exposição e método dialético em o capital - marcos lutz muller

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  • 7/27/2019 Exposio e Mtodo Dialtico em O Capital - Marcos Lutz Muller

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    Exposio e Mtodo Dialtico em O Capital

    Marcos Lutz Mller

    A progressiva perda de especificidade metodolgica do conceito de dialtica, paralela generalizao

    do seu uso e sua ampliao semntica, desembocou, hoje, nas verses no ortodoxas ou humanistas domarxismo, numa comprometedora diluio terica do conceito, reduzido, muitas vezes, a um adjetivopleonstico que qualifica um substantivo inexistente, ou, no marxismo-leninismo convertido em viso demundo, no seu alinhamento ideolgico, que evita voluntariamente aquela diluio pela invocao dogmticadas trs leis de Engels, reabilitadas em 1956.

    Mas nenhum dos elementos constitutivos ou dimenses da dialtica como mtodo foi to atingida poresta dissoluo terica e soterrada pelo esquecimento quanto a caracterizada pelo conceito de exposio('Darstellung'), que indicava para Hegel e para o Marx d'O Capital a explicitao racional imanente do prprioobjeto e a exigncia de s nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido1. Quando no sedesprezou ou recusou pura e simplesmente o carter dialtico do mtodo d'O Capital como um hegelianismocomprometedor, descartando simultaneamente o conceito de uma exposio dialtica enquanto mtodo, comoj fizera o primeiro resenhista russo d'O Capital a que Marx se refere no Posfcio segunda edio2, e como

    fizeram muitos outros, posteriormente (Bhm-Bawerk, Schumpeter), seja para louvar o verdadeiro trabalhocientfico de Marx e distingui-lo da exposio dialtica, seja para julg-lo comprometido por esta e rejeitarambos, quando no ocorreu isso, apagou-se, aos poucos, a conscincia da especificidade filosfica da'exposio' enquanto conceito inserido numa determinada tradio, retomando-se a conhecida contraposiode Marx entre 'mtodo de exposio' e mtodo de investigao"3, para acentuar apenas a necessidade de umesforo prvio de apropriao analtica do objeto anterior sua exposio metdica. Sobre o carter destaexposio metdica existe a maior falta de clareza. Quando no se toma o termo 'exposio' no seu sentidocomum de discurso, de texto escrito (ou falado) que se organiza metodicamente conforme o encadeamento dasproposies, transferindo-se o nus da dialtica para o mtodo de pesquisa, presta-se uma homenagemencabulada ou puramente verbal ao carter dialtico da exposio, concebido vagamente como um mtodogentico. J Hegel dizia que o mais difcil produzir a exposio da coisa, enquanto ela deve unificar a suacrtica e a sua apreenso4.

    Face a essa dissoluo do conceito de dialtica, contrabalanada apenas pelo seu enrijecimentodogmtico correspondente ao seu alinhamento ideolgico na ortodoxia marxista-leninista, imps-se, nosltimos anos, como j em circunstncias histricas anteriores, a tarefa de banhar, mais uma vez, a dialticamarxista nas suas fontes filosficas imediatas, para questionar a interpretao cannica iniciada por Engels eLenin. Trata-se de melhor compreender a motivao original que levou Marx a comprometer-se com ocaroo racional5 da dialtica hegeliana e a conceber a exeqibilidade de uma transformao materialista dadialtica, atravs da crtica frontal aos seus pressupostos idealistas em Hegel e atravs da mutao que elasofre enquanto instrumento de exposio sistemtica e crtica da economia poltica. claro que esteempreendimento s teria a sua justificao plena passando por uma desconstruo hermenutica da histriada atuao da dialtica na tradio terica e prtica do marxismo enquanto pensamento que se pretendeligado histria do movimento operrio. Mas esta uma tarefa quase interminvel e que ultrapassa ospropsitos desta abordagem.

