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FACULDADE DA SERRA - FASE Instituto Capixaba de Estudos e Pesquisas - ICEP ITALO SUIM A Identidade Cultural na (Pós)-Modernidade: Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES MONTANHA-ES 2009

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F A C U L D A D E D A S E R R A - F A S E Ins t i t u to Capixaba de Es tudos e Pesqu isas - ICEP

ITALO SUIM

A Identidade Cultural na (Pós)-Modernidade: Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES

MONTANHA-ES

2009

Livros Grátis

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F A C U L D A D E D A S E R R A - F A S E Ins t i t u to Capixaba de Es tudos e Pesqu isas - ICEP

A Identidade Cultural na (Pós)-Modernidade:

Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES

MONTANHA-ES

2009

Monografia apresentada como pré-requisito de

conclusão do curso de Pós-graduação em

história, da Faculdade da Serra, orientada pela

Professora Patrícia Wand Del Rey Oliveira.

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F A C U L D A D E D A S E R R A - F A S E Ins t i t u to Capixaba de Es tudos e Pesqu isas - ICEP

ITALO SUIM

A Identidade Cultural na (Pós)-Modernidade: Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES

Objetivo: Analisar os impactos da (pós)-modernidade na identidade cultural a partir

do Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES.

Data de aprovação: _____de _________________ de 2009

Profª. Patrícia Wand Del Rey Oliveira: _____________________________________ Mestre em Educação - FASE

MONTANHA-ES 2009

3

A Andréa minha sempre companheira e razão dos meus sucessos Aos meus pais João e Marisete que me oportunizaram a vida e o acesso ao conhecimento Ao grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco A todo o movimento negro espalhado pelo Brasil.

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“O ser humano é a realidade fundamental em nosso cosmo. É universo ontológico. E deve ser visto e tratado como prioridade. Defender o legítimo antropocentrismo não é praticar antropolatria. Alguns colocam a prioridade no mercado, no poder, na especulação financeira, no lucro. Mas isso hipervaloriza elementos de ordem instrumental e deprecia o significado maior que é o ser humano. Cada ser humano é nexo de consciência, de decisão, de criatividade e responsabilidade. Mesmo esmagado, o ser humano é gente, e não mercadoria”.

Juvenal Arduini

5

RESUMO A ideologia da (pós)-modernidade influencia e modifica os comportamentos e

atitudes das pessoas que passam a entrar em contato com uma cultura globalizada.

Consomem-se os mais diversos tipos de tecnologias juntamente com as ideologias

por elas veiculadas. Pretende-se construir um mundo absolutamente interconectado.

O indivíduo entra em contato com uma cultura mundializada que deve ser vendida e

comprada. Há a busca frenética pela felicidade que se deixa encontrar no ato de

comprar e consumir. O sujeito, que não se pertence, pode experimentar os prazeres

antes restritos à burguesia e sentir-se igual ela sem ter o mínimo de noção de sua

coisificação. Se esquece do que tradicionalmente era seu, que passa a não ter mais

sentido e a não ser aceito, fora de moda. A cultura, o folclore – produção cultural

popular – são instrumentalizados e modificados para ser inseridos no mercado

global, e/ou se perdem enquanto tradição. Isso tudo produz um momento de

incertezas, inconsistências e transição. A sociedade jaguareense sobrevive nesse

processo de supervalorização do (pós)-moderno e esquecimento do que

tradicionalmente se construiu. A comunidade São João Bosco se originou através de

afro-descendentes que migraram em busca de melhores condições de vida. A Folia

de Reis é um legado desses migrantes e sempre foi uma forma religiosa de

entretenimento e tradição baseada na fé católico-cristã. Vive atualmente a crise de

representatividade. A ideologia (pós)-moderna invadiu essa região e lhe impôs novos

padrões de vida. Os cantadores tentam e não conseguem manter a tradição

perpetuada de pai para filho. A lei 10.639/2003 que legisla sobre a obrigatoriedade

do ensino de história e cultura afro-brasileira e história da África apresenta-se como

aliado na busca por manter presente a cultura afro-descendente através da escola.

Isso exige quebra de paradigmas historicamente construídos.

Palavras-chave: Cultura. Folclore. (Pós)-modernidade. Folia de Reis.

6

The ideology of the (post)-modern influences and modifies the behavior and attitudes

of people going to come into contact with a globalized culture. They consume the

most diverse types of technology together with the ideologies of these languages.

The aim is to build a world completely interconnected. The individual comes into

contact with a worldwide culture that must be bought and sold. There is a frantic

search for happiness that may be found in the act of buying and consuming. The

subject, which does not belong, you can experience the pleasures previously

restricted to the bourgeoisie and feel like it without the least notion of its

commodification. Forgets what traditionally was his, which shall not have more sense

and not be accepted out of fashion. The culture, folklore - the popular cultural

production - are exploited and modified to be inserted in the global market, and / or

lost as a tradition. All this produces a moment of uncertainty, inconsistencies, and

transition. Society jaguareense survives this process of valuation of the (post)-

modern and forget what has traditionally been built. Community St. John Bosco

originated by African-descendants who migrated in search of better living conditions.

A Folia de Reis is a legacy of migrants and has always been a form of entertainment

and religious tradition based on the Catholic-Christian faith. She currently lives a

crisis of representation. Ideology (post)-modern invaded the region and imposed new

standards of living. The singers try and fail to maintain the tradition perpetuated from

father to son. Law 10639/2003 to legislate for compulsory teaching of history and

culture African-Brazilian and African history presents itself as an ally in the quest to

keep this culture African descent through the school. This requires breaking

paradigms historically constructed.

Keywords: Culture. Folklore. (Post) modernity. Folia de Reis.

ABSTRACT

7

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco (1996)..........27

Figura 02 – Folia de Reis sendo cantada dentro de casa..........................................30

Figura 03 – Grupo de Folia de reis da Comunidade São João Bosco (2002)............38

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................................................9

1 – A CULTURA E O FOLCLORE NO CONTEXTO (PÓS)-MODERN O............................................. 13

1.1– FOLCLORE É CULTURA .................................................................................................................... 14

1.2– O FOLCLORE BRASILEIRO .............................................................................................................. 18

1.3– A CULTURA NA (PÓS) – MODERNIDADE .................................................................................... 19

2 – A (PÓS)-MODERNIDADE E AS MANIFESTAÇÕES FOLCLÓRI CAS: GRUPO DE FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO EM JAGUARÉ-ES ... ................................................. 25

2.1 – A FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO. ......................................................... 27

2.2 – O GRUPO DE FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO E O FOLCLORE

CAPIXABA. ..................................................................................................................................................... 33

2.3 – A REPRESENTATIVIDADE DO GRUPO DE FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO

BOSCO FRENTE AOS DESAFIOS DO FOLCLORE NA (PÓS)-MODERNIDADE .............................. 36

3 – A CULTURA AFRO-BRASILEIRA E A LEI 10.639/2003 . ............................................................. 45

3.1 – O PRECONCEITO A BRASILEIRA: UM CRIME PERFEITO ......................................................... 47

3.2 – A EDUCAÇÃO E A LEI 10.639/2003 .................................................................................................. 49

CONCLUSÃO ......................................... .............................................................................................. 57

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 60

BIBLIOGRAFIA....................................... .............................................................................................. 63

9

INTRODUÇÃO

No início do século XVI a América entra na história do Ocidente. O conceito de

mundo até então vivido e difundido pelos europeus toma um novo contorno, é a

descoberta e/ou “invasão” do novo mundo, de novas culturas. A América começa a

ser saqueada econômica e culturalmente.

Tem-se, desde então, um (des) encontro entre culturas em terras americanas. De

um lado (com exclusividade no Brasil) os ameríndios e do outro os portugueses. O

choque cultural é bem visível nos primórdios da colonização da América portuguesa

em que se percebe a sobreposição da cultura européia e praticamente a extinção de

parte da cultura indígena com o passar dos séculos.

Com o plantio da cana - de – açúcar e a necessidade de mão – de – obras, o negro

foi inserido no cenário interétnico brasileiro. Tem-se, historicamente no mínimo o

confronto entre três culturas distintas e que, de uma forma compulsória ou não

formaram um caldeirão multi – cultural nessa parte da América. Elemento esse

ideologicamente negado pela historiografia tradicional preocupada em cumprir a

política de branqueamento da população brasileira após o processo de abolição.

O negro com sua cultura mesclada e “reinventada” incorporou-a a história do Brasil.

Assim a cultura Afro – brasileira se faz presente no Estado do Espírito Santo, bem

como nos demais estados da federação. Notoriamente não é apenas a sobrevivente

cultura Africana. É, a afro – brasileira, com toda a carga histórica de significados que

se escondem nessa nomenclatura.

Atualmente as transformações mundiais, fruto das grandes conquistas tecnológicas

atingem proporções nunca vistas antes principalmente no âmbito cultural. As

pessoas estão constantemente em contato com um mundo que não as pertence e

são incentivadas a consumi-lo como bom, melhor que o seu e o resultado disso é um

progressivo abandono das tradições construídas e reconstruídas que acabam por

ser folclorizadas e/ou abandonadas.

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É claro que os avanços tecnológicos são bem vindos e representam a capacidade

humana de desenvolvimento. O que é preocupante e que desafia a história são seus

impactos na cultura própria de cada povo. A perda da identidade por parte de alguns

grupos em detrimento de uma identidade que não lhes pertence. É nesse contexto

que se insere a luta das minorias étnico raciais em manter vivo seus laços culturais,

principalmente, os afro-descendentes com todo um preconceito historicamente

construído em virtude do eurocentrismo cultural.

A cultura como identidade e construção de um povo necessita ser preservada para

ser transmitida. No contexto (pós) – moderno isso é questionável e a valorização da

cultura perde o sentido. A mídia se encarrega da transmissão de determinados

valores, não há preocupação com a tradição construída e reconstruída de pai para

filho. Os afro-descendentes, diante dessa realidade, se vêem frente a um mundo

que lhes nega a possibilidade de preservar a sua identidade cultural.

O município de Jaguaré também está inserido neste contexto histórico de afirmação

e sobrevivência da cultura afro-brasileira. Isso é percebível primeiramente na origem

do povo e em algumas manifestações culturais a exemplo da Folia de Reis.

A Folia de Reis como uma manifestação cultural afro-brasileira em Jaguaré é (era)

conduzida por grupos de comunidades e atualmente a falta de apoio de órgãos do

poder público (Secretaria de Cultura), as imposições da (pós)-modernidade e,

outrossim, o desinteresse dos próprios componentes seriam algumas das razões

apontadas para o seu gradual desaparecimento.

O Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco está imerso nesse

contexto de (pós) – modernidade - os valores urbanos foram transplantados para o

campo e a urbanização (favelas rurais) dessa região começa a se tornar evidente, -

e seus integrantes sentem na pele as algemas dessa nova fase da história.

Infelizmente não reagem e adotam uma postura de subserviência, simplesmente se

escondendo e morrendo culturalmente.

11

No auge de sua representatividade esse grupo garantia identidade aquele povo.

Além disso, possibilitava troca de experiência e convívio através das visitas que

eram feitas durante as apresentações. No entanto, nas últimas décadas essa

realidade vem se perdendo e os componentes do grupo parecem não mais

encontrar sentido para o que faziam, além disso, as novas gerações não estão

sendo preparadas para dar continuidade e sentido a essa manifestação cultural.

Diante de toda essa complexidade histórica esta pesquisa pretende analisar os

impactos da (pós)-modernidade na identidade cultural a partir do Grupo de Folia de

Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES.

No primeiro capítulo – a cultura e o folclore no contexto (pós)-moderno – busca-se

refletir sobre o lugar da cultura e do folclore na (pós)-modernidade. Para isso, em um

primeiro momento se define o folclore como cultura geralmente contrapondo o senso

comum para o qual cultura se restringe à produção das elites, em seguida se analisa

o sentido do folclore brasileiro e por fim se confronta a cultura e a (pós)-modernidade

apontando os perigos daí advindos.

No segundo capítulo – a (pós)-modernidade e as manifestações folclóricas: grupo de

folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES – objetiva-se apontar

os impactos da (pós)-modernidade nas manifestações folclóricas a partir do grupo

em questão. Situa historicamente a comunidade São João Bosco e o grupo de Folia

de Reis como parte do folclore capixaba.

No terceiro capítulo – a cultura afro-brasileira e a lei 10.639/2003 – destaca-se

perspectivas para a valorização das manifestações culturais, principalmente afro-

brasileira. Para isso apresenta uma análise a cerca do preconceito ainda presente

na sociedade brasileira e o papel da educação no contexto da lei 10.639/2003 que

legisla sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas

escolas.

Este estudo baseou-se na pesquisa descritiva a partir da combinação criteriosa das

técnicas de pesquisa de História oral e Bibliográfica. Através da história oral buscou-

se dar voz aos integrantes do Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João

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Bosco. Por meio de farta pesquisa bibliográfica foi possível entender histórica e

analiticamente o pensamento dos autores a cerca de questões sobre cultura e de

como a mesma é exposta no âmbito da (pós) – modernidade.

Este estudo se faz relevante à comunidade acadêmica e àqueles que se

interessarem devido às semelhanças entre a história e atitude do Grupo de Folia de

Reis da Comunidade São João Bosco e a de outros grupos e movimentos da cultura

afro-brasileira no Brasil, além de revelar os impactos da (pós)-modernidade na vida

cotidiana das pessoas.

Além dessa dimensão, essa é uma temática muito atual e necessária se a pretensão

da educação é realmente a construção de cidadãos livres de preconceitos e capazes

de analisar sua realidade. Também, vai ao encontro da Lei Federal 10.639/2003. Por

isso sua importância é incontestável para o embasamento teórico de muitos

educadores que se permitem a uma discussão ampla sobre a temática.

