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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
SILENCIAMENTO E PERFORMATIVIDADE EM “ESTAMIRA”
Fábio Ávila Arcanjo1
Resumo: O documentário brasileiro contemporâneo vem apresentando como eixo temático a
inscrição na tomada do chamado “sujeito singular”, nomenclatura adotada pela pesquisadora Ilana
Feldman e que possui um interessante ponto de contato com aquilo que Judith Butler nomeia de
“corpos abjetos”. O que seria esse sujeito? É possível pensar que tal categoria engloba aqueles que,
comumente, se apresentam à margem das relações de poder: poderíamos pensar nas mulheres, nos
homossexuais, nos moradores de comunidades, entre outros. Nesse sentido, acreditamos haver uma
compatibilidade entre a produção fílmica a ser apresentada como objeto de comunicação, o
documentário brasileiro “Estamira”, realizado em 2004, e o simpósio temático “Por um cinema
menor: a trajetória política entre o pessoal, o comum e o político”. Do que se trata essa produção? A
personagem que nomeia o documentário é uma catadora de lixo, que realiza “divagações”
filosóficas. Sendo, notadamente, portadora de algum tipo de patologia psicológica, ela sobrevive em
meio ao caos social em uma atividade que apresenta condições precárias de trabalho. Os eixos
temáticos a serem utilizados no presente trabalho são: silenciamento e performatividade. Partimos
do princípio de que o documentário pode ser pensado como um veículo de resistência contra o
silenciamento, podendo oferecer ao ator social um espaço de inscrição para performar a sua vida.
Palavras-chave: Documentário. Silenciamento. Performatividade.
Introdução
“A culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário, que joga a pedra e esconde a mão”.
A citação, em destaque, se configura como um dos mais intensos proferimentos realizados por
Estamira, no homônimo documentário, dirigido pelo experiente fotógrafo Marcos Prado2 no ano de
2004. A produção retrata a vida de Estamira Gomes de Sousa3, uma catadora de lixo que sobrevive
no Jardim Gramacho, em condições miseráveis de vida. Em meio a esse caos social, a personagem
realiza divagações filosóficas, dissertando a respeito das condições sub-humanas enfrentadas por
outros trabalhadores, além de filosofar a respeito de valores metafísicos, como o sentido da vida e a
existência (ou não) de Deus. A produção fílmica é construída, quase que inteiramente, pelos relatos
de Estamira, que, vale dizer, são apresentados na íntegra. Além desses relatos, alguns familiares da
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos – Linha Análise do Discurso – pela
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. 2 Durante dez anos, o artista fotografou o Jardim Gramacho – local onde se passa a maior parte das cenas do
documentário Estamira. Além da referida produção, o trabalho fotográfico resultou no livro Jardim Gramacho. 3 Falecida no ano de 2011, em consequência de uma infecção generalizada.
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protagonista revelam situações enfrentadas por ela, o que nos ajuda a compreender o processo de
construção da sua imagem, que se dá por meio do olhar do outro e através da performatividade.
No fragmento escolhido para inaugurar o nosso artigo, nota-se a denúncia de uma tentativa
de ocultamento de uma ação. Quem seria esse locutor adjetivado de forma agressiva? O que ele
esconde e quais as implicações desse ato velado de “jogar a pedra”? O presente artigo tentará
ensaiar algumas chaves de leitura a respeito desse outro, que, no referido documentário, sofre uma
dinâmica de dobramento. O processo de constituição do sujeito Estamira se dá mediante a ação da
alteridade, que pode ser desmembrada, tendo o trabalho de Marcos Prado a consequência de se
constituir como uma espécie de “divisor de águas”. Explicaremos melhor esse prólogo a partir de
dois eixos temáticos que serão estudados: silenciamento e performatividade.
Antes de iniciarmos o desenvolvimento das ideias, talvez seja interessante fazer um adendo.
Por que pensar na figura do outro, se nosso enfoque está centrado na personagem nomeadora do
documentário? É justamente pelo fato de que a identidade se constrói na alteridade. Patrick
Charaudeau (2015) propõe uma pergunta retórica, que ilustra a asserção anterior: “Não é sempre o
outro que me remete a mim mesmo”? (Charaudeau, 2015, p. 14). O questionamento elucida a
percepção de que “o problema da identidade começa quando alguém fala de mim, o que me obriga a
interrogar-me sobre ‘quem sou eu?’: aquele que acredito ser, ou aquele que o outro diz que eu sou?”