    O caminho aqui proposto antes um atalho: ele mantm na lembrana, como uma espcie de bastidor,os avatares dessa histria da atuao do conceito da dialtica, para abordar com mais justia o intrincadoproblema da incorporao por Marx da dialtica como mtodo de exposio crtica dos resultados de uma

    1 A exigncia de que a exposio, fiel natureza da especulao, deve manter a forma dialtica e s incluir nela o que foiconcebido e enquanto conceito, foi formulada no Prefcio Fenomenologia do Esprito: Fiel viso que atinge anatureza do especulativo, a exposio dever manter a forma dialtica e nada incluir nela seno na medida em que concebido e conceito. HEGEL, Phnomenologie des Geistes, Ed. l-loffmeister, Meiner, Hamburg, 1952, p. 54; trad.Lirna Vaz, em: Hegel, Os Pensadores, Abril, So Paulo, 1975, p. 42. A seguir citado como Phn.2 MARX, Das Kapital, l. Band, Dietz, Berlim, 1968, p. 25. A seguir citado como K, I.3 K, I, p. 25.4

    O que h de mais fcil julgar o que possui contedo e densidade. Mais difcil apreend-lo e o mais difcil produzira sua exposio, que unifica a ambos. Phn., p. 1l; trad. loc. cit., p. 13.5 K, 1, p. 27.

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    cincia social emergente, a economia. Quais os aspectos da dialtica hegeliana da Cincia da Lgica queforam paradigmticos para o projeto marxiano de transformao materialista da dialtica na reconstruosistemtica e crtica da economia poltica burguesa, apresentada n'O Capital?6. Quais as transformaes que ocaroo racional da dialtica hegeliana sofre na tentativa marxiana de desvincul-la dos pressupostosidealistas da metafsica do conceito da Cincia da Lgica e de vir-la materialistamente ao avesso, tornando-a,assim invertida, numa fonte de inteligibilidade das estruturas econmicas da sociedade capitalista? Qual aimportncia do conceito hegeliano de exposio para o mtodo d'O Capital e qual o sentido da retomadadeste conceito numa dialtica que se quer materialista?

    As duas primeiras questes sero abordadas na medida em que elas incidem sobre este elementoconstitutivo ou dimenso do mtodo dialtico designada pelo conceito de exposio. Pergunta-se o que adialtica enquanto mtodo de exposio d'O Capital?7. A abordagem restrita a este aspecto, se insere contudono quadro mais amplo de uma tentativa de analisar, a partir de um confronto entre certas caractersticasmetodolgicas globais da Cincia da Lgica e dO Capital, quatro caractersticas ou, melhor, dimensesprincipais do mtodo dialtico d'O Capital, que poderiam ser concisamente designadas pelos conceitos de:exposio, procedimento progressivo-regressivo, contradio e crtica. O mtodo d'O Capital se caracterizariapor ser uma exposio crtica, progressivo-regressiva das contradies do capital a partir de sua contradiofundamental.

    .....

    Dialtica significa n'O Capital primeiramente e, tambm, predominantemente, o mtodo/modo deexposio crtica8 das categorias da economia poltica, o mtodo de desenvolvimento do conceito decapital9 a partir do valor, presente na mercadoria, enquanto ela a categoria elementar da produocapitalista que contm o germe das categorias mais complexas. O conceito fundamental, aqui, para o Marxcrtico da economia poltica, o de exposio, mtodo de exposio, que designa o modo como o objeto,suficientemente apreendido e analisado, se desdobra em suas articulaes prprias e como o pensamento asdesenvolve em suas determinaes conceituais correspondentes, organizando um discurso metdico.

