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PALAVRAS COMPARTILHADAS EXPOSIÇÃO MATERIAL EDUCATIVO 1ª Reimpressão Serviço Social do Comércio Rio de Janeiro, 2010

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Page 1: Exposição Palavras Compartilhadas

PALAVRAS COMPARTILHADASEXPOSIÇÃO

MATERIAL EDUCATIVO

1ª Reimpressão Serviço Social do Comércio

Rio de Janeiro, 2010

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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Presidência do Conselho NacionalAntonio Oliveira SantosDireção-GeralMaron Emile Abi-AbibDivisão Administrativa e FinanceiraJoão Carlos Gomes RoldãoDivisão de Planejamento e DesenvolvimentoÁlvaro de Melo SalmitoDivisão de Programas SociaisNivaldo da Costa PereiraConsultoria da Direção-GeralJuvenal Ferreira Fortes FilhoLuís Fernando de Mello Costa

Exposição

Projeto e CoordenaçãoGerência de Cultura / Divisão de Programas SociaisMarcia Leite

Equipe de Artes PlásticasSandra de Azevedo FernandesLúcia Helena Cardoso de Mattos

Publicação

Curadoria educativaLuiz Guilherme Vergara

Pesquisa de conteúdoRoberta Condeixa

Edição

Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-GeralChristiane Caetano

Assistência editorialRosane Carneiro

Projeto gráficoVinicius Marins

FotosGuarim de Lorena

Revisão de textoMárcio Mará

Produção GráficaCelso Mendonça

SESC. Departamento Nacional. Divisão de Programas Sociais. Gerência de Cultura. Exposição Palavras Compartilhadas: material educativo / SESC, Departamento Nacional, Divisão de Programas Sociais, Gerência de Cultura ; curadoria educativa Luiz Guilherme Vergara ; pesquisa de conteúdo Roberta Condeixa. — Rio de Janeiro : SESC, Departamento Nacional, 2008. 100 p. : il. ; 22 cm, em caixa de 23 x 22 x1 cm.

Exposição Palavras Compartilhadas: material educativo: anexos. 44 p. Bibliografia: p. 43-44. ISBN 978-85-89336-32-1. 1. Ricalde, Rosana. 2. Exposição. 3. Artes plásticas. 4. Material didático. I. Vergara, Luiz Guilherme. II. Condeixa, Roberta. III.Título.

CDD 730

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Exposição

Projeto e CoordenaçãoGerência de Cultura / Divisão de Programas SociaisMarcia Leite

Equipe de Artes PlásticasSandra de Azevedo FernandesLúcia Helena Cardoso de Mattos

Publicação

Curadoria educativaLuiz Guilherme Vergara

Pesquisa de conteúdoRoberta Condeixa

Edição

Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-GeralChristiane Caetano

Assistência editorialRosane Carneiro

Projeto gráficoVinicius Marins

FotosGuarim de Lorena

Revisão de textoMárcio Mará

Produção GráficaCelso Mendonça

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 6

COMPARTILHANDO PALAVRAS UM RETRATO 3X4 DA ARTISTA 13

ENTRE A LITERATURA E A IMAGEM 18

SÉRIE CONTRAPOEMAS 18SÉRIE AUTO-RETRATOS 27SÉRIE PROVÉRBIOS 42

ENTRE A PAISAGEM E A ESCRITA 49

SÉRIE O TEMPO MUDA TUDO 49SÉRIE MARES 62SÉRIE GLOBO 71

CONSTRUÇÕES EM PALAVRAS 79

SÉRIE MANIFESTOS 79

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O SESC COMO DIFUSOR DA CULTURA NACIONAL

A cultura reflete a diversidade das identidades regionais do Brasil. Música, artes cênicas, cinema, artes plásticas e literatura integram o cotidiano dos brasileiros. O SESC garante a democratização do acesso a essas variadas modalidades, nacionalmente, através de projetos como o ArteSESC, difusor das artes plásticas em exposições itinerantes que percorrem o país.

Para a entidade, cultura não significa apenas entretenimento, mas uma nova compre-ensão da realidade. Em sua postura de articulador, o SESC investe tanto no estímulo à produção artístico-cultural, viabilizando espaço e estrutura para o trabalho do artista, como na qualificação do público, e em sua interação com os produtores culturais, por in-termédio de um trabalho educativo que permeia todos os serviços e atividades ofertados pela instituição.

Ao longo do tempo, os projetos do SESC tornaram-se referência, conquistaram credibi-lidade e foram além de seus objetivos iniciais, transformando-se muitas vezes em prin-cipal evento cultural e meio de contato do público com as artes. Esta a contribuição permanente do empresariado, por intermédio do Serviço Social do Comércio, à cultura da sociedade brasileira.

Antonio Oliveira SantosPresidente do Conselho Nacional do SESC

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ARTESESC EM CONExãO COM O CONTEMPORâNEO

O SESC é hoje reconhecido como um dos principais agentes de difusão das Artes Plás-ticas no país. Desde 1981 o ArteSESC realiza mostras itinerantes em centros urbanos e cidades do interior, tornando mais conhecidos os acervos de instituições culturais e a produção de artistas provenientes de várias partes do país, ao exibi-los nas unidades do SESC ou, eventualmente, em espaços da comunidade. Fazem parte do acervo de expo-sições do projeto reproduções de obras de artistas como Portinari e Margareth Mee.

Com tais atividades, o SESC procura estabelecer as condições do diálogo necessário entre artistas plásticos e o público interessado nesse segmento. Atualmente, a progra-mação busca dar visibilidade à produção artística moderna e contemporânea, marcando uma nova fase do projeto.

Ser um artista plástico moderno ou contemporâneo significa estar em conexão com o que acontece em sua época, mostrando em suas obras os avanços das discussões e propos-tas da arte que se manifestam em diferentes modos no mundo. Diante deste cenário, o ArteSESC escolheu para itinerar a partir de 2008 artistas que proporcionam mudanças nas tendências da arte brasileira e retomam uma postura mais crítica e política sobre a realidade cotidiana do país.

No trabalho de Rosana Ricalde, exposto em Palavras Compartilhadas, podem ser desco-bertas novas formas de percepção da linguagem. A escrita, numa perspectiva contemporâ-nea, assume potências inusitadas, trafegando do literário ao visual, através da apropriação da artista sobre textos diversos, poéticos ou teóricos. Ao mesmo tempo em que remete a processos criativos de vanguarda, a partir do século xx, seu processo artístico também evoca tramas universais da escrita, ligadas, por exemplo, à geografia e à história. Palavras Compartilhadas reflete a afinidade do ArteSESC com as novas tendências, favo-recendo a produção artística em suas diferentes linguagens.

Maron Emile Abi-AbibDiretor-Geral do SESC Nacional

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INTRODUÇÃOPALAVRAS E LEITURAS COMPARTILHADAS DA ARTE PARA AS AçõES INTERPRETATIVAS

Ritual de experiências compartilhadas para uma arqueologia da criação

O primeiro olharPercepções intuitivas Percepções metafóricasArqueologia da criação

O trabalho da artista Rosana Ricalde é de tal forma complexo, embora aparentemente singelo, que desafia todos a pensarem como explorá-lo da melhor maneira possível como um legado de práticas artísticas experimentais, ou antimétodos inaugurais da arte, pois não se prestam como receitas para a repetição. Como compartilhar com aqueles que irão cuidar das ações interpretativas, do campo potencial de leituras múltiplas que este con-junto de obras oferece, sem perder sua densidade poética ou o seu valor sistêmico ou po-lissêmico (aquilo que inaugura vários sentidos ao mesmo tempo)? Em outras palavras, se propõe explorar a criação da Rosana como um arqueólogo, descobrindo em cada obra diferentes sistemas de sistemas que conjugam signos com imagens, ações e materiais, conteúdos com objetos, porém todos indissociáveis do que se apresenta como unidade da obra de arte. Assim, um primeiro passo a ser dado é estabelecer algumas premissas e valores que possam mapear este difícil jogo entre arte e aquisição de linguagem, ou seu exercício como expressão inauguradora de estados poéticos. Ao mesmo tempo, se quer oferecer caminhos de leituras para as obras de Rosana que potencializem esta consci-ência poética, ou percepção metafórica, como atributo mais amplo que o legado da arte deixa em cada época para a formação do pensar humano.

Em princípio, este material investe no estudo das obras de Rosana Ricalde como um campo potencial de expansão de horizontes da arte para uma educação poética-artística. Ao mesmo tempo, reconhece que a própria artista, em seu desenvolvimento experimen-tal, também realiza esta ousadia ou aventura humana que faz uso da liberdade entre

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arte e criação (desconstrução) de linguagem. Na mesma medida, os territórios da per-cepção são expandidos pela intervenção artística em novos horizontes da consciência poética no mundo contemporâneo. Este legado de descobertas de territórios comuni-cativos, ou ousadia da imaginação, que só se alcança pelo exercício da liberdade, ele é em si mesmo o princípio fundamental do que se pretende explorar e oferecer como foco de uma arqueologia da criação artística. Aqui se oferece um mapa para uma visita ao imaginário da Rosana, para se navegar entre “palavras e leituras compartilhadas”, entre arte e a materialização da consciência poética nas coisas do mundo. A aventura artística de Rosana é extremamente contemporânea, ligada às vanguardas conceituais, à poesia concreta, ao Dadaísmo, que reinventaram a compreensão da arte no sécu-lo xx. Mas é também universal, pois se inspira em todas as geografias do imaginário humano. Ao se propor, metaforicamente e literalmente, ‘roteiros de leituras e viagens’ para essa mostra itinerante, se quer inspirar, alimentar e fortalecer esta dimensão am-bivalente entre a percepção imaginativa das obras e os instrumentos pelos quais se dá a criação artística, da potência do estranhamento à curiosidade e à conquista de no-vos sentidos, admiração. Ao se explorar em cada obra a arqueologia deste impulso hu-mano de imaginar novas escritas poéticas, e daí inventar novos meios de expressão, buscou-se inventariar os diferentes jogos de metáforas que se intercruzam, ligando si-multaneamente saberes universais aos fazeres populares, literatura à história da arte, ao mesmo tempo em que se atualizam as práticas artísticas conceituais pertencentes a uma sofisticada linhagem de artistas do século xx. Esta arqueologia é ampliada ao se alimentar da própria fala da artista sobre a sua obra e vida. As palavras da artista se cruzam com diferentes discursos críticos realizados por pesquisadores que acompa-nham a sua trajetória, tais como Guilherme Vergara Bueno, Luciano Vinhosa e Paulo Reis. • Pensar sistêmico – percepção metafórica

Abordagens sistêmicas: do objeto aos fenômenos – sistemas Edgard Morin

“(...) o sistema tomou o lugar do objeto simples e substancial e ele é rebelde à redução em seus elementos; o encadeamento de sistemas rompe com a idéia de objeto fechado e auto-suficiente. Sempre se trataram os sistemas como objetos; trata-se de agora em diante de conceber os objetos como sistemas... O fenômeno sistema é hoje presente em tudo (...)”

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Alguns conceitos sobre metáfora e as estruturas cognitivas estarão sendo mais enfati-zados ao longo deste material, porque, enquanto atributos da percepção e recepção de uma obra de arte, se inspiram na sua dimensão sistêmica e polifônica. O que se deseja é potencializar a criação artística como campo de exercícios poéticos, daí a exploração de cada obra, que se inaugura pelo primeiro olhar, se desdobra pela percepção e recepção dos seus sistemas de metáforas, e que somente alcança pela intuição a própria arqueo-logia interna e invisível da criação. Por outro lado, sua recepção exige de cada leitor, es-pectador, o que equivale ao espelhamento da criação como percepção metafórica, sem a qual não se inaugura a fruição ou revelação de sentidos.

Cada obra então é apresentada como um sistema de expressões ou sinfonia de impulsos e estímulos, através dos quais a própria artista revisita os poetas de sua admiração. É pre-ciso formar um pensar sensível e sistêmico para se amplificar ainda mais a potência múl-tipla de sentidos (polissêmica), ou o que se aponta como “polifonia” de toda experiência artística aberta. Por outro lado, cada objeto artístico, para ser vivido, antes deve ser visto como uma unidade orgânica, que necessita do leitor-espectador instrumentos interpreta-tivos capazes de promover uma percepção também imaginativa ou intuitiva da obra, que vai além das explicações analíticas ou informações e juízos históricos. Esta atitude que o trabalho de Rosana exige se apresenta aqui como percepção metafórica, ou consciência poética, que busca sempre inaugurar significados e não se fixar em explicações lógicas de causa e efeito para o universo da criação artística.

O que se propõe é potencializar ainda mais os elos entre a imaginação poética, percep-ções metafóricas e a aquisição de conhecimento como bases deste jogo compartilhado entre Rosana e a complexidade do mundo contemporâneo. Edgard Morin contribui in-diretamente para essa nova ordem do conhecimento e imaginação que se manifesta na experiência artística. Morin toma para sua crítica aos métodos científicos de estudo dos objetos de produção do conhecimento o envolvimento mútuo entre o sujeito observa-dor (do conhecimento) e o objeto observado. Morin invoca o legado das leis da ciência quântica, onde “o mundo do observador é mutuamente afetado e afeta o contexto e comportamento dos objetos sensíveis ao nosso redor, como parte de um único sistema de sistemas”. Assim, Morin aponta para o pensar sistêmico como uma importante expan-são das teorias cognitivas. Isto é, Morin invoca uma relação dialogal, onde observador e mundo observado são parte de um mesmo sistema fenomênico, onde mutuamente estes

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se fazem na mesma medida em que se descobrem. Mais ainda, defende este mundo em análise não como objeto, mas como um sistema de sistemas, onde suas partes e seus componentes são indissociáveis um do outro. Separados, cada componente de um sistema, assim como cada instrumento dentro de uma orquestra, perde a sua força relacional. É com esta abordagem sistêmica que se buscará um percurso de instigações e atitudes, palavras e leituras compartilhadas para as obras de Rosana, do primeiro olhar às revelações sucessivas de camadas de sentidos de uma criação. Cada leitura deve ser apresentada como uma sinfonia, ou polifonia, um acontecimento único de muitas faces, composto por sistemas múltiplos de saberes. Cada obra não é uma soma aritmética das partes, dos temas, materiais, ou conteúdos, mas um campo relacional de sinergias e ressonâncias amplificadoras de valores.

O princípio da percepção metafórica que se ativa diante da obra de arte, tal como o ato criativo do artista, rejeita os significados naturais ou empíricos de cada componente da obra, sobrepondo a eles um valor subjetivo, projetivo ou ambíguo. Esta ambiguidade de sentidos gera multiplicidade de leituras, que não se dão gratuitamente para um indivíduo totalmente preso à razão científica ou prática, mas sim para as mentes que se abrem para os exercícios da intuição, da percepção imaginativa ou metafórica. Não seria esta intuição, esta unidade entre percepção e imaginação poética, o instrumento e a bússola para a “navegação noturna” que melhor se aproximará dos sentidos internos à arte de Rosana? Esta percepção intuitiva não tem medo de navegar pelas estrelas. Este é o princípio da percepção metafórica. Com a visão intuitiva nasce o acontecimento artístico para a vida. A arte é líquida como um universo em criação que inaugura sujeitos para o “oceano”, não para a cruel limitação ou aceitação do mundo restrito à “terra firme”, sem sonhos diurnos, dominados pelo primado daquilo que já é conhecido e cercado pelo medo do inusitado, sem ter vontade de nadar. A experiência artística tem que ser inauguradora, desta forma seu princípio é esperança, como tão bem definiu Ernst Bloch.

• Princípio esperança – função utópica da arte

Talvez não seja preciso lembrar aos artistas seu compromisso e direito ao exercício da liberdade de criação, como manifestou Mario Pedrosa. Mas, ainda pouco investigado é o universo paralelo que se faz da criação à recepção ou cognição artística. Qual é a força que toma a inauguração de um discurso poético no seu ato de leitura e construção partici-

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pativa de sentidos? Não estaria nesse campo dialogal uma revelação, uma esperança por outro devaneio, o de inspirar ou despertar novas vontades poéticas de se ressignificar as palavras e as ordens das coisas dadas do mundo? Este não seria um princípio esperança que Rosana também deixa passar em suas obras, como o náufrago que joga mensagens em garrafas no oceano (ver obra O tempo muda tudo)? Poucos conheceram o legado e o esforço filosófico e histórico deixado por Ernst Bloch para defender uma função utópica para a arte, mesmo que enfrentando duas guerras mundiais no século xx. Sua visão para a arte, assim como para todos os frutos da imaginação humana, as heranças visionárias dos poetas, a sabedoria heroica das lendas e contos de fadas, em todos esses tesouros, sustentava a presença de um princípio esperança, ou utopia concreta, que se faz valer como dimensão antecipadora ou anunciadora de futuros pela arte. Esta força de passa-gem entre o conhecido e o inaugural (não conhecido) realiza a função utópica da arte para Bloch – trazer ao concreto uma forma de visão que já não pertence apenas ao futuro, mas que inaugura sua possibilidade de realização no aqui e agora.

