alma es una, há sido

creada por Dios y está llamada a la inmortalidad. [...])”22

Esta unidade é uma premissa para seu raciocínio sobre a individuação e sobre o

homem, e, se desprezada ou mal compreendida23, gera deturpações graves do

pensamento de Edith Stein.

B. A antropologia da ciência natural

No primeiro ponto do segundo capítulo da obra ora analisada, nos detemos

na antropologia da ciência natural, que toma a evolução como pressuposto (e verdade

absoluta) e tem por objetivo “fixar a sequência evolutiva do homem e encontrar as leis

que regem esta evolução”24, estudando as leis “que seguem a evolução do indivíduo,

os estados que passa, as condições que a herança marca, etc.”25.

A insuficiência da antropologia da ciência natural se dá, em primeiro lugar,

porque o educador se ocupa de indivíduos humanos, e, “na medida em que [os

indivíduos] são exemplares de um tipo, o conhecimento deste último pode ajudá-lo a

compreender aos indivíduos”. “Porém”, diz Stein, “ser exemplar de um tipo nunca

implica ser derivável e explicável por completo”26 a partir deste tipo. Noutras palavras,

o conhecimento do universal (da espécie) não significa o conhecimento de cada

pessoa humana, que é individual, e não universal. O exemplar do tipo (isto é, o

indivíduo), não guarda com ele a mesma correspondência que a imagem impressa

guarda com o clichê27, mas encarna o tipo (ou espécie) com maior ou menor perfeição.

Inclusive, o mais perfeito exemplar ainda não é um mero exemplar do tipo, porque,

sendo concretamente material, é, assim, individual, e não universal28.

Sberga observa: “o ser humano não é [somente] um exemplar da espécie

humana universal, mas é determinado por uma forma substancial própria e única, que

se entende como especificação da ideia de gênero”29.

22 Loc. Cit. Grifos da autora. 23 Com “má compreensão” queremos ressaltar que a unidade da pessoa existe mesmo que não seja evidente (como no caso exemplificado pela autora). 24 STEIN. Op. Cit. p. 579 25 Loc. Cit.. Grifos meus. 26 Ibidem. p. 580. 27 Placa gravada em relevo sobre o metal para impressão na prensa tipográfica. 28 Cf. STEIN, Edith. Op. Cit, p. 580-581. 29 SBERGA. Op. Cit. p. 120.

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Além disso, a antropologia da ciência natural não é suficiente para responder

as questões relativas à distinção entre culturas e povos, aos quais cada homem

concreto pertence, e, por isso, é descartada por Stein como a antropologia basilar

para a pedagogia.

C. A Investigação do ser humano individual pelas ciências humanísticas

Feita a análise da antropologia das ciências naturais, no segundo ponto a

autora analisa a “investigação do ser humano individual pelas ciências humanísticas”.

Como a primeira antropologia analisada fracassa ao tentar compreender o homem

concreto, Stein se põe a pergunta de se há uma antropologia que nos pode ajudar a

compreender a individualidade30 - e como pergunta anterior a esta, primeiro cabe

investigar se existe alguma ciência que tenha por objeto o indivíduo em sua

individualidade.

A escola de Baden distinguiu as ciências nomotéticas (que buscam leis

universais) e ciências idiográficas (que têm por objeto a descrição de estruturas e

contextos individuais) – noutras palavras, ciências generalizadoras e ciências

individualizantes.

As ciências da natureza podem ser consideradas como nomotéticas, pois

buscam uma lei universal de formação e tomam o indivíduo apenas como exemplar e

nunca em sua individualidade31, contudo, não podem ser consideradas como

idiográficas as ciências do espírito – tendo em vista que a história, por exemplo,

sempre pode ser vista a partir de leis universais, reduzindo cada evento particular a

uma “regra geral” daquele período histórico.

Stein busca ciências que estudam os indivíduos, a fim de comprovar se podem

ajudar o educador a compreender os indivíduos de que se ocupa:

“A história trata de captar o individual-concreto, a biografia de um

homem individual e sua trajetória vital, com a finalidade de expor o captado

de modo comunicável. Existe realmente uma via de conhecimento que

conduza à captação da individualidade, e existe possibilidade de expor esse

conhecimento por meio da linguagem, de maneira que seja acessível a

outros? Tem-se respondido negativamente, argumentando que conhecer é

captar objetos em conceitos e expô-los por meio de conceitos, e que os

30 Cf. STEIN, Edith. Op. Cit. p. 581. 31 Cf. Ibidem. p. 582.

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conceitos são universais. Assim, os conceitos universais não permitem

determinar a individualidade mais que de modo aproximado”32

Ora, se a linguagem emite apenas enunciados acerca do universal, se as

palavras designam as substâncias e os acidentes sempre de modo universal – por

exemplo, a palavra “cigarro” designa todos os indivíduos dessa espécie

universalmente, isto é, todos os cigarros que foram, que são e os que podem ser (ou

que são em potência) – e, além disso, o conhecimento se fundamenta única e

exclusivamente nisso, então o conhecimento do individual é impossível, e se existe, é

incomunicável.

Contudo, Edith Stein argumenta que esta impossibilidade contém uma ilícita

limitação do conhecimento a uma determinada modalidade que toma por modelo o

conhecimento do mundo material e de suas leis universais, de modo que não pode

ser fiel às peculiaridades do espiritual33. Se o conhecimento é uma captação espiritual

de um ente, é licito dizer que conhecemos o modo de ser próprio de um homem34 –

que se nos mostra através das múltiplas formas expressivas nas quais o “interior” se

“exterioriza”, e nós compreendemos essa linguagem.

Ainda usando o exemplo do trabalho historiográfico, o modo de ser próprio de

um homem se expressa por diversos meios: sua escrita, seus trabalhos, o modo como

afetou outros homens, etc. O trabalho do historiador (do biógrafo, do investigador) é o

de juntar essas evidências para reconstruir (em parte) quem foi aquele homem em

sua individualidade, interpretando essas evidências de modo que seja coeso e

consistente – alguns historiadores são ótimos em fazer o primeiro trabalho, mas

péssimos em fazer o segundo, como observa Stein35.

Esse exemplo do trabalho historiográfico (caberia também outros exemplos,

como o do investigador criminal, do advogado ou do promotor, etc.) nos serve bem

para afirmar inequivocamente que as ciências do espírito não se debruçam sobre a

universalidade das leis, mas sim sobre os indivíduos concretos.

32 Ibidem. p. 582. Grifo meu. 33 Cf. Ibidem. p. 583. 34 Note-se que dizemos que é lícito dizer que conhecemos o modo de ser próprio de um homem, e não comum a todos os homens que foram, são e podem ser. 35 Cf. STEIN, Edith. Op. Cit. p. 583.

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A partir disso, Stein faz a eleição do método mais apropriado para a

compreensão dos indivíduos na sua individualidade – e o método escolhido, como dito

no Capítulo I do presente trabalho, é o fenomenológico.

D. O homem como pessoa espiritual em sua individualidade

Nesta parte do capítulo, Stein analisa o homem sob diversos aspectos –

social, individual, histórico, comunitário e cultural –, porém, nos deteremos somente

ao que julgamos mais importante para nosso estudo: o homem como pessoa

individual.

A análise da experiência quotidiana nos revela algo da estrutura do cosmos e

da peculiar posição que o homem, nele mesmo, ocupa36. O que exatamente a

experiência quotidiana nos revela sobre o cosmos? A princípio, “nos concede uma

primeira percepção dos distintos estados do reino do ser, e vemos o homem como um

microcosmo no qual se unem todos esses estados: é coisa material, ente vivo, pessoa

espiritual”37.

Surge a pergunta: de que modo o homem é pessoa? Note-se que esta

pergunta indaga o modo pelo qual o homem é pessoa, e não o que é ser pessoa – é

uma indagação sobre o modo de ser e não almeja elucidar a essência, porque, como

veremos à frente, a análise de Stein e sua concepção de individualidade está mais

atrelada ao modo de ser que à essência do ser tal. Portanto, não falaremos da

definição steiniana de pessoa (pois também não é objeto de nossa presente análise).

Respondendo à pergunta, Stein diz que os homens são pessoas com um

“modo de ser próprio e individual”38. Aí está outro indício da importância de se estudar

a individualidade neste contexto.

Tratando da efetiva argumentação sobre a consideração do homem e da

individualidade em aspectos basilares e comuns entre a espécie homem e demais

espécies, dizemos que o homem é abordado pela autora primeiro como ente material,

depois como coisas viva e, por fim, como animal.

36 Cf. Ibidem. p. 592. 37 Ibidem. p. 592-593. 38 Ibidem. p. 593.

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2.2 O homem como coisa material e como ente vivo

A. A figura

Sobre este ponto da primeira parte do capítulo terceiro, nos deteremos apenas

no princípio, que trata da abordagem do homem enquanto coisa material.

Na hierarquia clássica dos entes, encontramos uma gradação de

potencialidade e atualidade, conforme o esquema abaixo:

Do topo da pirâmide até sua base vemos uma degradação de atualidade (e

de perfeição): Deus (ou o primeiro motor imóvel), onde não há nada de potencial e

que é puro ato; as demais substâncias separadas (as inteligências ou anjos), onde há

mais atualidade que potencialidade; as substâncias animadas, onde a potencialidade

e a atualidade são mais ou menos equilibradas; e as substâncias inanimadas, onde a

potencialidade é maior que a atualidade39.

Tendo isso em mente, fica mais fácil entender o porquê de Stein começar

analisando o homem na sua corporeidade, mais especificamente em sua

materialidade – os próximos passos serão analisa-lo como ente vivo, como animal e,

por último, como espiritual (analisando o que tem em comum com os entes que, na

hierarquia, estão acima dele). Ela diz:

39 Este esquema é livre, não foi retirado de Edith Stein e é somente um dos modos possíveis de se esquematizar a hierarquia dos entes; e foi posto neste trabalho para elucidar como se dão as relações de ato e potência nos entes e porque Stein toma estas noções como pressuposto de sua análise. Além disso, uma série de outras subdivisões são possíveis em cada campo, subdivisões que não foram feitas por motivo de simplicidade.