(ibid.). Diante do que foi afirmado, procuraremos investigar como o documentário opera uma
discursivização da vida de um notório sujeito singular.
É imperativo reforçar a ideia de que existe uma importância na compreensão do papel
operado pelo outro na constituição do sujeito Estamira. Porém, pretendemos extrair traços de uma
individualidade, que, não podemos desconsiderar, se apresenta atravessada pelos imaginários e
elementos dóxicos que circulam a vida dessa personagem.
O silenciamento fundador
O título nomeador desse tópico é uma alusão à tratativa concedida pela linguista Eni Orlandi
à questão do silêncio, que longe de ser um vazio na enunciação, se configura como um ativador
discursivo, ou seja, os sentidos construídos no desenrolar da interação funcionam em um processo
de espelhamento. A esse respeito, Orlandi postula que “todo dizer é uma relação fundamental com o
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não dizer” (Orlandi, 1997, p. 12). Em nossa dissertação de mestrado, fizemos uma conexão entre o
pensamento desenvolvido pela linguista brasileira e a mise-en-scène adotada por Marcos Prado no
documentário “Estamira”.
De alguma forma, o que se pode atestar é um inesgotável caráter de incompletude do
documentário, embora não podemos deixar de frisar que essa característica se faz presente
nos discursos em geral. Aquilo que é registrado pela câmera precisa ser pensado como um
recorte e uma leitura de uma realidade construída pela dinâmica estabelecida entre os
sujeitos do discurso fílmico. (ARCANJO, 2016, p. 130).
Para ilustrar as ideias antecedentes, é válido observar que algumas situações, reveladas pela
personagem, são “recortadas” e organizadas no discurso fílmico documental4. Estamira, por
exemplo, revela as dificuldades enfrentadas ao longo de sua vida – os abusos cometidos por antigos
companheiros; o descaso de um filho que tenta, a todo o momento, interná-la; a perda da guarda da
filha mais nova, adotada por uma família que, segundo consta, teria mais condições de cuidar da
criança. O fato é que todos esses dissabores são revelados, mas não temos acesso aos interditos, isto
é, não apreendemos os silêncios inscritos nos enunciados desenvolvidos pela personagem. Diante
disso, é condizente tentar construir um caminho que possa delinear um resgate dessa hiância
ontológica, com um pressuposto da Análise do Discurso, a saber: condições de produção do
discurso.
Existe um hiato, uma fenda, entre aquilo que é captado imageticamente e o que, de fato, se
pode considerar a “realidade” concernente à vida dos chamados atores sociais5. O documentário –
por ser definido como um recorte subjetivo 6– tem como característica fulcral a seleção. Existe,
portanto, um resto, um descarte, impossível de ser plenamente apreendido, mas que é resgatável,
pensando em termos de uma subjetividade analisada como uma categoria. O que queremos dizer
com isso? Quando analisamos o “sujeito singular” presente no discurso fílmico documental,
organizado por Marcos Prado, algumas questões se mostram evidenciadas: condições miseráveis de
vida da população mais pobre do Brasil; precariedade nas condições de trabalho dos catadores de
lixo; violência e opressão contra a mulher; e descaso, aliado ao preconceito, com as pessoas que
possuem patologia psicológica.
4 Nomenclatura que utilizamos para definir as produções fílmicas do gênero documentário. 5 Termo utilizado por Bill Nichols (2014) para identificar os personagens que são retratados nos documentários. 6 Definição proposta por Bill Nichols (2014).
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Acreditamos ser necessário salientar, diante do que foi dissertado anteriormente, que o
documentário não se configura como um trabalho de assistência social ou como uma tese de
sociologia. Ele, ao contrário, é um trabalho cultural, que visa apresentar um “recorte subjetivo da
realidade”. As implicações pragmáticas, no sentido social, seriam, portanto, uma consequência
tácita da mise-en-scène. Nesse sentido, percebemos o gênero documentário como uma espécie de
“falta”, que, vale ressaltar, é imanente. Existe um sentido intervalar na enunciação de Estamira, ou
seja, seria o silêncio exercendo a função de significar. Eni Orlandi identifica duas formas do
silêncio: silêncio fundante e a política do silêncio (o silenciamento). Vejamos o que ela tem a nos
dizer:
A primeira nos indica que todo processo de significação traz uma relação necessária ao
silêncio; a segunda diz que – como o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de
uma posição do sujeito – ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo “outros”
sentidos. Isso produz um recorte necessário no sentido. Dizer e silenciar andam juntos.