Mas o acesso às obras de arte, compartilhar este universo de criação, também é uma utopia. Acessar este campo de inauguração de valores pela produção artística ainda é obscuro para muitos, principalmente nas diferentes regiões remotas da geografia conti-nental e social brasileira. Ao se promover a itinerância dessas obras pelo Brasil, cabe bem lembrar que toda obra de arte encapsula sua própria arqueologia futura – que é também sinônimo de esperança, o último resíduo da caixa de Pandora. Mas que tipo de espe-rança e utopia se encerra e se multiplica em cada manifestação e experiência artística? Principalmente ampliar sentidos de vida e inaugurar vontades e consciências criadoras-poéticas poderia ser respondido como formas de esperança.

Este princípio esperança de Ernst Bloch precisa ser entendido com mais clareza, talvez com o mesmo pragmatismo da Pedagogia da Esperança de Paulo Freire. Cada mani-festação artística se associa à aquisição e à manifestação de uma linguagem-leitura que não reproduz o mundo, não o repete como uma imitação ou simulacro, mas o funda, o inaugura segundo uma vivência relacional.

A trajetória da arte na qual Rosana se insere, principalmente a partir do século xx, parte do fim da representação na pintura. Rosana está totalmente liberada desta herança da pintura como imitação, sua arte atinge um estado de desenvolvimento cognitivo equi-

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valente ao daqueles que usam livremente os instrumentos geradores de linguagem-ex-pressão. Os objetos comuns apropriados do cotidiano, tais como o globo, as garrafas de desenhos com areia, as fitas de etiquetas, se tornam comunicativos de novos sentidos. Os fazeres artísticos ou estratégias se tornam pura linguagem em seu mais elevado e genuíno estágio, tal como comprova o desenvolvimento cognitivo que Piaget tão bem elaborou. Neste estágio também explorado pelas vanguardas do século xx, a arte se manifesta como um sistema formal-operacional regido por ordens lógicas dedutivas, prin-cipalmente proposicionais, mesmo que seja tão ousadamente inovador. A arte como uma linguagem especial é dialogal, se exerce como uma entidade relacional entre indivíduos e grupos. Embora independente em si das outras lógicas que regem o mundo prático, pela conquista da sua autonomia não mais como imitação da realidade, vem a ser parte desta comunicação antecipatória ou intuitiva entre realidades – imaginário e concreto.

Rosana Ricalde se insere nesta condição de um pensar metafórico antes de mais nada proposicional. Seu trabalho atua como os “espelhos cegos dos auto-retratos”, onde exige a multiplicação de estados inventivos para se ultrapassar as máscaras das aparências; é proposicional tal como os Provérbios, que oferece lentes e filtros para leituras do invisível. Em todo pensar artístico de Rosana existe uma proposição que pode ser equivalente ao princípio esperança latente, seja de se compartilhar exercícios de liberdade com os quais se destinguem os artistas e a passagem das épocas. Ernst Bloch também chamava a criação artística como uma dimensão do sonhar acordado, como um estado de labor vi-sionário que busca completar o presente, suas imperfeições ou dobraduras da realidade empírica que apenas pela arte se tornam visíveis ou intuídas. Como percorrer uma mostra de arte sem estes instrumentos da percepção metafórica da consciência poética?

• A criação artística como inaugural da história

Toda obra de arte, todo ato criativo, é inaugural de muitos saberes, que se passam de geração para geração, de século para séculos à frente, formando a história e a ciência. Assim Giambattista Vico reviu a trajetória do poeta grego Homero, inaugurando a lingua-gem, que se faz como fundações ou instrumento para se erguer a história e a filosofia da grande civilização grega. Toda experiência artística reproduz essa navegação “cega” pelos mares da criação que inspiraram Vico na proposição da Ciência Nova, já no século xVIII.

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Vico, assim como Bloch, reconhecia que a visão do artista sobre o mundo não é objetiva, não é passiva. Sua percepção é metafórica, projetiva, tal como Homero, o cego poeta, enxergando além do mundo visível, conta histórias e poesias que inventam mundos. O poeta cego é, antes de mais nada, um propositor da percepção visionária, o construtor de metáforas, que, contrariando o uso natural e lógico do senso comum empírico, sacrifica a acomodação do que já é sabido e nominado para a ordem das coisas funcionais no mundo e reinventa ordens para novos mundos. Percebe-se claramente este exercício do pensar, sentir e inventar metafórico em cada obra de Rosana. Como o poeta Manoel de Barros, Rosana é visionária nas pequenas coisas do cotidiano, e as usa para invadi-las com saberes do imaginário universal. Une mundos distantes entre si, pelo exercício ilimi-tado desta percepção e apropriação metafórica, reinvenção e ressignificação dos fazeres da linguagem. Todas essas práticas reunidas comporiam os atributos do que os gregos e Vico defendiam como princípios de uma nova ciência humanista, a poiesis. O olhar enge-nhoso (ingenius) do humanista Vico inaugura uma educação para uma formação humana libertadora – que ainda hoje precisa ser elaborada.

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COMPARTILHANDO PALAVRAS COM ROSANA UM RETRATO 3x4 DA ARTISTA Rosana Ricalde (Niterói – RJ, 1971) Rosana, desde a infância, tinha interesse pela escrita. Passar o caderno a limpo era um grande prazer, gostava muito da aula de uma professora que distribuía um papelzinho com mensagens e dava um nó. A poética de Rosana desencadeia-se com a escrita e a imagem, nas geografias particulares e universais em processos não lineares, entre as palavras e o desdobrar-se na linguagem visual, nas paisagens de areia que falam de tempos e tudo mudam, e nos retratos-imagens inexistentes.

Utiliza-se para escrever de materiais considerados obsoletos, como a fita rotuladora, e cria com estes meios uma visualidade, onde o processo de fazer é primordial à obra, assim como a escolha minuciosa dos objetos com que vai trabalhar.

Gradua-se em Gravura na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense.

Guilherme Vergara – Rosana, o que queremos fazer é uma arqueologia da formação do processo cria-tivo, uma experimentação, de o artista se reconhe-cer e reconhecer a sua obra como uma gramática, da relação com a construção de uma linguagem. Vamos começar com essas conversas?

Rosana Ricalde – O que eu posso fazer é ir pensando sobre cada trabalho, na verdade um trabalho vai levando ao outro, às vezes você faz um, e dois anos depois aquilo gera outro... Demora, não existe uma sequência na minha produção: como eu estou fazendo vários

Linguagem É qualquer e todo sistema de signos que serve de meio de comunicação de ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc., podendo ser percebida pelos diversos órgãos dos sentidos, o que leva a distinguirem-se várias espécies de linguagem: visual, auditiva, tátil etc., ou, ainda, outras mais complexas, constituídas, ao mesmo tempo, de elementos diversos.

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trabalhos ao mesmo tempo, aquilo parece meio desencontrado, mas depois você olha e percebe que uma coisa levou a outra e que tem uma sequência lógica.

Sandra Fernandes – Mas como foi o começo de toda essa história?

Rosana Ricalde – Eu era muito pequena, desde criança você tem suas afinidades, mas saber qual a profissão que se irá seguir é tão difícil, ainda mais hoje em dia, que são milhares de profissões. Surgem profissões que você não tem ideia. Mas eu sempre tive interesse por escrita; quando eu era criança fazia uns livrinhos e obrigava as pessoas a comprarem aquilo. Também passava caderno a limpo, era uma mania: eu comprava o caderno, tinha dois, chegava em casa e passava tudo aquilo, era um prazer de ver a escrita, a forma, mas quando isso foi pro trabalho...

O primeiro trabalho que eu considero importante foi um que eu apresentei em Niterói, na sala Paschoal Carlos Magno – um dicionário de verbos. Datilografei todos os verbos da língua portuguesa e coloquei em uns painéis com uma etiqueta. Achei muito bonito, era com máquina de escrever. O mais curioso é que levei um dicionário só de verbos, com 14 ou 17 mil verbos... Até queria refazer esse trabalho, mas ainda não tive coragem. Foi muito engraçado, pois há verbos que a gente nem sabe que existem, que só pesquisando descobri. As pessoas pegavam o dicionário, achavam aqueles

Arabescos Um arabesco é um adorno com formas de fo-lhas, frutos etc., que aparece muito nas cons-truções árabes. Mas podemos dizer também que o arabesco é muito mais antigo até que os árabes; aparece em monumentos egípcios e assírios, também em alguns etruscos, gregos e romanos; foi muito utilizado na Idade Média e no Renascimento; exerceu profunda influência nos povos da Península Ibérica e dali, e tam-bém com os portugueses, veio para o Brasil.

AlcorãoLivro sagrado do Islã. Descreve as origens do universo, do homem e das relações entre si e o Criador. Define leis para a sociedade, para a moral, economia e muitos outros assuntos. Foi escrito com o intuito de ser recitado e me-morizado. Os muçulmanos acreditam que o Alcorão é a palavra literal de Deus (Alá) revela-da ao profeta Muhammad (Maomé) ao longo de um período de 22 anos. A palavra alcorão deriva do verbo árabe que significa ler ou re-citar; Alcorão é, portanto, uma "recitação" ou algo que deve ser recitado.

GênesisPrimeiro livro da Bíblia. Faz parte do Penta-teuco, os cinco primeiros livros bíblicos, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés. Gênesis significa “origem” ou “nascimento”. Narra acontecimentos, desde a criação do mundo, na perspectiva judaica, passando pelos patriarcas hebreus, até a fixação deste povo no Egito.

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verbos e riam. E muita gente falava em voz alta, então o trabalho ganhava uma outra potência, além do que estava visível: ele tinha uma vida, que era o som das pessoas lendo e procurando o sentido das palavras. Esse trabalho eu considero um marco, onde a coisa ficou mais consciente, dessa confluência de informações, da minha formação, da história da arte, é onde tudo se mistura. Tive consciência de que aquilo ali é um trabalho, de onde aquilo veio. Guilherme Vergara – Seu trabalho remete a um saber universal, da Bíblia... Também às escri-tas islâmicas e, no esconder dos arabescos, onde há uma proibição da imagem, se escreve, e na verdade acho que tem a criação com a palavra. Lembro da imagem daquela leitura que meninos fazem do Alcorão, eles ficam repetindo, na verdade entram em um transe com a palavra. Creio que aquilo ali contém uma ideia de a palavra atingir uma outra dimensão.

Roberta Condeixa – Não só no Alcorão, se a gente pensar hoje nas Igrejas Pentecostais, que cresceram muito...

Sandra Fernandes – Nos índios...

Rosana Ricalde – A Bíblia – primeiro momento que se coloca a palavra gerando – eu sempre estou pesquisando. É como se existisse um passo além para descobrir o potencial da palavra, há várias teorias sobre esse potencial. É muito bonita a ideia da palavra como uma semente que gera coisas, do poder da palavra, tanto do discurso como do discurso que você tem para si mesmo e desse primeiro momento do universo, “E fez-se a luz” [uma menção ao Gênesis].

Guilherme Vergara – Aí a gente volta a um outro trabalho seu, que é o Persisto [trabalho em que a artista vai escrevendo a palavra “persisto” até terminar o lápis]. Ele possui o conceito de mantra, o som, a palavra e a escrita se juntam, talvez o desgaste da linguagem com a nossa história moderna... Talvez você esteja nessa arqueologia universal, recuperando algo que tem que ser muito delicado. Há uma responsabilidade com a palavra que temos que recuperar, a palavra é criadora e destruidora, não pode se dar poderes para quem não tem responsabili-dade. Em seu trabalho você tateia algo como um resgate, uma recuperação para a humani-dade de um princípio que foi desgastado. Pois hoje se fala qualquer coisa, não se tem mais um compromisso ético com o que se pronuncia, e isso está por trás do que você faz.

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Rosana Ricalde – Você falou do Persisto. Ele aborda o castigo também, escrever como um castigo, como antigamente, o ato de escrever milhares de vezes como uma punição por um erro para que nunca mais se repita. Esse trabalho é inspirado na ideia da escrita como um castigo, só que reverto isso para uma outra coisa, porque para mim a escrita não é um castigo. Tenho prazer em escrever.

Roberta Condeixa – É interessante isso, porque, olhando o trabalho, quando você olha ver-dadeiramente para ele, fica clara, através da ordem, a forma como você organiza aquilo, que não é penoso, é um “desgaste prazeroso”.

Sandra Fernandes – É esse prazer que vejo nos Oceanos [trabalho onde a artista vai fazen-do desenhos com nomes de oceanos]. A escrita é solta, o movimento é prazer mesmo, eu percebo. Você tem domínio disso, como é que você faz essa série?

Rosana Ricalde – Eu faço um esboço mínimo... E depois vou escrevendo.

Guilherme Vergara – Você estava falando da ocupa-ção de ser artista... Com sua lembrança do castigo fala da correção pelo processo da repetição na es-cola, mas, ao mesmo tempo, revela um grande pra-zer na escrita, na caligrafia. E, nesse jogo, ninguém vê naquilo castigo. O que se vê na escrita – aí você se revela, na escrita – é um afeto, um preciosismo, não de um obcecado virtuose formal, mas, neste ato, você também seleciona uma poesia e a des-constrói. Através das desconstruções proporciona atos criativos, e você não repete trabalhos, mas cria um esquema, que é um conceito de Piaget, seus trabalhos têm várias camadas...

Rosana Ricalde – Sim, mas meus trabalhos têm uma unidade também, e eu até priorizei para essa itinerância trabalhos de séries. Por

Esquema“(...) o que, numa ação, é transponível, ge-ge-neralizável ou diferenciável de uma situação seguinte, ou seja, o que há de comum nas diversas repetições ou aplicações da mesma ação (...)”.Segundo Piaget, J, em Biologia e conhecimen-to, Petropolis: Editora Vozes, 1996, pág. 16.

Piaget1896–1980. Estudou a evolução do pensa-mento até a adolescência, procurando en-tender os mecanismos mentais que o indi-víduo utiliza para captar o mundo. Investigou o processo de cognição, de construção do conhecimento. Nos últimos anos de sua vida centrou seus estudos no pensamento lógico-matemático.

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exemplo, você ver um auto-retrato não é a mesma coisa de você ver um só, tem uma sequência também... Guilherme Vergara – Uma referência que eu gostaria que você abordasse é sua professora...

Rosana Ricalde – Na época eu tive – e até hoje acho que ainda é assim – uma professora para tudo, da terceira à quarta série. Ela dava caligrafia também, era uma coisa que muitos não gostavam e eu sempre gostei. E ela fazia os bilhetinhos, o que ficou na minha memória, das mensagens, da importância que ela dava – fazia umas tirinhas e dava um nó. Era um texto escrito, a professora dobrava, era tipo um biscoitinho da sorte, com um nozinho no papel. Aí você tinha de abrir aquele papel para saber qual texto tinha saído, e era bonito, um papel amarelinho. Toda sexta-feira ela fazia aquilo, e eu colecionava aqueles papéis.

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Entre a literatura e a imagem

SÉRIE CONTRAPOEMAS

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CONTRAPOEMA (2004)Poema “Versos escritos n’água”, de Manuel Bandeira, recortado em vinil adesivo preto, e poema cons- cons-truído com palavras antônimas, recortado em vinil branco adesivado sobre vidro-moldura de madeira,

100 cm x 100 cm.

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

Demorei a chegar nessa forma dos contrapoemas. Eu acho que esse meu trabalho é um pouco um exercício de fazer poesia. Todos eles têm uma história, ou um pensamento, ou um provérbio – é minha maneira de construir o trabalho. Eu me fascino quando eu leio um bom texto, com a capacidade que uma pessoa tem de escrever, porque a escrita é uma coisa de arquiteto, só que mais completo: o escritor constrói a paisagem, as pessoas, ele é um pouco um deus, constrói todo um universo que sai da cabeça dele. Qualquer um tem essa capacidade, mas a capacidade de colocar isso e bem – de despertar no outro a capacidade de criar em cima daquilo que ele escreveu – é incrível.

