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Capítulo 2 Expressão de Emoção O verdadeiro artista é uma pessoa que, debatendo - -se com o problema de expressar uma certa emoção, diz, «quero tornar isto claro». 1 COMO VIMOS, PARA BELL, UM «GRANDE ARTISTA PERMA¬ nece firme e admirável porque os sentimentos que despertou são independentes do tempo e do lugar». 2 A arte é, sempre foi e sempre será, Forma Significante. Por mais tentadora que esta suposição seja, certamente que é estar a sonhar alto pen- sar, como Bell, que uma resposta satisfatória para a questão «o que é a arte agora?» será também uma resposta satisfató- ria para a questão «o que tem sido a arte?» e «o que será a arte?». A arte não é uma categoria intemporal, mas antes uma categoria que evolui à medida que evoluem as socieda- des nas quais as obras de arte foram criadas. 3 O filósofo de Oxford R. G. Collingwood não partilha as ideias de Bell sobre a intemporalidade da arte. No pre- fácio da sua principal obra sobre o tema, The Principies of Art (publicado pela primeira vez em 1938), escreveu: Não vejo a teoria estética como uma tentativa de investigar e expor verdades eternas sobre a natureza 51

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Page 1: Expressão de Emoção - Carlos Joao · ticas do ofício qu Collingwooe refered . O seu objectivo não é tenta definirr ofício apena, mas referis r a caractes rísticas típicas

Capítulo 2

Expressão de Emoção

O verdadeiro artista é uma pessoa que, debatendo --se com o problema de expressar uma certa emoção, diz, «quero tornar isto claro». 1

C O M O VIMOS, PARA BELL, U M «GRANDE ARTISTA PERMA¬

nece firme e admirável porque os sentimentos que despertou são independentes do tempo e do lugar». 2 A arte é, sempre foi e sempre será, Forma Significante. Por mais tentadora que esta suposição seja, certamente que é estar a sonhar alto pen­sar, como Bell, que uma resposta satisfatória para a questão «o que é a arte agora?» será também uma resposta satisfató­ria para a questão «o que tem sido a arte?» e «o que será a arte?». A arte não é uma categoria intemporal , mas antes uma categoria que evolui à medida que evoluem as socieda­des nas quais as obras de arte foram criadas. 3

O filósofo de O x f o r d R. G. C o l l i n g w o o d não part i lha as ideias de Bel l sobre a intemporal idade da arte. N o pre­fácio da sua pr inc ipal obra sobre o tema, The Principies of Art (publicado pela primeira vez e m 1938), escreveu:

Não vejo a teoria estética como uma tentativa de investigar e expor verdades eternas sobre a natureza

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de um objecto eterno chamado Arte, mas como uma tentativa de alcançar, pelo pensamento, a solução para certos problemas que são despoletados pela si­tuação em que os próprios artistas se encontram aqui e agora.4

«Aqui e agora» para C o l l i n g w o o d significava a I n ­glaterra dos anos 30 do século XX; e no r o l de artistas cujos trabalhos mais o impressionavam estavam Cézanne e T. S. E l iot . C o l l i n g w o o d , contudo, não era apenas u m filó­sofo e u m entusiasta das artes. Fez u m estudo sério da arqueologia romano-britânica, publicando trabalho impor­tante na área. A sua familiaridade c o m artefactos roma­nos e a consciência que t i n h a do seu significado c u l t u r a l deixaram-no sem dúvida desconfiado do t ipo radical de generalização acerca das obras de arte de outras culturas e épocas que Bel l tão faci lmente adoptava. C o l l i n g w o o d , como Bel l , t i n h a a experiência de p intar — uma fonte , talvez, da sua perspicaz análise dos processos criativos. Os seus pais eram artistas — o pai , W i l l i a m C o l l i n g w o o d (1819-1903), era u m conhecido aguarelista e f o i também durante a lgum tempo secretário de Ruskin. E m criança, R. G. C o l l i n g w o o d desenhou e p i n t o u abundantemente . N a sua Autobiografia, descreve as primeiras experiências que m o l d a r a m a sua filosofia da arte:

Estava constantemente a observar o trabalho do meu pai, da minha mãe e dos outros pintores profis­sionais que frequentavam a nossa casa, e tentava constantemente imitá-los; de modo que aprendi a

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pensar numa pintura não como um produto acabado exposto para admiração dos entendidos, mas como um relato visível, espalhado pela casa, de uma ten­tativa de resolver um determinado problema na pin­tura, até onde a tentativa o permitia. Aprendi aquilo que alguns críticos e estetas nunca souberam durante as suas vidas: que nenhuma «obra de arte» está aca­bada, de modo que nesse sentido da expressão não há de todo em todo «obras de arte». O trabalho cessa sobre a pintura ou manuscrito não porque esteja aca­bado mas porque acabou o prazo para a sua conclu­são, ou porque o editor exige o trabalho. 5