(ORLANDI, 1997, p. 55).
Sobre o silêncio estruturante, podemos raciocinar a partir da ideia de que há uma ilusão
quanto à originalidade do dizer. Jacqueline Authier-Revuz afirma que há um descentramento do
sujeito, de forma que, “para um sujeito dividido, ‘clivado’ (...), não há centro, de onde emanariam,
particularmente, o sentido e a fala, fora da ilusão do fantasma7” (Authier-Revuz, 2004, p. 69). O
silêncio fundante seria uma espécie de devir enunciativo, isto é, uma marca de heterogeneidade, que
se apresenta atrelada aos imaginários sociodiscursivos8 circulantes. Trazendo a discussão para o
documentário “Estamira”, acreditamos ser possível afirmar que, apesar da patologia psicológica,
que não será examinada nesse artigo, a protagonista profere dizeres carregados de história e que
refletem à figura do outro.
A respeito do silenciamento, a atuação do silêncio se constrói mediante um mecanismo de
interdição no fio do discurso. Evoquemos, novamente, Eni Orlandi, que ilustra essa política do
silêncio através do dispositivo da censura.
7 Para Authier-Revuz (2004), esse fantasma seria uma inscrição da ideologia e do inconsciente, fornecendo ao indivíduo
a inescapável condição de sujeito barrado. 8 Os imaginários sóciodiscursivos circulam, portanto, em um espaço de interdiscursividade. Eles dão testemunho das
identidades coletivas, da percepção que os indivíduos e os grupos sociais têm dos acontecimentos, dos julgamentos que
se fazem de suas atividades sociais. (CHARAUDEAU, 2013, p. 207).
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(...) a censura pode ser compreendida como a interdição da inscrição do sujeito em
formações discursivas determinadas. Consequentemente, a identidade do sujeito é
imediatamente afetada enquanto sujeito-do-discurso pois, sabe-se (Pêcheux, 1975), a
identidade resulta de processos de identificação segundo os quais o sujeito deve-se
inscrever em uma ( e não outra) formação discursiva para que suas palavras tenham sentido.
Ao mudar de formação discursiva, as palavras mudam de sentido (ORLANDI, 1997, p. 78).
É pertinente destacar que o mecanismo da censura opera uma espécie de asfixia, sendo
marca de um estado autoritário. O documentário “Estamira” foi produzido no ano de 2004, em meio
a um governo democrático, que foi legitimado pelo voto. Portanto, é importante estabelecermos um
arranjo teórico para refletir acerca do silenciamento. Ao longo de nosso artigo, categorizamos o
sujeito Estamira com a adjetivação “singular”. Na concepção de Ilana Feldman (2012), tais sujeitos
são aqueles localizados à margem da sociedade e, podemos acrescentar, estigmatizados no tocante à
construção de suas imagens pelos meios de comunicação. Existe um impeditivo que, de alguma
forma, pode ser rompido pelo gênero documentário. Se, por exemplo, Estamira tivesse sua história
retratada em uma reportagem de telejornal, possivelmente, os produtores incorreriam em estratégias
que limitariam a expressão da personagem. No contrato de comunicação das reportagens,
certamente, há um espaço restrito para a performatividade, problemática a ser explorada no
próximo tópico.
O fato é que o silenciamento é resultado de uma exclusão, ou melhor, de uma abordagem
enviesada. O ponto de vista do mais fraco nos parece ser explorado de forma insuficiente nos
grandes meios de comunicação, com seus jornais, novelas, programas de entrevistas etc. Embora
não estejamos falando do trabalho operado pela história, é interessante mencionar aquilo que Jean
Marie Gagnebin nomeia de ascese da atividade historiadora, promovendo, com isso, uma abertura
“aos brancos, aos buracos, ao esquecido, ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos,
incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (Gagnebin,
2006, p. 55). No caso de nossa discussão, poderíamos adaptar essa conceituação no
desenvolvimento de uma ascese da atividade cultural, sendo o documentário um gênero fulcral, por
pensarmos nesse tipo de discurso como sendo um veículo de resistência contra o silenciamento, no
sentido de “dar a voz” ao ator social, isto é, permitir que ele tenha a liberdade para se inscrever na
tomada.