Meu trabalho veio um pouco da vontade de também escrever, e eu descobri a possibilidade de fazer o poema usando um outro poema que eu gostasse muito e que também ficasse um poema bonito, usando só palavras antônimas, criando um outro sentido, que se soma-va ao poema que eu escolhi. Eu queria mostrar uma ideia a partir de um outro autor, mas não me considero escritora – a visualidade é o meu campo, de onde estou criando.

Quando construo outro texto, na verdade, não é uma criação; ele só existe completado pelo outro, pelo poema original, na verdade, o sentido fica o mesmo do outro poema, mas é uma pesquisa de dicionário. Eu acho que é um exercício muito gostoso, porque eu sou apaixonada pelo dicionário... A Clarice Lispector dizia que se ela fosse para uma ilha de-serta levaria o dicionário, porque nele estão contidos todos os livros. Para mim não estão contidos somente todos os livros, mas todos os mundos: é incrível como tudo o que pode ser pensado, falado e traduzido está escrito naquele livro, todos os seus pensamentos, a forma com que você configura as coisas.

Hans-Georg Gadamer fala que o belo na arte está ligado ao jogo, à festa e ao símbolo, que o fazer artístico é um jogo em toda a história dos fazeres artísticos. Por exemplo, o poema também é um jogo, e todos os outros que o poeta criou anteriormente, que dialogam com sua própria vida. O artista está no jogo – ninguém faz obras de arte sem conhecer obra de arte – e desse jogo de estabelecer relações Rosana fez um poema. Há uma construção em todo o trabalho da artista em que ela exerce aquilo que admira, em que fala do escritor ar-quiteto, fazendo arquitetura total entre desconstrução e construção, entre imagem, supor-te... É uma arquitetura do discurso, uma rica fala entre palavra e construção de mundos.

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PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS

Paulo Reis“(...) Nos Contrapoemas a artista articula antagonismos existentes na lingua-gem a partir da alternância dos fundos negros e brancos; no plano do signi-ficado, altera o sentido da poesia ao substituir as palavras do poeta por um poema feito por seus antônimos. Ao substituir não somente as palavras, mas também o sentido da ação, a artista altera radicalmente o significado da obra. Este mecanismo de alteração de significantes e significados é uma constante em sua obra(...)”

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CONTRAPOEMA 1 (2004)Poema “Desesperança”, de Manuel Bandeira, recortado em vinil adesivo preto, e poema construído com palavras antônimas, recortado em vinil branco adesivado sobre vidro-moldura de madeira, 100 cm x 100

cm.

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

•  Observar que o poema de Manuel Bandeira é impresso com letras pretas sobre um vidro transparente, que possibilita a leitura sobre a parede branca. Ao lado, Rosana jus-tapõe o contrapoema, composto minuciosamente pelos antônimos das palavras usadas por Bandeira. Mas a artista vai além, imprimindo esse contrapoema em letras brancas so-bre esse mesmo vidro. O resultado é uma evidente dificuldade de leitura. Letras brancas sobre o fundo da parede branco não são tão contrastantes para a leitura, dificultando-a.

2. Percepções intuitivas

•  O contrapoema é um díptico – lado a lado, duas leituras fazem parte de uma única obra: o poema em seu antônimo, que se torna curiosamente uma mensagem positiva, e também o contraste de cores. A dificuldade ou necessidade para a leitura da escrita exige o contraste de cores (preto sobre branco), entre letra e fundo. Nessa obra o branco sobre branco só permite a visão da leitura quando a luz sobre o quadro projeta as sombras sobre a parede de um poema, que então se revela do invisível.

3. Percepções metafóricas

•  Observar o universo de metáforas para essa situação antagônica. De um lado, o poe-ma na íntegra de Manuel Bandeira, naturalmente impresso em letras pretas, cujos conteú-dos são tão negativos. Do outro, letras invisíveis que surgem com a revelação de sombras na parede. A ação da luz resulta na possibilidade de leitura, subversão ou inauguração de novos sentidos.

•  Esse  trabalho  da Rosana  nos  remete  a  uma  inspirada  citação  de Marcio Doctors, curador da Fundação Eva Klabin Rapaport, para o livro A cultura do papel. “O papel é, na realidade, o outro do homem. A materialização do vazio necessário onde o homem

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deposita seus sonhos, suas ideias, suas experiências e suas descobertas. Atrelado à escrita alfabética e à técnica (com invenção de tipos móveis), o papel, na forma livro, adquiriu uma dimensão que fez com que o homem se desprendesse mais intensamente da imediatez do mundo, lançando-o em um universo mediatizado pela cristalização do saber. Esse universo é todo povoado por palavras, a ponto de nos esquecermos de que é o branco – o vazio do papel – que nos permite a leitura. Isso nos faz lembrar a história cabalística dos dois fogos que criaram as escrituras divinas. O fogo negro, que desenhou as letras, que pensamos ler, e o fogo branco, que desenhou o espaço entre as letras, que nos permite ler.”

O outro do homem, segundo essa abordagem de Doctors, é o vazio entre as letras, o que realmente nos permite ler. E continua Doctors, com a profecia sobre as leituras entre o fogo branco e o fogo preto: “A parábola da palavra conclui que a humanidade, por en-quanto, só sabe ler o fogo negro. Haverá um dia em que seremos capazes de ler o fogo branco. Esse paradoxo é o nosso desejo, e o papel é a possibilidade metafórica desse paradoxo”.1

•  O antônimo da desesperança é esperança: a inversão de sentidos curiosamente ocor-re também no fundo onde se inscreve o poema original e o fundo invisível (transparente) que se projeta sobre o branco da parede, remetendo ao fogo branco. Esta é a estratégia (também poética) que Rosana usa, desconstruindo um poema extremamente negativo de Manuel Bandeira e inaugurando o seu contrapoema com uma visão afirmativa e opos-tamente positiva.

•  A obra ou concepção de Rosana está justamente na transformação ou deslocamento de um poema para uma “poesia plástica”, polissêmica (de muitos sentidos). Os recursos utilizados pela artista ao desconstruir uma poesia se tornam parte de uma outra obra pela criação de metáforas. A artista pode construir uma nova dimensão artística para um discurso já existente – isto é, Rosana desconstrói obras de outros autores para uma nova força expressiva. Porém, sua escolha sempre parte daquilo que lhe dá prazer, dos poemas que mais admira.

1 Doctors, Marcio (Org.). A cultura do papel. Rio de Janeiro: Fundação Eva Klabin Rapaport e Casa da Palavra, 1999.

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•  A matéria-prima da escolha de Rosana é a conjugação entre palavra-poesia, ou, mais ainda, palavra-significado-forma. Rosana acredita que a palavra tem um grande poder. Mas, para exercer esse poder, a artista subverte a palavra enquanto forma escrita, que se torna invisível até que uma luz ou atenção especial a ilumine ou a revele. O significante da palavra escrita e a sua aparição como sombra se tornam parte de uma unidade poética – que precisa de um leitor criador de sentidos. “As palavras têm poder!”: assim Rosana trabalha pela arte e o resgate desse poder.

4. Arqueologia da criação

O que é o trabalho e a experiência artística então? Qual a sua inteligência poética, de sín-tese entre forma e conteúdo? A forma é o conteúdo! Que forma você daria ao seu poema predileto? Onde você escreveria? Como você reinauguraria uma nova leitura, mesmo que fosse totalmente oposta à mensagem original do poeta?

Como enfrentamos a palavra nos dias de hoje? Elas têm a força que continham há tem-pos atrás? O que as palavras podem transformar? Amigos? Novos amigos? Perda de amigos? Perda da confiança? Os políticos?

Quais profissões fazem o seu exercício a partir do poder das palavras?

Qual o papel ou as responsabilidades desses profissionais com relação ao poder das palavras? E do artista?

REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

Poesia concretaNa poesia concreta o poema transforma-se em objeto visual, valendo-se do espaço gráfico como agente estrutural: uso dos espaços brancos, de recursos tipográficos etc.; em função disso, o poema é lido e visto ao mesmo tempo!Em dezembro de 1956, era lançada no Brasil a poesia concreta, durante a Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O

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público via pela primeira vez uma nova forma de poesia, exposta em cartazes e cha-mando atenção pelo aspecto visual, pela forma como as palavras eram organizadas no espaço branco. Os idealizadores do movimento Concreto foram os poetas do chamado Grupo Noigandres, os paulistas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Ha-roldo de Campos – responsáveis pela elaboração teórica e prática da nova poesia.

Exemplo de poesia concreta:

Terra, de Décio Pignatari

ra terra terrat erra terrate rra terrater ra terraterr a terraterra terraraterra terraraterra terraraterra terraraterraterraraterra

Yin Yang

Yin Yang é, na filosofia chinesa, uma representa-ção do princípio da dualidade de Yin e Yang, o conceito tem sua origem no Tao (ou Dao), base da filosofia e metafísica da cultura daquele país. Em chinês, esse conhecido símbolo que repre-senta a integração de Yin e Yang é denominado como "Diagrama do Tai Chi" (Taiji Tu).

•  Yin: o princípio passivo, feminino, noturno, escuro, frio •  Yang: o princípio ativo, masculino, diurno, lu-minoso, quente

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Entre a literatura e a imagem

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AUTO-RETRATO DE MÁRIO QUINTANA, 2004Poema de Mário Quintana intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora verde,

50 cm x 46 cm

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

A fita rotuladora me foi dada há muito tempo, não recordo se o Felipe [referência ao artista Fe-lipe Barbosa, companheiro de vida e trabalho] achou no lixo estas fitas... Foi um fato assim, aquilo ficou no ateliê, fiz trabalhos com o mate-rial, e alguns até deram certo. Até que gerou um trabalho bem mais antigo que os retratos, que é o Baú de palavras [obra em que em um baú a artista insere várias palavras feitas com fita rotu-ladora]. Depois de um tempo, achei uma poesia intitulada “Auto-retrato” – realmente não é só o artista visual que pode fazer seu auto-retrato não, também alguns poetas. Mas não é tão fácil de en-contrar, eu sempre procuro poesias com o título de auto-retrato, que não sejam só a descrição do autor: elas devem ter o título auto-retrato, eu de-terminei assim. Eu considerei a fita [rotuladora] perfeita para isso, pois a fita era de fato usada para você detectar propriedade, que aquilo era seu, e julguei o material interessante para utilizar nesses auto-retratos.

Também tentei achar um formato que remetesse aos retratos: em geral eles não eram pinta-dos muito grandes, era um formato meio padrão. A fita parece uma coisa bem rápida, mas quando a gente vê como a coisa é feita se percebe toda uma relação com o corpo, com a escrita também. Você muda e torce letra a letra. Na verdade fico procurando materiais que encaixem na ideia; não é aleatório, tudo isso faz parte do conceito do trabalho.

Na série de auto-retratos, o que eu acho legal particularmente é pensar que como os pintores pintam seus auto-retratos, alguns poetas também decidem se descrever, só que usando a palavra. E o resultado pode ser tão ou até mais rico em alguns aspectos do

fita rotuladora

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que as imagens desenhadas e pintadas que os artistas fazem de si: acho incrível como o Manuel Bandeira é capaz de se descrever.

Já a cor é mais ou menos aleatória, é um pouco intuitiva também. Mas, por exemplo, com o Mário Quintana não tem como eu usar preto, pois a cor nos remete a alguma coisa. O Manuel Bandeira é preto, a Cecília Meireles, azul, o Graciliano Ramos, roxo.

Nos retratos surge um sujeito que pela escrita de Rosana se torna imagem, que é colocado na mol-dura. A força do trabalho da artista está justamen-te nos deslocamentos de materiais, mais uma vez poemas e textos, que passam a ser significantes e significados que revelam o retrato-imagem inte-rior do criador diante de um espelho. Uma con-vergência especial que se faz pela fita rotuladora – é curioso o nome fita rotuladora, a combinação do material do processo de escrever letra por letra como uma tipografia –, muito usada nos anos 70 e 80 para identificar pertences.

TipografiaArte e processo de criação na composição de um texto, física ou digitalmente. Assim como no design gráfico em geral, o objetivo principal da tipografia é dar ordem estrutural e forma à comunicação impressa.

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AUTO-RETRATO DE CECíLIA MEIRELES (2004)Poema de Cecília Meireles intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora azul,

50 cm x 46 cm.

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PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS

Paulo Reis“(...) um texto autodescritivo de um poeta serve de pretexto à construção de uma superfície geométrica, aparentemente monocromática, que nos remete às pinturas abstratas. Aos nos aproximarmos da obra, percebemos que as imagens são compostas de letras de fitas rotuladoras. Chamadas de Auto-re-tratos, essas “pinturas mecânicas”, nas cores amarelo, azul, vermelho, verde e negro, são como composições modernistas, retas e angulares, um modelo pictórico reducionista de um autor, como nas pinturas de Malevich. Nesses “Auto-retratos” – poemas de Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Graciliano Ramos e Augusto Massi –, a artista busca a (auto) des-crição destes gigantes incontestes da poesia e da prosa. Esses trabalhos despertam nosso interesse em saber como estes se vêem e como os vemos e, para além do seu significado, são espelhos cegos de suas vozes (...)”

Luciano Vinhosa(...) Se poesia é a ocupação da palavra pela imagem2, como afirma Manoel de Barros, a exemplo dos artistas plásticos, os poetas se descreveram na tentativa de fixarem em imagens seus seres tão impermanentes. Na série Auto-retratos, Rosana recolhe poemas que assim se intitulam e os devolve à superfície tradicionalmente ocupada pela pintura. Dando a cada um uma cor, ela os reproduz em fita rotuladora autocolante. Parece-me sintomático o fato de que, no lugar de exprimir-se a artista (seu “eu”), neles exprimam-se os poe-tas. Sintomático também é que as dimensões-padrão que a artista encontrou para esses objetos (50 x 46 x 2 cm) sejam as mesmas de um pequeno espe-

2 Verso extraído do poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, de Manoel de Barros. www.revista.agulha.nom.br/manu.html.

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lho para se mirar o rosto. Não é, pois, olho no olho que poderíamos capturar algo que, por descuido, escapou do sujeito? Esse sujeito estranho – o artista – que agora, psicologizado, habita mais o espelho que o mundo na tentativa de se autocompreender? A inevitável cisão entre mundo interior e exterior a que o processo civilizatório nos submeteu marcou definitivamente a trajetória do homem ocidental, que vive agora a nostalgia da unidade. Não seria nesta brecha entre mundos que a arte teria lançado os frágeis alicerces para viver seu drama e extrair daí a força, o pretexto mesmo, para continuar sua obra moderna? Nos auto-retratos apresentados pela artista este problema está, ao menos para mim, mais do que claramente colocado, antes, exponenciado. Neles, a unidade aparece mais comprometida que promissora, tão logo a essência de cada poeta se revele movediça, como as imagens dos poemas que o olho do receptor tateia de maneira enviesada na superfície da “pintura”. Afinal, e segundo o mesmo Manoel de Barros, imagens são palavras que nos faltaram3 (...)”

3 Verso extraído do mesmo poema citado.

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AUTO-RETRATO DE MANUEL BANDEIRA (2004)Poema de Manuel Bandeira intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora preta, 50 cm x 46 cm.

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

•  Pode a artista realizar auto-retratos de outros artistas ou poetas? Uma aparente im-possibilidade, para iniciar estas conversas e compartilhar percepções.

•  Cada retrato visto a distância é apenas uma superfície monocromática. As letras são da mesma cor que o fundo, tornando a leitura apenas possível quando nos aproximamos do “espelho” a uma mesma distância que o faríamos para ver o nosso rosto!

•  É parte dessa obra o jogo de mudanças de percepção com a distância, assim como em outras obras da Rosana (os Contrapoemas e os Mares). Na primeira percepção a distância, essas obras se parecem com uma série de pinturas monocromáticas ou retân-gulos de cores na parede, mas, ao se aproximar, esta primeira impressão é sobreposta pelas leituras dos textos quase invisíveis. É a partir de então que as questões temáticas no que concerne à história dos auto-retratos na arte podem ser introduzidas.

2. Percepções intuitivas

•  O processo utilizado por Rosana  é mais uma vez a fusão entre palavra e imagem. O que nos remete apenas a uma pintura ao longe, pela cor, é também o auto-retrato de um(a) poeta(isa), em que a escrita, através da fita rotuladora, é feita até o término do espaço do quadro.

•  Essa instigante obra revela os interesses da própria artista em unir literatura e artes visuais, ou imagem e escrita, ou ainda, subvertê-las pelo seu entrelaçamento. Rosana reafirma sua paixão pela poesia nesses paradoxais auto-retratos, tanto pela escolha dos grandes poetas como pelo conceito da obra. A imagem que vai para o espelho é o que se torna imortal em cada artista, sua obra, sua poesia.