Deus

Substâncias separadas

Homens

Animais

Plantas

Substâncias inanimadas

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“Se comparamos o corpo do homem com os ‘materiais’ que

constituem o grau mais baixo de ‘matéria com forma’ que conhecemos,

vemos, por um lado, ‘pedaços’ de uma ‘massa’ para os que não é de modo

algum essencial ter precisamente este tamanho e esta forma”40.

Vale a ressalva de que considerar o homem somente em sua corporeidade é

uma abstração que prescinde de muitas características inegavelmente pertencentes

ao homem – através do seu exterior chegamos à sua vida, alma e espírito. Contudo,

esta consideração nos ajudará a compreender o homem em sua particularidade

corporal, pois seu corpo é, já como corpo, distinto de outros.

“A esta particularidade do corpo humano, com a qual constitui uma

figura determinada, fechada em si mesma, indivisível e não unificada com

outras, podemos denominá-la individualidade”41

O corpo humano pode ser comparado com entes meramente materiais (que

não precisam ter este tamanho ou estas determinações individuais, senão que podem

“fundir-se” com outros da mesma matéria e tornarem-se um só, pois são “pedaços” de

uma mesma “massa”) porque é material, então há um nível razoável de comparação;

por outro lado, possui também estruturas correspondentes a uma obra “determinada

e encerrada em si mesma”42 que não são pedaços, mas exemplares da espécie

humana, e não permitem divisão ou união com outros para se tornar uma massa

homogênea.

Na citação acima feita, embora Edith Stein dê a primeira definição de

individualidade esta definição não é universal, podendo aparecer o termo em outra

parte do texto ou em outros textos com um sentido levemente distinto43.

B. Configuração desde dentro (forma interior)

Neste ponto da segunda parte do capítulo terceiro, Stein trata mais

detidamente, do homem como ente vivo – em certo sentido, da interioridade dos entes

vivos. Nós, porém, trataremos apenas da análise da forma interior.

O corpo tem uma forma determinada, fechada em si mesma e estruturada

conforme certas regras, interiormente concatenada, isto é, na medida em que o ser

40 STEIN. Op. Cit. p. 596. 41 Ibidem. 42 Loc. Cit. 43 Loc. Cit.

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humano é uno sua figura externa está configurada desde dentro - neste ponto torna

manifesta sua postura frente à unidade da substância, ou seja, que há uma unidade

da forma substancial -, e por isso diz “leva em si algo que faz dele o que é em cada

caso”44. Nas palavras de Sberga, “o ser humano percebe seu corpo como uma

realidade unida interiormente. Sua forma exterior é formada a partir do interior”45

É graças a essa unidade da forma substancial que o homem pode ser

consciente de si e tomar-se como um “eu”, o que só é possível porque é um ente uno

e possui uma alma espiritual e uma psique, como bem observa Adair Aparecida

Sberga46.

Este configurar-se desde dentro é um peculiar modo de ser: o modo de ser

dos entes vivos - em outras palavras, os entes vivos não só seguem as leis da matéria,

mas também seguem as leis próprias dos entes vivos, cuja variedade depende da

variedade de espécies às quais pertencem.

Neste trecho Stein faz uso de um léxico mais determinado cuja explicitação

será feita por nós à medida do que aparece no texto e à medida que julgarmos mais

necessário para sua compreensão.

Isto que é configurado desde dentro é denominado por Santo Tomás de

Aquino como “forma interna” (ou alma vegetativa, isto é, princípio de vida). Aristóteles

também denomina enteléquia (pois considera que o processo de configuração tem um

telos, isto é, aponta para uma determinada figura)47.

O telos da configuração do corpo a partir da enteléquia é a estrutura

plenamente configurada que atua desde dentro para conservar esta plenitude da

forma48. Neste sentido, enquanto a forma diz o que é o ente, a enteléquia configura o

corpo para que ele atenda às determinações da forma.

A enteléquia atua concretamente de modo que cada membro cumpre uma

missão determinada no contexto do todo – e por isso a parte é um órgão e o todo é

44 Ibidem. p. 601. 45 SBERGA, Adair Aparecida. Op. Cit. P. 111. 46 Cf. Ibidem. p. 106. 47 Cf. STEIN, Edith. Op. Cit. p. 601 48 Loc. Cit.

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organismo. Ademais, aponta mais além de si mesmo e produz outras estruturas da

mesma espécie.

A forma interna é algo qualitativamente determinado que qualifica o todo: é

uma espécie49, isto é, a forma interna é responsável por configurar os exemplares de

uma espécie. A espécie é designada pelo conceito, ou seja, é universal e por isso sua

determinação vale para todos os exemplares que são os indivíduos pertencentes a

esta espécie.

C. O processo vital aponta para além do indivíduo: a espécie e a “ideia de

planta”.

Neste ponto do capítulo Stein começa a se valer da planta como exemplar de

sua teoria por um simples motivo: a planta é o ente vivo, na hierarquia adotada por ela

e pelas escolas aristotélica e tomista, mais baixo, isto é, sua alma é somente princípio

de vida e responsável pela nutrição e pelo desenvolvimento.

Apesar de encerrado em si mesmo o indivíduo vegetal (ou seja, o que possui

uma alma vegetativa) aponta em seu processo vital para além de si mesmo. Das

plantas ao homem todos os entes vivos possuem anima (alma tomada meramente

como princípio de vida), ou alma vegetativa.

As plantas a possuem em diferentes graus de perfeição; os animais, além

dela, possuem os sentidos (também em diferentes graus de perfeição); e o homem

além da alma vegetativa e da capacidade sensitiva possui também a razão. Assim as

mesmas características vitais básicas presentes na planta menos perfeita estão

presentes no homem com uma perfeição maior.

As árvores do bosque somente formam uma unidade coletiva para o olhar de

quem as contempla, mas carecem entre si de uma vinculação. Porém, o “elan vital”

aponta além do indivíduo, aponta para a espécie.

Com isso, vemos que o termo espécie não designa somente a forma que atua

no indivíduo, mas a totalidade de entes reais nos quais esta mesma forma atua -temos

aqui uma plurivocidade do termo espécie: ele pode designar o conjunto de indivíduos

que foram, são em ato ou são em potência, ou pode designar unicamente a forma

49 Cf. Op. Cit. p. 601.

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desses indivíduos – (se cada indivíduo tem a sua forma ou se há uma forma para todo

ser vivo é uma questão a parte)50.

Por fim “a unidade da espécie não é meramente coletiva, mas genética”51, o

que quer dizer que Edith Stein não usa o termo espécie em um único sentido, mas de

modo em que há intercâmbio de sentidos. O fato de um indivíduo apontar para a

espécie não só mostra que aquele se configura a si mesmo como exemplar desta,

mas também que ele gera por si mesmo novos exemplares dela52.

Stein deixa de lado a questão de se todas espécies de vegetais podem ser

colocadas uma série evolutiva ou de maior ou menor perfeição, mas toma como

pressuposto que possuem perfeições distintas.

2.3 O homem como animal

Neste capítulo, Stein trata do próximo gênero na hierarquia: os animais. E aqui

abordamos, mais determinadamente, como se dá a individualidade neste campo.

A. Espécie e individualidade no homem e no animal

O modo de ser próprio que se expressa na estrutura corporal do animal e em

seu caráter anímico – e que provavelmente se percebe interiormente na forma de um

estado de ânimo básico – é, segundo diz Stein, o modo de ser próprio da espécie, e

não de todo indivíduo53.

Assim como na planta, o telos apontado pelo desenvolvimento do indivíduo

animal é a expressão mais perfeita possível da espécie e sua conservação mediante

a reprodução54.

(Mais adiante tornaremos a este ponto determinado, mas desde já julgamos

ser necessário aclarar que esta afirmação carrega em si uma enorme relevância: a

espécie determina o fim para o qual os indivíduos a ela pertencentes devem concorrer,

mas não determina que eles chegarão a tal fim; como um atirador que mira um alvo e

efetua o disparo: o alvo está na mira e o projétil deve acertá-lo, mas se uma ave passar

50 Cf. Op. Cit. p. 605 51 Loc. Cit. 52 O problema da origem das espécies aparece somente mencionado aqui, mas será tratado mais a fundo em outra parte do presente trabalho. 53 Cf. Op. Cit. p. 612. 54 Loc. Cit.

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na frente do caminho que o projétil percorre, este acertará a ave, e não o alvo; assim

se dá na realidade: os indivíduos têm um telos dado pela espécie, mas nem sempre

o alcançam).

“Não parece, pois, que haja uma individualidade relevante como tal.

Certamente, os indivíduos são imperfeitos exemplares da espécie que se distinguem

uns dos outros”55, diz Stein. “Estas diferenças parecem ser algo ‘casual’, carente de

um fundamento permanente na natureza do animal”56. Aqui, Stein apresenta uma

teoria que, aparentemente, põe em xeque a relevância da individualidade, uma vez

que ela parece ser meramente casual, contudo, adiante mostrará que (a

individualidade) não somente é algo que é efetivo, mas também é necessário, e por

isso prossegue:

“Em qualquer caso, nossa relação teórica e prática com os animais

parece estar dominada por uma valoração da individualidade deferente da

que realizamos de imediato aos homens”57.

Como exemplo de relação prática do homem para com os animais, podemos

citar o do criador de gado: ao criador, pouco importa as características individuais de

cada boi determinado (como a diferença de altura de um com relação ao outro), senão

somente as características das quais depende o preço pelo qual venderá a arroba

(como a dieta de todo o rebanho bovino) – e isso não faz o homem (ou os bois) sentir-

se mal.

Por outro nado, para os homens, em relações interpessoais, não é tido como

bom o desprezo da pessoa em sua individualidade. Por exemplo: enquanto operário,

qualquer homem é facilmente substituído; contudo, enquanto pai, um homem não é

substituível. Nas palavras de Stein: “esta pessoa, naquilo que significa humanamente

para mim, não se pode trocar por nenhuma outra, por muito que uma nova relação

humana possa me consolar da perda da primeira”58.