A estratégia da performatividade
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André Brasil define a performance como um “processo de alienação: momento em que me
alieno de mim mesmo, tornando-me outro. Ele é, precisamente, o encontro do ser com aquilo que o
ultrapassa” (Brasil, 2011, p. 10). Quando aplicamos esse conceito ao gênero documentário, é
factível notar, e isso se dá em “Estamira”, que podemos estar diante de uma situação de
comunicação, em que há uma interação direta entre o ator social e o documentarista/entrevistador.
Há, portanto, uma narração, ou, conforme afirma Judith Butler, um relato de si mesmo.
Assim como existe uma ação performativa e alocutária executada por esse “eu”, há limite
ao que o “eu” pode realmente recontar. Esse “eu” se fala e se articula, e ainda que pareça
fundamentar a narrativa que conto, ele é o momento mais infundado da narrativa. A única
história que o “eu” não pode contar é a história de seu próprio surgimento como “eu” que,
além de falar, relata a si mesmo (BUTLER, 2015, p. 89).
O limite de que fala Butler é concernente ao outro, ou seja, é uma consequência da ação do
inconsciente, que opera um não pertencimento, em um sentido que “desafia a retórica do
pertencimento” (Butler, p. 74, 2015). Essa marca de heterogeneidade foi ensaiada no tópico
anterior. O que queremos perceber no presente tópico é o limite existente entre os sujeitos do
discurso fílmico documental. Existe uma distância entre os locutores. Há uma proeminente
centralidade na figura do documentarista, uma vez que ele, em grande parte, é responsável pela
organização do material fílmico. Pensando em termos de retórica clássica, poderíamos afirmar que
o cineasta é o responsável pela organização das categorias do chamado edifício retórico9.
Acreditamos na existência de uma margem de manobra para a atuação do ator social, que
traz como consequência aquilo que Jean-Louis Comolli nomeia de auto-mise-en-scène, que seria
uma dobra no processo da enunciação fílmica. Para o autor, “não existe mise-en-scène que não seja
modificada pelo sujeito colocado em cena” (Comolli, 2008, p. 82). Diante disso, é pertinente
perceber que não há possibilidade de o documentarista construir uma cena plenamente controlada e,
vale dizer, muitas vezes esse não parece ser o seu objetivo. Se atentarmos para o trabalho
enunciativo conduzido pelo sujeito Marcos Prado, perceberemos que, talvez, ele não busque, de
fato, controlar totalmente a sua entrevistada.
(...) desde o nascimento do ato cinematográfico ocorre um duplo processo de
individualização e se assim posso dizer, de subjetivação do sujeito filmado, de modo que
aquele que é filmado se torna personagem de filme e através dele mesmo que posa e se
9 Nomenclatura adotada pelo filósofo belga Michel Meyer (2007) para identificar as categorias inventio, dispositio,
elocutio, memória, ação.
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posiciona, ele se presta e se oferece ao olhar do outro. Há em todo mundo um saber
consciente sobre o olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição,
uma postura (COMOLLI, 2008, p. 81).
Segundo o pensador, esse duplo processo ocorre pela ação de dois mecanismos. O primeiro
seria o habitus, “esse tecido estreito, essa trama de gestos apreendidos, de reflexos adquiridos, de
posturas assimiladas, a ponto de terem se tornado inconsciente” (Comolli, 2008, p. 84). Seria aquela
ideia de que há um “já dito” que preexiste ao dizer. Falamos um pouco sobre isso no tópico anterior.
O segundo mecanismo é a própria interação construída entre o ator social e o documentarista, que
estaria longe de ser um processo simétrico, isto é, há uma modificação oriunda das potenciais
contingências que emergem no processo comunicativo. O seguinte excerto ilustra de forma crucial
aquilo que foi afirmado até o momento.
Essa auto-mise-en-scène está sempre presente. (...) Em geral, o gesto do cineasta acaba,
conscientemente ou não, por impedi-la, mascará-la, apagá-la, anulá-la. Outras vezes, mais
raras, o gesto da mise-en-scène acaba por se apagar para dar lugar à auto-mise-en-scène do
personagem. Trata-se de uma retirada estética. De uma dança a dois. A mise-en-scène mais
decidida (aquela que supostamente vem do cineasta) cede lugar ao outro, favorece seu
desenvolvimento, dá-lhe tempo e campo para se definir, se manifestar. (COMOLLI, 2008,
p. 85).