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•  Fazer dos textos imagens é uma subversão, mas é também uma afirmação da crença na arte sobre a existência humana. Poucos de nós tivemos a oportunidade de ver os retratos desses poetas como eles eram realmente. Rosana oferece este entrelaçamento entre criador e criação. O artista se vai, e sua obra fica sempre jovem de gerações para gerações.

3. Percepções metafóricas

•  Mais uma vez, Rosana realiza em cada auto-retrato um sistema de metáforas visuais, a começar pela impossibilidade de a artista realizar um auto-retrato de outra pessoa. A série Auto-retrato é toda uma proposição conceitual plena de metáforas.

•  Imagine um espelho mágico onde cada indivíduo fosse representado por seu interior, o que pensa e o que cria. O espelho só corresponde ao auto-retrato na medida em que somos apenas nós diante deste inexorável revelador de nossas verdades.

•  A arte nessa obra é celebrada como a dimensão imortal diante desses espelhos auto-retratos. O auto-retrato se torna um retrato a ser falado! Colorido com perfumes, como o de cada poeta que se revela ou se espelha pela sua criação verbal, imaginária!

•  A palavra, segundo citação de Rosana recuperando a Bíblia, é geradora de mundos, mas nessas obras a poesia é a imagem que fica para sempre na história deixada pelos poetas.

•  Rosana cria nos auto-retratos um jogo de trocas e deslocamentos simbólicos entre pintura (história da arte), imagem e palavra, de forma metafórica como procedimentos ligados às estruturas de representação da passagem da vida humana. A série de auto-retratos torna-se um jogo entre criador e criação, refletido em um espelho cego diante do espectador. O conceito de auto-retrato (da História da Arte) e a crença da eternidade pela arte se tornam uma armadilha para esse visitante e leitor diante desses espelhos. Como?

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AUTO-RETRATO DE AUGUSTO MASSI (2006)Poema de Augusto Massi intitulado “Auto-retrato falado”, escrito em fita rotuladora vermelha,

50 cm x 46 cm.

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AUTO-RETRATO DE GRACILIANO RAMOS (2006)Poema de Graciliano Ramos intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora roxa, 50 cm x 46 cm.

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4. Arqueologia da criação

•  Não se pode desconhecer a relação entre essa série de auto-retratos, que se apresenta ao primei-ro olhar a distância como pequenos retângulos monocromáticos alinhados em série na parede, com as pinturas minimalistas, ou como uma série de outros artistas conceituais do século xx.

•  A arte, a  literatura, a poesia  tornam os textos ou imagens de cada época registros de nós mes-mos que nos perpetuam diante da impermanência humana. Por quê?

•  O que predomina nesse processo:  a palavra ou a imagem-cor? O que você acredita ser possí-vel de te representar?

•  Observa-se ou pode-se indagar: qual foi o crité-rio de escolha das cores para cada poeta? Intuição livre. Mas será que, por detrás dessa intuição, ao se lerem as obras desses poetas, uma cor predomi-nante é sugerida? Será que a artista realizou exer-cícios entre ler cada poesia e projetar um tom e, talvez mais ainda, outros elementos, tais como mú-sica, paisagem, perfume, textura, lugar e objetos?

•  Qual a importância de um auto-retrato para a vida de alguém? Como gostaríamos de ser repre-sentados ao mundo? Pelas nossas posses, rou-pas, gestos, atitudes...? Quando as palavras se esvaziaram de seus significados, quando passa-mos a valer mais pelas imagens exteriores do que pelo nosso valor interno, do que somos capazes

Minimalistas Entre 1963 e 1965, vários artistas estabele-estabele-cidos em Nova Iorque começaram a expor de forma independente trabalhos tridimen-sionais que continham alguma semelhança. Eram geométricos, monocromáticos e alguns utilizavam materiais industriais e em larga repetição. Esse conjunto de obras foi logo considerado um movimento e denominado de Minimalismo.

Arte ConceitualPara a Arte Conceitual, vanguarda surgida ini-cialmente na Europa e nos Estados Unidos no final da década de 1960 e meados dos anos 1970, o conceito ou a atitude mental tem pri-oridade em relação à aparência da obra. O termo arte conceitual é usado pela primeira vez num texto de Henry Flynt, em 1961, dentre as atividades do Grupo Fluxus. Nesse texto, o artista defende que os conceitos são a matéria da arte e por isso ela estaria vinculada à linguagem. Segundo Joseph Kosuth (1945), em seu texto Investigações, publicado em 1969, a análise linguística marcaria o fim da filosofia tradicional, e a obra de arte concei-concei-tual, dispensando a feitura de objetos, seria uma proposição analítica.

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de criar? Como os espelhos de auto-retrato de Rosana podem ser reveladores críticos dos vazios da vida contemporânea, de indivíduos sem arte e sem poesia? Por que neces-sitamos então de arte para estar representados em palavras ou imagens para o mundo além das aparências ou além das imagens e máscaras?

REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

Algumas referências sobre a história do auto-retrato na arte

Como Rosana subverte essa história na sua série de auto-retratos?•  O auto-retrato é um tema muito caro para a História da Arte, motivo de muitas pin-turas realizadas pelos artistas retratando a si mesmos, como é o caso de Rembrandt e suas variações de chapéus, que pintou quase 100 auto-retratos ao longo de sua vida. Outros artistas com auto-retratos: Francis Bacon, Dührer, Munch, Frida Kahlo.

•  A  produção  de  auto-retratos  é  presente  desde  a  Antiguidade  clássica.  Cita-se constantemente o escultor Fídias, do século V a.C., o qual teria deixado no Partenon, em Atenas, sua imagem esculpida; antes, no Antigo Império egípcio, um certo Ni-ankh-Phtah teria deixado sua fisionomia gravada em um monumento; ou, ainda, considera-se eventualmente que em culturas pré-literárias já havia quem os produzisse. Mas reconhece-se, em geral, que foi a partir da Renascença italiana que a produção consciente dos auto-retratos pelos artistas passou a ser cada vez mais presente.

Rosana retira do retrato o caráter de retrato-imagem e o devolve às sensações. Discute o visível através da “não pintura” de um retrato, mas em forma de retrato, e o denomina auto-retrato. Assim a artista reconfigura também todo um processo do legado da His-tória da Arte. A arte estaria aqui pelas mãos de Rosana, criando metáforas e também demonstrando um mundo tão carente de profundidade na aparência e questionando mesmo o papel da própria categoria auto-retrato na arte? Será que essa tradição artís-tica ainda é capaz de ser imbuída de sentidos na contemporaneidade? Na literatura O retrato de Dorian Gray – romance publicado por Oscar Wilde, considerado um dos grandes escritores ingleses do século xIx. O livro conta a história fictícia de um jovem homem chamado Dorian Gray, na Inglaterra aristocrática do século xIx, que se torna

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modelo para uma pintura do artista Basilio Hallward. Dorian tornou-se não apenas modelo de Basilio pela sua beleza física, mas também fonte de inspiração para ou-tras obras e, implicitamente no texto, uma paixão platônica por parte do pintor. Mas o retrato de Dorian, que Basilio não quer expor por ter colocado muito de si mesmo, foi sua grande obra-prima.

Alice através do espelho – Foi publicado em 1871, e é a continuação do célebre livro Alice no país das maravilhas, de 1865. O autor é Charles Lutwidge Dodgson, conhecido como Lewis Carroll (1832-1898). Alice passa por um espelho de sua casa e tem de ultrapassar vários obstáculos – estruturados como etapas de um jogo de xadrez – para se tornar rainha. À medida que ela avança no tabuleiro, surgem outros tantos personagens instigantes e enigmáticos que a impedem de voltar para casa.

Retrato do artista quando coisa – Livro de poemas de Manoel de Barros. Sua po-esia tem como temática o Pantanal, representado através de sua natureza e do co-tidiano. Em Retrato do artista quando coisa, Manoel de Barros revela um mundo no qual está totalmente integrado à paisagem do Pantanal. Seja como pedra, bicho, musgo ou pequenos seres que habitam a região, o poeta se veste e reveste de natu-reza, construindo poesias que tornam o seu meio cada vez mais uno.

Trecho do poema “Retrato do artista quando coisa”

(...) Se a gente encostava em ser ave ganhava o poder de alçar

Se a gente falasse a partir de um córrego a gente pegava murmúrios

Não havia comportamento de estar Urubus conversavam sobre auroras

Pessoas viravam árvore. Pedras viravam rouxinóis

Depois veio a ordem das coisas e as pedras

têm que rolar seu destino de pedra para o resto dos tempos.

Só as palavras não foram castigadas com

a ordem natural das coisas As palavras continuam com seus deslimites (...)

Manoel de Barros

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Entre a literatura e a imagem

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PROVÉRBIOS (2004)Pinturas com frases coloridas para serem vistas com óculos coloridos.

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

São quatro provérbios que estão ali mesclados. São ditos populares. Na verdade eu acho curiosos os ditos, eles são muito moralistas, verdades absolutas... Só que quando eu faço o trabalho a verdade absoluta se relativiza, um texto se sobrepõe ao outro e, ao mesmo, tempo vira uma forma bonita, um painel de texto que, quando você olha, não dá para visualizar os textos, se vê mais do que se lê. Os Provérbios, mais do que todos, têm essa coisa muita divertida, e eu tento um pouco também tornar a leitura mais divertida – quero que a pessoa leia de uma maneira que nem perceba que está lendo.

Os Provérbios são selecionados de livros. Tenho um dicionário de provérbios latinos e um livro com provérbios do mundo todo sobre vários assuntos. As escolhas são assim: esse daí eu coloquei duas frases em espanhol, no fundo, e, por não ser o nos-so idioma, eu preferi dar destaque ao português, mas, na verdade, você pode ler.

Esse trabalho, para fazer, é uma loucura. Algumas cores eu tive que usar textos maiores, porque, para preencher o espaço entre os textos, alguns provérbios que são maiores para poder pular letra a letra, ela tem que estar mais ressaltada e não pode estar totalmente junta. É um exercício de ba-gunçar as coisas na cabeça fazer esse trabalho. Esse e os Manifestos também.

Nos Provérbios, uma questão que pode ser dis-cutida é a polifonia, um retorno a uma situação de diversas vozes, de múltiplas interpretações. É quando se coloca o mesmo texto, em que, de acordo com o filtro, se tem leituras diferentes. O corpo do texto integral é um único, porém, se é

PolifoniaEm linguística, polifonia é, para Mikhail Bakhtin, a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente tex-tos anteriores que o inspiram ou influenciam. A polifonia é um fenômeno também identifi-cado como heterogeneidade enunciativa. Esse conceito de polifonia, segundo Bakhtin, ainda é confundido com o conceito de inter-textualidade, em que um texto não é mais úni-co e sim um entrecruzamento de vários outros textos. A este fenômeno discursivo J. Genet chama, na sua obra Palimpsestos, interdis-curso. Bakhtin usa o conceito de polifonia para definir a forma de um tipo de romance que se contrapõe ao romance monológico. Romance polifônico é aquele em que cada personagem funciona como um ser autônomo, com visão de mundo, voz e posição próprias.

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usado um filtro azul, apenas um ponto de vista é lido... O “mundo polifônico” está se tornando alvo de questões hoje – não se tentar a hegemonia de uma única voz, mas sim a polifonia, como o multi-culturalismo, diversas culturas habitando o mesmo texto. São os provérbios como Rosana usa.

Os trabalhos de Rosana materializam o palimp-sesto, pensado hoje em dia por vários intelectuais. O palimpsesto são entretextos, textos desapareci-dos pelo tempo que vêm à tona simultaneamente, ao mesmo tempo que a incomunicabilidade: uma pessoa só lê o azul e a outra só lê o rosa, exercí-cios críticos da época atual que são colocados nos Provérbios – a incomunicabilidade, a polifonia.

PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS

Paulo Reis“(...) O jogo visual na série de trabalhos dos Provérbios – obras feitas em pinturas com frases coloridas para serem lidas com óculos coloridos (em vermelho ou azul) – é uma verdadeira gestalt. A artista cria interferência nos significados à medida que, ao trocarmos de uma cor para outra, “apagamos” visualmente letras e palavras que podem ser vistas a olho nu. As trocas visu-ais e as interferências nos significados são para a artista uma forma de abrir o canal de percepção do espectador (...)”

PalimpsestoPágina manuscrita, pergaminho ou livro cujo conteúdo foi apagado (mediante lavagem ou raspagem) e escrito novamente, normalmente nas linhas intermediárias ao primeiro texto ou em sentido transversal.

GestaltTermo intraduzível do alemão, utilizado para abarcar a teoria da percepção visual baseada na psicologia da forma. A Teoria da Gestalt afirma que não se pode ter conhecimento do todo através das partes, e sim das partes at-ravés do todo; que os conjuntos possuem leis próprias e estas regem seus elementos (e não o contrário, como se pensava antes); e que só através da percepção da totalidade é que o cérebro pode de fato perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um conceito.

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

•  Essa  composição  visual,  que  ao  olhar  nu  apenas  dispõe  um  conjunto  de  letras coloridas aparentemente aleatórias, sem formarem um significado, passa a ser um jogo de armadilhas da visão. A artista coloca o espectador diante de um sistema de códigos simultâneos, porém que podem ser interpretados apenas com o auxílio de um filtro-seletor por cor!

2. Percepções intuitivas

•  Para interpretar a obra é necessário o filtro.  Os sentidos das palavras e dos provér-bios somente são revelados para o espectador aparelhado com esse filtro selecionador de cores. Então, o que é a obra? Ela só se revela na junção conteúdo–filtro: a obra é um sistema de relações, e o espectador precisa de instrumentos óticos para entrar em ação o jogo de leituras! O que esse jogo de leituras provoca? O que está além desse jogo de filtros selecionado-res de cores e provérbios?

3. Percepções metafóricas

•  Essa obra provoca cada um a pensar além do jogo proposto pela artista – esconder e revelar textos, morais, lições e ensinamentos, ao mesmo tempo.

•  O que é um provérbio? Como experimentar essa obra? A obra pode ser  lida como uma crítica à diversidade de vozes, uma polifonia, que não se comunicam entre si. Cada filtro lê apenas um provérbio diferente. A seleção é também exclusão de mensagens através de um “filtro”. O que revela uma determinada leitura, ao mesmo tempo cega em relação aos outros provérbios ou sabedorias. Esse exercício para leitura da obra se torna

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tanto a ação poética como estratégia metafórica. Aí se conjugam poder de leitura e, simul-taneamente, impossibilidade de ler outras mensagens.

•  Essa obra mostra a situação de impossibilidade de se compartilhar leituras quando não se tem os mesmos ‘filtros’. Porém, pode ser vista como a materialização de uma pos-sibilidade de entendimento necessário para o mundo contemporâneo, da necessidade de se compartilhar filtros interpretativos.

4. Arqueologia da criação

•  A amplitude metafórica dessa obra pode levar a muitas indagações sobre o mundo contemporâneo: o que representam esses filtros hoje? Diferenças de gênero, de ideolo-gias, de línguas, de partidos políticos, de crenças religiosas etc.

Dentro desse sistema de metáforas, o que representa ter acesso a mais de um filtro? O que significa viver com a possibilidade única de apenas ter acesso a um filtro, uma leitura parcial de um provérbio e estar cego às outras verdades ou provérbios?

•  Os “filtros” das pessoas são diferentes: cada um tem seu temperamento, sua forma-ção, seu modo peculiar de encarar a vida.

•  As limitações humanas, as contingências, as dificuldades, a dor, as contrariedades e, também, os consolos e a ação da divina providência estão presentes nos provérbios de todas as culturas. Como eles influem em nossos “filtros” individuais?

•  Como essa obra se torna emblemática da impossibilidade de se compartilhar as leitu-ras de mundo, quando não se tem os mesmos filtros?

•  O que são esses filtros dentro do mundo contemporâneo, dentro do mundo glo-balizado?

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REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

Provérbio ou ditado popular

É uma sentença de caráter prático e popular, que expressa em forma sucinta, e ge-ralmente figurativa, uma ideia ou pensamento.

Livro dos provérbios (Bíblia)

O Livro dos provérbios pertence ao Antigo Testamento da Bíblia. Conforme declara a sua introdução, tem como propósito ensinar a alcançar sabedoria, disciplina e uma vida prudente, a fazer o que é correto, justo e digno. Em suma, ensina a aplicar e fornecer instrução moral.