55 Ibidem, p. 612. 56 Loc. Cit. 57 Loc. Cit. 58 Ibidem. p. 613. Grifos da autora.

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Estas observações são feitas por servirem como ponto de partida para

análises mais profundas, e somente essa análise mais profunda nos mostra que há

uma fronteira essencial entre aquilo que é animal e aquilo que é humano59.

Tal mudança de postura com respeito à individualidade (do animal para o

homem) se dá porque “no homem, a individualidade adquire um novo sentido que não

possui em nenhuma criatura inferior”60, isto é, o homem possui, além de materialidade,

vivacidade e de sensibilidade (ou animalidade), possui algo mais, que confere à sua

individualidade um novo caráter, um caráter mais perfeito que o que tem nas criaturas

hierarquicamente inferiores.

A fim de clarificar os significados de alguns termos técnicos utilizados até aqui,

Stein expõe uma revisão do que foi dito até aqui e coloca o próximo tema a ser tratado.

B. Revisão do exposto até aqui e próximo tema

Os fenômenos visíveis nos proporcionam “uma via de acesso à estrutura

animal”61. Em seguida, foi considerado o que, além do caráter orgânico (comum com

as plantas), configura o especificamente animal: o caráter instintivo, a sensibilidade, a

existência de um ente anímico no sentido de uma “vida interior atual e de um modo

de ser próprio, habitual e duradouro”62 – daí derivam os próximos problemas.

Com isso, reconhecemos que a estrutura do animal pertence

necessariamente à posse de um interior, e, por isso, devemos examinar a estrutura

da alma.

É interessante ressaltar um importante detalhe que nos ajuda a compreender

melhor o método: dizer que parte dos “fenômenos visíveis” é ressaltar a importância

dos sentidos para o conhecimento. Tal detalhe metodológico é herança das fontes

clássicas das quais Stein bebe: a aristotélica63 e a tomista64. É este o motivo de ela

partir daquilo que por primeiro se nos apresenta para chegar ao conhecimento do que

é mais essencial aos objetos tratados.

59 Cf. Loc. Cit. 60 Loc. Cit. 61 Ibidem. p. 614. 62 Loc. Cit. 63 Cf. ARISTÓTELES, Met. A.980a – 980b 64 Cf. AQUINO, S. Tomás de. Summa Theologiae, Ia, Q. 12, Art. 12. Respondeo.

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Estas investigações nos ajudam a apontar uma “ontologia da alma animal,

que é condição prévia da psicologia empírica”65, mas nosso objetivo neste trabalho

não é tratar da questão da psicologia empírica (que deve ser objeto de um trabalho à

parte), senão o tratar, nesta parte, da relação entre espécie e indivíduo no campo

animal.

Seria conveniente completar o estudo da relação supracitada, à qual já temos

aludido, prestar atenção na relação entre as espécies. Concretamente, se deveria

investigar: a. se existe uma relação genética entre as espécies; b. se do mesmo modo

que falamos da “ideia de planta”, podemos falar da “ideia de animal”, que domine todo

o terreno animal, assim como de uma realização mais ou menos perfeita desta ideia

nas diferentes espécies; c. aclarar a questão das relações mutuas dos distintos reinos

do ser66.

C. O problema da Espécie – ideia – indivíduo em relação com o problema da

origem das espécies e dos âmbitos do ser.

“Ao investigar a questão da origem das espécies, Stein concebe a espécie

ontologicamente como aquela que dá a forma, que determina a estrutura e as

qualidades do indivíduo”67

Assim como o peculiar da planta reside no desenvolvimento de si mesma e

no estar contida em si mesma, o peculiar do animal é o contínuo ser levado e o reagir

aos estímulos68.

Para chegar a compreender em profundidade os âmbitos (que dizem respeito

ao assunto aqui tratado), seria necessário seguir investigando suas relações mútuas

e com a natureza material – “sem ter aclarado este ponto, é impossível compreender

a estrutura do indivíduo animal concreto”69.

Também é necessário dispor desta claridade a fim de entender a

multiplicidade das espécies animais, na qual se expressa a ideia de animal, que

65 STEIN. Op. Cit. p. 614. 66 Cf. Ibidem. p. 615. 67 SBERGA. Op. Cit. p. 120. 68 Cf. STEIN. Op. Cit. p. 621. 69 Loc. Cit.

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impera sobre todo este âmbito, assim como as relações entre as distintas espécies e

a relação entre estas e a referida ideia70.

A grande multiplicidade das espécies animais se pode caracterizar atendendo,

entre outras coisas, à maior ou menor pureza com que o especificamente animal se

expressa nas distintas espécies. Em algumas delas parece predominar ainda o

orgânico. Stein diz:

“Pienso no solo en las formas más bajas, cuyo aspecto externo

permite confundirlas todavia con plantas, sino también en algunas más altas,

en las que se observa una cierta entrega tranquila a su proprio desarollo, su

crescimiento y su éxito vital”71

Noutras palavras, a gradação de perfeição presente nas diferentes espécies animais

faz algumas se assemelhar mais às plantas e outras mais aos homens (como os

primatas), sem, contudo, lhes retirar o que é próprio da animalidade: certa “liberdade”

no seu desenvolvimento – ou uma sombra de liberdade, já que o meramente animal

não pode estipular os próprios fins, como o faz o homem.

Com relação à planta, surgiu a pergunta sobre se a unidade de todo o âmbito

respectivo se deve considerar ideal – no sentido de que a “ideia de planta se manifesta

em todos os seres deste gênero, ou seja, se há que admitir uma comunidade genética

nas quais se encarna esta ideia”72 – e esta é a pergunta acerca da origem das

espécies, e que agora retorna no âmbito animal73.

Daí derivam as perguntas sobre: a. se o processo genético está determinado

pela ideia norteadora do respectivo âmbito (na qualidade de princípio teleológico); e

b. se está determinado exclusivamente por ela.

Tanto na relação das espécies vegetais entre si quanto na das espécies

animais entre elas, “cremos observar o desdobramento de um duplo sentido que

articula a maior e menor perfeição com a qual as espécies realizam a ideia de seu

âmbito próprio”74.

70 Cf. Loc. Cit. 71 Loc. Cit. 72 Loc. Cit. 73 Cf. Loc. Cit. 74 Ibidem. p. 622.

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“É observável um progressivo ‘perfeccionismo’, no sentido de que as espécies

mais baixas manifestam semelhanças com as do âmbito do ser inferior; ainda que as

mais altas se acercam às mais baixas do âmbito imediatamente superior”75, diz Stein.

Voltando à imagem da gradação de perfectibilidade, podemos notar uma

hierarquia na qual todas as espécies vivas existentes se encaixam, e assim conforme

menor é a “colocação” de uma determinada espécie animal, maior é a sua semelhança

com as espécies vegetais (âmbito de ser inferior), na mesma medida em que as

espécies que ocupam uma posição mais elevada, se assemelham ao homem (âmbito

de ser superior). Podemos dar como exemplo do primeiro caso, uma esponja marinha

(classificada na taxonomia moderna como pertencente ao reino animalia) se

assemelha às plantas, enquanto um chimpanzé se assemelha aos seres humanos76.

A este fenômeno é dado o nome de “lei da continuidade”77.

A lei da continuidade nos permite interrogar sobre a relação que os distintos

âmbitos do ser guardam entre si. Estas interrogações tratam de: a. que vínculos

existem entre eles; b. se estes vínculos são genéticos; e c. como repercutem as leis

próprias do âmbito inferior no superior, determinando, entre outros fatores, aos entes

a ele pertencentes.

Esta lei da continuidade trata das relações entre as espécies, mas que isso

tem a ver com os indivíduos? Stein responde dizendo que a pergunta acerca da

origem das espécies está indissociavelmente ligada à questão da origem dos

indivíduos, pois as espécies somente chegam a existir realmente nos indivíduos, ainda

que a estrutura do indivíduo seja ininteligível se não se compreende previamente a da

espécie78.

Vemos aqui uma relação muito íntima entre indivíduo e espécie: por um lado,

a espécie é universal e (nos parece que) não existe realmente em si, senão que sua

existência real seja somente nos indivíduos; estes, por sua vez, são os que existem

em si mesmos, mas, à medida em que existem realmente, pertencem à espécie, que

determina suas propriedades comuns e seu telos.

75 Loc. Cit. 76 Esta semelhança abre a discussão acerca da possível evolução das espécies e das teorias que tratam disso. 77 Cf. STEIN. Op. Cit. p. 622. 78 Cf. Loc. Cit.

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A partir daqui, Edith Stein se vê na necessidade (e, mais do que isso, na

possibilidade) de aclarar algumas noções (espécie, indivíduo, etc.), exigência que vem

levantada pela análise dos fenômenos79, e com isso abrimos as portas para o terceiro

capítulo.

79 Cf. Loc. Cit.

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CAPÍTULO 3

Neste terceiro capítulo trataremos da comparação entre os métodos científico

e filosófico e começaremos a tratar do assunto da origem das espécies (qual é o ponto

de partida do problema, quais são as possibilidades de relação entre as espécies,

quais as possibilidades de informação da matéria e como se dá a origem dos

indivíduos vivos) e da relevância do fator material para a individuação, como é possível

o surgimento de uma nova espécie, a relação de necessidade e contingência na

estrutura da espécie, a relação entre espécie e forma primeira, a relação entre os

gêneros do ser e o resumo das reflexões sobre a teoria da descendência.

3.1 O problema da origem das espécies. Gênero, Espécie, Indivíduo.

No quinto capítulo da obra ora tratada, Stein intercala as noções filosóficas

com as noções das ciências positivas (por exemplo, na taxonomia moderna, não se

faz classificação simplesmente por gênero, espécie e diferença, mas sim por meio de

outras noções mais segmentadas: reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie

– sendo estes dois últimos menos abrangentes que seus homônimos filosóficos) para

chegar a um maior refinamento filosófico. Neste capítulo ela também expõe sua

concepção acerca do princípio de individuação.

3.2 Os métodos

Neste ponto, a autora retoma o discurso sobre o método escolhido (o método

fenomenológico), mas partindo, agora, das ciências positivas.

As ciências positivas (matemática, física, etc.) não partem dos fenômenos,

mas de axiomas, o que não permite que sejam usadas para o assunto aqui tratado,

isto é, a investigação acerca da individualidade do animal – a biologia cai no mesmo

problema80.