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1 – A CULTURA E O FOLCLORE NO CONTEXTO (PÓS)-MODERN O

É tempo de reavaliar a humanidade. Vivemos aceleração tecnológica. E haverá outros saltos evolutivos. Mas há também erosões humanas, crueldades, injustiças, aberrações econômicas, sociais e éticas. Cada ser humano há que se perguntar para onde quer ir. Há que definir o futuro. Hora de autodestinação humana. (...) a humanidade vale mais do que o poder acumulado. E tem o direito e o dever de repensar-se e conduzir-se.

Juvenal Arduini

Ao longo dos séculos as sociedades humanas foram construindo e reconstruindo

suas culturas das mais diversas formas desde os encontros amistosos aos

justificados pelas batalhas guerreiras de dominação. A evolução é uma saga que

sempre acompanhou a humanidade em qualquer aspecto de sua história.

A cultura como particularidade existencial de cada povo conheceu um elemento que

passou a desafiar e a questioná-la, foi o fenômeno do encontro com o diferente

iniciado globalmente a partir das grandes navegações européias no século XV. Não

que antes desse período não tenha existido o choque entre culturas, somente não o

foi na mesma proporção.

A partir do século XV o conceito de mundo é radicalmente reconstruído. A

humanidade entrou em contato com o extremo da diferença e ninguém nunca mais

foi o mesmo, europeus, africanos, americanos, asiáticos (...) definitivamente se

encontraram, se questionaram e se transformaram.

Esse processo de encontro e/ou desencontros continuou ao longo dos séculos com

alguns se achando culturalmente melhores que os outros e em virtude disso se

impondo aos demais. O resultado está expresso nos genocídios que mancham de

sangue a história da humanidade. Um alerta se torna contundente,

passamos por séculos de colonialismo, imperialismo e industrialização do planeta, que resultaram no processo que chamamos de globalização. Estamos próximos de construir uma verdadeira aldeia global – redes econômicas e de informação de âmbito universal interligam os mais distintos povos da terra, homogeneizando as culturas, os hábitos e as crenças. A troca de influência entre as nações é imensa e até mesmo as

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diferenças de nacionalidades se mostram cada vez mais questionáveis. (COSTA, 2005, p.142)

Nessa perspectiva se aprofunda a necessidade de compreensão de como será o

comportamento cultural dos diversos povos frente a esses desafios que se iniciaram

segundo a historiografia tradicional entre os séculos XV e XVI, a chamada era

moderna. E em virtude das grandes mudanças daí advindas alguns autores

denominam o atual momento da história de (pós)-modernidade.

É inegável, portanto, que a humanidade passa por um momento muito importante

sob o ponto de vista cultural. As pessoas estão conectadas ao planeta inteiro e há

uma forte tendência já evidente de abandono das raízes culturais.

1.1 – FOLCLORE É CULTURA

Há em todo sociedade certa heterogeneidade principalmente quando se considera

que ela é formada por grupos ideologicamente antagônicos. Alguns escritores

marxistas analisam a sociedade sob essa ótica e apresentam do ponto de vista

cultural, uma divisão a partir da cultura hegemônica e da cultura subalterna.

Para tanto se faz urgente uma definição de cultura que possa suplantar todos os

reducionismos etnocêntricos que sempre a envolveu. Obviamente isso não é uma

tarefa fácil, mas pode-se partir do pressuposto que de acordo com o senso comum o

termo cultura tem o significado de erudição do espírito, de instrução de alto nível, de

bom conhecimento, genérico ou específico. Claro que implícito a esse conceito se

pretende afirmar que é cultura tudo aquilo produzido pelas classes hegemônicas e

que, portanto deve ser o modelo ao qual todos devem aspirar. (SATRIANI, 1986)

Uma análise livre de preconceitos e que transcenda às desigualdades estabelecidas

na sociedade concorda que

[...] Cultura, [...], não é outra coisa senão o complexo dos modos de vida, dos usos, dos costumes, das estruturas e organizações familiares e sociais, das crenças do espírito, dos conhecimentos e das concepções dos

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valores que se encontra em cada agregado social: em palavras mais simples e mais breves, toda a atividade do homem entendido como ser dotado de razão. (TENTORI, 1960, apud, SATRIANI, 1986, p.39)

A cultura é como “um complexo ou constelação de experiência partilhada por um

dado grupo de indivíduos que aparecem, por isso, ligados a um certo grau de

uniformidade cultural, ou seja, por um estilo de vida comum”. (FERRAROTI, 1958,

apud, SATRIANI, 1986, p.40)

Quando uma sociedade nega essa análise a cerca da cultura tende a reduzir os

esquemas existenciais de certos grupos, aqui analisados como cultura, ao exótico,

ao primitivo, ao impuro e assim por diante. É o que cotidianamente acontece com

manifestações culturais africanas e indígenas no Brasil, são simplesmente

folclorizadas.

Cada cultura não é apenas uma rede de meios, mas é também um complexo de fins

diversos de grupo para grupo, portanto, possui particularidades. Isso permite que

cada cultura se constitua num sistema próprio de valores incorporados ao complexo

dos modelos de comportamentos aos quais é atribuída uma função normativa, pouco

importa se estes valores sejam ou não formulados explicitamente, pois, fazem parte

do cotidiano. Exatamente este sistema de valores define a estrutura da

personalidade de cada cultura, isto é, um conjunto de hábitos convencionados e que

passaram a fazer parte integrante do costume da comunidade e que, portanto,

atribui um jeito de ser ao grupo. (SATRIANI, 1986)

Há um fundamento existencial que permite aceitar que “a cultura é, nesse sentido,

uma forma de vida, forma porquanto plasma, organiza, estrutura, regula, inspira a

vida pessoal e a convivência dos membros de uma comunidade”. (CARCANO, 1963,

apud, SATRIANI, 1986, p.41)

Provavelmente um grande erro ainda propagado, sobretudo nos meios

educacionais, é de que uma dada sociedade possui uma cultura única. Isso acaba

por reificar certos estilos de vida e reduzi-los ao grotesco. Satriani (1986, p.49) alerta

para isso ao afirmar que

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quando se pretende estudar uma sociedade claramente estratificada em classes, os conceitos antropológico-culturais, como toda outra elaboração teórica, não podem ser aplicados indiferentemente a todas as classes. Não podemos falar de uma única cultura para tal sociedade, porque isso subentenderia a homogeneidade substancial dos vários elementos, na realidade profundamente diferenciados dessa sociedade, mas devemos distinguir mais culturas ou subculturas.

Assim os estilos de vida de determinada sociedade ganham particularidades quando

são inseridos no contexto existencial de um grupo dentro da sociedade na qual está

imerso. Um exemplo histórico disso é o sincretismo religioso evidenciado no Brasil a

partir dos arranjos culturais que envolveram indígenas, africanos e europeus. Dessa

forma,

a sobcultura ou subcultura, pode ser definida como o aspecto particular que uma cultura assume junto a uma parte definível e individualizável (subgrupo) do grupo cultural; aspecto particular dado pela diferença não demasiado forte em um número não demasiadamente elevado de modelos. (RONCIONI, 1966, apud, SATRIANI, 1986, p.50)

Todos os homens são filósofos a partir da produção de uma filosofia espontânea

própria de todo o mundo que está presente na religião popular e também,

consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de

viver e de operar que se apresentam como o que geralmente se chama folclore, aqui

entendido como uma filosofia de vida que ora aceita, contesta ou ritualiza as

condições de vida de um povo. (SATRIANI, 1986)

A partir disso entende-se que

o folclore não deve ser concebido como uma coisa bizarra, estranha ou um elemento pitoresco, mas como uma coisa que é muito séria e a ser levada a sério. Isso nos lança numa outra direção: a de assumir o folclore sob uma nova perspectiva, na qual este readquire a sua efetiva significação. (SATRIANI, 1986, p.28)

“O folclore só pode ser compreendido como um reflexo das condições de vida

cultural do povo”. (GRAMSCI, 1968, apud, SATRIANI, 1986, p.28) Desconsiderar

essa dimensão consiste em praticar etnocentrismo. É o que acontece quando se

estabelece o dia do negro, do índio. O que nunca se vê é o dia do branco, do

europeu, dentro outros. Por traz disso há sempre uma intencionalidade. “Isto posto,

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o folclore apresenta-se como uma subcultura produzida pelas classes subalternas

das sociedades divididas em classes”. (SATRIANI, 1986, p.50)

O folclore é cultura e não há como negar isso, se a intenção for a de construir uma

sociedade livre dos paradigmas eurocêntricos que ainda insistem em ditar a norma.

O folclore, isto é, a cultura das classes subalternas ou, o que dá no mesmo, a cultura subalterna, tem de ser estudada na função que pretende desempenhar ou, em outros casos, desempenha, de fato, em face da cultura hegemônica. Do mesmo modo [...] como a cultura dominante condiciona o folclore, como o recebe, como, na maioria das vezes, o mistifica, como quase sempre o instrumentaliza ou tenta instrumentalizá-lo. (SATRIANI, 1986, p.68 e 69)

Na construção da cultura brasileira o que tem origem na cultura africana ou indígena

tende a ser menosprezado, mesmo que inconscientemente. Por isso, a essa cultura

se aplica o termo folclore como expressão do que é popular e que vai de encontro

ao convencional, a cultura dita erudita e, portanto, hegemônica. Por que o Balé é

cultura, e o Bumba-meu-boi é folclore? Por que o homem do campo é o caipira? Por

que o cristianismo è religião, e o candomblé é macumba? Essas realidades não são

por acaso, escondem preconceitos que há tempos justificaram genocídios. Dessa

forma “o termo folclore tornou-se sinônimo de cor, atitudes pitorescas, caricatura

esboço, exterioridade, conservadorismo”. (SATRIANI, 1986, p.78)

[...] a mentalidade dominante propõe determinados modelos de comportamentos e tudo aquilo que não entra na esfera do conhecido, do familiar, tudo aquilo que não é diretamente reportável aos próprios valores, aquilo que não parece conforme aos próprios critérios de juízo, tomados como parâmetros universais, é rejeitado. E tal recusa se dá aplicando-se ao novo as etiquetas de pitoresco, arcaico, rústico, descortês, bárbaro, e assim por diante.” (SATRIANI, 1986, p.81)

Diante disso se faz necessário internalizar que é impossível a compreensão efetiva

das tradições populares, num clima de exclusivismo cultural que poderia levar

apenas à coleta de curiosidades e de esquisitices.

“O folclore é [...] a voz do gueto no qual foram confinadas as classes dominadas

[...]”. (SATRIANI, 1986, p. 91) É, acima de tudo, cultura e tem de ser encarado como

tal. Sem desconsiderar os estigmas que o envolvem.

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1. 2 – O FOLCLORE BRASILEIRO

O folclore brasileiro somente pode ser compreendido sobre a perspectiva

anteriormente analisada. A diversidade cultural do povo brasileiro obriga ao

abandono de visões etnocêntricas para a compreensão da identidade dessa gente.

Refletir sobre o folclore na realidade histórico-cultural brasileira é evidentemente o

objetivo implícito dessa pesquisa. Estudar o folclore brasileiro sobre o prisma da

diversidade cultural é magnífico e obriga a pensar e a deslocar o espaço tempo para

o período da colonização e colocar frente-a-frente índios, europeus e negros e a

partir daí entender que,

As tradições populares não se demarcam pelo calendário das folinhas; a história não sabe do seu dia natalício, sabe apenas das épocas de seu desenvolvimento. O que se pode assegurar é que, no primeiro século da colonização, portugueses, índios e negros acharam-se em frente uns dos outros, e diante de uma natureza esplêndida, em luta, tendo por armas o obuz, a flecha e a enxada, e por lenitivo as saudades da terra natal. O português lutava, vencia e escravizava; o índio defendia-se, era vencido, fugia ou ficava cativo, o africano trabalhava, trabalhava [...] Todos deviam cantar, porque todos tinham saudades; o português de seus lares, d’além mar, o índio de sua selvas, que ia perdendo, e o negro de suas palhoças, que nunca mais havia de ver. (CASCUDO, 2002. p.279)

Nesse contexto certamente nascia o folclore brasileiro que ora celebrava, ora

aceitava e, quase sempre resistia as amargura e belezas da vida. O que é

inaceitável é que haja diferenças de análises em relação a essas manifestações, dos

índios e negros inferiorizados culturalmente e do português supervalorizado. Não é

isso que se pretende, tudo foi significado e ressignificado no contexto em que se

inseria. Portanto,

Não consiste o folclore na obediência ao pitoresco, ao sertanejismo anedótico, ao amadorismo do caricatural e do cômico, numa caçada monótona de pseudotipos, industrializando o popular. É uma ciência da psicologia coletiva, com seus processos de pesquisa, seus métodos de classificação, sua finalidade em psiquiatria, educação, história, sociologia, antropologia, administração, política e religião. (CASCUDO, 2002, p.15)

Tem-se que ter em mente que no Brasil indígenas e africanos, em grande parte da

história, não foram encarados como seres humanos ou ao que essa designação

19

equivale. Portanto, sua expressão cultural também foi reduzida ao exótico,

folclorizada. No caso dos negros, após o tráfico africano e posteriormente a abolição,

não se pensou em uma verdadeira emancipação. Muito pelo contrário, abriram-se as

portas das senzalas e fecharam-se as da cidadania, se é que existiam. De imediato

o que houve foi uma gradual tentativa de branqueamento da população brasileira.

O que se diz das raças deve-se repetir das crenças e tradições. A extinção do tráfico africano cortando-nos um grande manancial de misérias, limitou a concorrência preta; a extinção gradual do caboclo vai também concentrando a fonte índia; o branco deve ficar no futuro com a predominância no número, como já a tem nas idéias. (CASCUDO, 2002, p. 280)

Esse branqueamento transcende obviamente à questão da melanina e adentra

também na cultura, na existência. Talvez por isso que ainda exista o dia do índio, do

negro, da mulher, do folclore. Talvez por isso também grande parte das construções

e espaços públicos possui nomes dos heróis brancos, do cristianismo.