Torre de Babel

Babel, capital do império babilônico, era uma cidade-estado extremamente rica e poderosa. Era um centro político, militar, cultural e econômico do mundo antigo, que gerava inveja e despeito nos hebreus. Se-gundo a narrativa bíblica no Gênesis, a Tor-re de Babel era uma "torre construída por uma humanidade unida para chegar ao céu. Visto que o homem queria ser como Deus, Deus parou este projeto ao confundir a sua linguagem, para que cada um falasse uma língua diferente". Como resultado, eles já não conseguiam se comunicar entre si, e o trabalho foi parado. Os construtores foram depois dispersados pelas diferentes partes do mundo. Essa história é usada para expli-car a existência de muitas línguas e raças diferentes.

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Entre a paisagem e a escrita

SÉRIE O TEMPO MUDA TUDO

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O TEMPO MUDA TUDO (2002)3 vidros com palavras escritas em areia colorida.

Série de 5 fotografias com diferentes ordens de palavras, 40 cm x 60 cm cadafotografia / 3 cm x 5 cm cada vidro de areia.

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

Peguei emprestado um livro que tinha um poema, O navegante, com o qual fiquei fascinada, que me chamou muito a atenção. A partir dele brotou alguma coisa, e fui pensando aquilo em forma de trabalho. São vários textos que vou lendo, nem leio os livros todos, até porque o tempo não per-mite. Gosto muito de ler poesia porque não exige sequência, posso ler pedacinhos e ler outros po-emas ao mesmo tempo.

A primeira ideia foi realmente a areia. Vi o tra-balho na areia, acho muito poético esse tipo de artesanato. E fiquei fascinada porque tem uma relação com a ampulheta, que é o tempo sendo contado pela areia – o artesão vai deixando cair a areia, que vai rodeando o vidro e construindo a paisagem... A gente pode filosofar através da construção deste tipo de imagem; tem algo de duna, da paisagem se deslocar com o vento; tam-bém com as mudanças climáticas vários lugares se perdem, o mar toma conta, e a areia invade. Tudo se juntou no meu pensamento, a forma de unir texto à imagem.

O trabalho da garrafa na verdade vem de toda essa aflição do mar presente no poema. Mas a ideia do poema escrito com a própria areia... Você não tem nada: como na própria passagem bíblica, antes de qualquer coisa as palavras escritas na areia o mar mesmo se encarrega de apagar. Aí a duração é de uma onda.

O navegante The Seafarer (O navegante) pertence ao domínio oral anglo-saxão. O texto foi fixado por um monge no século X e é um dos docu-mentos mais antigos da literatura inglesa. Ezra Pound verteu um grande trecho da obra para o inglês, e há outros escritores, como Jorge Luis Borges e Armando Rola Vial, que também o traduziram. Rodrigo Garcia Lopes traduziu a obra original para o português.

“(..) Poema de perda e de desterro, mas tam-bém uma aula de amor fati ( a necessidade de cada ser humano aceitar seu destino)(...) “Rodrigo Garcia Lopes

Trecho de O navegante“(...) Névoa da noite enegrecia,vinha neve do norte gelo engolia a gleba, granizo algemava a terra, tão gélidos grãos. Pois meu peito se agita, provoca meu pensamento, quer que eu me lance nessas ondas imensas no túmulo das cristas-de-sal meu desejo sopra sempre o espírito para frente me quer desterrado, longe daqui errando atrás de terras estranhas (...)’’

O navegante (The Seafarer) / Anônimo. Trad. e posfácio Rodrigo Garcia Lopes – Rio de Ja-neiro: Lamparina Editora, 2004.

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Não posso deixar de lembrar que o que me ins-ins-pirou para fazer esse trabalho foi O livro de areia do Borges, que contém essa ideia do livro escrito na areia, quer dizer, aquilo ali é um buraco negro, você se perde nesse livro.

É interessante perceber que surge da descrição dos trabalhos de Rosana justamente a colagem entre texto e imagem, que é muito significativa, como o trabalho da areia da ampulheta. Quando o artesão faz a garrafa usa uma ferramenta fininha para fazer a caligrafia, desenhando na areia, cons-cons-truindo dentro do objeto, e é no processo que se escondem muitos dos significados. Essa imagem pode remeter também ao Padre Anchieta escre-vendo na areia, aos náufragos, às garrafas envia- na areia, aos náufragos, às garrafas envia-das com mensagens.

Trabalho na areiaComo surgiram as famosas garrafas de areia? Conta o professor Vingt-un Rosado que Manuel de Jesus do Nascimento e sua esposa Maria da Conceição construíram moradia em cima do Morro do Tibau, no Ceará, em 1918, onde passaram a morar com os filhos. Belisa, uma das filhas do casal, gostava de brincar pelos morros com outras crianças. Despertou-lhe a curiosidade a grande variedade de areias e argilas ali existente e resolveu, juntamente com sua irmã Joana de Jesus, encher uma garrafa com areia das várias cores existentes. Assim, as primeiras garrafas eram de faixas, isto é, cada tipo de areia ou de argila ocupava na garrafa faixas paralelas. Começaram a colocar as areias com as mãos, que funciona-vam como um funil. Tudo isso se passou no ano de 1921.Numa comunidade pequena como era a Ti-bau daquela época, as garrafas de areia das meninas passaram a ser conhecidas e imita-das. Logo surgiram as palhetas de talo de co-queiro e de arame, que permitiram criar outros desenhos, aperfeiçoados nas mãos hábeis dos artesãos até chegar ao que é hoje.

Padre AnchietaChega ao Brasil em 1553, percorre a pé e descalço boa parte da colônia para catequi-zar os índios. O jovem Anchieta atravessava as noites em claro, copiando várias vezes a mesma lição para suprir a inexistência de li-li-vros. Dedica-se com afinco ao estudo do tupi, a ponto de compor uma gramática do idioma e canções, poemas e peças teatrais de cunho sacro, para atrair os índios ao catolicismo.

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José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, em 1563, foram à aldeia de Iperoig (litoral pau-lista) para negociar a paz com os tamoios, que atacavam os portugueses que tenta-vam dominar seu território. Iniciaram-se os entendimentos, mas os índios, cautelosos e desconfiados, exigiam provas concretas de sinceridade dos padres, e, para que isso se confirmasse, Nóbrega regressou a São Vi-cente, levando Cunhambebe (líder Tamoio), enquanto Anchieta permaneceu como refém. Foi nessa época que Anchieta, invocando a proteção da Virgem, escreveu grande parte do famoso “Poema à Virgem” nas areias de Iperoig. O poema tem quase 6.000 versos e termina tristemente:

"As inspirações do céu Eu muitas vezes desejei penar cruelmente expirar em duros ferros. Mas sofreram merecida repulsa os meus desejos; Só a heróis compete tanta glória."

O livro de areia do Borges Publicado originalmente em 1975, O livro de areia, de Jorge Luis Borges, privilegia a memória da palavra escrita. A obra fala de um livro sem começo e sem fim, em que o leitor nunca voltaria à mesma página.

Trecho:“(...) A linha consta de um número infinito de pontos, o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos, o hipervolume, de um número infinito de volumes... Não, decididamente não é este, modo geométrico, o melhor modo de iniciar meu relato. (...)”

Borges, Jorge Luis. O livro de areia. Rio de Janeiro Editora Globo, 2001.

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PALAVRAS CRUzADAS - LEITURAS CRíTICAS

Luciano Vinhosa “(...) Se tudo o tempo muda, talvez possamos arriscar que a instabilidade na qual o trabalho a duras penas se edifica possa ser tomada como a metáfora de tudo que é mutável, impermanente, frágil, em contraste com a vontade latente de permanecer que todo homem experimenta, conquanto esteja cons-cons-ciente de sua finitude (...)”

“(...) Tudo muda o tempo. Crescem as árvores, brotam os homens, morrem os dias... A arte é pura energia a animar a vida. No mais, para além daquilo que a palavra não poderá mais dizer, impor-se-á o mar absoluto do silêncio (...)”

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

O que observar ao primeiro olhar que serve como material inaugural para as sensações compartilhadas?

•  Ao primeiro olhar se reconhecem as famosas garrafas com desenhos de paisagens de praias nordestinas – um artesanato popular brasileiro bastante conhecido. Mas, en-quanto arte, ele se difere por um pequeno detalhe que faz uma grande diferença. Rosana acrescenta ao artesanato três palavras: tempo, muda e tudo. Em cada garrafa essas pa-lavras estão sobrepostas à paisagem de areia. Ainda, a artista fotografa as três garrafas em cinco composições ou ordens que geram diferentes frases jogando com o sentido – tempo, muda e tudo.

Com essas intervenções (palavras) a artista abre caminho para outros sentidos: constrói camadas de leituras para as três garrafas que transformam o artesanato em um novo sistema de significações.

2. Percepções intuitivas •  Ao oferecer essa obra para as experiências compartilhadas entre observações que se mesclam com sensações, atinge-se um jogo de percepções intuitivas. Daí seguem alguns tópicos de possibilidades de leituras.

•  Observar as garrafas: elas, além de compactarem a paisagem de areia em forma de miniaturas, tornam-na intocáveis e protegidas do vento. A garrafa assume um lugar de proteção contra o vento – tempo. Será que alguma coisa pode conter o tempo?

•   Percepções e  intuições sugerem  indagações sobre essa obra como um sistema contínuo de paradoxos e ambiguidades. Será que a passagem do tempo pode ser as-

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sociada ao movimento do vento? Existem linhas curvas nos desenhos dos elementos da paisagem que representam o sopro e fluxo do vento de forma estática, como um tempo parado.

•  Muitas perguntas se abrem, são estas curiosidades que  revelam a  riqueza dessa obra para uma percepção intuitiva que se aprofunda em cada detalhe. Levantar pergun-tas é parte da experiência artística e poética, lembrando principalmente que não é papel da arte respondê-las!!! Compartilhar sensações é multiplicar percepções que alcançam sua dimensão intuitiva, ou melhor, ir além do visível, onde estão os significados poéticos da obra!

•  Atenção especial  para  a  riqueza poética dessas paisagens  compactadas,  imóveis, dentro das garrafas, quando servem como mensageiras de perguntas. Pergunta-se de novo: Será que alguma coisa pode conter o tempo? A arte? Ou a imaginação? Ou o tempo é que contém todas as coisas? A garrafa nessa obra significa o aprisionamento do tempo ou proteção contra a sua passagem?

•  Perguntas  ricas  para  se  compartilhar  como  questões  universais  enunciadas  em pequenas garrafas sem respostas. O tempo muda tudo! Ou o tempo muda tudo? Tudo muda o tempo! Muda tudo o tempo?

•  Diferentes  expressões  para  a  passagem do  tempo  se  justapõem  nessa  obra,  não apenas no jogo de variações das três palavras – tempo, muda e tudo –, mas também na feitura das miniaturas das paisagens, como nos materiais todos produtos e produzidos a partir da areia. Observar como curiosamente as transformações do ciclo das areias também se relacionam com o tempo: as areias da praia são as mesmas que dentro da garrafa desenham paisagens de praia, e, ainda, são as mesmas que produzem o vidro das garrafas que contêm as areias.

•  Somente pela arte e a imaginação poética se subverte a ideia de tempo para além das leis que regem o mundo natural, pela afirmação real de territórios da poesia, da ficção e metáforas. Há um outro tempo de uma obra de arte: do espectador para a sua fruição, do leitor de um livro, da projeção de um filme, de uma ópera ou teatro. Várias noções de tempo estão por trás dessa obra da Rosana: o tempo de criação da artista,

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da concepção da feitura da obra, o tempo escrito, o tempo das areias e das dunas, o tempo da fotografia, o tempo da arte.... Quantos tempos têm uma obra de arte? 3. Percepções metafóricas

•  Como explorar essa obra como sínteses entre percepções intuitivas e expressões por metáforas visuais? Explorar ou reconhecer as diferentes expressões de tempo, mesmo que contraditórias ou paradoxais, é já um ponto de aprofundamento interessante a ser compartilhado.

•  A arte em geral pode ser vista como um lugar onde os opostos se encontram e não se eliminam. Neste caso das garrafas da Rosana, pode-se perceber a ocorrência de ex-pressão de sentidos opostos para a passagem do tempo. Por um lado, sabe-se que ele não para de escorrer, de passar. Por outro, as garrafas, ao guardarem a paisagem de areia como lembranças do Nordeste, se contrapõem ao vento e à passagem do tempo. Mas as palavras escritas nas garrafas afirmam o contrário – o tempo muda tudo.

•  Outro processo que também pode gerar uma atenção especial ao domínio do tempo é a paciência por parte desses artífices anônimos: as três garrafas nos instigam a des-frutar o tempo específico ou suspenso de feitura dessa artesania popular de desenhar minúsculos mundos nas areias coloridas.

•  A  fotografia  registra  a  imagem  e  congela  no tempo, assim também participa do jogo de metá-foras estabelecido por Rosana: quantas garrafas mais necessitariam ser feitas para se compor to-das essas frases, caso ela não se utilizasse deste meio?

•  A  presença  das  três  garrafas  diante  das  fo-tografias joga também com a relação entre as coisas em si e suas imagens, tão explorada na crise da representação na história da pintura do século xx.

Relação entre as coisas em si e suas imagens René Magritt foi um artista que já no início do século XX trazia como questionamento em suas pinturas a relação entre as coisas em si e as suas imagens. Pinta um cachimbo e es-creve “Isto não é um cachimbo”: fica evidente no trabalho um questionamento sobre a crise da representação, ou como o próprio nome já anuncia,“A traição da imagem”.

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•    Mais  uma  vez,  Rosana  sobrepõe  um  com-plexo tema da história da arte erudita se utilizando de um tão reconhecido artefato popular. Mais uma vez, estamos diante de um sistema de sistemas de metáforas, que vão desde a sabedoria popular sobre a passagem do tempo, onde nada é fixo e permanente, até a história da arte do século xx, que também, por sua vez, foi totalmente mutante. Como é realizada a passagem da arte popular para a arte contemporânea?

•  Rosana reinventa estratégias da arte conceitu-al e da Pop Art, porém lançando mão de objetos do artesanato popular nordestino.

•  Esse trabalho demanda tempo, de reflexões e descobertas, daí sua riqueza poética, existencial e conceitual. Pode-se pensar então como essa obra inaugura novas temporalidades (metáforas da ine-ine-xorável passagem de tempo)!

4. Uma arqueologia da criação

•  Um  arqueólogo  escava  por  camadas  da  superfície  até  atingir  a  descoberta  de resíduos que podem revelar a existência de grandes civilizações. Explorar as diferentes camadas de sentidos de uma obra é semelhante a uma arqueologia da criação. Cada obra é resultado de inúmeras ideias, referências e inspirações que levam um artista a produzir uma peça, escultura ou pintura. Neste caso, das garrafas às fotografias que compõem – “ o tempo muda tudo”, as inúmeras camadas de sentidos giram em torno de uma questão fundamental – o paradoxo entre a arte e a passagem do tempo. Mas, além de tudo já explorado nessa arqueologia, surge um imaginário especial que também se liga às garrafas com mensagens. Assim como tesouros enterrados, o arqueólogo descobre pelo exercício da percepção intuitiva significados adormecidos em pequenos cacos e inscrições. Os artistas, por sua vez, realizam processos poéticos de expressar por metáforas, pistas e enigmas visões de mundo, sem dizê-las explicitamente.

Pop ArtMovimento principalmente americano e britânico, sua denominação foi empregada pela primeira vez em 1954, pelo crítico inglês Lawrence Alloway. Com o objetivo da crítica irônica do bombardeamento da sociedade pelos objetos de consumo, dos produtos da cultura popular da civilização ocidental, so-bretudo os que eram provenientes dos Esta-dos Unidos, a pop art operava principalmente com signos da iconografia da televisão, da fotografia, dos quadrinhos, do cinema e da publicidade. Como muitos outros artistas da Pop Art, Andy Warhol, figura central desse movimento, criou obras em cima de mitos como Marilyn Monroe. Da mesma forma, uti-lizou a técnica da serigrafia para representar a impessoalidade do objeto produzido em massa para o consumo, como as garrafas de Coca-Cola e as latas de sopa Campbell.

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•  São  universalmente  conhecidas  as  garrafas  lançadas  ao  mar  com  mensagens  e mapas. Essa obra atinge a todos, por se utilizar desses símbolos imaginários, tão ex-plorados em fábulas. Seu princípio poético é também de esperança, de mensagens, o que leva a propor ações e registros de desejos e sonhos. Quais desenhos de paisagens gostaríamos de desenhar como forma de esperanças? Quais mensagens enviaríamos ao mar? Como fazer com arte essa realização do princípio esperança? •  Pode-se perceber o deslocamento da arte popular para a arte contemporânea como parte da riqueza da obra, que é imersa em um sistema de valores complexos e erudi-tos da história da arte do século xx (inaugurada pelas colagens cubistas de Picasso e Braque), e seus desdobramentos por Duchamp e as assemblages.