C o l l i n g w o o d vê a questão da arte como central em The Principies of Art, u m l i v r o recentemente descrito como « O trabalho mais inf luente e interessante de esté­tica e m língua inglesa». 6 A pr imeira l i n h a da introdução torna o seu ob ject ivo centra l c laro: «o propósito deste l i v r o é responder à pergunta: O que é a arte?» 7 Algumas coisas classificadas como arte são apenas «falsamente ape­lidadas de arte», não são verdadeira arte, u m a posição c o m a qual Bel l teria concordado. Mas C o l l i n g w o o d ofe­rece uma análise mais complicada e sistemática dos tipos de coisas que são ingenuamente classificadas como arte e do que faz as verdadeiras obras de arte serem tão di feren­tes delas. A mais conhecida é a sua distinção entre ver­dadeira arte e ofício. Posto de forma simples, o ofício é uma actividade que transforma a matéria-prima n u m p r o ­d u t o concebido de acordo c o m u m plano preexistente. C o l l i n g w o o d esboçou o agregado de características par t i -

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cularmente associadas ao ofício. O ofício, por exemplo, envolve uma distinção entre as coisas usadas e o resul­tado que se deseja obter pelo seu uso: a distinção entre meios e fins. Ass im, por exemplo, u m carpinteiro poderá usar algumas peças de madeira como meio para produzir o resultado f i n a l : uma mesa. O ofício também envolve uma distinção entre o plano e a sua execução. C o m o diz C o l l i n g w o o d :

[O] artesão sabe o que quer fazer antes de o fazer. Este conhecimento prévio é absolutamente indis­pensável ao ofício: se algo, por exemplo, aço inoxi­dável, é feito sem esse conhecimento prévio, o seu fabrico não é uma questão de ofício mas u m aci­dente. Além do mais, este conhecimento prévio não é vago mas preciso. Se uma pessoa planeia fazer uma mesa e concebe a mesa de forma vaga, como algo entre 60 por 120 centímetros e 90 por 180, essa pes­soa não é um artesão. 8

A matéria-prima e o produto acabado p o d e m dis t in ­guir-se claramente. A matéria-prima é transformada e m algo diferente. O carpinteiro pega nos pedaços de madeira como matéria-prima e faz deles o p r o d u t o acabado, a mesa. Estas são algumas das mais importantes caracterís­ticas do ofício que C o l l i n g w o o d refere. O seu object ivo não é tentar definir ofício, mas apenas referir as caracte­rísticas típicas da act ividade do ofício. A l g u m a s destas características p o d e m ser partilhadas por certas obras de arte, mas não precisam de o ser, uma vez que, como ve-

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remos, C o l l i n g w o o d pensava que uma obra de arte pode existir independentemente da sua instanciação física.

A teor ia que C o l l i n g w o o d designa c o m o a teoria técn ica da arte, e que rejeita, n ã o reconhece qualquer diferença entre a arte e o ofício. D e acordo c o m essa teo­ria, a arte é simplesmente out ro t ipo de ofício. A tarefa do artista é então simplesmente a de transformar a ma­téria-prima n o t ipo de objecto que irá produzir u m certo efeito específico. O artista está assim ao nível de qual ­quer pessoa que faz coisas. U m serralheiro decide em­preender a tarefa de fazer uma ferradura que irá ser usada por u m cavalo part icular ; corta a lgum ferro (a matéria-- p r i m a ) , m o l d a - o na forja e coloca a ferradura na unha do cavalo. O serralheiro sabe qual irá ser o resultado f inal ainda antes de começar o trabalho: u m cavalo b e m fer­rado. D e acordo com a teoria técnica, u m artista percorre estágios análogos na se lecção dos materiais e na sua transformação para produzir u m efeito desejado e pre­v iamente concebido.

C o l l i n g w o o d rejeita a teoria técnica da arte c o m base na ideia de que a actividade do artista não precisa de en­volver uma distinção entre meios e fins. N e m precisa de envolver uma distinção entre planear e executar. O b v i a ­mente que algumas obras de arte e n v o l v e m de facto pla­neamento, part icularmente , por exemplo, as produzidas como resultado de uma encomenda detalhada. Qualquer pessoa que ache que M i g u e l A n g e l o se l i m i t o u a pegar no pincel e na t i n t a quando decorou o tecto da Capela Sis­t i n a é ingénua. O trabalho de M i g u e l A n g e l o envolveu imenso planeamento . C o n t u d o , planear n ã o é uma ca-

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racterística necessária para fazer arte, n e m uma sua ca­racteríst ica d i s t i n t i v a . Para usar o exemplo de C o l l i n g ­w o o d , u m escultor a br incar c o m u m pedaço de barro , vendo os seus dedos a transformá-lo n u m pequeno dan­çar ino , pode mesmo assim produzi r u m a obra de arte . O facto de n ã o ter planeado produzir t a l escultura, n e m saber qual i r i a ser o seu aspecto até estar per to de a c o m ­pletar, não a impede de ser uma obra de arte. Isto é algo que se pode ver claramente, por exemplo, nos métodos de trabalho de Picasso, que declarou: «não sei antecipa­damente o que i re i pôr na tela, do mesmo m o d o que não decido antecipadamente que cores usar.» 9 Isto destrói a teoria da técnica da arte como uma teoria inc lus iva de toda a arte. C o n t u d o , C o l l i n g w o o d aponta outras d i f i ­culdades, c o m o a de especificar a matér ia-pr ima para u m a obra de arte. Será a matéria-prima de u m poema simplesmente as palavras? O u será talvez uma emoção? A conclusão de C o l l i n g w o o d é que a teoria técn ica da arte como u m t ipo de ofício é u m n a d o - m o r t o . Apesar de as obras de arte poderem envolver ofício, a arte não deve ser ident i f icada c o m este, porque a arte não é ape­nas uma questão de técnica ; não é algo que possa ser en­sinado como uma competência pode ser ensinada: «um técnico faz-se, mas o ser artista é n a t o . » 1 0