Provavelmente isso explica o porquê de raramente se ver escolas e outros espaços

com nomes de entidades e/ou heróis da cultura negra e indígena.

O branqueamento ainda está presente na sociedade brasileira e continua a provocar

genocídios. E o pior é que as pessoas insistem em não enxergar. Falar de folclore

no contexto brasileiro é muito mais do que falar de cantigas de roda, danças e

outros; é adentrar naquilo que constitui a identidade do povo brasileiro e por isso,

não pode aceitar reducionismos, ou tudo é tratado como cultura, ou tudo o é como

folclore. Caso contrário corre-se um sério risco de continuar o histórico e tão atual

branqueamento da sociedade brasileira.

1.3 – A CULTURA NA (PÓS) 1 – MODERNIDADE

A humanidade vive um momento controverso de sua história em que as culturas do

mundo inteiro passam, de forma direta ou indireta, a manterem contato entre si.

1 O termo se apresenta nesta pesquisa entre parêntese porque há controvérsias na discussão a cerca da (pós)-modernidade a ponto de alguns autores restringirem-no à modernidade, à globalização, à mundalização. Nesta pesquisa a utilização desse termo na forma ((pós)-modernidade) equivale a uma referência que busca conciliar modernidade, globalização e mundialização, claro, respeitando o que isso equivale no contexto de cada autor aos quais ora se faz referência.

20

Nessa perspectiva se insere a discussão na busca por compreender esse fenômeno

mundial através dos elementos da (pós) – modernidade aqui entendido como um

conjunto de elementos culturais advindos da modernidade, da globalização e da

mundialização.

É evidente a impossibilidade de se esgotar a análise quando se confronta e se

reflete sobre qualquer realidade dentro do contexto (pós)-moderno. E nessa

perspectiva se coloca a questão do folclore como cultura e da (pós)-modernidade.

Como defini-los? Que sentido tem o folclore nesse contexto? O que se pretende aqui

é apenas fazer uma análise e pontuar alguns caminhos pelos quais esta pesquisa

pretende perpassar sem a pretensa ousadia de uma definição estritamente científica

e única dessa realidade analisável sob múltiplos ângulos.

A primeira evidência que se tem sobre a (pós) – modernidade é a de que a mesma

influencia os comportamentos e as atitudes das pessoas que passam a entrar em

contato com uma cultura globalizada e/ou mundializada. De acordo com Ortiz (2000,

p.8) “(...) a mundialização da cultura se revela através do cotidiano”, principalmente

quando as pessoas passam a consumir elementos de outras culturas simplesmente

por terem sido apresentados pela mídia, é o caso das telenovelas.

Para a (pós) - modernidade não existe o espaço limitado, o que há é um mundo a

ser explorado sem fronteiras. A cultura como construção material e imaterial de um

povo por mais estranha que pareça é conhecida, em termos, por todo o mundo em

um simples toque de botão. A (pós)-modernidade é, portanto, veloz. E quer,

sobretudo tornar o mundo um todo unificado, sem os limites da geografia para impor

uma cultura que nesta ótica se quer global, que transcenda aos limites do local, se

não lisonjeada por todos, ao menos conhecida e comprada. Tudo na velocidade da

tecnologia absolutamente informatizada que conecta em rede o mundo todo.

Com efeito, pela primeira vez na história dos homens, a idéia de um mundo-mundo se realiza com a globalização da terra. A velocidade das técnicas leva a uma unificação do espaço, fazendo com que os lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre, revela o mundo já que os pontos dessa malha abrangente são receptíveis de intercomunicação. (ORTIZ, 2000, p.106)

21

Há nessa perspectiva a mundialização da cultura, pois, segundo Ortiz (2000, p.36),

“dinamizados pelas descobertas marítimas (o planeta torna-se geograficamente

unificado) o capitalismo, um produto do ocidente, promove seus valores universais, e

etnocêntricos, em escala ampliada”.

Diante desse fenômeno universal as sociedades tendem a serem transformadas

radicalmente em seus modos de vida. Com uma base histórica Ortiz (2000, p.183)

analisa que,

(...) no caso das tradições populares, podemos dizer que o impacto da modernidade as desloca enquanto fonte de legitimação. Nos países europeus, com a Revolução Industrial as culturas tradicionais se desagregam. O industrialismo e a formação das nações comprometem definitivamente os antigos modos de vida, regionais, locais, cuja manifestação literária, política e espiritual possuíam características particulares.

Nesse cenário o sujeito passa a consumir o que até então estava restrito à classe

burguesa e a se sentir igual a ela. Isso acaba por paralisá-lo e o condiciona a aceitar

sua condição social. Para Ortiz (2000, p.215)

(...), a modernidade não é apenas um modo de ser, expressão cultural que traduz e se enraíza numa organização social específica. Ela é também ideologia. Conjunto de valores que hierarquizam os indivíduos, ocultando as diferenças – desigualdades de uma modernidade que se quer global.

Cria-se uma pseudo ideologia que faz com que os indivíduos mesmo não sendo da

classe burguesa experimentem seus “prazeres”. Berman, (1982, apud, HARVEY,

2001, p.15) oferece algumas pistas para se compreender esse momento histórico ao

afirmar que

há uma modalidade de experiência vital – experiência do espaço e do tempo, do eu e dos outros, das possibilidades de perigos de vida – que é partilhada por homens e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo de experiência ‘modernidade’. Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo, que ameaça a destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos. Os ambientes e experiências modernos cruzam todas as fronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade, da religião e da ideologia; nesse sentido pode se dizer que a modernidade une toda a humanidade. Mas trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos arroja num redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidades e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo [...].

22

Arbex e Tognoli (1996, p.6) pontuam algumas situações decorrentes dos paradigmas

(pós)-modernos que vem ao encontro dessa análise dos resultados de uma (ou de

umas) cultura globalizada e/ou mundializada. Afirmam que

(...) uma das características mais marcantes de nossa época é o relativismo de todos os conceitos e noções políticas, culturais e estéticas. [...] mais do que em qualquer faze da história, todas as certezas são hoje colocadas em questão no instante mesmo em que são enunciadas.

Ousadamente pode-se questionar porque isso acontece. É óbvio que é complexo e

provavelmente haja várias hipóteses. Uma importante para esta pesquisa, é de que

a partir do momento em que as culturas se tornam globais tende-se a questionar a

própria autenticidade do que até então se vivia. Arthur Ramos (1970, apud DUARTE,

1974, p.16) evidencia isso ao afirmar que,

Quando o indivíduo é separado do seu grupo de cultura, e posto em contato com outros grupos, ele tende a esquecer as culturas primitivas e assimilar as novas em cuja presença se acha. De outro lado, ele traz também o seu contingente aos novos grupos com que se pôs em contato. É o fenômeno geral de dar e tomar, síntese de processo aculturativo.

No contexto (pós)-moderno isso se dá de forma que o indivíduo entra em contato

com várias culturas sem se distanciar da sua e, geralmente, busca imitar a produção

cultural global transmitida pelos meios de comunicação de massas. Cria-se,

portanto, uma cultura do sem sentido, do que está na moda.

O fator econômico molda toda uma ideologia e uma forma cultural de organização

social. Por isso, o homem medieval teve uma identidade moldada pelo seu contexto

feudal, o moderno uma ideologia estruturada pelo capitalismo em sua fase de

evolução. Destarte, pode-se afirmar que o contexto atual é um momento no estágio

de evolução do sistema capitalista que tomou forma com o advento da modernidade,

bem como é atestado por Santos, (2003, p.76),

o paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante. A sua extinção é complexa porque é em parte um processo de absolescência. É superação na medida em que a modernidade cumpriu algumas das suas promessas e, de resto, cumpriu-as em excesso. É absolescência na medida em que a modernidade está irremediavelmente incapacitada de cumprir outras das suas promessas.

23

Tanto o excesso no cumprimento de algumas promessas como o déficit no cumprimento de outras são responsáveis pela situação presente, que se apresenta superficialmente como de vazio ou de crise, mas que é, a nível mais profundo, uma situação de transição. Como todas as transições são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome inadequado de (pós)-modernidade. Mas, à falta de melhor, é um nome autêntico na sua inadequação.

Portanto, a (pós)-modernidade suscita um “momento” de incertezas, inconsistências

e transição. Por isso, qualquer afirmação genérica decorre ou pode decorrer em

exageros. Entretanto, com base no exposto por Santos é contundente perceber que

a modernidade cumpriu e não cumpriu seus anseios. Cumpriu-os na medida em que

possibilitou a globalização dos espaços geográficos, o alargamento da noção de

espaço – tempo antes confinado à Europa, África e Ásia, o domínio tecnológico, a

própria evolução do capitalismo, e uma série de outras conquistas. Não os cumpriu

na medida em que não pode evitar conflitos como as duas grandes guerras e outros

movimentos totalitários, genocídios, e, principalmente, a tremenda desigualdade de

miséria e fome ainda existente nos dias atuais. Esse período denominado (pós)-

moderno do capitalismo financeiro iniciado nos finais da década de sessenta, traz

consigo um domínio estrondoso da informática e dos meios de comunicação que

inserem o ser humano em um mundo absolutamente sem fronteiras.

A (pós)-modernidade possibilita a construção de uma identidade cultural ou crise

dela. O conceito de identidade, para tanto, depende da consciência de tempo e

espaço, sistema econômico, e etc., por isso,

as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso. (SANTOS, 2003, p.135)

O que dizer, então, quando as tradições populares e, por conseguinte o folclore,

na (pós)-modernidade, estarem em crise de sentido, identidade e, até mesmo,

valor? Será que os homens já não sentem mais saudades? Provavelmente há

uma pressão que confronta essas realidades nessa faze (pós)-moderna de “inter”

24

– relação de cultura global, local e regional, como bem afirma, Santos (2003, p.

144),

tal como o Estado Nacional, a cultura nacional é confrontada com pressões contraditórias. De um lado, a cultura global (consumismo, Holywood, disco sound, fastfood, cultura comercial, mass media globais); do outro, as culturas locais (movimentos comunitários indigenistas, afirmação de direitos ancestrais de línguas e culturas até agora marginalizadas) e as culturas regionais [...].

A realidade (pós)-moderna de sustentação e, consequentemente valorização e

transmissão da cultura popular (folclore) se constituem uma incógnita. E, diante de

toda a eclética análise desta pesquisa é possível, mesmo que anacronicamente,

tornar presente a análise de Marx e Engels no Manifesto comunista de 1848

expressada por Santos (2003, p.23) quando estes refletiam sobre os impactos sócio

– econômicos – culturais da modernidade com a afirmação do capitalismo como

modelo de economia e concordar que

‘tudo que é sólido se desfaz no ar’ [...] pretendiam caracterizar o caráter revolucionário das transformações operadas pela modernidade e pelo capitalismo nos diferentes setores da vida social. O âmbito, o ritmo e a intensidade de tais transformações abalavam a tal ponto modos de vida ancestrais, lealdades até então inquestionadas, processos de regulação econômica, social e política julgados mais que legítimos, insubstituíveis, práticas sociais tidas por naturais de tão confirmadas histórica e vivencialmente, que a sociedade do século XIX parecia perder toda a sua solidez, evaporada, juntamente com seus fundamentos, numa vertigem aérea.

E, portanto, concordar que a (pós)-modernidade, a cultura popular (folclore) estão

sujeitos a perderem sua solidez com maior ou menor intensidade no momento e

condição histórica atual de evolução do capitalismo do século XXI.

25

2 – A (PÓS)-MODERNIDADE E AS MANIFESTAÇÕES FOLCLÓRICAS: GRUPO DE FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO EM JA GUARÉ-ES

O ser humano é versatilidade. É polivalente. É pendular. O ser humano pode acertar ou desacertar, assumir ou fugir, aventurar-se ou acovardar-se, dialogar ou ensimesmar-se, libertar ou escravizar. O ser humano pode semear lealdade ou pingar hipocrisia, defender a inocência ou alastrar a malícia, respeitar os direitos humanos ou espoliar o trabalhador, louvar a Deus ou blasfemar a Fé. Ao exaltar o ser humano, não se esqueça da sua vulnerabilidade. Ao apequenar o ser humano, não se esqueça da sua grandeza.

Juvenal Arduini

Todas as mudanças culturais discutidas anteriormente estão presentes na história

de muitos grupos que persistem em expressar sua cultura, principalmente os

vinculados historicamente à cultura afro. O grupo de Folia de Reis da Comunidade

São João Bosco em Jaguaré-ES faz parte desse contingente.

A história da Comunidade São João Bosco revela particularidades. Seus

protagonistas são todos afro-descendentes que migraram de regiões muito pobres

em busca de melhores condições de vida e encontraram em Jaguaré, mais

precisamente na região denominada Córrego do “18” as possibilidades que

almejavam apesar das dificuldades (ECORM SJB, 2005).

Em 1940, chegaram as primeiras famílias, vindas do Córrego Tenente, município de

São Mateus-ES. No início vinham para essa localidade somente os homens que

passavam dias trabalhando e em seguida regressavam a suas casas. Dois anos

mais tarde passaram a residir permanentemente nessa região. As primeiras

moradias eram pequenas barracas feitas de estuque, cobertas de tabuinhas e sapê,

realidade que há pouquíssimo tempo mudou nessa região. Os primeiros moradores

foram Hernandes dos Santos, Eugênio Monteiro; Trajano dos Santos; Alberto

Monteiro; Salvador Moura; Frederico Suim e respectivas famílias (ECORM SJB,

2005).