Tal limitação das ciências positivas se dá por conta da riqueza, variedade e

complexidade do mundo fenomênico – algo de que as ciências “exatas” buscam

apartar-se. Stein diz:

80 Cf. Ibidem. p. 624.

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“Nosotros, por el contrario, nos ocupamos de los fenómenos em

toda su concreción. Partimos de ellos en nuestras descripciones, y cuando el

análisis nos obliga a abstraer, acabamos volviendo una vez y otra a los

fenómenos, pues lo que nos interesa es conocer su estrutura y

compreenderlos en ella”81

Esta constante volta aos fenômenos – que, como dito acima, é o mesmo que

uma constante volta às coisas mesmas – evita o problema do dogmatismo científico

e permite uma constante verificação da veracidade dos enunciados feitos acerca dos

fenômenos.

O método das ciências descritivas se aproxima mais do fenomenológico; no

entanto, elas aspiram a “explicar” os fenômenos reduzindo-os a leis universais. Assim,

o ideal tem sido (até a época da autora) explicar os fatos biológicos derivando-os de

leis físicas e químicas – “se llega así”, diz Stein, “un buen día al resultado de que el

mundo vivo no está vivo en absoluto”82, ou seja, a ciência da vida a trata de tal modo

que a elimina, e isso se dá porque as ciências descritivas são como um tipo de ciência

positiva.

Assim, o papel do filósofo é examinar quem tem razão: se o homem comum,

cujo entendimento protesta contra esta visão; ou se os doutos em ciências positivas83.

Isto só pode ser feito se o filósofo se voltar ao ponto de partida do conhecimento

humano e averiguar qual o sentido deste proceder.

Aqui temos a tarefa da filosofia, que não pode se apoiar nos recortes da

realidade, feitos pelas ciências positivas para fazer uma imagem do mundo consoante

com o “estado da ciência” de cada área do saber e que, por outro lado, não pode

ignorar o atual estado das ciências.

A penetração no campo de uma ciência positiva e em seus procedimentos

metodológicos segue sendo, contudo, uma tarefa preliminar à qual o filósofo não deve

se desviar84.

Para levar a cabo sua missão, o filósofo deve dirigir sua atenção aos

procedimentos mesmos (o que não é feito pelo especialista científico); em seguida

81 Loc. Cit. 82 Ibidem. p. 625. 83 Cf. Loc. Cit. 84 Cf. Ibidem. p. 626.

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deve verificar se o procedimento é adequado, isto é, “si está en correspondencia con

la cosa que aspira a iluminar”85 – porém, isso só é possível se o filósofo dispõe de

outras vias de acesso às coisas (visas alheias ao cientista especialista).

A. O ponto de partida do tratamento biológico e do tratamento filosófico.

Problema da espécie

“Estas considerações gerais podem ajudar-nos a compreender o

sentido de uma teoria científico-natural estreitamente relacionada com todo o

conjunto de perguntas que versam sobre o ser orgânico e animal, e por ele

também com os problemas da antropologia. Trataremos, com efeito, de

examinar o sentido de uma questão que há alguns decênios comoveu os

espíritos: a questão da origem das espécies”86

Os temas a serem tratados nesta parte são: o ponto de partida do tratamento

que a biologia e a filosofia dão à temática da vida animal; e o problema da espécie:

espécie-individuo-tipo, forma-matéria.

Tratando-se da temática da vida animal, o fenômeno que cumpre o papel de

ponto de partida para as investigações filosófica e empírico-biológica é a

“multiplicidade das espécies nas quais se concretiza a ideia comum de animal”87 –

aqui vemos que há um ponto comum entre as duas ciências (se também

considerarmos a empeiria como um tipo de ciência), e com isso vemos a necessidade

da intercalação de termos, conforme o dito acima.

A biologia começa recolhendo dados e os descrevendo – e, com isso,

estabelece exaustivamente quais são as espécies animais que existem sobre a terra,

catalogando-as segundo a taxonomia preestabelecida que se fundamenta em certas

características físicas gerais. A comparação entre as distintas formas permite

organizá-las em uma série segundo sua complexidade88.

Os semelhantes de uma espécie ocupam lugares próximos nesta série, a

reprodução dentro de uma espécie, a conservação mediante a procriação, junto com

o fato de que ao longo das gerações o caráter específico sofre certas mudanças e se

vai desdobrando em diversas variedades dentro de uma mesma espécie: tudo isso

85 Loc. Cit. 86 Loc. Cit. 87 Loc. Cit. 88 Cf. Ibidem. p. 627.

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nos leva a perguntar se todas as espécies descendem de uma mesma que é primeira

(isto é, se há ancestralidade comum entre espécies distintas).

Com essas perguntas, abandonamos o terreno da descrição empírica e

enunciamos uma hipótese explicativa que deve ser ou bem demonstrada, derivando-

a de uma lei universal; ou bem corroborada com experimentos e observações89.

Quanto à primeira alternativa, esta nos levaria para além dos limites da ciência

empírica, ou melhor, “nos remeteria a seus pressupostos de possibilidade”90. Quanto

à segunda, nem as ciências empíricas conseguiram, através do método experimental,

demonstrar efetivamente a passagem de uma espécie a outra. Noutras palavras, esta

investigação não é de competência dos biólogos, mas dos filósofos.

As hipóteses da “seleção natural” e da “luta pela vida” não respondem à

pergunta de por que as espécies que têm sobrevivido à luta pela vida se converteram

em espécies “fixas” – exceto pela hipótese incomprovável empiricamente de que não

há espécie fixa e que a passagem de uma espécie para outra dure muitos séculos.

Além disso “a aparição de ‘mutações’ é inteiramente incompreensível desde o ponto

de vista da teoria da descendência”91. Assim, segundo Stein, não se pode dizer que

os fatos mostram uma demonstração irrefutável da teoria da descendência92 – o que

há são fatos dos quais não se pode postular como verdade a ancestralidade comum

das espécies.

O filósofo “não está circunscrito aos limites dos fatos empíricos”93, porque a

filosofia busca necessidades e possibilidades. Que não haja fatos que demonstrem a

“descendência” comum de todas as espécies, não quer dizer que estejamos obrigados

a rechaçar a possibilidade desta teoria – e ainda que houvesse tais fatos, “não estaria

estabelecida a sua necessidade”94.

Temos aqui a adequada postura frente a esta teoria biológica: é uma teoria, e

não uma lei. Frente a isto, devemos, por honestidade intelectual, conhece-la e verificar

89 Cf. Loc. Cit. 90 Loc. Cit. 91 Loc. Cit. 92 Cf. Loc. Cit. 93 Loc. Cit. 94 Loc. Cit.

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se é necessária e possível. Veremos à frente que Edith Stein defende que esta teoria

não é nem necessária e nem possível, como será provado.

A pergunta de que nos ocupamos neste momento toma por suposto que

existem espécies, ou seja, “séries de formas relativamente fixas que, atualmente, não

se convertem umas em outras”95 – a fixidez das formas é necessária porque ser tal é

justamente ser tal, por exemplo, uma cadeira é uma cadeira e, na medida em que é

atualmente uma cadeira, não pode ser outra coisa que não cadeira, como exprime a

máxima lógica “um ente não pode ser e não ser concomitantemente sob o mesmo

aspecto”.

O próximo passo é averiguar o que se entende por espécie. Este termo tem

um duplo sentido: por um lado, com espécie designamos uma forma interna à qual o

ente deve sua configuração própria; por outro, aludimos ao conjunto de todos os

indivíduos que são exemplares dessa forma.

Contudo, a biologia dá um terceiro sentido: espécie é o tipo que se faz patente

a nossos sentidos e ao qual ela se refere com suas descrições – neste terceiro sentido,

a espécie é uma determinada disposição da matéria de que o ente vivo é feito.

A relação da forma geral com o princípio de forma interna de cada indivíduo

concreto era um problema deixado em aberto e que Stein se vê na possibilidade e na

necessidade de tratar para melhor compreensão de o que é o indivíduo.

Todo indivíduo material – não só o ente vivo, mas todas as coisas de que

temos experiência – é matéria informada (ou seja, matéria com forma). A matéria não

existe sem forma, pois “recebe o seu ser desta”96 – toma, assim, a noção medieval de

“matéria primeira” como mera abstração, porque aquilo que é absolutamente potencial

ainda não é, e se dizemos que é pura potência, já é algo, e se é algo, tem forma de

algo. Por sua vez, a forma sempre se nos dá informando a matéria. Nenhuma das

duas (forma e matéria) é derivada da outra, já que são princípios distintos.

“Os indivíduos surgem e desaparecem. Desde o primeiro momento da

existência de cada um deles, a forma atua na matéria”97, diz Stein.

95 Loc. Cit. 96 Ibidem. p. 628. 97 Loc. Cit.

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Porém, que assim seja, não é compreensível somente a partir da forma ou

somente a partir da matéria98, tampouco é pensável que o indivíduo exista por si

mesmo (isto é, que ele seja sua própria causa), pois tudo o que é finito e condicionável

remete a algo absoluto como sua origem99, e, portanto, também a uma primária

informação da matéria. (Aqui novamente notamos as fontes aristotélicas e tomistas

das quais Stein bebe).

Que as coisas são e que há uma multiplicidade qualitativa de coisas, é o

primeiro fato da experiência, do qual parte todo o conhecimento. O caminho filosófico

radical consiste em partir disto e “chegar às últimas estruturas fundamentais

acessíveis à razão”100.

“Esta análise se topará em todas as partes com a contraposição de

forma e matéria e com a necessidade de uma informação primeira, seja qual

for o ponto do mundo real em que se situe. A matéria sem forma, carente de

toda qualidade, não exibe nenhuma diferença: toda a multiplicidade tem que

dever-se a uma multiplicidade de formas”101

B. As possibilidades das relações entre a espécie e o indivíduo. Categorias de

universalidade: gênero, espécie e indivíduo (exemplar).