U m alvo possível para a discussão de C o l l i n g w o o d da teoria técnica da arte f o i o m o v i m e n t o A r t e s e Ofício. W i l l i a m M o r r i s , por exemplo, sob a influência de Ruskin , t i n h a uma grande admiração pelas obras produzidas pelos artífices medievais. D e f i n i u a arte como «a expressão do h o m e m do seu prazer pelo t rabalho». 1 1 Rejeitando a cele-

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bração da inspiração artística e do génio artístico típico do seu tempo, M o r r i s declarou que «falar de inspiração é puro disparate [...] não existe t a l coisa: é simplesmente uma questão de habi l idade do ar t í f i ce» . 1 2 N a mesma l inha , o discípulo de M o r r i s , Wal ter Crane, a f i rmou que «a verdadeira raiz e base de toda a A r t e está n o trabalho m a n u a l » . 1 3 Para M o r r i s e Crane, a celebração da inspira­ção artística e a distinção entre arte e ofício eram uma distorção da natureza da arte.

E m contrapar t ida , C o l l i n g w o o d apresentou uma perspectiva essencialmente românt ica do artista. C o n ­tudo, não v a i ao p o n t o de abraçar a posição sent imental de que qualquer pessoa pode produzir arte (apesar de su­gerir, todavia, que aqueles que apreciam arte o fazem ao tornarem-se eles próprios artistas). N e m sugere em sítio a lgum que os artistas não t e n h a m de aprender o ofício. Pelo contrário, C o l l i n g w o o d pensa que u m nível mínimo de perícia é u m pré-requisito necessário para qualquer pessoa que esteja a produzir uma obra de arte, ainda que modesta:

Grandes poderes artísticos podem produzir belas obras de arte apesar de a técnica ser defeituosa; e mesmo as técnicas mais perfeitas não irão produzir o melhor tipo de trabalho na sua ausência; não obs­tante, nenhuma obra de arte poderá alguma vez ser produzida sem um certo nível de competência téc­nica e, em igualdade de circunstâncias, quanto me­lhor a técnica melhor será a obra de arte. Os maio­res poderes artísticos, para se apresentarem de

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direito e como tal, exigem uma técnica tão boa no seu género quanto o são em si . 1 4

Vale a pena trabalhar este último p o n t o , pois as ideias de C o l l i n g w o o d nesta matér ia são mui tas vezes deturpadas. Por exemplo, n o seu l i v r o Aesthetics, A n n e Sheppard repreende Col l ingwood por não reconhecer que a «arte pode não ser apenas ofício, mas o ofício desempe­nha nela u m considerável papel» . 1 5 A ênfase do l i v r o de C o l l i n g w o o d está na expressão de emoções. A crítica de Sheppard é que t a l o leva a não dar importância ao papel do ofício na arte: «para apreciar completamente a poesia de Catu lo precisamos de reconhecer a sua competência técnica assim como responder às emoções que está a ex­primir.» 1 6 C o n t u d o , nada na teoria de C o l l i n g w o o d exclui este t ipo de resposta. C o l l i n g w o o d diz explic i tamente que a planificação própria do ofício pode também estar pre­sente nas obras de arte: «se obras de arte não planeadas são possíveis, daqui não se infere que n e n h u m a obra pla­neada seja uma obra de ar te .» 1 7 N a verdade, especula u m pouco mais sobre isto:

[...] poderá muito bem ser verdade que as únicas obras de arte que podem ser completamente feitas sem um plano sejam triviais, e que as maiores e mais sérias contêm sempre um elemento de planificação e logo um elemento de ofício. 1 8

Esta última c i tação também responde antecipada­mente a uma crítica semelhante feita por Robert W i l k i n -

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son no seu ensaio «Art, E m o t i o n and Expression», onde cataloga todas as seis propriedades do ofício identificadas por C o l l i n g w o o d e afirma: «Collingwood nega que qual ­quer destas seis propriedades possa ser a t r ibuto da verda­deira a r t e . » 1 9 E c o n t i n u a af i rmando que C o l l i n g w o o d é

[...] obrigado a negar que um artista possa distinguir o objectivo (ou fim) dos meios usados para o alcan­çar; ou que a execução do plano da obra de arte possa distinguir-se do próprio plano. 2 0