    Exposio , tambm, um conceito central da dialtica especulativa de Hegel. A Cincia da Lgicase apresenta como a exposio sistemtica das categorias do pensamento puro enquanto formas de concepoda realidade, com o intuito de fundar o prprio conceito de cincia (filosfica) e de mtodo10. Ela pretende,

    6 No s a dialtica lgica, prpria da exposio do auto-movimento do conceito na Cincia da Lgica, que atua notexto e na arquitetnica dO Capital, mas, tambm, a dialtica fenomenolgica, exposta por HEGEL na Fenomenologiado Esprito, como porexemplo no Livro I, captulo 1, dO Capital, a propsito da deduo da forma valor e do ponto de

    partida com a mercadoria, como um imediato tambm fenomenolgico, e no s lgico, e, principalmente, no movimentogeral da exposio do Livro III dO Capital, que conduz reconstituio da gnese necessria das categorias imediatas daesfera da circulao (as formas de rendimento) a partir do movimento do capital social total. Aqui a contraposio selimitar Cincia da Lgica.7 Cf. o ttulo de um artigo de H.F.FULDA, Dialektik als Darstellungsmethode im Kapital von Marx, in: Ajatus 37,Yearbook of the Philosophical Society of Finland, 1978. O presente trabalho deve muito a este artigo, embora noconcorde com ele em todos os pontos.8Darstellungsmethode, Darstellungsweise K, I, p. 25 e 27. A anlise do elemento exposio no mtodo dialtico

    d'O Capital no pode, em nenhum momento levar ao esquecimento de que a exposio das categorias da economiapoltica est indissociavelmente unida crtica, e que este um dos aspectos em que a exposio dialtica de Marx sedistingue da de Hegel. A exposio essencialmente crtica porque ela s reconstitui a totalidade sistemtica dasdeterminaes do capital, atravs da tematizao da sua estrutura e do seu movimento contraditrios, a partir da

    pretenso de dominao total do capital sobre o trabalho e do seu malogro sistmico (crise), visto que o capital dependedo trabalho, formalmente, enquanto trabalho assalariado, e materialmente, enquanto o trabalho objetivado, morto,constitui o nico contedo social do capital. Enquanto exposio das contradies do capital ela essencialmente crtica,embora a crtica se exera exatamente e apenas (enquanto teoria) atravs da exposio sistemtica da sua instabilidadeestrutural e da necessidade da sua superao.9 MARX, Grundrisse der Krik der politischen konomie, Dietz, Berlin, 1974, P-405. A seguir citado como naexposio do conceito de capital, diz Marx, no se trata de uma forma particular do capital, nem do capital individualentre outros capitais individuais, mas do capital em geral como o conjunto de determinaes que distinguem o valor,enquanto capital, de si mesmo como mero valor ou dinheiro. G., p. 217. As reaes posteriores devem ser consideradas

    como desenvolvimento a partir deste germe. Ibid. - As tradues, quando no houver indicao contrria, so do autor.10 HEGEL, Wissenschaft der Logik, Ed. Lasson, Meiner, Hamburg, 1963, vol. I, p. 23 e 31. A seguir citada como WL, I eII.

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    assim, justificar o seu nico pressuposto, o de que a razo, especificamente, o conceito enquanto idia, tem emsi a fora infinita de sua auto-realizao11. O conceito de exposio na Cincia da Lgica est, assim,vinculado intimamente a um projeto de autofundao da razo e do prprio mtodo, enquanto este nada mais do que a forma do automovimento do contedo enquanto ela tem conscincia de si 12. Dialtica designa, aqui,genericamente, a exposio do movimento lgico do contedo (da coisa concebida, Sache) enquanto estemovimento que preside ao desdobramento das determinaes do contedo e se constitui, desta maneira, comoo seu mtodo. E o prprio Hegel quem d ao conceito de exposio a conotao metafsica da explicatioDei para acentuar o aspecto simultaneamente subjetivo e objetivo da exposio13. Mais especificamente, adialtica designa o princpio motor do conceito14, o princpio do movimento que preside exposio dasdeterminaes, que se produzem a partir do universal e nele se dissolvem. Estritamente falando, apenas osegundo dos trs momentos em que se articula, conforme a Enciclopdia, a dimenso lgica, o momentonegativo-racional qualificado de dialtico15.