As maiores dificuldades da época eram as muitas doenças, distância do comércio e

de médicos, falta de alimentação adequada, dificuldade de trabalhar a agricultura,

pois, toda a região era tomada por matas. Quando alguém falecia era carregado em

26

rede ou cobertor amarrado em bambu e era levado a pé ou a cavalo para ser

enterrado no cemitério de Cachoeira do Cravo no km 41 numa distância de 20 a 25

km. Os principais trabalhos da época eram brocar e derrubar a mata, plantio e

colheita do milho, feijão, arroz, mandioca, café. Todos os trabalhos eram realizados

manualmente. O transporte era feito através de cargueiro, carroças de boi e pela

força humana. A agricultura praticamente de subsistência trazia dificuldades como

pouca produção sem o excedente para o comércio. Os posseiros intermediários e

mais tarde os meeiros, patrões e empregados eram as categorias que existiam na

época (ECORM SJB, 2005).

Em 1951 foi colocado um pequeno cruzeiro nesta comunidade, por se o melhor lugar

de encontros entre as famílias. Ao redor desse cruzeiro rezaram até 1952 quando foi

construída uma pequena igreja de estuque. O nome de São João Bosco se deu

porque uma família veio de Jaciguá, hoje município de Vargem Alta e trouxe a

imagem do santo e doou a esta comunidade fundada por Antônio Valiato, Necleto

Valiato, Firmino Altoé, Trajano dos Santos, Hernandes dos Santos, Eugênio

Monteiro, Salvador Moura, Frederico Suim, Alexandre Púqui, Alberto Monteiro

(ECORM SJB, 2005).

A história da Comunidade São João Bosco permite compreender que seus

protagonistas eram todos afro-descendentes. Em contrapartida, os que construíram

a história política do Município de Jaguaré foram em sua maioria descendentes

italianos que migraram, principalmente, do sul do estado. Portanto, o povo dessa

Comunidade esteve ausente no processo de emancipação política do município, o

que evidencia historicamente contrastes de interesses políticos, culturais, sociais e

econômicos entre ambos.

Acima de tudo é muito importante ressaltar que a Folia de Reis nasceu nesse

contexto e, portanto, expressava o elemento existencial dessa gente com suas

crenças e jeito de viver que jamais foram compreendidos pelos migrantes italianos

naquela região. Isso fica muito evidenciado na fala de Pariz

Nós, do Sul, de origem italiana, topamos um povo de origem negra, mulata e de uma cultura diferente. Nós não aceitávamos de forma alguma as músicas deles, as manifestações culturais. Pra nós, era um

27

absurdo aqueles traços culturais, aqueles reco-reco, aquelas coisas, pelo amor de Deus! A Festa de Reis com fitas nas cabeças era uma blasfêmia contra Deus. Isso tudo não aceitávamos. (PARIZ, 2005 apud, PREFEITURA MUNICIPAL DE JAGUARÉ, 2006, p.17),

Esse relato de Pariz evidencia elementos fundamentais que permitem entender o

porquê de as manifestações culturais de origem africana nessa região estarem em

histórica decadência e/ou simplesmente ter sido ao longo de décadas folclorizadas.

2.1 – A FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO.

A Folia de Reis é uma manifestação cultural afro-brasileira de caráter religioso,

sincrético, católico-cristão e narra do início ao fim a grandeza e a devoção à estória

bíblica que envolve a visita dos três Reis do Oriente ao menino Jesus e as

perseguições feitas por Herodes. De acordo com a tradição,

A Folia de Reis (...) consiste na louvação dos três Santos Reis. Os foliões saem à noite visitando as casas dos moradores da região ou de outros lugares, apresentando seu canto e seu peditório. A festa dos caminhantes vai do natal até o dia 6 Janeiro. O grupo de foliões pode ser numeroso com vestuário próprio ou não, levando à cabeça chapéus enfeitados. Dentre os participantes há palhaços com roupas folgadas de chitão estampado, cobrindo o rosto com máscaras de animais. Também fazem parte da folia figuras que representam bichos, a bandeira e instrumentos como viola, sanfona, pandeiro, chocalho, triângulo, bumbo e apito. O canto é típico solo e coro, com versos tradicionais e/ou improvisados. O mestre entoa as quadras e os demais acompanham em terça acima ou abaixo. A tradição reza a chegada à casa; a cantoria fora da porta ainda fechada e com as luzes apagadas; o abrir da porta com as luzes acesas; o descante em louvor aos moradores; o beijo por todos na bandeira; a oferta aos visitantes com doces, bebidas, dinheiro, (...) e finalmente o agradecimento e a despedida. (DEPARTAMENTO DE CULATURA/ SEMEC/PMJ, 2002, p.1)

Figura 01: Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco (1996)

Fonte: MOURA, 1996

28

A Folia de Reis toma contornos diferentes em cada região e revela singularidades

por parte de seus integrantes, a figura 01, por exemplo, revela particularidades do

Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em apresentação em 1996.

Ela2 é dividida basicamente em três partes. A primeira se desenrola ainda na porta

da casa do anfitrião e é composta por versos tradicionais3 que denotam o caráter

religioso, bíblico, cristão e católico da tradição.

A saudação aos donos da casa faz parte do primeiro verso da cantoria, como bem

enfatizado pelos cantadores4,

Oh de casa, nobre gente/ Escutai que é direito.

Nos versos seguintes há a identificação dos cantores com os Reis vindos do Oriente.

E exaltam a magnitude do nascimento de Jesus, saudado como Rei e Salvador do

mundo,

Somos da parte do Oriente/ Somos chegada dos três reis/ Os três Reis foram primeiros/ que adoravam Deus da Virgem/ Que adoraram de joelho/ Porque Deus era nascido/ Foi nascido o Rei da Glória/ O salvador do mundo inteiro/ Para dar exemplo ao mundo/. Foi nascido o deus verdadeiro/ Em Belém Cantou um galo/ O meu Deus que nasceria/ É um neto de Santana/ Filho da Virgem Maria.

As atitudes de adoração dos três Reis ao ofertarem ouro, incenso e mirra são

ressaltadas e os cantadores personificam-nas em canto,

São José e mais Maria/ Tão cansado de chorar/ Choram os pais pelos seus filhos/ Que não ensinam a rezar/ Que três cavaleiros são aqueles/ Que vem da parte do mar/ São os Reis do Oriente/ Que a Jesus vem adorar/ O primeiro trouxe mirra/ Para ver se era mortal/ O segundo trouxe incenso/ Pra seu trono incensar.

O conformismo econômico muitas vezes difundido na idéia teológica de que Deus

faz a preferência pelos pobres e de que estes são mais abençoados por que ficam

excluídos socialmente e que serão recompensados, é, difundido nas cantigas. Deus5

se dispôs de sua condição e nasceu pobre,

2 Diz respeito as particularidades do Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco. 3 Nunca mudaram segundo relatos dos entrevistados desde o início da Folia em São João Bosco 4 As letras (informação verbal) do Reis foram narradas em entrevista concedida pelos componentes do grupo em 2002 à Secretaria Municipal de Cultura de Jaguaré 5 Deus equivale a Jesus. Não há nenhuma distinção. E difunde a concepção teológica das classes menos instruídas

29

Bem pudera a Deus nascido/ Em lençol de ouro fino/ Para dar exemplo ao mundo/ Foi nascido entre os malinos/ Bem pudera Deus nascido/ Em lençol de ouro em pó/ Para dar exemplo ao mundo/ nasceu pobre como Jô/ Já nasceu o Deus menino/ Entre cama e cristal/ Para dar exemplo ao mundo/ Foi nascido entre os animais.

Como o fugir ao pecado sempre tem sido uma constante nos grupos mais religiosos,

há, outrossim, a preocupação em demonstrar que o cantar Reis é uma coisa6

sagrada, o que vai de encontro ao considerado pelos migrantes italianos segundo a

fala de Pariz no início deste capítulo.

Cantar reis não é pecado/ É coisa que Deus deixou/ Quando Deus andou no mundo/ São José também cantou.

Para ressaltar as perseguições e dificuldades sofridas pelas pessoas neste mundo,

cantam as sofridas por Jesus desde o seu nascimento e deixam claro que Deus

jamais abandona os seus e os livra das perseguições,

Encontrei os três pastores/ Com os três anjos em companhia/ Foram na casa de Herodes/ Pedir ele uma guia/ Herodes como malvado/ Atravessou os malinos/ Foram ensinar os três Reis/ As avessas do caminho/ Santo Reis como eram santos/ Não precisavam de guia/ Que ele no peito trazia/ Jesus Maria e José.

Por fim, exaltam a grandeza e crença católico-cristã na virgem Maria e pedem

sua proteção para todos, é o fim da primeira parte,

Encontrei as três Marias/ Numa noite de luar/ Procurando Jesus Cristo/ E nunca poderão achar/ Foram achar em Belém/ Registrado no altar/ Com cálice de ouro na mão/ Missa nova quer cantar/ Missa nova quer cantar com prazer e alegria/ foi mandado de Deus Pai/ Filho da Virgem Maria/ Filho da Virgem Maria/ Olhem seus filhos Também/ Viemos cantar em Reis/ Para todo o sempre amém.

6 Equivale a tradição muito antiga, deixada pelo próprio Deus.

30

Figura 02: Folia de Reis sendo cantada dentro de casa

A segunda parte da cantoria acontece dentro de casa e as letras das músicas

podem variar de acordo com a criatividade dos cantadores. Objetiva-se

homenagear os donos da casa e agradecê-los pelo bondoso convite. É um

momento de descontração acompanhado de danças e muito bailado. A figura 02

representa essa parte.

A terceira e última parte consiste na apresentação de figuras em forma de

animais e a idéia é que seja o mais assustador possível para a platéia. É uma

forma de representar as perseguições feitas a Jesus7 e mostrar o cenário no qual

ele nasceu rodeado de animais. É, portanto uma forma de representar o que foi

cantado na primeira parte. E assim, tem-se a despedida com a promessa de

retorno no próximo ano. Segundo Suim (2009),

Os bichos na folia de reis representam os animais no nascimento de Jesus. Pois na Bíblia diz que Jesus nasceu entre os animais. Então o povo tirou disso daí. Jesus foi nascido entre os malinos, por isso, veio os palhaços, as lobas. É como se cantasse na porta o que aconteceu e depois apresentasse. O reis praticamente conta a história do nascimento de Jesus. Herodes era o malvado. E os bichos representam o nascimento de Jesus que nasceu no campo. (IFORMAÇÃO VERBAL)

7 Messias prometido aos Hebreus na vertente religiosa cristã.

Fonte: MOURA, 1996

31

O Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco, conta atualmente com

apenas seis integrantes. Os demais são recrutados nas épocas de apresentações.

Unanimemente os entrevistados contam que antigamente8 o grupo era formado de

doze a quinze integrantes.

Enquanto na gênese da história do município de Jaguaré, com a chegada dos

migrantes italianos do sul do estado, houve uma intensa preocupação com a

construção sócio-política, na região de São João Bosco se continuou implantando o

modo de vida dos migrantes afro-descendentes que não tiveram nenhuma

participação direta no processo de emancipação política do município. Dessa forma,

A Folia de Reis da comunidade de São João Bosco do município de Jaguaré, (...), chegou à região por volta de 1947 com a vinda das famílias Suim, Santos, Moura e Monteiro, provenientes do km 41, pertencente ao município de São Mateus, que se estabeleceram a oeste de Jaguaré. A primeira pessoa que se tem notícias, de que manteve os foliões na ativa, foi dona Gracilina dos Santos, de origem africana. Um de seus filhos, Zenor Suim, era cantador de Reis. Os próprios cantadores escreviam as canções em louvor aos três reis magos e se consistia em um ato de caráter religioso. Durante o mês de Janeiro visitavam as casas das famílias que os convidavam. Usavam roupas sociais e à cabeça levavam chapéus enfeitados com espelhinhos, fitas e flores coloridas. Segundo eles era a forma com que exaltavam os Santos Reis. Os ornamentos também eram uma maneira de diferencia-los das pessoas comuns durante as apresentações. (DEPARTAMENTO DE CULTURA/SEMEC/PMJ, 2002, p.1)

Sempre foi uma tradição passada de pais para filhos, como bem ficou expresso nas

entrevistas. De acordo com Moura (2009),

Conheci a Folia de Reis no Córrego do Aguirra ( km 41- São Mateus) Os mais velhos cantava e eu junto com eles; eles faleceram e eu fiquei. Tinha catorze anos quando comecei cantar. Vim do Aguirra juntei um pessoal ai e comecei a brincadeira. No dezoito começou há mais ou menos cinqüenta anos. Graças a Deus nós brincava tudo direitinho, se eu sei a palavra de um Reis, eu sei do começo ao fim, até quando fala para todo o sempre amém, graças a Deus. Fui aprendendo com os mais velhos. Papai morreu eu era novo, não cantava nada. Os outro antigamente brincavam, não era nós não. (INFORMAÇÃO VERBAL)

A Folia de Reis fazia parte do imaginário infantil dos atuais cantadores. Eles ainda

criança acompanhavam seus pais e logo que podiam ingressavam no grupo. Era

também uma forma de lazer visto que não podiam sair para outros lugares. De

acordo com Suim (2009), 8 Aproximadamente 1947 – 1990.