•  Como a apropriação e os deslocamentos da arte popular para a produção artística contemporânea são intensamente utilizados por vários artistas, principalmente brasilei-ros? Ao mesmo tempo, é uma oportunidade de se reconhecer a riqueza da cultura po-po-pular brasileira explorada por outros artistas contemporâneos, tais como Marepe, Paulo Nenflidio, Jarbas Lopes e muitos outros novos artistas.

•  No Brasil podemos identificar a relação entre a cultura popular brasileira e a arte erudi-ta desde a Semana de Arte Moderna de 1922. O país era então redescoberto por Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Tarsila do Amaral, entre outros artistas, ao mesmo tempo em que Villa-Lobos realizava na música os mesmos deslocamentos.

•  Essa  fusão é crescente nas últimas décadas na arte  contemporânea. À medida que as categorias da arte se findaram no século xx, pintura, escultura e as outras práticas artísticas tradicionais, principalmente vinculadas às escolas europeias (Belas Artes), surge um emergente e crescente interesse nas artes populares. Ao mesmo tempo, o artista contemporâneo, tal como Rosana, se apropria desses objetos, deslo-cando-os para dentro de um outro sistema de metáforas. O valor artístico também se deslocou ao longo deste último século, do saber e virtuose do fazer artesanal para o sujeito construtor de linguagens e metáforas. Isso se equivale à passagem de homo faber para homo luden.

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•  Não se trata de buscar aprender a fazer as garrafas com desenhos na areia (homo faber), mas deslocar a importância da arte na capacidade de construir novas linguagens, novos meios de expressão, novos jogos de metáforas e percepção. A natureza do homo luden está justamente neste atributo, de jogar com as palavras e os significadosdas coisas.

REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

O filme Casa de areia, 2005Direção de Andrucha Waddington O filme se passa nos Lençóis Maranhenses e conta a vida de um casal que, em busca de terra fértil, acaba rodeado por areia das dunas trazida pelo vento. O filme mostra duas gerações de uma mesma família vivendo no total isolamento, em uma pequena casinha, quase sempre tomada pela areia, em um “mundo deserto”, onde a passagem do tempo é subvertida, e a relação entre os personagens é intensificada por esse ambiente.

A ampulheta Conhecida por relógio de areia, a ampulheta teve sua invenção atribuída a um monge de nome Luitprand, que viveu no século VIII. No entanto, as primeiras referências desse tipo de objeto aparecem apenas no século xIV, onde a vida nas navegações era regulada pelo instrumento. Existiam ampulhetas para tempos de uma, duas ou mais horas, mas as mais usadas eram as de meia hora, também conhecidas como relógio. Ao virar a ampulheta, o marinheiro tocava o sino: uma badalada às meias horas e pares de badalada correspondentes a cada quatro horas. Um par à primeira, dois à segunda etc.

Referências artísticas Em 1999, Katie Schapemberg desceu do Museu de Arte Contemporânea de Nit-erói para a praia da Boa Viagem, por ocasião de sua exposição Feuerbach e Eu na Paisagem, com curadoria de Paulo Herkenhoff. Essa experiência na praia foi catalisadora de inúmeras questões que atravessaram a história da pintura, prin-

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cipalmente sua travessia transcultural da Europa para o Brasil. O próprio Museu, como instituição de preservação de objetos, foi desafiado pela condição de “imper-manência” de uma pintura, que, segundo as palavras de Katie, desenha o tempo. Com uma moldura padrão, de cor vermelha, a artista deposita pigmento, também vermelho, sobre as areias brancas junto à arrebentação. A artista oferece ritualisti-camente o pigmento e a moldura retangular para o mar e o vento desenharem e pin-tarem, pela dissolução da forma. Katie afirmava: “Somos passageiros da paisagem”.

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Entre a paisagem e a escrita

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MAR EGEU (2006)Desenho sobre papel artesanal azul, feito com o nome Mar Egeu,

91 cm x 62 cm x 5 cm

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

Faço um esboço mínimo e depois vou escrevendo. Pego a folha e faço mais ou menos um risco, mas a escrita conduz também um pouco. Eu não tenho toda a consciência do final, esse papel não se pode apagar, por isso não pode ser feito um esboço tão forte, senão ele fica todo marcado. Se você procurar vai ver o esboço no trabalho.

O papel inteiro não pode ser muito grande. Trabalho sentada, a escrita em pé é muito mais dura, para a escrita ter uma fluidez ela tem que ter uma horizontalidade – e no papel grande eu perco totalmente a mobilidade. Então faço nesse papel ou em módulos, em folhas. Vou fazendo um pedacinho, junto com outro, com outro...

Possuo livros sobre gravuras japonesas. Acho que essas são imagens que estão muito impregnadas no nosso dicionário visual.

Esse trabalho de Rosana remete a gravuras japonesas, outra informação da história da arte.

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MAR VERMELHO (2006)Desenho sobre papel artesanal azul, feito com o nome Mar Vermelho,

91 cm x 62 cm x 5 cm.

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PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS

Paulo Reis“(...) Afinal, mapas de estradas, plantas urbanas, cartografias marítimas e o globo terrestre são sinais e formas de localização do homem. A artis-ta utiliza-os de forma conceitual, sem esquecer a plasticidade inerente às suas formas. Assim, uma série de desenhos de mares ganha tons de azuis, e dos rios, verdes. Na série Mares, à primeira vista saltam as refe-refe-rências à gravura japonesa de Hokusai. As vagas do gravador japonês encrespam-se numa alusão ao sublime; as vagas dos mares de Rosana Ricalde são feitas dos próprios nomes dos mares, Mar Egeu, Vermelho, Mediterrâneo etc., escritos em filigrana. Também as correntezas dos rios brasileiros são feitas dos seus nomes. Os mares e rios de Rosana Ricalde têm a leveza de Hokusai na forma; a essência do espírito de continuidade de Nietzsche; e a poética linguística da repetição de Guimarães Rosa (...)” Luciano Vinhosa“(...) Móveis também são os mares que se auto-regurgitam. Batem, chacoal-ham, agitam, tudo transformam em sal e assim muda o tempo tudo. Os de Rosana Ricalde, à deriva do fluxo que escorre da caligrafia, tomam também formas dinâmicas. Eles fazem, em alguma medida, o contraponto necessário com os trabalhos anteriores. A tensão costumeira entre o signo verbal e visual, embora persista nos Mares, encontra-se, no entanto, minimizada. Os sub-stantivos que os compõem – os nomes dos mares – quase se dissolvem a ponto de se tornarem substâncias gráficas. Verifica-se que, submetido a um padrão modular constante, o pensamento se descobre no devir de cada instante em que a mão da artista se deixa levar pela frequência ritmada das ondas. Originalidade parece-me o termo adequado para caracterizar a pos-caracterizar a pos- a pos-tura que deles releva, mas aqui o seu sentido deve ser tomado de forma diferente daquele que, de hábito, lhe atribuímos. No lugar de se referir à sin-gularidade do sujeito, o caráter próprio e particular que lhe atomiza, refere-

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se a seu apagamento pela adoção do gesto molecular. A repetição, creio, é o exercício artístico rigoroso ao qual Rosana se submete para esquecer o eu, reencontrar a espontaneidade do gesto e retornar à origem. Entretanto, o que se exprime não é de forma alguma o nó em mim dos expressionis-tas, mas antes um nós em mim, como nos rituais mantras e sufistas. Neste sentido, a repetição também pode ser entendida como uma espécie de ex-ercício moral. Não me pareceria fortuita e desnecessária a comparação de seus Mares com as gravuras orientais, em especial as de Hokusai, esse excepcional artista japonês em quem Rosana parece se inspirar. Como se sabe, a arte oriental tradicional tem-se valido de uma relação com a imi-tação bastante diferente da do Ocidente. Não é questão o fato de alguns dos Mares de Rosana lembrarem eventualmente os de Hokusai, mas de buscar no mestre a inspiração para o traço e o ritmo perfeitos que evidenciam a vitalidade de sua arte. Isso que conta são as similaridades internas. Assim, a prática artística é antes uma atitude ética capaz de orientar a vida (...)”

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

•  Mais uma vez se propõe compartilhar sensações e impressões que mudam com a dis-tância em relação à obra. Observar a grande ondulação dos mares e apreciar, de perto, os detalhes da preciosa caligrafia. Perceber a cor do papel, o formato etc.

2. Percepções intuitivas

•  Propõe-se observar e visualizar como parte dessa completa confluência entre forma e conteúdo – entre imagem e escrita – e o ato de leitura. O jogo artístico se inicia quando essa conjugação é discutida como alma e corpo da obra. Mas, ao se reconhecer como corpo, também parte desse jogo, as sensações se unem às estratégias artísticas espa-ciais e temporais de se incluir o leitor participante no ato de fazer sentido a obra.

•  Ao primeiro olhar, no jogo de distâncias entre leitor e obra se inauguram mudanças de entendimento. É pela intuição que esse jogo pode ser percebido como armadilhas intencionais e surpresas. A partir desse momento novas percepções intuitivas são aber-tas. Estas são parte da própria poética em ação – este é um ponto de passagem entre o primeiro olhar e o que se torna parte das percepções intuitivas.

•  A escrita nessa série de trabalhos da Rosana pertence ao microcosmo: só vê quem se aproxima. O minúsculo gesto que vai compor as grandes ondas é em si a causa que estrutura e cria a força e a forma do todo, a imagem! Pequenos gestos (da caligrafia) são descobertos somente pela atenção de um observador junto ao trabalho. Rosana se dedica à escrita com tal virtuose como um escriba chinês, que transmite o sentido das coisas além do processo falado.

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3. Percepções metafóricas

•  Como avançar para as percepções metafóricas? Forma é conteúdo. Assim, as ondas anônimas e passageiras do mar são expressas por sua identidade fixa – os nomes dos oceanos. Mais uma tensão entre contrários – o nome dos mares é fixo, mas as ondas, como os ventos, são passageiras. Nessa obra a escrita se torna uma língua gráfica, isto é, ela é a grafia de uma ideia, o que remete à origem do sistema chinês de escrita, em que as grafias são elas próprias a forma de uma ideia, transportadoras de sentidos. Ultra-passa a escrita que se vincula à língua falada, ultrapassa o registro gráfico dos fonemas.

•  A caligrafia se torna arte e sabedoria desde os primórdios da civilização chinesa.  Na cultura islâmica, a caligrafia se torna sagrada, como materialização do indizível nome de Deus. Desde a sua origem, a forma da escrita se desenvolve sempre no sentido de ser o próprio conteúdo de uma ideia.

•  Na relação entre desenho da onda no mar e a escrita “mar”, se define um exercício de metalinguagem. Os dois meios criam a metáfora da obra, o duplo. 4. Arqueologia da criação

•  De volta ao todo, a onda que a artista escolhe para representar o mar também está carregada de metáforas e simbolismos universais. O mar poderia ter sido representado pela linha calma dos horizontes, mas, pelo contrário, a onda, mais uma vez, desde os chineses, era a montanha móvel nos oceanos. A calma da caligrafia se contrapõe à força móvel das ondas. A pequena escrita acumulada de repetição, “mar egeu” ou “mar ver-melho”, se soma como força e potência de oceano. O que exemplifica a relação sistêmica entre parte e todo, a onda está para o mar assim como todo o mar se envolve na onda.

•  Esse jogo dialogal entre leitor e obra, distância e aproximação, o todo e a parte, como relações indissociáveis, é o que vai dar sentido e complexidade a essa obra.

•  Que texto ou palavra você escreveria no mar? Ele seria calmo, na linha do horizonte, ou agitado como um Tsunami? E a palavra, ela poderia representar esse agitar do mar ou a calmaria? Qual seria ela?

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REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

Caligrafia chinesa A escrita chinesa é ideográfica, ou seja, ela une a ideia com a grafia. Uma pala-vra é muitas vezes apenas um ideograma. Os ideogramas chineses têm uma longa história de desenvolvimento, eles são reconhecidos por formarem uma das línguas escritas mais antigas do mundo. Em diferentes estilos, a caligrafia desses ideogra-mas chineses não é apenas um instrumento prático que pertence ao cotidiano, mas está integrada juntamente com a pintura, uma das mais significativas expressões artísticas da história nacional. Tanto a construção de frases quanto o próprio ato de aplicar a tinta no papel podem ser consideradas formas de expressão artística dentro da cultura chinesa.

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Entre a literatura e a imagem

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GLOBO (2005)Globo pintado e recoberto pelos nomes dos mares escritos,

40 cm x 40 cm x 40 cm

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

Quando é feito um trabalho você não tem todas as respostas, intuitivamente percebe-se o que se quer de fato depois. Mas ouvi de uma pessoa uma complementação à minha ideia que achei tão bonita, sobre a questão da utopia, onde acabam as fronteiras, quando você transfor-ma tudo em mar. Ontem, por exemplo, vi na televisão uma briga que está acontecendo entre a Espanha e os Estados Unidos: eles acharam um tesouro numa faixa do Oceano Atlântico, na parte que é território marítimo espanhol. É muito esquisito pensar que o mar tem dono...

O globo é uma coisa bastante estranha, é um pouco a ideia do dicionário, por ser uma maneira de concretizar a ideia tão abstrata de viver em cima de uma bola. Ele é uma mi-mi-niatura da terra, e até os territórios, tudo é abstrato, toda a demarcação é abstrata.

Antes do globo havia a crença de que a terra era um plano – você chegava a um ponto e caía no buraco. O globo traz a ideia de que você pode circular. Há nele a ideia de recobrir: eu pinto e o apago todo com tinta PVC, e escrevo com caneta de projetor em cima.

O advento do globo foi uma revolução, que nasceu junto às grandes navegações. Primeiro vieram os mapas e as cartas, planos, ligados à razão: à medida que se navegava se re-faziam as cartas. Até o início das grandes viagens, onde começam a surgir informações novas, quando se transformou o planeta em uma esfera, em torno de 1500 e 1600. O globo foi emblemático por também representar a dominação, como instrumento de poder. No trabalho de Rosana pode ser também percebido o tema da diáspora: a humanidade é uma mistura de raízes, de línguas e culturas, e o planeta todo se une no globo, como um fluxo total. Uma discussão válida quando a globalização é bastante abordada.

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PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS

Paulo Reis “(...) A linguística e a cartografia são complementares na obra de Rosana Ricalde. Mapas de cidades, globos terrestres, labirintos etc. são espaços de reconhecimento topográfico; mas são enunciados linguisticos para responder à grande questão ontológica. Gaston Bachelard na sua A poética do espaço4 procedeu a uma reflexão singular sobre o espaço, criando uma topo-análise ao falar de uma poética do espaço, dando à palavra a missão de elevar o ob-jeto de sua análise, isto é, lugares e espaços, ao nível poético. Os principais espaços preferidos pelo homem, como a casa, o sótão, o porão, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha etc., são espaços da imensidão íntima. A poesia bachelardiana aprofunda o sentido de relação metafísica e psicológica do espaço sobre o homem. Sua poesia pode e deve ser participada pelos seres humanos atentos, sensíveis, imaginativos e abertos ao devaneio. Para Bachelard as coisas do quotidiano devem ser redimidas pela atenção, pela nova significação a que devemos dar-lhes, devendo ser vistas em sua profun-didade, pois fazem parte da nossa percepção mais íntima (...)”

4 Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

•  O que se vê de longe? O que se descobre de perto? Mais uma vez, Rosana joga com as distâncias.

•  Um globo, uma esfera branca, que mais próximo revela toda uma escrita com caneta azul. Fluxo de linhas onduladas verticalmente desenhadas.

2. Percepções intuitivas

•  O globo é usado pela artista como suporte para escrita. Talvez nesse ato se intua um desejo de inaugurar um novo mundo feito só de poesia, reinventado pela arte e não pelos desejos e ambições políticas?

•  Vale ainda  lembrar,  forma é conteúdo: o que significa um globo sem geografia, uma outra grafia se sobrepõe? Um mundo sem terra, só texto. Uma escrita transborda o planeta com linhas de fluxos ondulados. O que significa esse ato “poético ou crítico” sobre o globo? Criar um mundo sem a geografia das divisões e as diferenças políticas e religiosas, inventar um planeta Terra sem terra, pela invasão ou transbordamento da criação artística!