Os documentários performáticos, a nosso ver, primam por essa tentativa de permitir ao ator
social “fabular” a sua vida. Eles abrem “portas de acesso ao conhecimento por meio de novos
agenciamentos entre o pessoal e o coletivo, sujeito e mundo histórico, corporificando socialmente
uma situação existencial, marcada pelo afeto e pela individualidade” (Bezerra, 2014, p. 49). De
alguma forma, portanto, pensamos haver uma conexão entre a tentativa de dirimir o silenciamento,
concedendo ao documentário a condição de potencial veículo de resistência, com a “retirada
estética”, que possibilita a auto-mise-en-scène geradora da performance.
Em nossa dissertação de mestrado, destacamos três tipos de performances presentes em
Estamira: performance xamanística/educativa, performance encolerizada e performance
melodramática. Em função da limitação de espaço, tentaremos, de forma sucinta, apresentá-las,
objetivando, com isso, alinhavar todas as questões desenvolvidas anteriormente.
As performances de Estamira
Antes de iniciarmos o desenvolvimento do tópico, alertamos que as falas de Estamira serão
apresentadas mediante uma transcrição, que buscará dirimir a inevitável perda da naturalidade, uma
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vez que elas serão recortadas do seu contexto. Nesse sentido, as inadequações gramaticais e os
travamentos serão mantidos.
A primeira performance, denominada xamanística, seria aquela que mais evidencia a
condição patológica apresentada por Estamira, justamente por ela acreditar ser uma espécie de
guardiã da verdade e da sabedoria. A auto-mise-en-scène desenvolvida por ela, nesse tipo de
performance, a reveste de uma aura. Ela constrói para si um éthos de líder mística.
A minha missão, além de eu ser a Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja
mentira... Seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não
sabem. Os inocentes. Não existe inocente. Não tem mais inocente. Não tem. Tem esperto ao
contrário. Você é comum, eu não sou comum. Só o formato que é comum. Vou explicar pra
vocês tudinho agora, pro mundo inteiro. (PRADO, 2004).
A auto-mise-en-scène se apresenta atrelada à enunciação fílmica posta em cena pelo
documentarista. Nesse sentido, o recuo operado por ele e nomeado de retirada estética, existe
apenas na questão do apagamento de sua imagem na tomada. Por outro lado, a montagem se
encarrega de trazer a voz do cineasta, no sentido de empreender uma narrativa sofisticada, com o
uso de uma trilha sonora que emula estados psicológicos da personagem. O mesmo se dá com a
utilização da fotografia, acentuadamente granulada, que alterna, de forma significativa, o uso das
cores. No que diz respeito à questão do xamanismo, Estamira apresenta um tom apocalíptico,
empreendendo um caráter, em certa medida, salvífico para suas ações.
E antes de eu nascer, eu já sabia de tudo! Antes de eu estar com carne e sangue, é claro, se
eu sou à beira do mundo. Eu sou Estamira. Eu sou a beira, eu estou lá, eu estou cá, eu estou
em tudo quanto é lugar! E todos dependem de mim! Todos dependem de Estamira!
(PRADO, 2004).
Para acentuar esse tom profético, a linguagem cinematográfica é desenvolvida mediante a
utilização de metáforas visuais, que fazem uma aproximação da figura de Estamira com as forças da
natureza. Elementos como água e fogo, comumente, “dialogam” com as falas e expressões
corporais da protagonista. Nesse sentido, o espaço de inscrição fornecido pela mise-en-scène se dá,
não somente pela retirada estética, mas, também, pelo trabalho de montagem, uma vez que tais
inserções estratégicas, como fotografia, movimentos de câmera e trilha sonora, são utilizadas para
reforçar a tentativa de construir a imagem de Estamira.
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Outro ponto interessante a ser salientado é a sensibilidade que Estamira manifesta ter, ao
dissertar sobre as condições precárias de sobrevivência, oferecidas aos seus companheiros de
trabalho.