32

A Folia de Reis é uma tradição antiga. Eu tô com 51 anos e com 7 ou 8 já assistia Folia de Reis com Zenor Suim, Mateus Moura, Salvador Moura. Tem uns 40 anos. A Folia de Reis era do mesmo jeito que é hoje. Só as machas dentro de casa se modificou. A gente não tinha muito acesso, não podia sair como hoje. Uns trinta anos atrás eu comecei, estava com 21 anos, a primeira vez fomos cantar no Rio Preto. (INFORMAÇÃO VERBAL)

A Folia de Reis teve sua origem/propagação em um contexto sócio-econômico bem

precário uma vez que os migrantes afro-descendentes vieram em busca de

melhores condições de vida9 e era da natureza que sobreviviam, ao contrário do

colonizador, imigrante italiano estabelecido na região onde hoje é a sede do

município. Isso é evidente nas falas de Moura (2009),

Cheguei no Dezoito em 1942. Naquele tempo tinha pouca gente. Tudo era analfabeto, era muita doença, era mata pura, do km 41 até Linhares, nós viemos para aqui em arrastão de boi, não tinha bicicleta, moto ninguém tinha ouvido falar, só via ônibus em São Mateus. Quantas vezes eu bati daqui no km 41 com 20 litros de farinha nas costas. De manhã ascendia o meu cigarro, botava meu facão na cintura, ia daqui no km 41 pra comprar o sal, a querosene.Viemos pra cá porque no km 41 não tinha nada. Chegou aqui fiquei na casa de um amigo, sem muita coisa. Chegou aqui fui ficando aqui, cresci, arranjei um namoro. Em setembro completei 84 anos de nascido e 60 de casado, criei 11 filhos, a mata e a água me ajudou. (INFORMAÇÃO VERBAL)

A Folia de Reis da Comunidade São João Bosco era composta por 20 pessoas de

diferentes idades que tinham como objetivo maior dar continuidade à tradição.

Desde cedo as crianças acompanhavam os pais nos ensaios e apresentações a fim

de aprender e apoiar o ofício dos mais velhos. (DEPARTAMENTO DE

CULTURA/SEMEC, 2002)

O Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco nasceu no contexto de

povoamento dessa região oficialmente denominada Córrego do 18. No início era

uma forma, além da tradição e do sentido religioso, de entretenimento e diversão. Os

integrantes eram todos da mesma localidade com uma forte ligação religiosa entre

si.

9 As terras dessa região eram do estado e mais tarde foram requeridas. A fauna e a flora eram abundantes, o que atraiu os migrantes.

33

2.2 - O GRUPO DE FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO E O FOLCLORE CAPIXABA.

A Constituição Federal Brasileira, já buscava meios para barrar uma desenfreada

penetração do global e proteger a memória dos seus antepassados formadores da

cultura brasileira e, ao mesmo tempo, criar uma barreira para moldar a forma como a

globalização viria a adentrar-se na cultura brasileira,

Constituem-se patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. (BRASIL, 1988, ART. 216, p.126)

Na concepção (pós)-moderna vive-se uma onda de utilitarismo em que tudo só tem

valor na medida em que serve para outra coisa, dessa forma,

Tudo é percebido do ponto de vista da possibilidade de servir para outra coisa, por mais vaga que seja a percepção dessa coisa. Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo. (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, apud, SILVA, 2006, p.3).

Nesse cenário se coloca a questão da Folia de Reis e de outras manifestações

culturais capixabas, mas especificamente o Congo devido a revitalização dada a

Banda Casaca pela Sony Music. Com essa postura estritamente mercadológica e

pragmática se torna evidente que,

A cultura local só teria validade para a indústria cultural se, de alguma forma, ela pudesse ser formulada e reintroduzida na sociedade contemporânea. Assim, para o capixaba, apesar do congo estar sendo apenas mais um produto para o seu consumo10, ele passaria a adotá-lo como um símbolo de sua identidade. Esse fato é legitimado pelo fato do sujeito não ter uma identidade fixa e, procurar em símbolos pela cultura de massa, indícios de suas raízes culturais. (SILVA, 2006, p. 3)

A (pós)-modernidade com a Mass Média e com todo o seu ideal de sociedade

globalizada, em que o consumo é o caminho da felicidade, molda um conceito de

identidade que atenda as suas expectativas.

10 Isso devido a hipervalorização do grupo casaca que sofreu esse processo por parte da industria cultural

34

Em relação ao folclore e a identidade capixaba é possível concordar que,

A identidade capixaba teve início com o processo de colonização portuguesa do Brasil, em 1535. Mas, apesar dos portugueses terem sido os primeiros a começar o processo de identificação, sua influência não conseguiu ser total, pois, a cultura portuguesa foi misturada com a indígena, africana, francesa, espanhola, e tantas outras que juntas formaram o que hoje pode-se definir como uma identidade cultural capixaba. (SILVA, 2006, p. 7)

Mesmo diante das demasiadas mudanças e transmutações de valores culturais

vividos pela sociedade capixaba e que ainda estão em processo de desconstrução e

reconstrução11, é possível perceber que,

No Espírito santo, ainda existem as bandas de congo e a colônia de pomeranos, então seria o que Hall chamou as memórias do passado, uma vez que eles ainda vivem como os seus antepassados, ao mesmo tempo em que continuam passando sua herança cultural para os seus filhos, o mesmo poderia se dizer do congo que foi uma herança. (SILVA, 2006, p.8)

A manifestação cultural caso não sirva para ‘alguma coisa’ na sociedade do

consumo tende a desaparecer, como o risco que corre a Folia de Reis. Pode ser

diferente e mais fácil se houver o interesse, principalmente por parte da indústria

cultural, como o ocorrido com a Banda Casaca. Patrocinada por uma empresa deixa

de ser um grupo local e se torna de repercussão global. No entanto,

O congo, que tinha suas características únicas e exclusivas, se perderá, pois, a sociedade não terá conhecido o som dos tambores e muito menos saberá suas origens. Esta sociedade conhecerá o que a indústria cultural ensinou e mostrou para ela. O que, através dos mass media, ela viu e ouviu. As tradições que deveriam passar de pai para filho, já não existirão mais, pois esse conhecimento será transmitido pela mídia. (SILVA, 2006, p.5)

O folclore no Espírito Santo e até mesmo no mundo passa por transformações em

busca de sentido e readaptação ao novo modelo (pós)-moderno. A tradição não

pode ser apenas tradição, deve-se readaptar. Segundo Suim (2009),

o reis não deve ser igual era e igual está sendo hoje, só em Janeiro. É isso que faz o reis morrer. Eu acho que tem que apresentar o ano todo. Se apresentar em qualquer data fora de época não perde o sentido, daria mais incentivo ao grupo. O grupo se sente na obrigação de se preparar e levar

11 Exemplo disso é o Grupo Casaca e o Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco

35

em frente aquela tradição, de exercer a folia de reis viva. (INFORMAÇÃO VERBAL)

Para que esse grupo tenha continuidade é preciso uma revalorização por parte da

sociedade. Reconhecer na simplicidade dos cantadores a força e possibilidade de

não deixar morrer um pouco de sua identidade. Esse apelo é sentido por Suim

(2009),

É um troço que não tem fins lucrativos. Um grupo de pessoas simples, sem muita capacidade, sem grande instrução e consegue se preparar para um evento que vai dar uma visão das coisas importantes. E através de um convite e até se oferecer seria um incentivo maior para o grupo. Se acontecesse isso com mais freqüência, não só em dezembro e janeiro, esse grupo não estava correndo o risco de morrer. E esse grupo morrendo no hoje, eu acho que vai ser difícil pra ele ter uma equipe que vai resgatar isso e levar em frente de novo. É difícil. Os componentes sem os atuais líderes não conseguem fazer o grupo de folia de reis. Por que não se apresenta a folia de reis com uma folha na mão como se lê uma música, uma poesia, não é igual não. Nem todo mundo tem a idéia voltada para guardar esse tipo de coisa, parece fácil, mas não é. Depende um pouco de dedicação, gostar muito. Você sente uma responsabilidade tão grande quando chega num lugar. Deveria não deixar morrer. (INFORMAÇÃO VERBAL)

A sociedade atual é consumista e a finalidade lucrativa é também uma forma de

sobrevivência. Os grupos folclóricos tradicionais praticamente sobrevivem da boa

vontade de seus integrantes e de algumas esmolas do poder público instituído. De

acordo com Suim (2009),

Na situação de hoje, se tivesse fins lucrativos, poderia o grupo ter mais incentivo porque se tornaria um meio de ganhar dinheiro, poderia o grupo não morrer. Mas poderia perder o sentido da coisa, o conteúdo. A banda Casaca era uma coisa para fazer graça, apresentar para os amigos, servir a comunidade, para pessoas que ouvia falar. Hoje, você tem que ligar com o telefone, já modificaram tudo, não canta as mesmas músicas, ou talvez, bem pouca. E fazendo coisa para atrair a clientela. A questão lucrativa seria importante. Depois que a prefeitura apoiou nós tinha um ônibus para ir pra lá e pra cá. Fora desse apoio não podemos ir em certos lugares. Se partir para ter o salário, aquela coisa paga, seria bom porque cada pessoa é fraca. Mas eu acho que poderia perder o sentido, não vai manter a tradição. Os conjuntos em Jaguaré, quando eram patrocinados pela prefeitura faziam um forró que todo mundo gostava. Depois que começou a gravar CD acabou. Cada música besta, diferente. Ao invés de cantar as músicas dele, de forró, perde o sentido da coisa. (INFORMAÇÃO VERBAL)

Mesmo diante do bombardeio vindo das exigências (pós)-modernas é possível

perceber algo que transcende ao que é imposto. É a questão do sentido, da

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subjetividade. Isso de acordo com os entrevistados não se compra e não suporta

burocracias. O medo reside na perda do sentido, da raiz e da própria tradição, pois,

A cultura de massa consegue fazer uma revalorização da cultura local, e mesmo que inconsciente eles passam, também a perder o que antes era destinado somente a eles, pois, a globalização trabalha no sentido de aprimorar as identidades culturais locais, para que estas possam ser Inseridas na sociedade global. (SILVA, 2006, p.11)

O grupo de Folia de Reis se relaciona com o folclore capixaba na medida em que é

fruto dessa terra, assim como a Banda Casaca e outros muitos grupos. Esse grupo

também é itinerante e mesmo diante dos problemas tentou se mostrar ao estado,

É coisa que pode ser apresentada em qualquer lugar. Já estivemos na UFES, em Águia Branca, São Mateus, Jaguaré várias vezes. Fizemos muitas apresentações em celebrações. Hoje em dia é difícil uma atração assim que vem arrastando décadas. A Folia de reis hoje é bem aceita, é bem programada. De primeiro tinha 10 ou 12 integrantes e o povo fazia a coisa um pouco sem compromisso. Tinha época que funcionava bem, outra não. Uns gostavam do gole. Nós prefere hoje um grupinho de 4 ou 6. Infelizmente está um pouco devagar. Mas eu acho que vai. Esse ano nós estamos até pensando em cantar. (SUIM, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL)

Ainda há perspectivas. No entanto, é preciso ter claro que a cultura de massa não

tende a destruição do folclore, mas a substituição dos folclores antigos por um novo

folclore cosmopolita, que pode ser comprado e vendido. Esse novo folclore

cosmopolita carrega em si fragmentos de folclore regionais, nacionais ou étnicos, é,

num certo sentido, um agregado de folclores que se unem para formar um tronco

universalizado e, portanto, não traz consigo a tradição e não revela a identidade

regional de um povo. (SILVA, 2006)

2.3 – A REPRESENTATIVIDADE DO GRUPO DE FOLIA DE REIS DA COMUNIDADE SÃO JOÃO BOSCO FRENTE AOS DESAFIOS DO FOLCLORE NA (PÓS)-MODERNIDADE

As manifestações culturais revelam a identidade nacional de um povo, é, pois, dever

do estado apoiar, incentivar e valorizar a sua difusão. A Constituição Federal (1988,

art. 215, p. 126) enfatiza que, “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos

37

direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a

valorização e a difusão das manifestações culturais”.

A lei é falha na medida em que não deixa claro como o Estado a colocará em

prática. E, diante disso, os grupos sofrem as conseqüências avassaladoras da (pós)-

modernidade, como bem pode ser percebido na fala de Suim (2009),

Eu acho um pouco que isso ai pode estar perdendo alguma coisa por falta de incentivo não às vezes do grupo. Incentivo assim, a sociedade valorizar mais o grupo de Folia de Reis. Por exemplo, se você ouvir uma música se ela for boa vai ter uma audiência muito grande, vai ter uma saída, um CD, mas, tem que ter um público para observar aquilo ali. (INFORMAÇÃO VERBAL)

Houve toda uma evolução cultural que mudou o nível de conhecimento e a

qualidade de vida do povo que necessita ser considerado e que exige mudanças nas

formas de valorizar o que é tradicional.

Se há 50 anos atrás era bom com um povo menos instruído, um povo de situação financeira muito fraca. Hoje se correr atrás consegue apoio: transporte, roupas, enfeites. O grupo tem que se organizar mais para não deixar morrer. (SUIM, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL)

Nesse processo de crise e reestruturação das manifestações culturais não cabe

buscar culpados. Mas é evidente que há responsabilidade por parte de toda

sociedade por mais narcotizada que ela esteja pela atual onda (pós)-moderna12 e,

principalmente do Estado uma vez que a Constituição garante que, “o Estado

protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e,

das de outros grupos participante do processo civilizatório nacional”. (BRASIL, 1988,

art. 215, § 2º, p.126).