•  Como nos auto-retratos, Rosana apaga uma imagem ou retrato do real, para inscrever a poesia no espelho cego. O globo, agora, é como este espelho cego – que recebe uma car-tografia de navegações imaginárias por escritas de palavras, versos ou nomes dos mares.

3. Percepções metafóricas

•  O que se oferece ao olhar é o reconhecimento do globo como percepção de metá-foras do mundo contemporâneo, nossa casa flutuante no espaço. Mas, também, se so-brepõe uma negação à geografia e à história, por um outro mundo onde a “língua-gráfica”

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une o Polo Norte ao Polo Sul por textos em movimento. A língua escrita (arte) se torna as vias de transporte neste mundo. O mundo se torna pura poesia.

•  Como essas impressões intuitivas se desdobram em reconhecimento de metáforas? A percepção metafórica se baseia sempre em uma negação do significado e ordem esta-belecidos das coisas do mundo.

•  O  exercício  criativo  nessa  obra  se  realiza  como  um  salto  transfigurador  das  coisas comuns pela arte. Lembra a história da arte do início do século xx e a prática inaugurada pelas colagens cubistas, ou, ainda mais tarde, nos anos 1960, com a Pop Art. Rosana não está repetindo essa história. Existe um impulso visionário nesse trabalho que talvez não caberia junto à ironia ou ao ceticismo dos anos 1960. Essa obra tem mais a ver com um res-gate de amor à arte e, através desta, ao mundo. Sem dúvida a própria escolha do globo já é um forte apelo a uma metáfora de reinvenção do mundo e das culturas unidas pela arte.

4. Arqueologia da criação

•  Assim como a  história  dos  auto-retratos  está presente desde os  tempos greco-ro-manos na arte, o globo também é parte de um salto na história da humanidade. Desde a sua emergência na era das grandes navegações, nos séculos xV/xVI, sua presença é reconhecida em obras de Vermeer, Dürer e outros grandes artistas. Sua potência de abstração, como também de inauguração de um entendimento de unidade planetária, resulta em rápido reconhecimento como símbolo de dominação – mares, descobertas e riquezas de mundos e culturas distantes –, tornando-se parte do mobiliário tanto dos aristocratas como dos grandes comerciantes emergentes do mundo moderno.

•  No mundo contemporâneo a globalização  repõe sobre o globo uma crítica a essa polêmica história dos impérios colonizadores, fundada sobre uma ótica eurocêntrica. Nel-son Leirner cobre também o globo com os símbolos do imperialismo americano, sob uma ótica irônica da Pop Art.

•  A globalização pode ser redimensionada como uma unidade de deslocamentos de cultura, economia e política, juntamente com as novas geografias da internet, onde o tempo de comunicação é instantâneo, sem fronteiras. A realidade virtual é principalmente

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de troca e fluxos de textos e imagens entre lugares, sem distância, sem terra. A geografia da era digital é também a da desterritorialização, ou desmaterialização do mundo e suas relações físicas. As navegações globais são por circuitos de redes digitais em espaços privados, como esse trabalho pode também sugerir.

•  O mundo e a linguagem se unem. Só existe no real aquilo que a linguagem nomeia. Quando caminhamos dentro de casa ou na rua, tudo ao nosso redor é texto, é palavra. Só vemos aquilo que temos uma palavra para nominar. Os índios não viram as caravelas ao longe porque não tinham uma palavra para elas, acreditam alguns. Outros dizem que, para algumas tribos, já existia uma profecia dessa chegada dos deuses e suas grandes naves.

REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

Luiz de Camões – Os Lusíadas Nascido no século xVI, na época da Renascença, é considerado o maior escritor da língua portuguesa de todos os tempos. Soldado e poeta, viveu uma vida plena de aventuras a serviço do reino português, batendo-se contra mouros, beduínos e outros inimigos da Coroa. Viajante emérito, seguiu para o Marrocos, onde perdeu o olho direito numa batalha contra os mouros. Na costa da Conchinchina, seu navio naufragou, e Camões perdeu a companheira Dinamene, mas conseguiu salvar os originais de seu futuro épico Os Lusíadas. O livro é composto por 10 cantos:

Trecho do Canto I: “As armas e os barões assinaladosQue da ocidental praia lusitanaPor mares nunca dantes navegadosPassaram ainda além da Trapobana,Em perigos e guerras esforçadosMais do que prometia a força humanaEntre gente remota edificaramNovo reino, que tanto sublimaram E também as memórias gloriosas

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Daqueles reis que foram dilatandoA fé, o império, as terras viciosasDe África e Ásia andaram devastando,E aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da morte libertando:Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte (...)”

Trecho do Canto x: "(...)Vês aqui a grande máquina do Mundo,Etérea elemental, que fabricadaAssim foi do Saber, alto e profundo,Quem és em princípio e mente limitada.Quem cerca em derredor este rotundo Globo e superfície tão limada,É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,Que a tanto o engenho humano não se estende (...) "

. O filme O grande ditador, 1940

Charles Chaplin Especialmente a cena de Hitler (Chaplin) jogando o globo, como símbolo de sua ambição pelo domínio ao planeta.

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Construções em palavras

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LEITURA DINâMICA (2003)Estatística das letras empregadas na escrita do Manifesto neoconcreto – impressão sobre papel,

60 cm x 42 cm

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PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA

O primeiro manifesto que fiz foi o Manifesto dadá (trabalho em que a artista produziu um jornal com esse manifesto e todos os significados das palavras contidas). Eu tenho interesse, é claro, pelo Manifesto antropofágico, e tentei uma maneira de trazer isso à tona nos dias de hoje, como trabalhar isso dentro do meu contexto, que é buscar a imagem. Pesquisei manifestos, tenho um livro só de manifestos, e não só brasileiros, mas também da América Latina. Há muitos, só que realmente o Antropofágico tornou-se muito conhecido. Continuei pesquisando. O primeiro trabalho foi uma instalação em que escrevo o Manifesto antropofágico ao contrário: ele fica num corredor de espelhos e a pessoa, para ler o manifesto, tem que olhar para sua imagem e se incluir. Só que a imagem é espelho com espelho, fica a imagem infinita e aquele texto infinito, e a pessoa se vê no meio do texto...

Por que seleciono esses manifestos? É um pouco pensar como hoje se enquadraria al-guém fazer um manifesto na arte, e não só na arte, mas na política também, em tudo, no que acreditamos. O que esperamos de transformações? Estamos em um momento – todo mundo, não só o Brasil – de descrença, niilismo, eu não sei qual a palavra certa. O manifesto talvez hoje seja descabido, se você pensar em alguém levantar uma bandeira como uma verdade, porque o manifesto de uma certa maneira é uma crença. Peguei nessa série o Manifesto objeto, o Manifesto neoconcreto, o Ruptura, e o Manifesto antro-pofágico, e no trabalho que eu fiz do jornalzinho tem o Manifesto dadá: cinco momentos que se colocam como verdades capazes de transformar o seu tempo; claro que não transformar tudo, mas transformar algo. E como o artista hoje será capaz de transformar algo? Tentei resgatar ideias e transformei isso em uma leitura que é mais visual do que ideológica.

Acho impossível acreditar em verdades absolutas, mas se não acreditarmos que aquilo que fazemos possa mudar alguma coisa, eu não faria nada. Acredito que o que eu faço é capaz de mudar algo – não tudo, e não que seja uma verdade absoluta, mas que é capaz de transformar. Realmente creio que hoje não cabem mais verdades absolutas, o Mani-festo antropofágico é muito atual... Olhando os outros manifestos eles são muito focados nas artes plásticas. O Manifesto antropofágico é muito mais amplo, ele fala sobre tudo.

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MANIFESTO DE VERBOS (2003) Manifesto antropofágico sem espaços entre as palavras e com os verbos que surgem após essa

junção das palavras colocados em negrito – impressão sobre papel, 60 cm x 42 cm

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Uma coisa que penso também desse mani-festo é que ele é muito bem-humorado. Serve para entender que, hoje, com a globalização, não há nada melhor do que você primeiro prestar atenção em si, para deixar as outras coisas penetrarem. Até o trabalho no espelho que fiz. Fala de você prestar atenção na sua identidade.

Em cada manifesto eu escolhi uma forma. No Manifesto objeto peguei um trabalho do Wal-demar Cordeiro da época chamado A mulher que não é B.B. (imagem). Ele pegou uma man-chete de jornal que era uma mulher com uma criança e usou um programa que transformava imagem em texto, fazendo uma obra com essa foto. Peguei o texto dele, O objeto, e transfor-mei nessa imagem que então ele usou.

O Manifesto antropofágico é o meu preferido. Tem essa coisa de colocar nos dias de hoje: peguei um exercício de poesia usado por um grupo francês de poesia, Grupo Oulipo. Eles tinham várias técnicas de fazer poesia, e eu uti-lizei uma para o texto do manifesto, que era um pouco a deglutição desse texto. Primeiro eu deixei só as palavras com a vogal a, depois só com a vogal e, i, o e u, até o texto ir... Por exem-plo, com a vogal u não tem nada, ficou quase um texto de ponto, vírgula, dois-pontos – se você o ler é como se ele estivesse sendo mas-tigado. Funciona até com outra pessoa lendo, fica engraçado os sons que vão fazendo.

Waldemar Cordeiro (1925-1973)Inicia sua formação artística na Escola de Belas Artes de Roma. Em 1946, vem para o Brasil e fixa residência em São Paulo, onde exerce funções como pintor, escultor, paisa-gista, urbanista e crítico de arte. Em 1951, funda o Grupo Ruptura, juntamente com Ger-aldo de Barros, Luís Sacilotto e outros artis-tas. No ano de 1956 esse mesmo grupo dá origem ao Movimento Concreto Paulista. No início da década de 1960, influenciado pela Pop Art, Cordeiro cria seus popcretos. Em fins de 1968, introduz a computer grafic art no país e torna-se professor da Unicamp, onde passa a dirigir o Centro de Processamento de Imagens do Instituto de Artes.

Grupo Oulipo O grupo Ouvroir de Littérature Potentielle, fundado em Paris em 1960 (por François Le Lionnais, Noël Arnaud, Jacques Bens, Latis, Claude Berge, Jean Lescure, Albert-Marie Schmidt e Raymond Queneau), reuniu vários escritores e matemáticos interessados na in-tersecção entre literatura e matemática, fosse na investigação de princípios combinatórios na estrutura dos textos, fosse na produção de novos textos de poesia e ficção segundo algoritmos e procedimentos formalizados. De certo modo, os membros do Oulipo criaram uma literatura computacional antes dos ins-ins-trumentos informáticos que permitiriam ex- informáticos que permitiriam ex-plorar de forma automática algumas das suas ideias.

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Ao perpassar todo aquele texto, toda a fluidez e a rapidez se perdem. Mas o nosso pen-samento, se formos prestar atenção, não é linear. Há trabalhos de artistas que seguem uma linha, o que eu acho muito complicado. No tempo próprio do nosso pensamento uma coisa puxa a outra, coisas que às vezes nada têm a ver – fico fascinada como a gente é uma máquina.

Enquanto eu fazia os manifestos, pesquisava muito sobre hipertexto. No computador abrem-se janelas, mas a nossa mente é muito mais rápida do que tudo isso – uma coisa leva a outra, que não tem nada a ver diretamente, mas você chega àque-la coisa, e aquilo ali faz uma pequena conexão, que vai levando a outra coisa. Nossa memória é muito maior do que qualquer computador!

Pode-se ver no trabalho de Rosana uma recupe-recupe-ração do manifesto. O manifesto é uma ruptura de ordem: pode-se falar de um dos mais famosos manifestos, de Karl Marx, comunista, um manifesto de uma luta de classe. Após a virada do século XX nascem os manifestos Futurista e Dadaísta, todos eles de certa forma politizados.

Em todas as épocas que surgiram os manifestos o contexto era semelhante ao atual, de uma gestalt. O manifesto vem da Gestalt, onde há um panorama sem direção, com avatares, intelectuais, mais emblemáticos em uma dimensão modernista. No entanto, a dimensão hoje é de descrença a essa liderança; há mais proposição. O Manifesto antropofágico é uma síntese, mas não apenas de transformação; ele é antimanifesto, fala de uma

GestaltGestalt é um termo intraduzível do alemão utilizado para abarcar a teoria da percepção visual baseada na psicologia da forma. A Teo-ria da Gestalt afirma que não se pode ter co-co-nhecimento do todo através das partes, e sim das partes através do todo; que os conjuntos possuem leis próprias e estas regem seus elementos (e não o contrário, como se pen- (e não o contrário, como se pen-sava antes); e que só através da percepção da totalidade é que o cérebro pode de fato perceber, decodificar e assimilar uma ima-gem ou um conceito.

Hélio Oiticica (1937-1980)É considerado um dos artistas mais revolucio-revolucio-nários de seu tempo, e sua obra experimen- de seu tempo, e sua obra experimen-tal e inovadora é reconhecida internacional-mente. Um dos fundadores do Movimento Tropicalista e um dos maiores criadores do Neoconcretismo, movimento tipicamente brasileiro em que os artistas primavam pela experiência em vez de um racionalismo exa-exa-cerbado, priorizado pelo movimento anterior, Concreto.

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DEGLUTIÇÃO DO MANIFESTO II (2003) Manifesto antropofágico com as sílabas separadas – impressão sobre papel, 60 cm x 42 cm

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condição brasileira que serve para hoje. Quando Hélio Oiticica aborda uma vontade construtiva ele fala do Manifesto, do princípio construtivo que está na essência do brasileiro, porque talvez haja uma maturidade em não acreditar mais em ideologias, credos, mas sim em ações antimanifestos, que são as ações coletivas...

Rosana transforma: o trabalho antropofágico é antropofágico na própria forma, porque vai se autodeglutindo, originando uma fluidez que foge às vezes à lógica do manifesto...

Há nesse trabalho uma proposição de fruição da obra de arte. Na Idade Média, quando surge o texto escrito, nos monastérios, o advento da palavra impressa fez com que as pessoas precisassem ler em voz alta para recuperar o sentido, já que a palavra escrita não fazia sentido. Os manifestos da artista são uma volta à degustação do manifesto, onde é feita quase uma desconstrução, uma meta-linguagem de ser antropofágico: vamos ser literal-mente antropofágicos!

A leitura dos manifestos é em forma de hipertexto, cada palavra tem o seu significado. O hipertexto cria discursos simultâneos, textos dentro de textos. Mas nas obras de Rosana isso não acontece; a si-multaneidade é impossível.

As características de hipertexto, das interligações, da complexidade sistêmica são justamente as criações por justaposição de campos e saberes aparentemente desconexos onde a produção artística do século XX avança. Existe um fio condu-tor, a colagem entre a linguagem e a imagem, entre o meio, seja a fita rotuladora, e a metáfora. É criada a ambiguidade.

HipertextoTexto suporte que acopla outros textos em sua superfície, cujo acesso se dá através dos links que têm a função de conectar a con-strução de sentido, estendendo ou comple-mentando o texto principal. Em computação, hipertexto é um sistema para a visualização de informação cujos documentos contêm referências internas para outros documentos (chamadas de hiperlinks, ou, simplesmente, links), e para a fácil publicação, atualização e pesquisa de informação.

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DEGLUTIÇÃO DO MANIFESTO (2003) Manifesto antropofágico escrito apenas com palavras com vogais – impressão sobre papel,

60 cm x 42 cm

Page 88: Exposição Palavras Compartilhadas

MANIFESTO OBJETO (2004) O objeto (escrito por Waldemar Cordeiro) sobreposto à imagem A mulher que não é B.B. (obra de

Waldemar Cordeiro) – impressão sobre papel, 60 cm x 42 cm

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PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS

Paulo Reis“(...) O modernismo, ou melhor, as vozes modernistas aparecem também em outra série, a dos Manifestos. Nestes, Rosana Ricalde apropria-se dos motes que mudaram os rumos da arte brasileira, desde o Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, o Manifesto ruptura, também o Neoconcreto e, por fim, o Objeto, este último pertencente ao artista Waldermar Cordeiro. O primeiro Manifesto dadá também interessa à artista e é associado aos manifestos bra-sileiros pela sua importância histórica e conceitual, pois acabou por abrir ter-ritório para todos os outros manifestos. Em todos esses trabalhos, o que se torna evidente é a intervenção da artista, apagando ou sublinhando o signifi-cado das palavras, criando uma dislexia semântica no espectador (...)”