Isso aqui [se referindo ao Lixão] é um disfarce de escravo. Escravo disfarçado de liberto, de
libertado. Olha, a Isabel, ela soltou eles né? E não deu emprego pros escravos, passam
fome, comem qualquer coisa, igual aos animais e não têm educação. É então... É muito
triste. Foi combinado: alimentai-vos o corpo com o suor do próprio rosto. Não foi com
sacrifício! Sacrifício é uma coisa. Agora, trabalhar é outra coisa. Absoluto! Absoluto! Eu,
Estamira, que vos digo ao mundo inteiro. A todos! Trabalhar. Não sacrificar. (PRADO,
2004).
Ao mesmo tempo em que há uma lucidez sociológica nessa fala, no sentido de chamar a
atenção para um manifesto quadro de desigualdade social, existem, por outro lado, marcas
explícitas de discurso religioso, como, por exemplo, a utilização da terceira pessoa do plural
(alimentai-vos; vos digo). Nesse sentido, esse proferimento, partindo do ponto de vista da
protagonista, não é uma mera observação social, mas, sim, um argumento de autoridade de alguém
que se enxerga como líder messiânica.
Na performance encolerizada, há uma questão curiosa. Enfatizamos, em linhas anteriores, a
imagem mística apresentada por Estamira, porém, nesse tipo de performance, existe um alvo,
notadamente, marcado: Deus.
Jesus correu e escondeu inté desde antes de nascer. O Jesus que eu conheço como Jesus,
filho de Maria, filho de Israel, filho de rua. E eu já tive dó de Jesus, agora não tenho mais
dó. Não tenho mais dó de Jesus mais não. Eu já tive dó de escravo, não tenho mais dó de
escravo também não. Se eu sou atarantada por Jesus. Me chamam de Jesus, me chama de
sangue de barata, me chamam de sangue de Cazuza, me chamam de Maria, que é a mãe de
Jesus. Que Deus é esse? Que Jesus é esse? Que é isso? (PRADO, 2004).
Segundo Michel Meyer, “a cólera é um brado contra a diferença imposta, injusta ou como
tal sentida” (Meyer, 2000, p. 43). Ele complementa que ela “reequilibra a relação proveniente do
ultraje, da afronta, do desprezo” (ibid.). A ideia de que Estamira se insere na condição de sujeito
singular, nos faz acreditar que o conceito apresentado pelo filósofo belga é pertinente, pois o que se
percebe, nessas performances encolerizadas, é um acentuado brado, isto é, um grito catártico contra
as injustiças enfrentadas pela personagem. Nesse sentido, não apenas Deus é elencado como alvo,
mas, também, os homens que a exploraram fisicamente e sexualmente e as pessoas que ela nomeia
de “espertas ao contrário”.
Trocadilo safado, canalha, assaltante de poder, manjado, desmascarado. Me trata com meu
trato que eu te trato! Me trata com meu trato que eu te devolvo o teu trato. E faço questão
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de devolver em triplo. Onde já se viu uma coisa dessa? A pessoa não pode andar nem na
rua que mora! Nem trabalhar dentro de casa! E nem em trabalho nenhum! Aonde já se viu?
(PRADO, 2004).
O último trecho da fala anterior parece remeter a um estupro sofrido por Estamira e que,
segundo sua filha mais velha – Carolina, pode ter sido um divisor de águas para a fragilidade
psicológica de sua mãe. Somados a essa violência sexual, há, ainda, os sofrimentos provocados
pelos companheiros que ela teve ao longo de sua vida, que, não obstante terem cometido diversos
atos de traição, ainda a agrediram constantemente. Tais experiências, de alguma forma, são
rememoradas a partir da próxima performance a ser analisa em nosso artigo.
A performance melodramática surge em um dos primeiros proferimentos de Estamira,
quando ela rememora experiências traumáticas de sua infância, relacionadas ao sofrimento
vivenciado por seus pais.
E aí então, sabe o que aconteceu? Eles levaram o meu pai no 43 [1943], aí nunca mais meu
pai voltou. Entendeu? Meu pai chamava eu de tanto nomezinho. Chamava eu duns nome
engraçado: merdinha, neném, fiinha do pai. Tem nada, não. É comigo. Aí então depois,
sabe o que eles falaram? Depois eles falaram que meu pai morreu. Aí então, minha mãe
ficou pra cima e pra baixo comigo, pra cima e pra baixo comigo. Judiação, não é? Coitada
da minha mãe, mais perturbada do que eu. (PRADO, 2004).