Em Jaguaré-ES houve em 2002 uma tentativa nesse sentido. Segundo Suim (2009),

A Secretaria de Cultura procurou a gente para dar continuidade ao grupo. Descreveu toda parte da folia de reis para ter tudo registrado, deram um apoio aquela época (2002). A gente partiu para outro lado fomos fazer música de reis, fomos fazer para ser aceito socialmente, toda repartição pega bem, foi onde mudou alguma música. Quando convidavam a gente, a

12 Enfatiza-se os meios de comunicação nesse processo

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gente tinha que elogiar alguma coisa e elogiava com músicas. (INFORMAÇÃO VERBAL)

Figura 03: Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco (2002)

Essa atitude por parte do Estado tem de ser efetiva, o que nesse caso não

aconteceu13. A figura 03 mostra o apoio dado em 2002 ao referido grupo. Foi o único

ano em que o grupo recebeu este incentivo. Note-se também a diferença estética em

1996 na figura 01, sem uniformes. O apoio é muito necessário, mas, tem de haver o

devido cuidado com o assistencialismo. No entanto, o problema transcende à

dificuldade financeira e passa a ser de ordem subjetiva, em que a sociedade não

reconhece e nem valoriza o esperado pelos cantadores,

O povo do lugar não valoriza. A cabeça do povo não tá voltada para esse tipo de coisa, é coisa do passado, não conhece, não procura estudar a

13 Só houve esse apoio assistencialista em 2002.

Fonte: MOURA, 2002

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importância que tem, acha que é inútil, não vale nada. Tem muita gente que ainda dá valor, o povo do lugar não. (SUIM, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL).

Nesse aspecto essa pesquisa esbarra em seu maior obstáculo. É possível

reestruturar o grupo sem perder o sentido para que seja aceito socialmente? Mas

diante dessa limitação é evidente a impossibilidade de continuar da forma que era.

Um exemplo claro disso é o sofrido por uma banda capixaba que se projetou

novamente. No entanto, corre o risco de perder sua identidade no processo de

transformação imposto pela indústria cultural,

A Banda Casaca, que iniciou sua carreira com fortes apelos da cultura local do Estado do Espírito Santo, conseguiu despertar o interesse não somente dos capixabas, mas também de uma gravadora multinacional, a Sony Music, que através da banda usou os elementos antes restritos às festas religiosas da Barra do Jucú, para transformá-los e inseri-los na sociedade global. Com isso, apesar da banda ter criado um sentimento de reintrodução e revalorização de um símbolo – o congo – que sempre esteve à disposição de todo o Estado, acabou perdendo sua identidade local, que foi transformada pela indústria cultural, para ser reintroduzida na cultura de massa. (SILVA, 2006, p.2)

No grupo de Folia de Reis de São João Bosco há otimismo e desencanto frente a

esses novos desafios e ao futuro do grupo, principalmente quando se coloca essa

questão da subjetividade,

Eu acho que consegue manter a tradição e o sentido mesmo diante dessa mudança. Quem presta atenção nos símbolos, vestuário, músicas que nunca mudou e se tem raciocínio, querendo entender a coisa, eu acho que ele entende e adquire o mesmo valor que o povo adquiriu na época em que era em regime fechado, sem eletricidade e que o povo se apegava, apesar de o povo não tinha um mundo de diversão tanto quanto hoje. O povo hoje está extrapolando com tanta coisa que tem que ele assistindo a uma coisa de tanto tempo, que vem de longe, vai raciocinar um pouco, ele vai conseguir entender e até dar valor a apresentação da Folia de Reis. (SUIM, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL).

Sob essa perspectiva é comum se observar nas falas de alguns componentes a

tristeza pelo momento de crise do grupo e expressam também uma nostalgia

incontida em relação ao passado. Gonçalo (2009) afirma que,

Tem uns 5 ou 6 anos que começou a enfraquecer, começava e parava todo mundo. Ai foi desanimando. Uns queria cantar outros não. No começo muito assistiam, outros não. Participava do grupo porque eu gostava e achava bonito. É uma brincadeira animada. O pessoal acompanhava. Folia de reis chama muito a atenção da gente. Logo quando surgiu o pessoal

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gostava muito, quando foi ficando velho o pessoal foi desanimando. O pessoal hoje só quer o trem mais novato, não quer o mais antigo. Isso ai não vai em frente mais não. Ele teve importância para a comunidade, hoje em dia não tem mais não. Com o passar do ano foi desvalorizando. (INFORMAÇÃO VERBAL).

A idade dos entrevistados varia entre 30 e 84 anos. A folia de reis marcou-lhes a

infância. O saudosismo está presente em suas falas. Na (pós)-modernidade há

uma tentativa de rompimento desse vínculo com a tradição,

A característica da (pós)-modernidade é o rompimento do homem pós-moderno com seus laços de cultura e tradição, sujeito de cunho estritamente consumista ele, para muitos teóricos, foi um marginalizado da era moderna, para tantos outros apenas um desencantado com o movimento modernista. Entretanto, a melhor definição de homem pós-moderno é de um sujeito sem referências do seu passado e em busca da construção do seu futuro, mesmo sabendo que ele ainda é inimaginável. (SILVA, 2006, p. 12)

Inconscientemente há a necessidade desse homem se inserir no mercado global,

assim, o sujeito (pós)-moderno abandona ou é obrigado a abandonar todos os

seus referenciais de tradição e cultura somente para estar inserido nesse

contexto. Embora muitas vezes ele nem saiba desta sua nova opção cultural,

assim o faz devido às condições impostas pela sociedade para sua subsistência

como um membro do grupo, apesar de muito se falar da individualização do

homem ele necessita estar fazendo parte de um grupo social, ao qual ele se

identifique. (SILVA, 2006)

Dessa forma as manifestações culturais são reestruturadas e difundidas de forma

homogênia, destruindo o que é próprio de cada grupo,

Os mass media dirigem-se a um público heterogêneo, e especificam-se segundo ‘medidas de gosto’ evitando as soluções originais. Nesse sentido, difundindo por todo o globo uma ‘cultura’ de tipo homogêneo, destroem as características culturais próprias de cada grupo étnico. (SILVA, 2006, p. 13)

Assim os componentes do grupo de Folia de Reis da Comunidade São João

Bosco que carregam consigo a tradição se vêem na obrigação de romper o

vínculo direto com o passado se quiserem manter o mínimo de

representatividade,

41

Há componente no grupo que veio da época de lamparina, de pessoas que esperava o reis dentro de casa, aquele negócio bem sigiloso, preservando a sua raiz mesmo, o conteúdo da coisa, o reis bonito é assim. Hoje teve que se adequar, porque não tem mais a lamparina e aquele povo. (SUIM, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL)

Há resistências nesse processo de readaptação devido às características sócio-

econômico e cultural dos componentes do grupo·. Segundo Suim (2009),

Seria difícil para o apresentador, porque você sair do mundo mais fechado, de uma cultura bem baixa, sem cultura nenhuma, vim arrastando aquilo, sabendo que vem mudando todo dia. Com materiais que com a primeira chuva estragava tudo, para uma época em que você pode cantar até na chuva. Você vai sair de uma época humilde, onde o povo era sem cultura, com a cabeça voltada para esse tipo de coisa, mais união, mais interesse. Então, sair desse mundo para o mundo de hoje, você tem que vim renovando também. Mais difícil seria para o cantador se adaptar, onde você olha para a cara de todo mundo e todo mundo olha para sua cara. Eu acho que hoje é mais difícil porque existe componente que não quer si adequar e quer fazer como era. Hoje com a claridade sabe quem ta brincando nos bichos, acabou o medo, o sentido. Hoje é hora de ser preparado mais bem para que a apresentação tenha sentido. (INFORMAÇÃO VERBAL)

A tradição da Folia de Reis tem sua gênese em uma época de poucos recursos

tecnológicos, financeiros e econômicos. Era um atrativo que não sofria concorrência

com nenhum tipo de tecnologia. A presença da eletricidade na região de São João

Bosco na década de 1980 foi o primeiro sinal de uma mudança que se iniciava. De

acordo com Suim (2009),

A condição financeira do povo era bem ruizinha na época em que apresentava todo ano. Era tudo feito na lamparina, nada de energia, nada de televisão. Isso atraia o povo. Hoje, o conforto tira a tradição de receber a folia. Se você quer o reis bonito, tem que fazer igual se fazia. Botar duas ou três lamparinas dentro de casa e a folia de reis entrar. Não tem coisa mais linda. Alguém há pouco tempo sugeriu fazer o reis na lamparina, apagar todas as lâmpadas elétricas. Chapéu fica mais bonito, fita fica mais bonita, os bichos ficam mais feios. Hoje, para você apresentar se não organizar bem, nem graça tem. Antigamente quando um bicho chegava na sala todo mundo pensava que era um bicho mesmo. O povo corria e se escondia de medo. Hoje, você não vê mais isso. Só isso já tirou um pouco da tradição. (INFORMAÇÃO VERBAL)

Essa nova realidade vulneravelmente colocou o grupo de Folia de Reis em uma

concorrência desleal. A transmissão de pai para filho deixou de acontecer,

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Meus filhos até hoje não perguntaram nada. O que interessa é a televisão, a novela que tira muito a atenção, muda as idéias. Dependendo da programação da televisão eles deixa de sair. Eu não gosto de novelas. Gosto de assistir o jornal. O grupo está acabando porque não tem interesse. Os companheiros estão desanimados. Tem componente que não tem animação para cantar. E é difícil o cara achar gente pra cantar. Uns tem vergonha, outros não gosta, não vê sentido. Isso vai acabar mesmo. (GONÇALO, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL).

As crianças não crescem mais ouvindo estórias sobre os grandes heróis de seu

povo. Crescem ouvindo as grandes aventuras da televisão, que não tem como

objetivo centra-los na sua região, e sim o de abrir novas portas para que elas

queiram e possam se integrar à aldeia global.(SILVA, 2006)

Devido à característica de transitoriedade dos valores e identidade na (pós)-

modernidade, observa-se que nos locais onde o povo não tem acesso às

apresentações, ainda há público, porque é algo novo, ao contrário do que acontece

na região onde nasceu a tradição. Há uma diversidade de atrações e a correria do

dia-a-dia não deixa tempo para se dedicar. É o que denuncia Suim (2009),

O povo não está assistindo como antes. Praticamente o povo do lugar não dá valor e não demonstra interesse. Hoje em dia com o mundo que nós temos bem avançado, com tantas atrações que tem. Se você marcar uma apresentação no tesouro em uma sexta-feira vai dar umas 200 pessoas. Porque eles não têm acesso, tem uns 20 anos que eles assistiram a Folia de Reis. Se houver uma apresentação no “18” e uma festinha em Fátima, vai dar 90% lá e 10% aqui. É por causa do lugar. Conforme o lugar nós não estamos conseguindo cantar dentro de casa, é no terreiro, pela quantidade de gente. Antigamente, de qualquer maneira era dentro de casa, dava para quem dava assistir. A casa enchia. Era tudo na lamparina. Hoje, quando tem uma folia de reis bota 10 ou 15 lâmpadas para poder clarear tudo e clarear o pessoal, pra ficar bem visível. Antigamente era tudo dentro de casa. Chegava um na frente. Todo mundo curioso, dentro de casa (fechado) e os cantores lá fora cantando. Gente queria sair, o pessoal da casa não deixava. Depois que cantava o reis da porta e entrava para dentro. Todo mundo querendo ver, nem tinha lamparina lá fora. Só que numa época dessa, aonde que falava em forró com teclado, festa de noite, quem tinha uma televisão dentro de casa, que assistia uma novela, um rádio, quem tinha? Quando papai comprou um rádio o povo vinha lá em casa duas vezes por semana para assistir. Hoje, a televisão é Jornal Nacional e naquela época era dupla caipira, Tonico e Tinoco, ... Ficavam até 10 horas da noite e iam com fachos nem lanterna tinham. Hoje em dia é rádio ligado, televisão, DVD; é diferente. Tudo isso influencia. Ta morrendo o grupo. Porque tem tanta coisa pra as pessoas correr atrás, de interesse que esquece. Eu coloco a culpa no povo e as vezes não. É o sistema. O povo hoje está vivendo de uma maneira. É o sistema que está fazendo a vida da maioria, não é você. O sistema te obriga. (INFORMAÇÃO VERBAL)

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As famílias que na década de 194014 tinham uma vida baseada em uma economia

de subsistência, têm hoje, um ideal consumista característico da atual sociedade. O

que reafirma a onda utilitarista denunciada anteriormente,

O mundo reestruturou, modernizou, ampliou. Ninguém trabalha só para comer. Trabalha para ficar rico. O cara planta dez mil pés de café e não planta um pé de aipim. O mesmo acontece com a Folia de Reis. O cara está acostumado a ver Amado Batista no palanque, Gino e Geno e outros. Ai olha o cara cantando reis e fala: oh o bestalhão ai. Não sabendo que tem um valor porque não compreende. Eu gosto da música que fala de alguma coisa. A Folia de Reis não morre fácil, só que o que ta fazendo a gente não ver o valor que seja prestigiado são os meios de comunicação e a diversão. (SUIM, 2009, INFORMAÇÃO VERBAL)

Isso reafirma a busca por uma identidade que é constantemente reconstruída na

(pós)-modernidade em que o sujeito nasce em meio a diversidade de culturas do

mundo globalizado e perde a noção do que realmente é seu,

O principal meio que condiciona essa nova identidade do homem pós-moderno é a indústria cultural que, por meio da disseminação de símbolos antes restritos a determinadas localidades, os massifica e os transforma em mercadoria de fácil assimilação e absorção pela grande massa. (SILVA, 2006, p.7)

Toda essa crise vivida pelos grupos propagadores de manifestações culturais

tradicionais e pela sociedade de forma global está vinculada à necessidade de

construir seres consumistas que não possuem sua própria vida e consciência já

entregues à cultura de massa transmitida a todo o momento pela mídia. Destarte,

pode-se concordar e concluir que,

O ópio da sociedade contemporânea, assim poderia ser definida a cultura de massa, pois, o vício que ela produz cria anseios que o sujeito não tinha, faz com que ele busque e sinta a necessidade de consumir produtos que não vão estar agregando nenhum valor a não ser a satisfação momentânea, em troca ele entrega sua vida e consciência para ser moldada de acordo com as diretrizes impostas pela indústria cultural. (SILVA, 2006, p.15)

A (pós)-modernidade, portanto, produz seres insaciáveis que não são sujeitos de

sua existência. Visa, sobretudo criar uma sociedade de consumo além de

transformar tudo, que até então fazia parte da memória e história, em algo a ser

vendido e comprado como mercadorias. Isso justifica a crise de representatividade

14 É uma data aproximada.