Comecemos tratando das categorias de universalidade com o seguinte

esquema:

(Colocamos o presente esquema na forma de triângulo invertido para

evidenciar a abrangência de cada categoria: o gênero é a categoria mais abrangente,

porque abarca não só indivíduos, mas também outros universais; a espécie abrange

em menor grau, pois pode haver, em cada gênero, mais de uma espécie, contudo

abarca entes que foram, que são em ato e os que são em potência; já a categoria de

indivíduo abarca somente este ente determinado).

98 Cf. AQUINO, S. Tomás de. De ente et essentia. Tradução de Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis: Editora Vozes. 1995. p. 17. 99 Cf. ARITÓTELES. Met., Λ, 1071b, 20 100 STEIN, Op. Cit. p. 628. 101 Loc. Cit.

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Há diversas possibilidades para entender a multiplicidade das relações entre

espécie e indivíduo: a primeira é a possibilidade de existir apenas indivíduos (ou um

único indivíduo em cada espécie). “Podríamos pensar”, diz Stein, “que cada individuo

es cualitativamente único, de modo que los diferentes individuos sólo tendrían en

común la forma vacia de individuo como tal (de cosa particular y concreta)”102, como

os “anjos” [escreveu Stein a lápis na margem do manuscrito original103]. Esta

passagem é fundamental para a discussão do problema da individualidade, pois

ocorre a primeira evocação do conceito de Forma Vazia, noção fundamental para esta

discussão; contudo desde já revelamos que esta forma vazia é o princípio de

individuação, na concepção steiniana.

Ressaltamos um importante detalhe: Stein diz que, se existissem somente

indivíduos isolados, sem nada em comum, haveria ainda assim algo em comum: a

forma vazia de indivíduo como tal. Que isso significa? Que a forma vazia é algo de

comum em todos os indivíduos enquanto indivíduos.

É preciso destacar que um particular (um indivíduo) não vive sua distinção de

outro de maneira acidental ou casual, mas “a diferença entra as maneiras de as formas

realizarem-se individualmente deve ser essencial para elas”104; daí vem a

necessidade de se pensar a forma para além da forma específica (universal) para se

pensar a maneira como esta forma se realiza no indivíduo, como uma forma individual.

Nesta realização particular da forma específica, a série de preenchimentos que entra

102 Ibidem. p. 629. 103 Cf. Nota 44. Loc. Cit. 104 FILHO. Op. Cit. p. XLVI

Gênero

Espécie

Indivíduo

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na identificação do indivíduo só ganha sentido unitário graças ao modo de esse

indivíduo hipostasiar tais preenchimentos, isto é, de realizar as formas específicas e

universais105. Por exemplo, há dois cachorros pretos diante de mim; a negrura de um

é comungada pelo outro, mas o modo como o primeiro vivencia sua negrura é único,

irrepetível, incomunicável, inteiramente distinto do modo como o segundo a vivencia.

Assim, falar em um princípio de individuação, para Edith Stein, é falar sobre um modo

de ser. Stein fala de uma forma individual do ente, vista como modo de realizar

individualmente a forma específica, e não como coisa que individua106.

Stein segue: “el extremo opuesto seria una multiplicidad de cosas

completamente iguales, que solamente se distingrían por el lugar que ocupasen en un

sistema ordenado (espacio-temporal)”107.

Enquanto a primeira possibilidade extrema é que exista profunda diferença de

forma entre os entes, nesta segunda extremidade é posta a possibilidade de não haver

nenhuma diferença além da distinção segundo o lugar (categoria do onde). No

primeiro caso, a única propriedade comum é a forma vazia (ou seja, o modo de ser

individual), no segundo, a única diferença é o lugar ocupado no espaço-tempo. Temos

o seguinte esquema:

O indivíduo não é diretamente um exemplar do gênero, mas sim mediante os

“gêneros intermediários” (que chamamos de espécies), o que, numa degradação de

universalidade, chega ao limite do que é nomeado. Os gêneros são, como mostrado

no esquema exposto acima, os mais abrangentes, isto é, os que possuem os maiores

graus de universalidade; já as espécies ocupam, na hierarquia, um “posto” cujo grau

de universalidade é menor e chega ao limite daquilo que “pode ser nomeado” – uma

105 Cf. Loc. Cit. 106 Cf. Ibidem. LIII. 107 Loc. Cit.

Individualidade absoluta.

Forma vazia como única

característica comum

Universalidade absoluta.

Distinção de lugar como

única diferença

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vez que os nomes são sempre universais –, transposto este limite, chegamos àquilo

que não pode ser universal (o indivíduo) e nem ser diretamente nomeado (enquanto

indivíduo).

Deste modo, o indivíduo é exemplar do gênero mediante a espécie, mas é

exemplar da espécie diretamente – por exemplo: coisa material (gênero) coisa viva

(gênero) coisa que sente (gênero) homem (espécie) João (indivíduo, exemplar

da espécie).

Temos, aqui, uma precedência da forma ante a matéria no que tange a

individuação. Como bem notou Urbano Zilles, “se falamos da existência de uma

pluralidade de exemplares de uma espécie, a forma é uma determinação última e

singular, que impulsiona ao preenchimento da forma vazia a partir do núcleo da

personalidade”108.

Isto notamos pelos fenômenos – a lei específica que os homens (enquanto

homens) seguem, não são seguidas pelos cachorros (entes que fazem parte do

mesmo gênero, mas não da mesma espécie). Pelos fenômenos notamos também

aquilo que exemplares de uma espécie têm de comum entre si e com os exemplares

de outra espécie, mas do mesmo gênero. (Este é o motivo de Stein fazer sua análise

do homem primeiro enquanto ente material, depois como coisa viva, depois como

animal, ressaltando aquilo que tem em comum com exemplares de outras espécies

em cada gênero)

Para a relação das espécies mais baixas com o indivíduo, existe, por sua vez,

uma dupla possibilidade de que uma série de indivíduos sejam exemplares iguais da

espécie (como ocorre com as amebas, por exemplo), ou que cada indivíduo seja

qualitativamente único, uma vez que ele mesmo representa a espécie inteira (por

exemplo, os anjos, como ensina Santo Tomás). “A singularidade do indivíduo é por si

mesma ‘qualidade’ autêntica que não se reporta a nenhuma individuação quantitativa

exprimível numericamente”109.

108 ZILLES, Urbano. Op. Cit. p. 383. 109 ALFIERI, Francesco. A Presença de Duns Escoto no pensamento de Edith Stein – a questão da individualidade. Tradução de Juvenal Savian Filho. São Paulo: Perspectiva, 2016. p. 87

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B. I. Observações sobre a forma vazia

Tratando mais detidamente da noção de forma vazia, devemos dizer que tal

noção deriva da relação forma-matéria – relação que é encontrada em Duns Scotus e

na tradição Tomista –, mas o conceito de forma vazia aplicado ao problema da

individuação é exclusivo de Stein. Alfieri explica:

“A forma vazia (leerform) é um conceito metafísico ligado ao tóde ti

que Husserl elabora com base na expressão aristotélica. Assim, a forma vazia

é o substrato, e esse substrato, isto é, a forma vazia [...], é o fundamento

último do nosso ser. Devemos localizar a individuação não num estrato

intermediário, mas no fundamento último; esse é o sentido do conceito

metafísico Leerform”110.

Além disso, podemos afirmar com Stein que a forma vazia do ser criado como

tal está cheia de uma série de “formas universais qualitativamente diferentes, às quais

podemos designar como gêneros do ser”111. Os gêneros do ser são as formas que

estão na base do mundo real em âmbitos separados do ser – por exemplo: ente, ente

material, ente vivo, ente animal, etc.112

Assim, a forma vazia está repleta dessas categorias, que são universais, o

que a torna complexa. Edith Stein esclarece que o indivíduo não é somente um

portador estático de características específicas, mas é algo singular, “uma vez que o

preenchimento qualitativo confere uma identidade própria e única em relação às

outras singularidades da mesma espécie”113.

Então por que é chamada de “vazia”? Essa forma é vazia porque “é

inteiramente aberta à realização de um conteúdo (dado pela espécie e outras formas

universais)”114, além disso, é vazia na consciência que a considera na medida em que

só se pode falar dela pelo exercício de retirar de cada coisa individual tudo o que ela

tem em comum com outras coisas da mesma espécie, para que fique apenas com o

que ela tem de individual, ou seja, seu modo de realizar as formas específicas.

Dissemos acima que a forma vazia é o modo de ser individual, ora, o indivíduo

é repleto dessas categorias. Por exemplo, João é e pode ser dito de muitos modos

110 ALFIERI. Pessoa Humana e Singularidade em Edith Stein. p. 53. 111 STEIN. Op. Cit. p. 629. 112 Cf. Loc. Cit. 113 ALFIERI. Op. Cit. p. 54. 114 Cf. FILHO. Op. Cit. p. LV.

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(pois “o ente se diz de muitos modos”115), então pode ser dito meramente como ente

(o que é), como ente material, como um animal, como um homem, como o homem

que tem tal hábito, etc. Logo, este modo de ser é dito forma vazia porque, assim como,

quanto mais estreitamos as categorias, mais próximos chegamos deste ente individual

– e como o indivíduo é dito (enquanto indivíduo) segundo muitas categorias –, nesta

forma vazia “cabem” tais categorias: “O indivíduo realiza todas as essências

universais da espécie de modo próprio e singular, que é o seu modo próprio de realizar

tais formas”116. Embora cada indivíduo possa compartilhar com outros indivíduos da

mesma espécie diversas características, em cada um, esses conteúdos se efetivam

de maneira singular, por seu modo individual de realiza-los117.

Uma questão que Alfieri põe sobre o princípio de individuação (e que julgamos

ser oportuno expor) é se o princípio de individuação seria o mesmo tanto para as

coisas físicas em geral quanto para o ser humano118, ao que responde dizendo que

“Edith Stein diferencia a singularidade de uma coisa física e a singularidade do

indivíduo humano”119: aquela é meramente quantitativa (ligada à divisibilidade da

matéria e limitada ao espaço e ao tempo), enquanto esta é qualitativa (indicando um

elemento essencial que se liga à forma vazia que nos dá o indivíduo)120.