Tais interpretações enganadoras das ideias de C o l ­l i n g w o o d sobre a relação entre arte e ofício são comuns. E, para ser justo c o m Sheppard e W i l k i n s o n , surgem par­cialmente da falta de clareza de C o l l i n g w o o d e m passa­gens cruciais de The Principies of Art. C o n t u d o , Co l l ing­w o o d enfatiza de facto que, pelo menos e m alguns casos, a produção de uma obra de arte pode não envolver o t ipo de planeamento consciente típico do ofício:

A perícia do artífice é o seu conhecimento dos meios necessários para realizar um dado f im e o seu domí­nio dos mesmos. U m marceneiro que faz uma mesa mostra a sua perícia ao saber que materiais e ferra­mentas são necessários para a fazer e ao ser capaz de os usar de forma a produzir a mesa exactamente de acordo com as especificações. 2 1

Criar u m a obra de arte n ã o é sempre assim. É u m erro abordar a criação artística, como a teoria técnica o

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faz, como se fosse necessariamente «A descoberta cons­ciente dos meios para alcançar u m objectivo consciente o u , por outras palavras, t é c n i c a . » 2 2

Este r e c o n h e c i m e n t o do papel desempenhado por elementos inconscientes, o u talvez pré-conscientes , e o papel relat ivamente menor que a planificação consciente pode desempenhar na produção de uma obra de arte joga b e m c o m a f o r m a como mui tos artistas têm descrito o acto cr iat ivo. O p i n t o r Francis Bacon, por exemplo, n u m a entrevista a D a v i d Sylvester, c lar i f i cou a relação entre aquilo a que chama «intenção» e «surpresa»: (ver gravu­ras 6 e 7)

DS Ora, é claro que em qualquer arte há uma mistura de intenção e daquilo que apanha o artista de surpresa.

FB Sim. Sem a intenção, nem sequer começará. DS O que parece estar a dizer é que, no seu caso pessoal,

a surpresa toma conta da intenção desde muito cedo.

FB Repare, temos uma intenção mas aquilo que de facto acontece dá-se durante o trabalho — por isso é tão difícil falar disto —, de facto surge durante o trabalho. E a forma como se dá tem realmente a ver com as coisas que acontecem. Durante o trabalho estamos mesmo a seguir esta espécie de nuvem da sensação em nós próprios, mas na verdade não sa­bemos o que é. E é o chamado instinto. E o nosso instinto, esteja certo ou errado, fixa-se em certas coisas que aconteceram durante a actividade de aplicar a tinta à tela. 2 3

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Bacon também ident i f i ca a autocrí t ica consciente como o u t r o e lemento i m p o r t a n t e do processo cr ia t ivo , mas o que enfatiza são as contribuições não planeadas e inconscientes do processo. C o m o C o l l i n g w o o d , Bacon t e m relutância em explicar o processo cr ia t ivo como algo que satisfaça uma intenção claramente formulada. Os co­mentários da escultora A n a M a r i a Pacheco relativamente à sua abordagem da escultura e m madeira vão na mesma l i n h a da distinção de C o l l i n g w o o d entre arte e ofício:

Obviamente que sei qual é a estrutura da composi­ção, mas não sei como vai evoluir. E por isso que não faço modelos, porque de outro modo seria apenas um design. Estaríamos a lidar com aquilo que sabe­mos. Nas artes visuais temos de lidar com o que não sabemos.24

Tanto para Bacon como para Pacheco, é o próprio processo que clarifica a intenção inicialmente vaga. Como diz Co l l ingwood: «O verdadeiro artista é uma pessoa que, lu tando com o problema de expressar uma certa emoção, diz: 'Quero tornar isto c laro . '» 2 5 H á u m elemento de pla­nificação à medida que se produz a obra, de reacção ao aleatório — ou, pelo menos, a aspectos que não f o r a m conscientemente escolhidos. E ao passo que u m certo nível de perícia é necessário, a perícia só por si não é sufi­ciente para fazer de uma tela uma verdadeira obra de arte.

A questão mantém-se , c o n t u d o : o que pensa C o l ­l i n g w o o d que é a verdadeira arte? È claro que não é o mesmo que o ofício, não é o p r o d u t o de técnicas usadas

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para alcançar fins preconcebidos, ou , pelo menos, não o é necessariamente. A sua resposta é simples: a verdadeira arte é a expressão imaginat iva da emoção. Por «expres­são» C o l l i n g w o o d quer dizer algo bastante específico — não uma irrupção o u uma manifestação involuntária da emoção, n e m u m despertar deliberado da emoção, mas antes a clarificação de u m sentimento in ic ia lmente vago que através da sua expressão se torna claro. O processo de criar uma obra de arte é u m ref inamento desta emoção e ao mesmo tempo uma maneira de o artista ganhar uma espécie de conhec imento de si precisamente através da clarificação daquilo que sente:

Até um homem ter expresso a sua emoção não sabe ainda de que emoção se trata. O acto de exprimi-la é assim uma exploração das suas próprias emoções. Ele está a tentar descobrir o que são estas emoções. 2 6

Tal pode parece implausível: como poderemos nós, por exemplo, não ter consciência de que nos sentimos tristes? C o n t u d o , de acordo c o m a teoria de Col l ingwood, o processo de explorar a natureza das emoções envolve a passagem de uma consciência m u i t o geral de tristeza para uma compreensão e expressão imaginativa precisa do t ipo singular de tristeza que o artista sente:

Quando se diz que um homem exprime emoção, o que está a dizer-se resume-se ao seguinte. Primeiro, o homem começa por ter consciência de ter uma emoção, mas não de que emoção se trata. Tudo

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aquilo de que tem consciência é de uma perturbação ou agitação, que sente dentro de si, mas cuja natu­reza desconhece. Enquanto permanece neste estado, tudo o que pode dizer sobre a sua emoção é «Sinto... não sei o que sinto.» 2 7

A expressão bem sucedida de uma emoção permite ao observador o u à audiência ganhar consciência dela, exactamente como o processo de criação artística isola a natureza dessa emoção particular para a pessoa que dela t e m experiência e que a expressa:

Uma pessoa que expressa algo ganha assim consciên­cia do que está a expressar, e permite aos outros ga­nharem consciência da emoção que há em si e neles.28

O observador deve expressar emoções, diz C o l l i n g ­w o o d , ta l como o artista, e torna-se assim u m artista no decorrer do próprio processo de apreciar a arte. O artista mostra aos observadores da obra de arte como expressar a emoção part icular que se encontra na obra. O valor da arte tanto para o criador como para os consumidores en-contra-se na sua capacidade para clarificar e i n d i v i d u a l i ­zar emoções específicas. Q u a n d o u m observador sensível olha, por exemplo, para uma p i n t u r a de V a n G o g h de u m par de botas velhas (ver gravura 8) , a emoção que sente irá, idealmente, assemelhar-se à de V a n Gogh:

Esta experiência do espectador não repete a expe­riência comparativamente pobre da pessoa que olha

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apenas para o que é representado; repete a expe­riência mais rica e muitíssimo organizada da pessoa que não apenas olhou para a representação mas que também a p i n t o u . 2 9

A teoria posit iva de C o l l i n g w o o d da verdadeira arte pode ser m e l h o r apreciada p o n d o - a e m contraste c o m dois tipos de actividade que relegou para a categoria da «chamada arte»: arte mágica e arte de diversão. Para C o l ­l i n g w o o d , t a n t o a arte como magia, como a arte como diversão deveriam ser correctamente classificadas como formas de ofício, e não como uma forma de verdadeira arte. São ambas abrangidas pela teoria técn ica da arte. Ambas t r a t a m a arte como algo in t imamente relacionado c o m as emoções, mas c o m o seu despertar e não c o m a sua expressão imaginat iva . «Arte como magia» é o nome dado por C o l l i n g w o o d às obras que são meios para o f i m previamente concebido de despertar emoções part icula­res, como nos ri tuais . C o l l i n g w o o d não entende o termo «magia» como pejorat ivo: a magia é u m meio para o f i m de despertar emoções que estão «focalizadas e cristaliza­das, consolidadas em agentes eficazes na v ida prá t i ca .» 3 0

Estas emoções não são libertadas através da magia, quer esta tome a forma de uma dança, de uma canção o u de uma p i n t u r a ; antes são canalizadas para a v ida prática da sociedade. C o l l i n g w o o d t e m em mente os rituais «mági­cos» das outras sociedades, mas também aqueles objectos e actividades que têm u m papel análogo na sua sociedade. Assim, uma canção patriótica, como «Rule Britannia», é uma obra de arte mágica no sentido de Col l ingwood, uma

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vez que o seu object ivo é despertar tipos particulares de sentimentos patrióticos que p o d e m depois ser orientados para agir. O ânimo exaltado pelo h i n o nac iona l e n t u ­siasma o o u v i n t e , fazendo-o realizar actos nobres pela mãe-pátria. E m tais casos, o efeito desejado da música não é ca tár t i co . Idea lmente , as emoções são dirigidas para acções socialmente apropriadas.

A arte mágica contrasta c o m a arte de diversão o u entre tenimento . Também aqui a arte evoca emoções par­ticulares. C o n t u d o , nestes casos, o descarregar de emo­ções é u m f i m e m si:

A magia é útil, no sentido em que a emoção que des­perta tem uma função prática nos afazeres de todos os dias; a diversão não é útil mas apenas aprazível porque há uma divisória impermeável entre o seu mundo e o mundo dos afazeres diários. As emoções geradas pela diversão percorrem o seu caminho neste compartimento impermeável. 3 1

A arte mágica t e m uma função; é «utilitária» nesse sentido. A arte de diversão é, e m contrapart ida, «hedo­nista»; não t e m qualquer uso, à parte gerar u m senti­m e n t o aprazível:

É tão habilmente construída como uma obra de engenharia, tão habilmente composta como um frasco de remédios, para produzir um efeito deter­minado e previamente concebido, a evocação de um certo tipo de emoção num certo tipo de audiência;

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e para libertar esta emoção dentro dos limites de uma situação de faz-de-conta. 3 2