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vivida pelo Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco, afinal, não há

nenhum valor monetário que lhe esteja agregado.

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3 – A CULTURA AFRO-BRASILEIRA E A LEI 10.639/2003

Por meio dos desenhos, foi possível observar qual a compreensão tida pelos dois mundos: brancos/negros. O branco foi representado como vinculado ao que é civilizado, urbano, bem apresentado, sorridente, enquanto o negro seria o inverso: meio rural, ligado ao trabalho físico, desprovido de dinheiro e de possibilidades. A imagem do negro é mutilada de atribuições positivas, é representada pelas crianças como um mundo triste, marcado pela violência e pela distância real e simbólica entre brancos/negros.

Waléria Menezes

A educação brasileira ao longo de séculos perpetuou e ainda insiste em apresentar

os africanos sob o ponto de vista da submissão, do sofrimento e o seu estado de

coisificação por parte dos senhores. Essa análise, no entanto, esconde inverdades e

intenções de se negar o lado protagonista dos negros na construção da identidade

brasileira. Sob essa ótica não seria por demais afirmar que a todo o tempo o negro

resistiu se organizou e lutou com toda sua sabedoria contra os grilhões da

escravidão. E o fez com toda a inteligência que lhe é peculiar. Os senhores

aprisionavam-lhes, quando muito, o corpo e não a alma.

Além da dor e da violência, o período escravista brasileiro produziu resistência culturais incomensuráveis, poucas vezes legitimadas nos contextos históricos sociais. Durante os quatro séculos desta prática bizarra no Brasil, a vida precisou seguir seu caminho com a fluidez das marés que sobem, descem e marcam os lugares onde passam. (GUERRA, 2009, p.1)

A historiografia ao longo do tempo, também escravizada pelas elites, tratou em

desconsiderar essa realidade dos africanos no novo mundo. Mas os fatos não

deixam passar despercebido que eram os africanos e seus descendentes que

compunham a demografia brasileira.

O contingente populacional global da colônia e do império foi composto de uma maioria de negros africanos escravizados e seus descendentes crioulos em relação aos brancos europeus. Apesar dos rigores do regime de exploração do trabalho escravo, era impossível condenar ao silêncio tais componentes étnicos acostumados visceralmente a cantar, tocar e dançar para embalar as diversas atividades da vida. (GUERRA, 2009, p.1)

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Em virtude disso a cultura do negro foi absorvida pelas diversas etnias que

compunham o cenário brasileiro, pois, há relatos de padres jesuítas e viajantes

afirmando que a certa altura do século XVI ouvia-se manifestações religiosas e

seculares de brancos europeus, indígenas brasileiros e negros africanos formando

um caldeirão cultural sem precedentes. (GUERRA, 2009)

O africano celebrava constantemente sua existência independente de sua condição

social. Alguns viajantes dentre artistas e outros ficavam sem entender essa realidade

dos negros.

Espantava-lhes a energia dos negros escravizados que após uma semana de estafante trabalho servil, cantavam e dançavam vigorosa e alegremente nos domingos de folga, [...]. Além dos domingos, havia outros dias santos para festas e celebrações nos quais os africanos exercitavam seus sons ritmos e danças, com os ditos batuques, onde provavelmente eram ligados ao prazer, mas também à religiosidade, á interação social e às ações de resistência. (GUERRA, 2009, p.2)

Esse celebrar transcende ao conceito europeu. Ele estava encarnado no cotidiano

dos negros, era também forma de resistência e organização. Estava embutida ali a

preservação existencial de sua cultura e os planos que lhes apontavam a direção da

liberdade.

Por trás destes divertimentos eram gestadas as comunidades de senzalas e as culturas próprias. Jongos, calundus e outros batuques, na visão dos fazendeiros eram verdadeiras válvulas de escape ou atenuantes à situação do cativo. Entretanto, nas bocas, mentes e corpos africanos e mestiços escravizados, os jongos podiam disseminar idéias e mensagens místicas ou políticas. (GUERRA, 2009, p.4)

É isso que a escola brasileira precisa encarnar em seu currículo ainda eurocêntrico

que quando muito apresenta a cultura afro-brasileira a limita à gastronomia e aos 20

de novembro, ou seja, a folcloriza e a torna simplesmente exótica. Tem de arranjar

em seu cotidiano e internalizar como algo existencial a idéia de que as danças, a

religiosidade, a sensibilidade e criatividade africana fizeram ecoar a sua resistência

temperando diretamente a criação da cultura brasileira. (GUERRA, 2009)

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3.1 – O PRECONCEITO A BRASILEIRA: UM CRIME PERFEITO

Provavelmente todos concordam que o negro compôs um importante papel na

história brasileira. Há, no entanto, um dissenso quanto à forma que o brasileiro olha

para o negro. Esse sujeito ocupa, ao menos no inconsciente coletivo, uma posição

de periculosidade na sociedade e isso é um estigma histórico ainda presente. Não é

por acaso que a polícia e vários comerciantes estão sempre coagindo pessoas

negras, para os quais quase sempre representam perigo a vista.

Meus filhos estudaram em escola particular, [...]. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. [...]. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso. (MUNANGA, 2009, p.1)

A geografia do corpo ainda diz muito no Brasil e quando ela é negra diz mais ainda.

O fato é que essas situações geralmente são encaradas como normais e/ou as

pessoas geralmente nem se informam de tais acontecimentos. O negro e tudo que

provém dele inspira suspeitas para uma sociedade psicológica e socialmente racista

como a brasileira e por isso as manifestações culturais juntamente com o corpo

negro são folclorizados e coisifcados o que perpetua um sistema que ainda não

acabou.

Isso produz um racismo perverso e tipicamente brasileiro. É dessa modalidade por

habitar o mais profundo da “alma” das pessoas que a todo o tempo buscam um

constante branqueamento de suas consciências.

Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira. (MUNANGA, 2009, p.3)

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O racismo a brasileira está camuflado e não é assumido pelas pessoas e dessa

forma acaba por se tornar ideológico. As instituições, por internalizar isso, acabam

reproduzindo essa ideologia que geralmente se fundamenta no mito de uma

democracia racial, o que constitui uma falácia uma vez que negros e brancos jamais

tiveram condições idênticas de mobilidade social no Brasil.

O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la. (MUNANGA, 2009, p.4)

A educação brasileira é para que as pessoas neguem sua condição de racista o que

não quer dizer que eduque para a diversidade. As pessoas continuam racistas, mas

não assumem essa condição e encontram formas para dissimulá-la.

Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita. (MUNANGA, 2009, p.6)

Essa postura a brasileira neutraliza qualquer movimento que lute por mudanças

estruturais na sociedade. Afinal, para quê haver mudanças se tudo está muito bem?

Como pode haver conflito se o povo brasileiro é, antes de submisso, cordial? Há

racismo no Brasil, isso é evidente, o que aparentemente não existe é racistas.

Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "você que é complexado, o problema está na sua cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem cometeu não tem nenhum problema. (MUNANGA, 2009, p.10)

49

O brasileiro carrega esses traços consigo não por acaso, nunca se presenciou uma

revolução popular nesse país. O que se viu foram movimentos driblados e

maculados ao gosto das elites desse país.

Talvez por acidente, por maldição histórica ou por algum plano maquiavélico - alguma sabedoria maligna extrema de suas elites que teriam transmitido o segredo de boca em boca - , o Brasil foi sistematicamente privado da possibilidade de construir mitos coletivos de cidadania, ou seja, mitos de conquistas populares de direitos. Tudo caiu do céu: a independência, a república, a abolição da escravatura, as leis trabalhistas de Getúlio [...] (CALIGARIS, 2009, p.3)

O povo jamais esteve efetivamente protagonizando tais “conquistas”, talvez por isso

as políticas assistencialistas façam tanto sucesso nesse país. Afinal, o povo sempre

assistiu a tudo bestializado, sem nada entender.

Isso não quer dizer que não haja hoje alguns movimentos sociais de extrema

importância na luta pelas mudanças sociais como, o MST, o movimento Negro,

dentre vários outros. Do ponto de vista macro a sociedade tende a ficar com o que a

mídia expõe desses movimentos o que acaba por neutralizar mudanças mais

profundas.

Então, o racismo a brasileira é um crime perfeito e está camuflado no imaginário e

na prática coletiva da sociedade brasileira. Isso é um dos elementos que dificulta o

entendimento e afirmação da cultura afro-brasileira nesse país a exemplo do Grupo

de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES.

3.2 – A EDUCAÇÃO E A LEI 10.639/2003

A carência de profissionais da área da educação capacitados para execução de

propostas de trabalho que contemplem os conteúdos voltados para a cultura negra é

um dos motivos que prejudica, em grande parte, um melhor resultado do que se

pretende em termos da promoção da população negra. Isso, porque, em geral os

cursos de formação inicial do educador não têm acompanhado os debates sobre

50

ralações raciais e escola e os de educação continuada, muito menos, salvo quando

são ministrados e ou oferecidos pelas próprias entidades do Movimento Negro.

A escola, enquanto instituição social responsável pela organização, transmissão e

socialização do conhecimento e da cultura, revela-se como um dos espaços em que

as representações negativas sobre o negro são difundidas. E por isso mesmo ela

também é um importante local onde estas podem ser superadas. Cabe ao educador

e à educadora compreender como os diferentes povos, ao longo da história,

classificaram a si mesmos e aos outros, como certas classificações foram

hierarquizadas no contexto do racismo e como este fenômeno interfere na

construção da auto-estima e impede a construção de uma escola democrática.

É também tarefa do educador e da educadora entender o conjunto de

representações sobre o negro existente na sociedade e na escola, e enfatizar as

representações positivas construídas politicamente pelos movimentos negros e pela

comunidade negra. A discussão sobre a cultura negra poderá ajudar nessa tarefa.

Não pode haver dúvidas quanto ao papel da educação no processo de

desconstrução dos velhos preconceitos e paradigmas, pois,

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam e aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar – às vezes a ocultar –, a necessidade da existência de sua ordem. (BRANDÃO, 1981, p.11)

Articular educação e promoção social da população negra é um processo de

reeducação do olhar pedagógico sobre o negro e de mudanças nas estruturas de

formação de profissionais até então oferecidas. Acima de tudo também exige uma

mudança pessoal do profissional da educação no que se refere aos valores. A

escola, como instituição responsável pela socialização do saber e do conhecimento

historicamente acumulado pela humanidade, possui um papel importante na

construção de representações positivas sobre o negro e demais grupos que vivem

51

uma história de exclusão. Mais do que simplesmente apresentar aos alunos e às

alunas dados sobre a situação de discriminação racial e sobre a realidade social,

política e econômica da população negra, a escola deverá problematizar a questão

racial. Essa problematização implica descobrir, conhecer e socializar referências

africanas recriadas no Brasil e expressas na linguagem, nos costumes, na religião,

na arte, na história e nos saberes da nossa sociedade. Essa é mais uma estratégia

pedagógica que toca de maneira contundente nos processos identitários dos negros

e possibilita a construção de representações positivas tanto para estes quanto para

os brancos e demais grupos étnico/raciais.

Possivelmente a escola enquanto espaço de conhecimentos deve ser o lugar

privilegiado para se efetivar a promoção social da população negra e dos demais

marginalizados. Mas para isso terá de contar com profissionais verdadeiramente

sensibilizados e formados com informações e conhecimentos para tal. Caso

contrário a escola será apenas mais um lugar de discriminação e do faz de conta em

relação à cultura negra.

Nesse contexto se insere a necessidade de uma educação anti-racista, que o será

na medida em que seus protagonistas, principalmente, professores e a escola em si

adotarem realmente uma postura contra essa prática abominável. Portanto, há que

se investir em uma mudança de postura radical.

O fato de professores basearem-se na cor da pele e/ ou nas características raciais de seus alunos para diferenciá-los [...] constitui um aspecto que merece atenção. Não nos podemos esquecer de que essa diferenciação representa um problema, pois vigora no país uma hierarquia racial. (CAVALLEIRO, 2001, p. 145)

Infelizmente essa realidade insiste em fazer parte do dia - a - dia das instituições de

ensino e, geralmente, são encaradas como normais. Não é feito uma reflexão sobre

o que se esconde nas entrelinhas de tal atitude e muito menos do seu efeito

devastador no processo de construção de uma escola de todos e para todos, sem

levar em conta os estragos psicológicos para os estudantes vítimas. Nesse contexto

“temos então, no ambiente escolar, a reprodução do padrão tradicional da

sociedade. O que é compreensível, mas não aceitável.” (CAVALLEIRO, 2001,

p.147).

52

Uma educação anti-racista necessita ser implantada. Obviamente, ela transcende ao

que até então se propõe e obriga a uma mudança radical de postura e,

principalmente de valores que até o momento eram apresentados como os corretos.

Essa mudança não é nada fácil.

Para reeducar as relações étnico-raciais no Brasil é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente. (PETRONILHA, 2004, apud, FORDE et al. P.3)

A apatia nessas circunstâncias deve ser combatida uma vez que não se posicionar

pode ser uma forma de se posicionar. Essa é uma situação em que não há

possibilidade de se fazer neutro.

Portanto, o primeiro e talvez o mais importante passo, no processo do anti-racismo

na escola, é reconhecer que a educação brasileira ainda é extremamente racista. E

mais, tomar consciência de que a postura de muitos educadores aponta para a

perpetuação do racismo, às vezes disfarçados nas piadinhas devastadoras, no

ambiente escolar e, consequentemente, fora dele. A partir de então se torna possível

atacar na raiz esse problema histórico que insiste em não envelhecer.