Guilherme Bueno “(...) Ao escolher os manifestos como tema de uma série de trabalhos, a artista reconhece neles o testemunho enfático da descontinuidade apontada acima. O que eram os manifestos? Não importa se artísticos ou políticos, eles se propun-ham a uma dupla tarefa: excitar seu leitor/ouvinte e cooptá-lo para uma deter-minada causa, ao mesmo tempo em que se lhe ensinava a olhar as coisas de outra maneira. Ele compreende sentindo e vice-versa, mas os dois instantes são vividos separadamente. Os manifestos forneciam uma ótica do mundo. A partir dela, seu destinatário estava capaz de agir – isso valeria tanto para o Manifesto comunista quanto para os escritos em defesa da arte abstrata. Em alguns casos, especialmente no século XX, havia mesmo um elo entre o texto e sua paginação, como se esta última corroborasse uma etapa preparatória do encontro com de-terminadas obras. E, neste último caso, o texto se colocava à beira de transfor-mar-se na própria imagem a ser visualizada, transpondo o abismo que até então o separara desde sempre das obras que tentava explicar.

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Se, por um lado, as obras de Rosana criam essa proximidade crítica com uma tradição visual moderna, elas não se eximem, porém, de colocá-la contra a parede. Em outras palavras, apesar de seus esforços, os manifestos não raro conviviam com uma sintomática falta de sincronia – mesmo que mínima, ain-da assim intensa – em relação aos trabalhos que sustentavam: ora antecipa-vam obras que estavam por existir, ora nasciam quando estas já eram objetos prontos (ou seja, há uma contradição notável de ideias que prenunciavam obras já prontas). Além do mais, a necessidade de propagar uma verdade geral independia da singularidade das obras a serem julgadas. Isto é, eles cri-avam modelos de percepção que estranhamente negavam a verdade espe-cífica de cada obra, inclusive aquelas resguardadas sobre seu manto. Nesse sentido, os manifestos falavam de arte apesar das obras de arte (...)

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TóPICOS PARA CONVERSASE EXPLORAÇÕES SOBRE A OBRA

1. O primeiro olhar

•  Como falar de primeiro olhar diante dessa série de manifestos? Tudo que essas obras invocam é mais uma vez uma armadilha, uma parede contra qualquer juízo interpretativo pelo primeiro olhar. Compartilhar sensações de estranhamento, desafeto, diante dessa obra que exige muito mais que apenas uma apreciação visual.

•  O que se vê são apenas textos. Dessa vez, Rosana toma os textos como material de criação, não como retratos, não como auto-retratos, não como escritas que substituem ima-ima-gens, mas composições e estruturas que desconstroem os sentidos originais dos textos.

•  Esses textos, dos quais Rosana se utiliza para essa série de trabalhos, eram organi-zados ou compostos por grupos e movimentos de artistas. Sua forma tornou-se arte que, ao condenar a corrupção de valores, ou desvios e acomodações dominantes no mundo, principalmente no mundo da arte, manifesta e declara novas direções, e se reinventa. Os “manifestos” fazem parte da história da arte como textos de denúncias e, ao mesmo tempo, de um anunciar de novos valores... Mais um enigma, ou uma série de enigmas: como decifrar essas obras, pois a artista desconstrói os sentidos revolucionários para transformá-los em poesia pura?

2. Percepções intuitivas

•  Já tendo visto várias outras obras de Rosana, algumas intuições podem surgir a partir da lembrança das estratégias utilizadas anteriormente. Os Auto-retratos foram metáforas de espelhos cegos onde se refletiam textos adesivados em fitas rotuladoras, em vez dos retratos dos poetas. Substituiu-se a imagem do autor pela sua criação poética, que, ao se ler, gera outras imagens. Na série Mares, ondas de escritas, mares de mar; mais uma vez a língua gráfica se materializa como uma confluência entre palavras (significantes): muitas palavras juntas dão origem à forma, um oceano de palavras, que leva ao mar – imagem.

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•  As garrafas de areia se tornam metáforas da passagem do tempo pela arte. Em todas essas experiências, Rosana nega a objetividade do valor e significado das coisas em si e superpõe pelo sistema de ressignificações poéticas. Da mesma forma que os globos da Rosana foram apagados para se tornarem apenas uma esfera de fluxos de linhas de uma escrita automática – uma língua gráfica de arte cobrindo o mundo...

•  E nos Manifestos? O mesmo apagamento de mundos e  transbordamentos de arte ocorre nos Manifestos (como um sistema de metáforas). Rosana reconfigura os textos originais em novas formas de leituras e significados. Ao mesmo tempo, os Manifestos de Rosana podem denunciar o que ainda é pouco conscientemente anunciado – estamos no século xxI: devem-se mudar as estratégias de lutas pela arte, ou o papel da arte para produzir novas visões de mundo. Talvez mais delicadas, mais singulares, sem querer transformar o mundo pelas revoluções?

•  O que foi a era dos manifestos na Europa e nos EUA, senão uma época de crença também no poder da arte de mudar o mundo? A arte de Rosana, por sua vez, pertence mais ao século xxI, pois se faz agora como antiarte e anti-revolução. Que mudanças de época e estratégias ela sugere? Pela arte de se dar o direito de ser livre dos compro-missos revolucionários, até pelo contrário, desconstruir as estruturas fixas de sentidos ideológicos em poemas “líquidos”, e com isso desmontar castelos de águas passadas, e homenageá-los como solo revirado para uma nova semeadura e colheita. Sem preten-sões, apenas reescrevê-los, reinventá-los como poeta que saboreia os sons das vogais, as cores e ritmos das palavras sem querer mais fazer mensagens, apenas cavalgar nas nuvens passageiras das palavras.

•  Pode ser sugerida a  leitura em voz alta por várias pessoas ao mesmo  tempo, di-di-ferentes polifonias e teatralizações dos versos em sons visuais, gestos coletivos que expressem apenas o jogo do que se vê desenhado por palavras – tão distantes das vontades revolucionárias dos manifestos. Toda leitura desses manifestos seria transfor-mada em um acontecimento dadaísta e também antropofágico. Para exercitar e digerir essas ações antropofágicas de Rosana, vale a pena viver a metáfora de se retornar ao momento da escrita automática (dadaísta) e à polifonia das leituras coletivas em várias vozes simultâneas, sem ter medo de não fazer sentido, e apenas fazer sentir.

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3. Percepções metafóricas

“Somente a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” Oswald de Andrade

•  Pelo Manifesto antropofágico, Oswald de An-drade degustou os velhos mundos, declarou e denunciou nossa natureza híbrida, dependente e independente da riqueza de se fazer pelo caniba-caniba-lismo cultural. A criação do ser brasileiro ao longo dos 500 anos é pura degustação antropofágica dos atributos e qualidades dos nossos colonizadores – somos parte de uma humanidade que aprende e respeita a diversidade. Somos os europeus ama- a diversidade. Somos os europeus ama-ama-nhã, pois nossa carne, pele e língua nasceram no novo mundo. “Só a antropofagia nos une social-mente, economicamente e filosoficamente.”

•  Assim Rosana realiza literalmente o ato antro-pofágico – deglute o manifesto – e faz dele várias colchas de retalho; sopa de letras (nome de uma outra obra, onde uma sopa de macarrão com letrinhas era servida com todas as palavras que formam o Manifesto antropofágico). Mas, essa vontade antropofágica precisa ser continuada pelos leitores dessa obra. Somente exercemos a fruição dessa obra pela antropofagia – somente a antropofagia pode nos unir. Rosana chega à arqueologia da criação dos manifestos – cada manifesto ela transforma em poesia, um jogo entre amor e obsessão pelos sentidos do fazer artístico, que são exercidos pelos instrumentos da desconstrução e do bricolage – como alguém que

Dadaísmo O Movimento Dada ou Dadaísmo foi fundado em Zurique, em 1916, por um grupo de es-critores e artistas plásticos. Embora a palavra dada em francês signifique cavalo de brin-quedo, sua utilização marca o nonsense ou falta de sentido que pode ter a linguagem. Para reforçar essa idéia foi criado o mito de que o nome foi escolhido aleatoriamente, abrindo-se uma página de um dicionário e inserindo-se um estilete sobre a mesma. Enfatizou-se o ilógico e o absurdo. Entretanto, apesar da aparente falta de sentido, o movi-mento protestava contra a loucura da guerra e sua principal estratégia era mesmo denunciar e escandalizar.

Escrita automáticaA escrita automática consiste em não raciona-raciona-lizar sobre o que se está escrevendo, apenas com um papel e um lápis deixar a escrita fluir, com as palavras que venham à mente.

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MANIFESTO VISíVEL (2004) Manifesto ruptura sobreposto à obra Ideia visível (de Waldemar Cordeiro) – impressão sobre papel,

60 cm x 42 cm

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desmonta brinquedos para tentar reinventá-los. O jogo da criação artística se combina com cu-riosidade, arqueologia, bricolage e antropofagia. É pura poiesis – como os gregos entendiam –, o exercício de inaugurar sentidos para a realidade, e daí inaugurar a realidade como extensão do nosso ser poético.

•  A responsabilidade da arte está no fazer artís-tico que emerge como atos de amor pela arte. Roland Barthes descreve, de maneira inspirada na obra de Cy Twombly, essa relação entre o fazer da escrita da arte e da arte como uma escrita “zero”, ou o zero da escrita, quando ela é totalmente a comunhão entre uma língua especial encarnada na forma escrita.

•  O século XXI chega cansado de rupturas com tradições; é preciso começar do nada – da po-esia. Rosana refaz ou retrata a escrita dos mani-festos como uma escrita zero, que é para ser lida começando do nada – quando então é possível surgir uma outra poesia.

4. Arqueologia da criação

Começamos o século xxI como Ernst Bloch aborda em Pequenos sonhos diurnos8 e neles o “princípio esperança”:

“Começamos sem nada:Movimento-me. Desde cedo na busca. Com-pletamente ávido, gritando. Não se tem o que se

BricolageMais de um objeto colocados juntos de tal forma a ressignificá-los, ou mesmo uma nova montagem das partes de um mesmo objeto.

Cy TwomblyArtista americano (1928). Para Cy Twombly a pintura é entendida como uma caligrafia, ou melhor, Twombly reabre a questão do desenho enquanto expressão gráfica primor-dial, anterior mesmo aos ritmos que geram a caligrafia; uma espécie de escrita, um código gráfico/pictórico. "Cada linha é então a ver-dadeira experiência com a sua história única. Não ilustra; é a percepção da sua própria re-alização", disse.

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quer...Diariamente sem saber o amanhã.”

•  Manifestos: o que são hoje e o que  foram na história da arte? Os manifestos mo-mo-dernos foram em suas respectivas eras textos históricos anti-sagrados; documentos de indignação das vanguardas enquanto jovens diante de suas épocas, que da mesma forma rapidamente envelheceram; ou proposições de novas atitudes e valores – sociais, políticos e artísticos – que sempre pertencerão ao futuro ainda não realizado, sempre antecipatórios de valores ainda por ser conhecidos? São também representantes de uma estratégia de luta coletiva, de tempos de movimentos vanguardistas, principalmente do início do século xx. Mas o “tempo tudo muda” e os manifestos também, ou as maneiras de se manifestar? Os manifestos marcaram uma época de lideranças carismáticas que erguiam suas vozes em forma de arte – e agora, onde e como ser herói?

•   As formas dos discursos ou dos manifestos datam uma imagem que então buscou gritar aos sentidos, aos olhos e ouvidos de uma geração a convocação à luta ou à ironia, ou à renovação inexorável do “tempo que tudo muda”. O Brasil inicia sua modernidade com um manifesto extremamente original – que nos faz conhecer e reconhecer quem nós somos a partir dos outros. Mais ainda, ele propõe uma máxima de sabedoria: “A alegria é a prova dos nove!” Oswald de Andrade concluiu sabiamente pela esperança na alegria como uma sabedoria muito especial que está na singularidade da condição utópica e antropofágica brasileira. A antropofagia contínua é reinaugurada no século xxI por essa obra de Rosana.

•  A  antropofagia  e  o Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade são literalmente poetizados pela desconstrução das palavras, distanciando-as de seus sentidos originais. Desfaz a relação entre palavra e significado, para sobrepor esses vínculos por uma imagem ou um código fonético, através de um ato de destruição e criação poética. Rosana realiza assim, pela licença poética, um ato antropofágico, a deglutição dos fonemas e vogais, se aproxima da escrita zero pela poesia fazendo a metáfora viva da antropofagia.

•  Com isso Rosana canibaliza as vozes do modernismo – dos heróis e profetas da mo-mo-dernidade (Marx) – para invocar revoluções silenciosas e anônimas da arte pós-moderna. Uma mudança de paradigmas pode ser identificada através da aproximação entre os di-di-

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ferentes atos poéticos da Rosana – de apagar globos e geografias políticas, assim como desfazer manifestos em escrita zero – poesia pura.

•  O que é negado e o que é afirmado pela desconstrução dos manifestos em novas construções poéticas – poesias antropofágicas ou poesias concretas?Se, por um lado, os manifestos marcaram época como ruptura e vozes de esperança – esperança ética ou na exigência de renovação –, por outro, reivindicaram para a arte o direito de jogar entre a anunciação de sua morte e a sua constante reinauguração. Nos textos dos manifestos foram registrados os desejos de revolução que marcaram o início e fim da era moderna; mudanças e utopias que fizeram com que artistas se unissem, políti-cos lutassem ou lutam até hoje na crença em uma revolução social pregada no Manifesto comunista; a luta dos trabalhadores e sindicalistas seguidamente levando multidões às ruas, inspirados pelas ideias marxistas.

•  Mas podemos observar também que quase não se criam mais os manifestos como estratégias de envolvimento entre grupos de artistas (vanguardas) e as lutas da nossa época. Será que não existem mais necessidades de lutas ou movimentos artísticos que se considerem vanguardas – anunciadores de futuras formas de ver e ser no mundo?

•  Rosana desmancha a gravidade das estruturas de textos presente nos manifestos, da mesma forma que o fez no apagamento dos continentes na série Globo, cobertos de tinta branca, agora refeitos como percursos e imagens poéticas.

•  Poderia ser reconhecida a emergência de um outro tipo de manifesto nas obras de Rosana ou um outro princípio de esperança, que propõe o fim dos manifestos, mas ao mesmo tempo, pelo poder da utopia antropofágica da arte – de começar do nada, de inaugurar leituras, como sugere Ernst Bloch com a imagem de uma grande roda que recolhe água das camadas profundas do rio para relançá-las na corrente desse mesmo rio. Como um paradoxo entre profundezas e arquétipos que alimentam o movimento de renovação antropofágica da arte, Rosana joga com arquétipos contemporâneos – reinventa os manifestos, da mesma forma que as garrafas mágicas do tempo guar-dado, os globos e os auto-retratos. Em tudo a arte pode habitar por transbordamentos dos pequenos sonhos diurnos propostos por Bloch. Um globo de poesias líquidas em fluxos representa o trabalho do sonhar diurno do artista, de tocar as coisas comuns e as

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mais simbólicas e sagradas, aproximando abismos, transformando em arte! Em todas as negações realizadas pelas operações ou intervenções artísticas de Rosana, às ideo-logias nos manifestos, às geografias no globo, à passagem do tempo nas garrafas com paisagens de areias coloridas, ainda é possível se identificar um princípio de esperança que inspira ou intui suas metáforas.

REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS

Pesquisar no Caderno de Referências os textos : O objeto, Manifesto neoconcre-to, Manifesto antropofágico.

Pesquisar Manifestos: Manifesto futurista – F. T Marinetti, 1909 / Construtivismo – Naum Gabo, 1937 / De Stijl – Piet Mondrian, 1919 / Manifesto realista – Naum Gabo, Pevsner, 1920 / Manifesto pau-brasil – Oswald de Andrade, 1924 etc.

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Bibliografia BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.BLOLCK, Ernest. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005. BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. Rio de Janeiro: Globo, 2001. BRISSAC, Nelson. O olhar do estrangeiro. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Cortez, 1993. (Coleção Questões de nossa época, 13). GABLIK, Suzy. Progress in art. New York: Rizzoli International Publications, 1979.GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999. LEITE, José Roberto Teixeira. 500 anos da pintura brasileira: uma enciclopédia interati-va. Rio de Janeiro: Logon Informática, 1999. 1 CD-ROM.MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2003.O NAVEGANTE. Tradução e posfácio Rodrigo Garcia Lopes. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. Tradução: The Seafarer.NÚMERO, São Paulo, n.3. Disponível em: <http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.rede/numero/rev-numero3>.PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1996. RICOER, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000. SACKS, Sheldon. Da metáfora. São Paulo: EDUC: Pontes, 1992. VICO, Giambatista. The First New Science. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002.

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