Acerca deste ponto da diferença da individuação dos entes meramente

materiais para os entes espirituais, Francesco Bottin diz que Stein não segue

propriamente Scotus:

“Stein, diferentemente de Scotus, parece estar disposta a admitir a

individuação por meio da matéria, mas somente para realidades materiais.

Para essas realidades, a via tomada por Tomás pode resultar aceitável. Mas

quando se trata de realidades espirituais ou de algum modo ligadas à

espiritualidade, esse caminho não é mais aceitável”121.

115 Cf. ARISTÓTELES, Met. Z 1.1028a,1. 116 ZILLES. Op. Cit. p. 381. 117 Cf. ALFIERI. Op. Cit. p. 58. 118 Cf. Ibidem 52. 119 Loc. Cit. 120 Cf. Ibidem. p. 53. 121 BOTTIN, Francesco. Tomaso d’Aquino, Duns Scoto e Edith Stein sull’individuazione. Il Santo: Rivista Francescana di Storia , Dottrina, Arte. v. 44, 1, jan-mar. 2009. p. 127

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C. Possibilidades de informação da matéria. Problema da origem do indivíduo

e da espécie.

Isto posto, Stein passa a considerar as diversas possibilidades de informação

– ou seja, inerência da forma na matéria. Dada a semelhança (e divergência) dos

termos usados ao longo do texto, julgamos necessário, antes, aclarar o significado de

dois deles que podem gerar confusão: informe e informado – e essa confusão é

gerada pelo prefixo “in”, que possui dois significados.

O primeiro (informe) significa “sem forma”, isto é, o prefixo “in” é privativo,

passa a ideia de “falta”, como ocorre em outras palavras de origem latina, como

indisponível, inconsciente, inconstante, etc. Em contrapartida, o segundo (informado)

é particípio passivo (ou passado) do verbo informar (dar forma) e significa a recepção

de forma por algo – neste caso, o prefixo “in” passa a ideia de “dentro”, como ocorre

em outras palavras também de origem latina, como inspirar, invocar, inalar, etc.

Com isso em mente, podemos seguir com mais assertividade. Quatro são as

possibilidades de informação da matéria (enunciadas por Stein): por um lado, seria

possível que uma coisa chegasse “pronta” à existência, neste caso, seu modo de ser

consistiria em permanecer sendo sem modificação, ou a modificação precisaria da

“intervenção de circunstâncias externas”122. Outra possibilidade é que a existência da

coisa esteja suportada num processo de informação vital, de modo que se converta

naquilo que é determinado pela sua forma123. Além disso, é também pensável que

cada indivíduo de uma espécie chegue ao ser independentemente dos outros. Por

fim, a última possibilidade é a da geração, isto é, que um indivíduo proceda de outro(s)

da mesma espécie.

Quanto à primeira: tal parece ser a lei da natureza material, “porém aqui

surgem graves problemas: Goethe pensa que inclusive o mundo material está

submetido a um contínuo processo de informação e re-informação, e também a física

moderna traz uma cosmogonia que reconhece mudanças de forma”124 – um dos

problemas que enfrenta é o do devir que existe no mundo material; se as coisas já

surgem “prontas” elas são somente em ato (sem potência) não mudam sem que mude

122 STEIN. Op. Cit. P. 629 123 Cf. Ibidem. p. 630. 124 Ibidem. 629.

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a forma, o que é falso, já que percebemos mudanças no mundo real, por exemplo a

planta que germina, cresce, se desenvolve e se converte em árvore.

A segunda possibilidade admite a maleabilidade presente nas coisas. Citamos

o mesmo exemplo da planta: a árvore não vem a existência já pronta, mas sim como

semente; sua forma determina que ela deve tornar-se uma árvore de tal espécie,

determina também como ela vai reagir a estímulos externos, mas não determina os

estímulos, o que dá maleabilidade para que a árvore cresça e se desenvolva do modo

que for melhor para a permanência da sua vida.

Quanto à terceira, esta possibilidade se assemelha a uma primeira criação:

cada indivíduo procederia diretamente do criador.

Quanto à quarta, esta possibilidade é possível somente no campo dos entes

vivos, já que o que não sofre algumas mudanças determinadas não pode dar origem

a algo desde si125.

Com isso é cabível a pergunta sobre a possibilidade de uma espécie proceder

de outra, isto é, a possibilidade da modificação das formas, que equivale à do

surgimento das formas – e aí entra os assuntos da origem das espécies, sua evolução

a partir de um ancestral comum, etc.

Importa, pois, conhecer a forma para conhecer o indivíduo porque, como

vimos, aquela configura este desde dentro e o faz ser o que é. “A forma mesma”, diz

Stein, “parece ser o imodificado, o que [...] determina o desenrolar dessas

modificações”126 – a forma, assim, configura o indivíduo de tal modo que “dá certa

liberdade” para certas modificações.

“A espécie da planta ou do animal nos pareceu ser uma ‘forma universal’, ‘o

mesmo’, princípio configurador de uma série de indivíduos”127. Mas como se deve

entender essa “universalidade” e “mesmice” da espécie? A resposta é a que se segue:

“Parece evidente que todo indivíduo real e concreto tem a sua própria forma,

sua enteléquia, que atua nele. Se pensarmos que cada indivíduo surge com

independência dos outros, se trataria de uma criação, de um proceder diretamente

125 Cf. Ibidem. p. 630. 126 Loc. Cit. 127 Loc. Cit.

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das mãos do criador”128. Se assim fosse, a espécie (que é universal) deveria ser

pensada como um “protótipo” que tem seu ser no espírito divino e as formas das

coisas particulares seriam como imagens da primeira e cujo número poderia ser

indefinido129, como a fotocópia de um livro.

D. A origem dos indivíduos por geração

Aqui, Edith Stein aprofunda mais a sua análise acerca das formas individuais

e sua possível origem na geração criatural (ou geração natural).

Começa analisando a possibilidade da geração criatural (que é a procedência

de um indivíduo a partir de outros da mesma espécie”130), análise esta cujo caminho

mais simples consiste em “centrar nossa atenção em sua procedência de um indivíduo

(sem diferenciação sexual) e na aparição de um novo indivíduo que fosse idêntico ao

que o gera”131, como ocorre, por exemplo, com as amebas (entes unicelulares e

assexuados).

Num primeiro momento, o indivíduo que surge deve ser “contemplado como

uma parte daquele que o engendra”132, mas, em seguida, deve desenvolver sua

própria existência separado daquele.

Assim que se fala em um “novo indivíduo”, assim que começa sua própria

existência, parece evidente que se deve designar sua própria forma, pois parece que

se tem originada uma nova forma individual, “ainda que não implique que estejamos

ante uma nova espécie”133. Em seguida, é posta a pergunta central do tema: se pode

dizer que o indivíduo gerador deu origem à nova forma individual?

Parece que não. Primeiro porque o começo da vida no ente material que

recebe sua configuração da forma do indivíduo gerador parece ser (se comparado à

informação da matéria que lhe precede) algo completamente novo e que não cabe

compreender desde essa informação prévia134. Como exemplo, Stein cita o grão de

trigo que germina, e diz que, quando isso ocorre parece que nós estamos

128 Loc. Cit.. Grifos meus. 129 Cf. Loc. Cit. 130 Loc. Cit. 131 Loc. Cit. 132 Loc. Cit. 133 Ibidem. p. 631. 134 Cf. Loc. Cit.

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“assistindo a um milagre, à ação do hálito divino vivificante. Não por isso

podemos supor uma efetiva intervenção especial de Deus em cada momento

em que começa uma nova vida. Mas cabe concluir que a origem de um novo

ente vivo exige um especial princípio criador, e que a existência de um ente

vivo, por muito que possa configurar-se a si mesmo em virtude de sua própria

forma interna, não permite compreender sem mais a origem de outros

exemplares de sua espécie a partir dele”135

Stein ainda considera outra possibilidade para interpretar a origem de uma

nova vida – uma possibilidade que toma por equívoco contemplar a um ente orgânico

isoladamente, separado do processo de geração no qual está inserido. Ao invés de

considerar esta forma determinada como forma deste indivíduo concreto,

consideramo-la como a forma de toda a espécie (entendida aqui como a totalidade

dos indivíduos pertencentes a ela). Assim, consideramos o primeiro indivíduo como

um processo que aponta para além do indivíduo mesmo, e atua até o último indivíduo

desta espécie. Esta outra possibilidade é a concebida pela Sagrada Escritura136.

Assim como a célula germinal se configura fazendo-se maior e mais

complexa, assim como dentro de um ente “acabado” a mesma forma se manifesta de

múltiplas maneiras, assim também a origem de novos indivíduos se poderia

considerar como uma separação de partes independentes de um todo (como ocorre

na plantação da cana-de-açúcar, por exemplo)

3.3 A matéria e os gêneros do ser

A. A relevância do fator material para a individuação da espécie

Seguindo na análise, Stein almeja explicar porque, com a intervenção dos

fatores materiais, a forma não pode desprender toda sua virtualidade em todos os

casos e em todos os casos em igual medida, porque os exemplares de uma mesma

espécie “saem” distintos. Isto, diz partindo de São Tomás, para o qual o que distingue

os indivíduos entre si não é sua forma, que é “casual”, mas a matéria: individuum de

ratione materiae137.

135 Loc. Cit. 136 Cf. Loc. Cit. 137 Cf. Ibidem. p. 632.

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(Cabe aqui explicar o novo termo [herdado de Francisco Suárez] que aparece

nesta parte: virtualidade. Por virtualidade entendemos uma “pré-disposição potencial”,

“o que ainda não foi levado a cabo”138).

Depois disso, se põe a pergunta sobre o que se entende por matéria.

Ora, esta matéria de que se trata não pode ser matéria sem forma (matéria

informe, ou “matéria primeira”, como diziam os medievais), porque esta carece

inteiramente de qualidades e, por isso, não pode comunicar a qualidade alguma. Pois

bem, as características concretas de cada indivíduo são uma certa qualificação139.

Portanto, o que confere ao indivíduo essas características deve ser matéria já

informada.

Outra dificuldade é a da unidade da forma substancial, o que consiste em dizer

que cada coisa deve ser o que é em virtude de uma forma substancial.