Se tomar u m comprimido despertasse o mesmo efeito previamente concebido da obra de arte de diversão, então o c o m p r i m i d o serviria o object ivo tão b e m quanto esta. C o l l i n g w o o d classificaria sem dúvida a maioria dos filmes de A l f r e d H i t c h c o c k como arte de diversão, e não como verdadeira arte. H i t c h c o c k t i n h a inte ira consciência dos efeitos prováveis de diferentes dispositivos cinematográ­ficos nas emoções de uma audiência e manipulava-os de acordo c o m os fins desejados. Este era muitas vezes o seu objectivo primário. N a famosa cena do chuveiro e m Psico (ver gravura 9) , por exemplo, no qual uma m u l h e r é es­faqueada até à morte por u m louco, todos os elementos da montagem, da banda sonora e dos ângulos de câmara são calculados para despertar horror — e desperta. A avalia­ção que o próprio H i t c h c o c k faz do f i lme é reveladora:

A minha maior satisfação é que o filme teve um efeito nas audiências e eu acho isso muito impor­tante. Não me interessa o tema; não me interessa a actuação; mas interessa-me a película e a fotografia e a banda sonora e todos aqueles ingredientes téc­nicos que fizeram a audiência gritar. Acho tremen­damente satisfatório para nós sermos capazes de usar a arte cinematográfica para alcançar algo como uma emoção em massa. E com Psico alcançámo-la sem dúvida. Não foi uma mensagem que agitou as au­diências, nem foi uma grande actuação ou o prazer

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retirado da história. A audiência foi abalada pelo puro f i lme. 3 3

Esta passagem deixa claro que a intenção de H i t c h ­cock, pelo menos neste f i lme, era despertar emoções par­ticulares na audiência, não a clarificação ou a expressão das suas próprias emoções. Tal arte de entretenimento tem o seu lugar, dir ia Col l ingwood, mas não é verdadeira arte. E interessante fazer notar neste contexto que H i t c h c o c k pensava que fazia o mesmo t ipo de coisa que Shakespeare, na medida e m que ambos planeavam obras para conseguir reacções das suas audiências. 3 4 A s peças de Shakespeare, o u pelo menos algumas, aparecem de certo m o d o sur­preendentemente incluídas por Col l ingwood na sua cate­goria de «arte de diversão», com base n o facto de terem sido planeadas para agradar a uma audiência isabelina. 3 5

D e acordo c o m C o l l i n g w o o d , a arte de e n t r e t e n i ­mento traz consigo sérios perigos: o seu predomínio n u m a sociedade é u m sintoma de decadência m o r a l :

A diversão torna-se um perigo para a vida prática quando o débito que impõe nas reservas de energia é demasiado alto para poder ser pago no curso normal da vida. Quando alcança um ponto crítico, a vida prática ou a vida «real», fica emocionalmente falida; um estado de coisas que descrevemos ao falar da sua monotonia intolerável ou chamando-lhe uma escravidão. Instalou-se uma doença moral, cujos sin­tomas são uma ânsia constante de diversão e uma incapacidade para nos interessarmos pelos assuntos

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da vida do dia-a-dia, pelo trabalho necessário para o sustento e pela rotina social. Uma pessoa para quem a doença se tornou crónica tem a convicção mais ou menos instalada de que a diversão é a única coisa que dá valor à vida. Uma sociedade na qual a doença é endémica é aquela em que a maioria das pessoas sente tal convicção durante a maior parte do tempo. 3 6

C o l l i n g w o o d pensava que a sua própria sociedade estava a ser negativamente arrastada pela arte de diver­são, m u i t a da qual disseminada pelo cinema e pela rádio. Assim, a definição de arte para ele não era u m enigma ló­gico para ser resolvido como quem resolve as palavras cru­zadas. A o traçar a distinção entre a verdadeira arte e a chamada arte, esperava resistir desse m o d o ao arrasta­m e n t o para a consciência corrupta que pensava ser uma característica da sua era.

H á pelo menos dois elementos centrais e m The Prin­cipies of Art: a defesa das teorias expressionistas e idealis­tas da arte. C o l l i n g w o o d é u m expressionista na medida em que define a arte como a expressão imaginat iva das emoções ; ao mesmo tempo é u m idealista uma vez que e m momentos cruciais do l i v r o afirma que u m a obra de arte não precisa de estar incorporada n u m mater ia l par­t i cular ; pode estar puramente na mente do artista. Por exemplo, escreve C o l l i n g w o o d :

Uma obra de arte não precisa de ser aquilo a que chamamos uma coisa real. Pode ser aquilo a que

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chamamos uma coisa imaginária. Uma perturba­ção, ou um incómodo, ou uma marinha, ou outra coisa do género, não é de todo em todo criada até surgir como algo que tem o seu lugar no mundo real. Mas uma obra de arte pode ser completa­mente criada como algo cujo único lugar é na mente do artista. 3 7

A sua ideia aqui parece ser que u m a obra de arte n ã o precisa de ser tangível . Pode exist ir m e r a m e n t e como u m a ideia, na mente do artista. T i p i c a m e n t e , os artistas fazem de facto objectos q u a n d o e x p r i m e m as suas emoções art is t icamente . O seu e n v o l v i m e n t o c o m os meios — seja t i n t a , barro ou o u t r o m a t e r i a l — pode fazer parte do processo. Mas estes objectos são sempre simplesmente os meios através dos quais os observado­res p o d e m c o n s t r u i r o t raba lho por si próprios na sua própria m e n t e . A verdadeira obra existe na f o r m a de ideias na mente do seu criador, e na mente de q u e m está a apreciar a obra.