A educação anti-racista é pensada como recurso para melhorar a qualidade de ensino e preparar todos os alunos e alunas para a prática da cidadania. [...] No cotidiano escolar, a educação anti-racista visa à erradicação do preconceito, das discriminações e de tratamentos diferenciados. (CAVALLEIRO, 2001, p. 149 e 150)

Uma análise mais aprofundada permite afirmar que os seres humanos não nascem

prontos, eles se tornam “humanos” ao longo de sua existência. Dessa forma,

ninguém nasce racista, as pessoas se tornam racistas e instituições como a escola,

a família e a igreja dentre outras participam nesse processo. Destarte, o aprendizado

do racismo se coloca como um problema a ser enfrentado durante a socialização

oferecida pela escola. Porém, sabe-se que essa instituição, quer pela omissão, quer

pelo reforço, deva ser também responsabilizada pela transmissão de preconceitos.

Em todos os níveis de ensino se faz necessário investir na orientação de educadores

interessados em desmistificar idéias falsas sobre os negros. Atitudes assim podem

53

ser fundamentais para enfrentar a questão racial e construir uma educação que

realmente seja anti-racista e que saiba acolher a todos sem estigmatizá-los.

Negros e brancos, envolvidos num processo relacional, devem comprometer-se com

a superação do racismo e do etnocentrismo. A manifestação dos meninos brancos,

além de expressar o processo de aprendizado precoce de imagens falsas e

negativas sobre os negros, traz problemas não só para a construção da auto-

imagem da criança negra discriminada. Traz problemas para a construção da auto-

imagem das crianças brancas alimentando os seus preconceitos descabidos, que no

futuro poderão ser sujeitos à sanção penal.

Deve urgentemente ensinar que desde os primeiros tempos da escravidão,

sobretudo no Brasil, os negros encontraram as mais diversas formas de se auto-

organizarem. O objetivo sempre foi o mesmo, adquirir dignidade e cidadania.

Onde houve escravidão, houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob ameaça de chicote, o escravo negociava espaços de autonomia, fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações,. Agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. Houve um tipo de resistência que poderíamos considerar a mais típica da escravidão [...] trata-se das fugas e formação de grupos de escravos fugidos [...]. (REIS, 1996, p.47)

A construção dos espaços que garantissem direitos aos negros foi e ainda está

sendo conquistada pelos diversos grupos do movimento negro, não são esmolas

que os governantes simplesmente distribuem com a finalidade de adquirirem

promoção eleitoreira. São resultados de muitas lutas e derramamento de sangue

muitas vezes denegridos por uma política que privilegia as classes ditas superiores.

Há várias décadas as organizações do movimento negro e anti-racista vêm lutando e

cobrando principalmente do estado brasileiro a adoção de políticas de promoção da

igualdade racial. Algumas vêm se concretizando lentamente nos últimos anos, como

por exemplo, a Lei Federal 10.639/2003 que legisla sobre a obrigatoriedade do

ensino de história e cultura afro e a questão das cotas nas universidades, mas ainda

há muito a fazer. Ao mesmo tempo, considera-se que uma agenda de promoção da

igualdade racial e superação do racismo devem incluir também ações de

54

conscientização, sensibilização e educação voltadas para a denúncia do racismo e

do preconceito e a punição destas práticas.

Neste momento, o Brasil possui a maior abertura da América Latina para discutir os

problemas da sociedade, devido à grande luta do Movimento Negro neste país. No

entanto,

O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena - dona da terra - os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro. (MUNANGA, 2009, p.7)

A obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas é do

ponto de vista legal uma enorme conquista dos movimentos sociais negros que ora

se consubstancia na Lei 10.639/03. Vale ressaltar também que a lei por si só não

adianta, se faz necessário aplicá-la na prática e isso exige uma mudança radical,

principalmente por parte dos educadores.

[...] essas ações podem criar a expectativa de que basta introduzir mudanças no currículo escolar e o problema do preconceito estará resolvido. [...] é preciso mudar a postura do corpo docente frente aos conteúdos e às relações escolares, assim como é preciso haver um esforço para construir uma nova forma de fazer a educação escolar. Combater o preconceito pressupõe reconhecer o outro na sua diferença e esse reconhecimento começa no próprio docente. Muitas crenças que foram difundidas pelos conteúdos tradicionais terão de ser questionadas e até banidas. (GONÇALVES, 2000, apud, JAHAN, 2009, p. 2)

Para que isso aconteça é preciso estar atento a uma série de coisinhas

ideologicamente construídas ao longo do tempo. E ter claro que muito do que se

construiu estereotipou o negro em virtude de uma falsa ideologia eurocêntrica.

A inferioridade negra foi ideologicamente fundada a partir do capitalismo mercantil

que desde então passou a ignorar a contribuição dos povos africanos nos ambientes

em que eles estavam compulsoriamente inseridos.

55

Através da criação do falso conceito de raça a homogeneização do currículo nas

escolas foi feita sob a perspectiva eurocêntrica de valorização da “raça” branca.

Esse é um dos estigmas a ser quebrado pela educação e pelos educadores para

que se possa trabalhar a interculturalidade e a diversidade cultural sem subvalorizar

e nem supervalorizar ninguém.

Faz-se necessário construir uma verdadeira imagem da África em virtude da que

atualmente perpassa o imaginário das pessoas, como um continente de misérias e

tudo de ruim. Tem de ser encarada com toda e em toda a sua diversidade lingüística

e cultural.

Outro ponto a ser considerado é a construção de um novo olhar sobre as religiões.

Afinal, de que adianta se falar de culturas e relativismo cultural nas escolas se isso

fica apenas na teoria enquanto que na prática há cruzes dependuras nas paredes

das escolas, frases bíblicas, nomes dos “heróis” brancos para as escolas e outros

horrores. Isso inviabiliza qualquer prática de integração, pois, acaba por folclorizar

ainda mais a cultura do outro, o tiro sai pela culatra.

[...] não basta a escola desenvolver um trabalho para dias como o da consciência negra ou das mulheres se, no seu cotidiano, aqueles que pertencem a esses grupos são discriminados. Por isso, é importante elaborar um projeto político-pedagógico consistente, em que o estudo da temática esteja inserido tanto na sala de aula quanto nas horas de trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, deve-se tomar cuidado para não haver exageros. Muitas discussões sobre as questões ou a excessiva criação de projetos acabam por prejudicar a consistência da reflexão dos envolvidos. No fim, após passar pela escola, posso continuar acreditando nos preceitos de minha religião, por exemplo, mas não posso sair pensando que ela é a única e verdadeira. (NEVES, 2000, apud, JAHN, 2009, p.4)

É preciso que se garanta visibilidade à população negra no Brasil. Chega de ocupar

os postos de inferioridade nas telenovelas, nos empregos, na escola. Isso só se

tornará possível a partir de uma nova visão sobre o povo negro e de sua

contribuição na construção da identidade cultural, social e econômica deste país.

Há urgentemente que se apresentar as organizações do movimento negro. Tem-se

que extirpar a idéia expressa nos livros didáticos que os negros sempre foram

submissos e passivos e que jamais reagiram às atrocidades dos europeus. Isso se

faz apresentando o verdadeiro sentido organizacional dos quilombos e revelando as

56

centenas de comunidades quilombolas espalhadas por esse Brasil que mantém viva

a luta contra a hegemonia das classes ditas superiores desde a colonização deste

país.

A educação é imprescindível nesse processo e tem de ser laica. Cabe ao educador

entender isso e ser capaz de transcender ao senso comum e apresentar um mundo

construído por culturas de igual valor no seu espaço tempo. Caso contrário, a escola

será mais um lugar de afirmação da superioridade branca em que o negro é visto

como o feio, anormal e inferior.

Portanto, a escola é o espaço ideal e vital para se construir uma práxis (no sentido

marxista) democrática de cultura. Vale lembrar que se faz imprescindível que os

educadores sejam capazes de ver além de sua própria cultura, afinal, o peixe é

quem menos sabe sobre a água. Dessa forma, a Lei 10.639/2003 pode, se

realmente entendia e praticada, ser um forte aliado na preservação, entendimento,

valorização e continuidade das manifestações culturais afro-brasileiras sem tratá-las

como exótica e/ou folclorizá-las.

57

CONCLUSÃO

A (pós)-modernidade é um momento ideológico da história que assombra e desafia a

existencialidade humana. É fruto da gigantesca conquista tecnológica que desafia

cotidianamente os limites da geografia, confronta culturas, desafia paradigmas

políticos, morais, culturais e econômicos. O ser (pós)-moderno tem de ser

intercontinental.

A (pós)-modernidade busca unir a humanidade e inseri-la em um contexto global.

Mas se trata de uma pseudo-unidade uma vez que participa dela apenas quem pode

comprar e consumir. O ter suplanta todo sentido de humanidade e de unidade. Os

seres humanos são nesse processo narcotizados e coisificados pelos meios de

comunicação de massas responsáveis por propagar a moda e o estilo de vida (pós)-

moderno. O consumismo torna-se nesse cenário a condição de cidadania.

É sabido que a cultura como identidade construída por um determinado povo

necessita de ser preservada e transmitidas às neo-gerações. No entanto, esse

processo pode ser suplantado quando há o confronto direto com “os mundos”

apresentados pelas diversas tecnologias de comunicação de massas, pois limita a

continuação da herança cultural de um povo.

Quando o mundo cultural de determinado povo é globalizado a valorização da

identidade pode perder o sentido uma vez que tem de ser rearranjado para ser

inserido em um mercado global. Nesse processo é a mídia que se encarrega da

transmissão de determinados valores outrora tradicionalmente passados de pai para

filho.

Fica evidenciado também que é próprio da natureza e da cultura humana a

necessidade de evolução. Isso justifica a constante mutação dos valores, crenças,

ideologias, a noção de espaço-tempo. Isso é absolutamente normal. Porém, no

contexto (pós)-moderno essas transformações tendem a coisificar e transformar em

mercadoria, o que antes fazia parte da tradição e história de um povo.

58

A constatação mais intrigante é que as mudanças culturais são extremamente

sentidas no contexto cultural das classes subalternas da sociedade. Os afro-

descendentes e outras minorias étnico-racias diante dessa realidade e do estigma

histórico que os acompanha, se vêem frente a um mundo que lhes nega a

possibilidade de preservar sua identidade cultural.

Outro ponto relevante é quanto aos conceitos culturais. A produção cultural das

classes hegemônicas é classificada de cultura, enquanto as das classes subalternas

são folclores. Isso explicita o enorme preconceito étnico ainda presente na

sociedade, principalmente, brasileira. Uma verdadeira democracia somente será

efetivada quando essas questões forem amplamente debatidas com

responsabilidade e coragem para se mexer em feridas históricas.

O folclore, portanto, cultura das classes subalternas, está intimamente relacionado

às condições de vida de um povo. Quando se tenta imprimir um novo modelo de vida

tende a tomar novos contornos e passa a entrar em crise.

Os atritos culturais estiveram presentes no contexto de colonização do Município de

Jaguaré. Os migrantes de origem italiana não aceitaram os antigos modos de vida

da região. Hoje a crise de representatividade do Grupo de Folia de Reis da

Comunidade São João Bosco é, também, fruto desse processo histórico de

minimização da cultura local.

A Folia de Reis fazia parte do imaginário e do quotidiano infantil dos atuais

cantadores, isso justifica a tentativa de dar continuidade ao que aprenderam com os

pais. O Grupo nasceu em um contexto economicamente precário. Não havia

comodidade e o luxo de hoje. No entanto, o elo começa a ser rompido. A Folia de

Reis não faz parte do cotidiano dos filhos deles e caso não haja uma intervenção

esse grupo tende a desaparecer muito em breve.

Com o apoio dado pela Prefeitura Municipal de Jaguaré em 2002 ao grupo,

percebeu-se um aumento na auto-estima dos cantadores, que enxergaram a

possibilidade de continuar na ativa. O grupo precisa urgentemente ser reestruturado

mesmo com o risco de se distanciar um pouco da tradição. O poder público

59

municipal, com o devido cuidado de não se tornar assistencialista, pode criar

políticas, principalmente educacionais, de estudo às tradições e manifestações

culturais local. A aplicação da Lei Federal 10.639/2003 é, nesse contexto, de

extrema urgência.

Mesmo sabendo que na (pós)-modernidade não há solidez que se perpetue,

evidencia-se que o Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco não se

reerguerá por si só devido às condições sócio-econômicas e, principalmente,

psicológicas dos seus componentes.

Enfim, houve nos últimos anos uma mudança radical nos modos de vida da

população da Comunidade São João Bosco que é percebível principalmente nos

níveis social, econômico e cultural. Em nível social houve a formação de uma favela

na sede dessa comunidade e o aparecimento de pessoas de várias regiões criando

um surto demográfico. Em nível econômico se construiu uma agricultura voltada

exclusivamente para a produção do excedente. Isso melhorou em muito a condição

financeira de boa parte dessa população. Em nível cultural, a partir da década de

1980 com a chegada da eletricidade, permitiu-se o conhecimento do mundo através

da televisão. E, posteriormente há o aparecimento de várias outras tecnologias.

Tudo isso deve ser levado em consideração quando se reflete sobre a construção e

reconstrução da identidade desse povo.

60

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64

DADOS DA LICENÇA

<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/br/"><img alt="Licença Creative Commons" style="border-width:0" src="http://i.creativecommons.org/l/by-nc-sa/3.0/br/88x31.png" /></a><br />O trabalho <span xmlns:dct="http://purl.org/dc/terms/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text" property="dct:title" rel="dct:type">A Identidade Cultural na (Pós)-Modernidade: Grupo de Folia de Reis da Comunidade São João Bosco em Jaguaré-ES</span> de <span xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#" property="cc:attributionName">Italo Suim</span> foi licenciado com uma Licença <a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/br/">Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Brasil</a>.

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