A infância de Estamira se mostra inserida em um acentuado quadro de ruptura. Desde a
tenra idade, ela experimentou a distância, a diferença, de que fala Michel Meyer. Cláudio Bezerra
afirma:
As performances melodramáticas, por excelência, apresentam uma história de abandono,
violência, traição ou trauma que deixa marcas profundas. Essa dor persistente muitas vezes
leva às lágrimas e envolve um grau considerável de tensão tanto para o performer-
personagem como para mim, espectador interactuante, provocada pelo modo de narrar, pela
coisa narrada ou pela combinação de conteúdo e narração. (BEZERRA, 2014, p. 126).
Há, portanto, uma duplicidade, ou seja, uma transferência emotiva. O afastamento que
Estamira pode provocar no público, com as performances xamanísticas e encolerizadas, de certa
maneira, é reduzido a partir dos proferimentos melancólicos, quando conseguimos compreender sua
trajetória de vida. Além do abandono dos pais, ela sofreu inúmeros maus tratos, fato recorrente em
muitas mulheres, que são, diariamente, violentadas e subjugadas por um estado de coisas opressor.
Eu te amo, mas você é indigno, incompetente e eu não te quero nunca mais. Eu lamento...
Eu te amava... Eu te queria..., mas você é indigno, incompetente, otário, pior do que um
porco sujo. Advirta-se, faça um bom prato, deixa-me! Eu prefiro o desprezo. Anda-se!
Nunca mais encostarás em mim! (PRADO, 2004).
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Para ilustrar a fala anterior, Prado lança mão de uma estratégia retórica eficiente: utilização
de imagens de arquivo. Enquanto Estamira faz o proferimento, duas fotografias de um ex-
companheiro se inscrevem na tomada. Esse mecanismo volta a ser utilizado a posteriori, quando
vemos fotografias do manicômio em que a mãe de Estamira foi internada. É válido afirmar que
elementos como imagens de arquivo; fotografia granulada; trilha sonora; movimentos de câmera –
closes; enquadramentos – primeiro plano; funcionam como uma espécie de suporte para as
performances. Eles, de alguma forma, trazem uma legitimação para os proferimentos apresentados.
O que se pode notar é que a performance melodramática nos permite, em certa medida, conhecer
melhor a personagem e, porque não, nos sensibilizarmos com ela.
À guisa de conclusão do artigo, julgamos que o conceito de sujeito singular se apresenta
carregado de ironia. Ele é polifônico, pois, como sabemos, a pobreza, em um país como Brasil, está
longe de ser uma marca de singularidade. Contudo, esse termo, aplicado no discurso fílmico
documental, remete a uma apreensão imagética que, diferentemente da abordagem dos grandes
meios de comunicação, prima em conferir uma centralidade a esse sujeito. A partir disso, pensamos
que o documentário, principalmente o modo performático, pode oferecer um espaço de inscrição
desse sujeito singular. A consequência é a possibilidade de a performance se configurar como uma
ressonância para a tentativa de dirimir os efeitos do silenciamento.
Referências
ARCANJO, Fábio Ávila. A retórica da performatividade a partir do documentário Estamira. 2017.
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Silencing and performativity in “Estamira”
Abstract: The contemporary Brazilian documentary has been presented as the pivot theme of the
inscription on the so-called "singular subject", a nomenclature adopted by the researcher Ilana
Feldman which has an interesting point of contact with what Judith Butler calls "abject bodies".
What would this guy be? It is possible to think that such a category comprises those that commonly
appear on the fringes of power relations: we could think of women, homosexuals, community
residents, among others. In this sense, we believe there is a compatibility between the film
production to be presented as an object of communication, the Brazilian documentary "Estamira",
held in 2004, and the thematic symposium "For a smaller cinema: the female trajectory between the
personal, the common and the politics". What is this production about? The character who names
the documentary is a garbage collector, who performs philosophical "ramblings." Being, in
particular, a carrier of some kind of psychological pathology, it survives in the midst of social chaos
in an activity that presents precarious working conditions. The thematic center lines to be used in
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
the present work are: silencing and performativity. We assume that the documentary can be thought
of as a vehicle of resistance against the silencing, with the possibility to offer to the social actor a
space to perform his life.
Keywords: Documentary. Silencing. Performativity.