Para C o l l i n g w o o d , a apreciação da arte envolve a imaginação: «Uma verdadeira obra de arte é uma act iv i ­dade tota l que a pessoa que dela desfruta apreende ou tem dela c o n s c i ê n c i a pelo uso da sua i m a g i n a ç ã o . » 3 8 Esta act ividade imaginat iva não é, n o caso das artes visuais, somente visual — n e m é de todo e m t o d o especifica­mente visual , de acordo c o m a teoria de C o l l i n g w o o d . Neste aspecto, aceita a posição de Bernard Berenson de que os «valores tácteis» devem ser centrais à nossa expe­riência da p i n t u r a . Estes são as sensações imaginadas sus-

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citadas pela experiência da distância, do espaço, da massa,

e t c , n o seio das pinturas :

[...] aquilo que obtemos ao olhar para uma imagem não é apenas a experiência de ver, ou mesmo de parcialmente ver e parcialmente imaginar certos objectos visíveis; é também, e na opinião do Sr. Be-renson mais importante ainda, a experiência imagi­nária de certos movimentos musculares complica­dos. 3 9

O observador da p i n t u r a Lac dAnnecy, de Cézanne, iria, de acordo c o m a perspectiva de Col l ingwood, ter uma experiência imaginária de m o v i m e n t o ao longo da paisa­gem, presumivelmente até mesmo a de atravessar o lago representado. Esta experiência estaria idealmente pró­x ima da experiência do artista enquanto p in tava a obra. A q u i , o que o observador desfruta apropriadamente não é a apreciação sensível directa dos azuis e verdes e das for­mas representadas, mas sim uma experiência táctil . A ex­periência do observador é o que é desfrutado, e não ape­nas o objecto físico, a p i n t u r a na galeria:

[...] o valor de qualquer obra de arte para uma pes­soa apropriadamente qualificada para apreciar o seu valor não é o encanto dos elementos sensíveis em que a obra de arte consiste de facto, mas o encanto da experiência imaginativa que tais elementos sen­síveis nela despertam. As obras de arte são meros meios para um f im; o f im é esta experiência imagi-

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nativa total que as obras de arte nos permitem des­frutar. 4 0

A influência do filósofo i ta l iano Benedetto Croce (1866-1952) é manifesta ao longo de The Principies of Art. Tanto Croce como Col l ingwood concebiam a arte e m ter­mos de expressão, e e m part icular e m termos de tornar precisos sentimentos imprecisos. A m b o s pensavam que a exteriorização de uma obra não era essencial para a tor­nar uma obra de arte. Também pensavam que a arte era uma l inguagem, entendendo «linguagem» n o seu sentido mais amplo, de m o d o a inc lu i r qualquer actividade cor­poral autoconsciente através da qual se expresse a emo­ção. Escrever e falar não são as únicas formas de linguagem; pintar, dançar o u tocar o v i o l i n o podem ser actividades linguísticas nesta acepção do termo.

Q u e r C o l l i n g w o o d tenha sido o u n ã o completa­mente or ig inal na formulação da sua teoria, o estatuto da mesma deve ser avaliado pela capacidade para resistir à ponderação crítica, e não pela fonte . O facto de muitos artistas compreenderem a sua própria act ividade como expressão de emoções não mostra que a teoria de C o l ­l i n g w o o d é verdadeira. O conhecimento prático de C o l ­l i n g w o o d do que está envolv ido na p i n t u r a confere uma seriedade e, por vezes, uma profundidade aos comentá­rios que faz ao expor a sua teoria. Os artistas podem, con­tudo, estar enganados acerca da natureza da sua ac t iv i ­dade. U m a teoria filosófica deve ser avaliada pelo seu poder expl icat ivo e pelo seu discernimento, mas também pela sua capacidade para resistir a contra-exemplos e a

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tentativas de refutação. Neste aspecto, a teoria de C o l ­l i n g w o o d , como a de Bel l , é vulnerável.