Não se pode admitir uma pluralidade de formas, na qual cada uma determine

algum aspecto da substância, como se a forma substancial fosse uma coleção de

formas menores, porque “o indivíduo é determinado de maneira singular por sua forma

substancial única”140; e tal dificuldade só se pode superar se partimos do princípio de

que, no mundo criado, existe uma ordem na qual as formas mais altas se baseiam

nas inferiores e assumem em si mesmas de determinada maneira as leis destas

últimas (assumem as leis, mas não assumem as formas) – conforme o mostrado no

primeiro esquema.

B. A origem de uma nova espécie: modificação ou mescla de formas?

Neste ponto começam as investigações de tipo genético.

Não só os exemplares de uma mesma espécie dão origem a novos

exemplares, mas também os novos exemplares não são iguais aos anteriores. Por

exemplo: a árvore que brota do fruto de uma primeira não é idêntica a ela, mas

semelhante (ou seja, tem algo em comum com ela); do mesmo modo um filho não é

idêntico aos seus pais, muito menos é uma mistura de ambos.

A principal diferença entre os novos exemplares de uma espécie e os que já

existiam está no âmbito da matéria, uma vez que a matéria é distinta, porém a

semelhança se dá quanto à forma: por exemplo há dois lápis na minha frente, ambos

138 Cf. GONZÁLES, Ángel Poncela. Francisco Suárez, lector de metafisica. León: 2010. P.207. 139 Aqui não se refere à terceira Categoria (da Qualidade), mas à diferença entre as 10, na medida em que são relações de quantidade e qualidade. 140 ZILLES. Op. Cit. p. 383.

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pretos, do mesmo tamanho, com grafite do mesmo tipo; pode-se dizer que são dois

exemplares de uma mesma espécie (lápis); portanto, quanto à espécie, são o mesmo,

mas quanto à matéria, a relação não pode ser de identidade uma vez que eles:

ocupam lugares distintos no espaço, são porções distintas de matéria, etc.

Porém, o surgimento de uma nova espécie significa que os indivíduos dela

são diferentes de seus progenitores tanto na matéria quanto na forma141. Neste caso,

as diferenças que há entre um e outro exemplares não são variações causais da

espécie, muito menos mera distinção material, mas estruturas formais distintas.

Se a origem de novos indivíduos pode nos remeter a um impulso “criador”, se

pode pensar, a princípio, que os seres que surgiram por reprodução se fazem

portadores de uma nova forma, também em sentido qualitativo. A causa dessa

mudança qualitativa não está no indivíduo gerador, isso só tem sentido se crermos

poder derivar toda a forma nova da anterior. Por exemplo: que de um casal de

cachorros de uma cor nasça um filhote de outra cor não é impossível, mas que, deles,

nasça um javali, isto é.

Então são postas duas possibilidades para o surgimento de uma nova

espécie: uma modificação formal no indivíduo gerador como condição de a nova forma

se separar das anteriores; ou uma mescla de formas, no caso da reprodução sexual.

O indivíduo sofre muitas modificações, mas nenhuma delas modifica a sua

forma (por exemplo, uma rocha que sofre um choque térmico e racha ao meio, um

broto que se converte em árvore, um menino que passa pela puberdade e torna-se

um homem adulto, etc.). A forma se manifesta como princípio que regula as

modificações mesmas; nela vemos a lei de mudança da figura ligada ao

desenvolvimento do indivíduo, e da forma depende que as influências externas sejam

assumidas e surtam seus efeitos.

A modificação na forma significa que toda esta lei interna se converteu em

outra distinta, que o indivíduo mesmo se converteu num outro num exemplar de outra

espécie.

A ciência da herança toca este problema quando pergunta pela

hereditariedade das qualidades adquiridas. Há distinção entre fenótipo e genótipo: o

primeiro é aquilo do ente vivo de que temos experiência, enquanto o segundo é o

141 Cf. STEIN. Op. Cit. p. 633.

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conjunto de propriedades hereditárias que, junto das circunstâncias externas,

determina o fenótipo142.

Só o que está contido na massa hereditária passa aos sucessores; esta

massa está presente nas células embrionárias que, desde o começo do

desenvolvimento, se distinguem das demais; o que explica o fato de o feto não ser

corpo da mãe, mas sim um distinto. Com isso, só uma modificação do ente vivo que

afete também as células germinais, poderá ser considerada uma alteração de

genótipo e uma mudança que passa aos descendentes.

As mudanças desse tipo são conhecidas geralmente como efeito de

substâncias tóxicas, como o uso de drogas psicoativas. Mas as mudanças no fenótipo

geralmente não modificam a massa hereditária, e, portanto, não repercutem sobre os

descendentes.

Para distinguir no cerne dessa teoria os resultados provados das hipóteses

melhor ou pior fundamentadas, teríamos que examinar todos os conceitos

fundamentais e os métodos da ciência da herança. No presente contexto, basta

aclarar em que sentido falamos de características hereditárias e qual a sua relação

com as espécies.

De um ponto de vista meramente material, as células germinais são aquilo

que do indivíduo gerador passa ao indivíduo gerado. São o que dá início ao processo

vital de configuração de um novo indivíduo. A célula, que é a matéria informada, não

pode ser considerada como forma; porém, essa célula na qual a vida tem início pode

ser considerada como a portadora primária da forma, isto é, como o primeiro que

experimenta a informação e se põe a serviço da apropriação e organização das

demais partes materiais. Explicamos: o ser humano é um composto de matéria e

forma (corpo e alma); assim sendo, considerar as células germinais como forma da

espécie humana não faz sentido, uma vez que as células germinais são o receptáculo

da forma humana; contudo, estas células podem ser consideradas como portadoras

primárias e naturais da forma.

Na estrutura material do indivíduo também cabe distinguir: primeiro o que

serve a sua própria configuração como exemplar da espécie; em seguida, o que ele

configura em si mesmo como substrato material para a formação de novos indivíduos.

142 Cf. Ibidem. p. 634.

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As modificações materiais que a estrutura experimenta sob influência de

outros materiais não podem considerar-se como uma alteração da forma (como a

serra que corta madeira ou tumor que toma conta d’algum órgão).

No primeiro caso, essas modificações podem privar um ente determinado de

sua aptidão para ser um exemplar de pleno direito da mesma espécie que o indivíduo

gerador (como um homem que perde uma perna ou nasce com anencefalia), isto é,

pode ser incapaz de sobreviver ou ser capaz de gerar o indivíduo menos perfeito (no

caso de ser portador de um defeito genético, como no caso do “Queixo Habsburgo”).

No segundo caso, pode-se pensar em alterações materiais que serviriam como

condições para configuração de indivíduos perfeitos. Estas modificações poderiam

significar: (no primeiro caso) uma decadência da espécie ou (no segundo) um auge.

Além disso, também é possível que uma alteração material seja condição para

a recepção de uma nova forma, e que desta maneira o novo indivíduo se converta no

exemplar de uma nova espécie. Esta hipótese será a mais apropriada quando

estamos diante da reprodução sexuada e das formas mistas, isto é, das combinações

que parecem dar-se a ela.

Os indivíduos surgidos desta maneira mostram em seu fenótipo (segundo a

lei de Mendel): primeiro, um tipo misto que reúne características dos indivíduos

geradores, e, depois, na terceira geração, uma distribuição dos tipos originais em

diferentes indivíduos.

Cabe conceber essas combinações com uma nova espécie que seria uma

forma mista procedente das espécies dos indivíduos geradores? A resposta requer

mais clareza quanto ao significado de “espécie”.

C. A necessidade e a contingência na estrutura da espécie. Variedades

específicas. Indivíduo.

No mundo real, encontramos uma gradação de formas, com maior ou menor

universalidade. As espécies ocupam seu lugar próprio entre os gêneros – isto é, entre

as ideias mais universais que delimitam a unidade de um inteiro âmbito do ser – e os

indivíduos (como dito acima); e dentro das espécies distinguimos ainda diversos níveis

de universalidade.

Pode-se também observar que não cabe atribuir à espécie tudo o que é o

indivíduo, isto é, toda sua acidentalidade. A manifestação exterior e a forma interior

não têm porque coincidir exatamente. Guardam uma relação interna, de modo que

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não pode manifestar-se exteriormente aquilo que não foi prefigurado anteriormente

pela forma como possível; porém, a forma não determina aspectos contingentes mas

dá certa “liberdade”.

Põe-se as perguntas: o que é forma? E a espécie? E variedade uma forma

própria do indivíduo?

Se o indivíduo é individuo de ratione materiae, não caberia atribuir-lhe uma

forma única própria dele, pois sua natureza concreta apresenta sempre contingência.

(Agora, refere-se somente à individualidade dos organismos vivos como tais

e deixa-se de lado a questão de se a noção de individualidade é suficiente para

estudar-se o homem). Por exemplo, à rosa, na medida em que é um ente material,

compete ser de alguma determinada cor na medida em que é rosa, e compete ser

vermelha, rosa, amarela ou branca, mas não preta; e essas cores pertencentes à

espécie dizem respeito a diferentes tipos de rosa. À rosa corresponde, portanto, uma

estrutura necessária, e só admite determinadas cores.

Dentro dos tipos variáveis de uma espécie, as diferenças particulares podem

ser reduzidas a contingências meramente materiais. Porém, os entes vivos podem

mostrar mudança interna, neste caso dizemos estar diante de uma forma modificada

ou, expressado com mais cautela, que o processo de informação tem sofrido certas

modificações.

Que seja possível que se unam partes de organismos nas quais a força

informante é primariamente ativa, e que dessa união surja um organismo de novo tipo,

é algo que se pode compreender como parte de um processo vital e de formação mais

amplo143: como a interpenetração das partes independentes de um composto orgânico

maior do todo que abarca o quanto guarda relações genéticas entre si. Os indivíduos

se inscrevem, deste modo, num processo vital e de informação de maior envergadura.

Onde há indivíduos masculinos e femininos, estes têm, no referido processo,

suas respectivas funções especiais. A espécie deveria ser vista como uma forma

primeira que domina todo o âmbito do real, à qual se deve o “dividir-se numa forma

masculina e feminina” e o “surgimento de formas de membros novos e particulares a

partir desta união”144. Assim, a espécie é o princípio fixo da forma que determina a

estrutura interna de todos os entes individuais de um âmbito. Na medida em que caiba

143 Cf. Ibidem. p. 637. 144 Loc. Cit.

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detectar na estrutura das variedades uma certa necessidade, se poderá compreender

a partir da forma primeira o que parecer contingente não poderá derivar se da espécie.

D. Espécie e forma primeira (ideia)

Neste ponto, Stein trata da possibilidade de ir além, assinalando as espécies

que fogem do normal, nessa experiência, como formas fixas em um lugar e contexto

genético para remetê-las a uma forma a primeira.

Cabe pensar uma ordem de criação que num primeiro momento deu origem

ao mundo puramente material com toda sua riqueza de formas, para depois converter

a certos entes materiais e com uma forma determinada. Aparece, nesse momento,

um novo princípio de forma cuja eficácia está condicionada de determinada maneira

pelo substrato material.

É igualmente pensável uma ordem segunda, na qual desde o primeiro

momento chegam a ser independentemente uns dos outros seres meramente

materiais e seres orgânicos; em todo caso se trata de dois princípios do ser de duas

formas, e, por isso de duas esferas distintas do ser. Se tomarmos uma dessas esferas

do ser como fundamento da outra e se, com Santo Tomás, estamos convencidos da

unidade da forma substancial, nos vemos levados a supor que a menor esfera é

tomada por mais alta, como disse o próprio São Tomás145.

E. A relação existente entre os gêneros do ser

Passando pela questão da origem das espécies, chegamos a compreender a

relação que vincula os distintos gêneros do ser entre si.

Goethe presume que todo o orgânico forma uma certa unidade, e fala de entes

nos quais está tanto a possibilidade de converterem-se em animais quanto em

plantas; de outro lado vê no homem o ente mais alto do reino animal (Goethe se inclina

mais para a aceitação dos gêneros independentes)146.

O começo da vida em uma natureza carente dela (a partir das leis dessa

natureza) não pode ser pensado sem a intervenção de um novo princípio de forma. E

quando há vários princípios desse tipo, não se pode remeter um ao outro: “o nível

orgânico poderia ser substrato do animal, de maneira análoga a como o nível material

o é do orgânico; tal é a tese da cosmologia tomista”147.

145 Cf. Ibidem. p. 639. 146 Cf. Ibidem. p. 639. 147 Loc. Cit.

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Tanto numa quanto noutra interpretação, se exclui que os indivíduos de um

gênero possam transformar-se em indivíduos de outro, que eles podem dar origem

segundo as leis de seu próprio âmbito de ser.

Goethe e Darwin interpretam o homem como membro da série evolutiva

animal, porém Stein não toma posição a esse respeito e não se vê na possibilidade

de responder à questão de se no homem estamos diante de um princípio de forma

nova e inderivável148.

F. Resumo das reflexões sobre a teoria da descendência

É pensável que a pluralidade das configurações se deve a uma pluralidade de

princípios formais independentes. Também é pensável que todo o âmbito em questão

esteja denominado por um princípio formal unitário no qual se passa da forma de um

membro a outra dentro de um grande contexto evolutivo. Poderia suceder que o nível

mais baixo em cada caso fosse substrato do nível imediatamente superior e que as

determinações de forma dos entes mais altos estejam condicionadas pelas dos

inferiores (neste caso o homem seria nada mais que um macaco mais esperto).

Porém, a origem dos entes de nível mais alto nunca poderia derivar-se

exclusivamente das leis dos mais baixos; a origem da vida não pode derivar-se das

leis da natureza material nem a do animal das leis do orgânico. É tarefa das ciências

empíricas, especialmente da biologia, determinar com a maior exatidão possível o

alcance disto149.

Em seguida, Stein faz uma elaboração de o que deve ser feito pelas ciências

empíricas para tal, como desenvolvimento de novos instrumentos, técnicas de

observação etc.; e aquilo que fosse descoberto seriam leis pertencentes à ordem real

do mundo criado. “Nenhuma lei pode estar fora do marco do que é, a princípio,

possível e que por sua vez é objeto próprio do estudo ontológico”150.

Isso não quer dizer que a filosofia seja alheia à ciência empírica, pois quando

se amplia o círculo das descobertas empiricamente acessíveis, também temos a

possibilidade prática de novas intuições das essências dos fenômenos (lembrando

que intuição essencial significa um olhar dirigido à essência, que pode ser individual

ou universal); dispomos abundantemente de material experimentado em favor da

origem das atuais espécies fixas a partir de outras, porém nem todas as descobertas

148 Cf. Loc. Cit. 149 Cf. Ibidem. p. 640. 150 Loc. Cit.

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que se conformam a esse material podem ser explicadas exaustivamente com a teoria

da descendência.

Inclui ainda que se esta teoria (da evolução e da hereditariedade) estivesse

tão acreditada como só pode estar uma lei natural, não caberia deduzir dela uma visão

de mundo materialista e monista, como tem feito uma filosofia popular e superficial,

nem tampouco uma refutação do relato bíblico da criação. Com efeito, que existe algo

ao invés de nada, só se pode compreender por um princípio do ser eterno. A

pluralidade qualitativa dos entes tampouco se pode entender sem uma pluralidade de

princípios de forma. Sobre esta base ontológica existem diversas possibilidades para

explicar a relação destes princípios de forma entre si, e mais ainda para conceber a

sequência temporal do surgimento do mundo criado.

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CONCLUSÃO

Concluímos este trabalho comentando o sétimo capítulo, onde Edith Stein

apresenta uma síntese do exposto sobre o indivíduo humano.

Edith Stein inicia este ponto (que arremata o assunto da individuação na

estrutura da pessoa humana neste livro) dizendo que a existência do homem é um

processo de desenvolvimento:

“Sua fase embrionária começa no instante em que o óvulo fecundado palpita

de algum modo e faz saber de si no crescimento e na progressiva

estruturação em membros. Este crescimento e essa progressiva estruturação

dependem da recepção de substâncias alimentícias procedentes do corpo da

mãe”151.

A partir da fecundação, o embrião não é uma mera porção de matéria, senão

uma matéria já informada com forma humana, ou seja, é realmente um homem. Esta

forma dá ao indivíduo uma determinada figura acessível a nossos sentidos, assim

como possibilita (e inicia) o seu desenvolvimento.

O mesmo ocorre com os indivíduos vivos de outras espécies: a semente de

tabaco é verdadeiramente tabaco, ainda que não tenha atingido o ápice da espécie; o

óvulo fecundado do porco é verdadeiramente um porco e já tem todas suas

características suínas específicas (determinadas pela forma), ainda que não tenha as

acidentais, a partir da fecundação. Também o ser humano tem todas as

características específicas e individuais reais em si: já possui uma alma individual e

sua configuração externa se desenvolverá a partir de sua forma interna que já existe.

Por isso devemos conceber corretamente a relação da forma viva com a forma

dos materiais (forma desta matéria que se tornará viva) que iniciam a configuração de

um organismo.

Estes materiais não são matéria prima, mas matéria já informada – como se

constata empiricamente, estão submetidos às leis da natureza material “e manifestam

nela a sua eficiência específica”152.

151 STEIN. Op. Cit. p. 708. 152 Ibidem. p. 709.

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O mesmo sucede dentro do organismo, já que em seu interior há processos

físicos e químicos, porém, diz Stein, com a importante diferença de que estes referidos

processos estão submetidos a leis mais altas e se entrelaçam de modo teleológico, o

que não sucede fora do organismo. “A forma viva tem por matéria a pluralidade de

materiais necessários para construir um organismo desse tipo, e somente pode

estender toda sua eficiência quando dispõe da necessária base material”153.

Apareceu, então, no Segundo Capítulo o problema da unidade da forma

substancial. Dado que toda a matéria obedece ao seu princípio formal anterior, Stein

não segue Santo Tomás, que sustenta, para salvaguardar a unidade da forma

substancial, que a forma mais alta assume as formas mais baixas. A ele se opõe o

fato de que “o modo em que a espécie se expressa no indivíduo admite graus de maior

ou menos perfeição”154.

Por conta disso, no Terceiro Capítulo, ressaltamos que a dificuldade da

unidade da forma substancial “só se pode superar se partimos do princípio de que, no

mundo criado, existe uma ordem na qual as formas mais altas se baseiam nas

inferiores e assumem em si mesmas de determinada maneira as leis destas últimas

(assumem as leis, mas não assumem as formas) – conforme o mostrado no primeiro

esquema”.

Para Stein, “o principio individuum de ratione materiae presta apoio

precisamente à tese de que, em virtude de seu princípio de forma, a matéria já

informada é determinante, junto a outros fatores para a configuração do indivíduo”155.

“Estamos ante uma unidade, posto que este ente esteja regido por

leis às quais existem relações de hierarquia e subordinação entre suas partes

distintas. A forma dominante que determina o telos é uma só, e nela podemos

ver a forma substancial em sentido próprio, a pesar de a substância concreta

não estar determinada exclusivamente por ela”156

Dado que o objeto de estudo é o homem, após algumas considerações sobre

aquilo que é o especificamente animal, Stein diz: “o indivíduo (humano) não é planta,

depois animal e depois homem, mas é homem desde o primeiro instante de sua

153 Loc. Cit. 154 Loc. Cit. 155 Loc. Cit. 156 Loc. Cit.

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existência”157, ainda que o especificamente humano não seja visível até que atinja um

certo estado de desenvolvimento.

De qualquer modo, deve ser dito que “o indivíduo isolado é uma abstração e

que é próprio da estrutura da pessoa humana apontar ao que se encontra fora dela”158,

este é o “ponto crítico” da noção de indivíduo que Stein defende: o indivíduo, embora

encerrado em si mesmo, aponta para o outro.

O objeto do presente trabalho não é outro que não a individuação na estrutura

da pessoa humana, assunto que, cremos, foi suficientemente analisado num primeiro

momento, e que abre as portas para uma mais profunda análise da pessoa humana

integralmente.

157 Ibidem. p. 710. 158 Ibidem. p.711.

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