A n o ç ã o de verdadeira arte de C o l l i n g w o o d admite muitas coisas que n ã o são obviamente arte; ao mesmo tempo, exc lu i alguns casos paradigmáticos de arte. I n ­c l u i demasiado p o r q u e parece i m p l i c a r que q u a l q u e r expressão i m a g i n a t i v a de e m o ç ã o irá ser a u t o m a t i c a ­m e n t e qua l i f i cada c o m o obra de arte — u m a posição muitíssimo c o n t r a - i n t u i t i v a . É óbvio que a expressão de uma emoção não precisa de ser uma obra de arte. A ex­pressão de emoções , mesmo n o sentido e m que C o l l i n g ­w o o d usa o t e r m o «expressão», não é cer tamente uma condição suficiente para que algo seja uma obra de arte. Por exemplo , a t ransferência e a contra t rans ferênc ia entre u m psicoterapeuta e o seu cl iente poderia m u i t o b e m ter a forma de u m sent imento vago, quase incons­ciente , aperfe içoado n u m a e m o ç ã o prec isamente ex­pressa; c o n t u d o , poucas pessoas defender iam que é, por isso, uma obra de arte. Talvez, c o n t u d o , na t e rmino log ia de C o l l i n g w o o d , ta l não consista n u m a expressão imagi ­nat iva de emoções. Porém, poder-se-ia fazer uma objecção semelhante a p a r t i r do i n t e r i o r da teor ia de C o l l i n g ­w o o d : a sua descrição do papel apropriado do observa­dor de uma p i n t u r a parece transformar esse observador n u m artista. O observador reexprime a e m o ç ã o que se encontra n o âmago da obra. Se esta for u m a l e i t u r a cor­recta de C o l l i n g w o o d neste aspecto — e a sua teoria é notave lmente escorregadia — então é simplesmente i m -plausível. C o m o T. M . K n o x c o m e n t o u re la t ivamente a C o l l i n g w o o d n u m a peça biográfica: «[. . .] na f i losofia ele

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t i n h a visões, cuja val idade não conseguiu just i f icar aos outros através de argumentos .» 4 1

A o mesmo tempo que a teoria admite demais n o do­mínio da verdadeira arte, exclui muitas obras de arte pa­radigmáticas. U m a aplicação rigorosa dos comentár ios acerca da arte mágica, por exemplo, parece impedir a maior ia das grandes pinturas da R e n a s c e n ç a de serem obras de arte. A função da arte religiosa é «evocar, e cons­tantemente reevocar, certas emoções cuja descarga terá lugar nas actividades da v ida quot idiana.» 4 2 Retábulos e outras pinturas devocionais são criadas como p o n t o de convergência da oração e c o m uma função part icular e m mente . Será que isto significa que, por exemplo, o Díptico de Wilton (c. 1395-99) (ver gravuras 10 e 11) e m exposi­ção na N a t i o n a l Gallery, de Londres, não é b e m uma obra de arte, uma vez que o seu objectivo não era exprimir uma emoção mas antes evocar sentimentos particulares e ser u m suporte n u m r i t u a l de devoção privada? A sua função religiosa f o i provavelmente ampliada pelo uso intel igente de folhas de ouro perfuradas, que acentuam pormenores cruciais quando vista à luz da v e l a . 4 3 A auréola do me­n i n o Jesus, por exemplo, contém por dentro uma coroa de espinhos e quatro pregos, presumivelmente incluídos para evocar emoções acerca do sofr imento posterior de Jesus Cristo e da crucifixão e não para servirem de clar i ­f icação de u m sent imento in ic ia lmente vago do artista.

O u t r a crítica à teoria de C o l l i n g w o o d é que para ele a questão de saber se u m objecto part icular o u actividade é uma obra de arte o u não depende inte i ramente da sua etiologia: a história de como veio a ser o que é. Esta his-

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tória, contudo, pode em alguns casos não ser acessível a qualquer observador v ivo . A escultura do pequeno h o m e m a dançar, descrita por Coll ingwood, poderia igualmente ser uma obra de artesão. A sua observação não nos dirá se fo i ou não feita segundo u m plano prévio. Para Col l ingwood, a questão de saber se algo é ou não uma obra de arte não se responde observando simplesmente a obra. Tem antes de ser respondida através de considerações sobre o estado de espírito do artista. Este aspecto não derrota por completo a teoria; apenas realça uma dificuldade prática quanto à sua aplicação a disputas sobre se uma obra particular merece o u não a designação de verdadeira arte. Mesmo que Col l ing­wood tenha razão acerca do que é a arte, a sua teoria não poderá dar-nos uma maneira de discriminar entre a verda­deira arte e a chamada arte. Tome-se o exemplo do filme de Hi tchcock , Psico, já abordado. O facto de envolver uma competência técnica imensa na planificação e na execução das suas principais cenas não exclui de forma alguma a pos­sibilidade de ser uma obra de arte. Como vimos, a verda­deira arte e o ofício — para Col l ingwood — não são cate­gorias mutuamente exclusivas. O facto de H i t c h c o c k ter escolhido dizer que o sucesso do fi lme assenta na m a n i p u ­lação das emoções das audiências não prova conclusiva­mente que esta seja uma descrição correcta do estado de espírito do realizador. Talvez o f i lme tenha de facto sido criado através de u m processo de refinamento e expressão de uma emoção rudimentar. O problema é que, além da consideração dos indícios inconclusivos fornecidos por u m vis ionamento empenhado do f i lme, não temos qualquer meio óbvio de acesso aos indícios relevantes.

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A teoria de C o l l i n g w o o d , como a de Bel l , é incisiva e m muitos aspectos, mas implausível como resposta à per­gunta geral « O que é a arte?». È o insucesso conspícuo da teorização geral acerca da arte que levou alguns filósofos a declarar que o próprio projecto de tentar encontrar uma definição do termo estava a ser m a l conduzido. A arte é indefinível, defenderam, e é u m erro lógico procurar a sua essência.

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