    O conceito de mtodo de exposio em Marx guardar no s reminiscncias do conceito hegelianode exposio, mas um dos seus elementos essenciais. Quando Marx, em 1857, se lana s primeiras tentativasde uma crtica sistemtica da economia poltica, que vo resultar nos Grundrisse, e se pe a questo de comoorganizar sistematicamente os resultados de suas investigaes crticas dos teoremas e das categorias daeconomia poltica burguesa, ele recorre explicitamente ao conceito hegeliano de dialtica enquanto mtodo de

    exposio16

    . A dialtica enquanto mtodo caracteriza um procedimento que pretende expor construtivamenteo desenvolvimento conceitual do capital (G, 405) enquanto capital em geral (G, 217), o capital enquantotal, isto , o capital social total (G, 252) a partir de sua forma elementar (K, I, 49), a mercadoria (enquantoobjeto imediato da circulao e forma econmica dos produtos do trabalho humano), e das determinaesprogressivas das formas de manifestao do valor, presente na mercadoria: forma-valor simples, forma-valortotal, forma-valor universal, dinheiro em suas determinaes fundamentais. Ela reproduz, assim, idealmente, omovimento sistemtico (lgico) atravs do qual o capital se constitui naquilo que , autovalorizao do valor.Mas enquanto na Cincia da Lgica a exposio das determinaes progressivas do pensamento puro,enquanto conceito, simultaneamente o processo de sua autodeterminao e de sua auto-realizao, at eleemergir como sujeito ltimo e atividade pura (idia) que perpassa todo o processo como o seu mtodo (WL,II, 484 e 486), n'O Capital, que tematiza uma relao social inserida na materialidade da produo, aexposio enquanto mtodo no ela mesma, simultaneamente, nem o processo de constituio histrica

    dessa relao, nem o processo de sua reproduo enquanto sistema de produo capitalista. Por isso, aexposio marxiana reconstri, no plano ideal, o movimento sistemtico do capital enquanto diferente,logicamente, de sua emergncia e universalizao histricas e diferente, como mtodo, de sua reproduo realsistmica17. A exposio dialtica no , portanto, nem o processo diacrnico atravs do qual o capital se

    11 WL, II, p. 486-487.12WL, I, p. 35: A exposio do que somente pode ser o mtodo da cincia filosfica pertence ao prprio tratado daLgica, pois o mtodo a conscincia sob a forma do movimento interno do prprio contedo.13WL, I, p. 31: A Lgica deve ser tomada, portanto, como o sistema da razo pura, como o reino do pensamento puro.Este reino verdade, como ela em si e para si mesma sem vu. Pode-se, por isso, dizer, que este contedo a exposiode Deus, como ele em sua essncia eterna antes da criao da natureza e de um esprito finito.14

    HEGEL, Rechtsphilosophie, 31. Anmerkung, Theorie Werkausgabe Suhrkamp Verlag, 7, p. 84.15 HEGEL, Enzykloplidie der philosophischen Wissenchschaften, 79 e 81, Theorie Werkausgabe Surhkamp Verlag, 8,p. 168, 172-176.16Em carta a Engels de 14 de janeiro de 1858, Marx se refere ao acaso que o levou a folhear novamente a Lgica deHegel, por receber de presente de Freiligrath os exemplares que pertenceram a Bakunin, e menciona o grande

    prstimo que ela lhe trouxe no mtodo de elaborao da crtica da economia poltica. Neste contexto ele exprime seugrande desejo de, futuramente, se tiver tempo, tomar acessvel ao entendimento comum o que h de racional nomtodo que Hegel descobriu, mas simultaneamente mistificou.. Marx-Engels, Briefe ber 'Das Kapital', Dietz, Berlim,1954, p. 79. Se foi o acaso que devolveu as suas mos a Lgica, no mero acaso que a sua releitura tenha atuado emaspecto to decisivo da sua teoria. Quanto a expresso 'mtodo dialtico, relembra H.F. Fulda (art. cit. na nota (7),Ajatus, 37, p. 192, nota (36)), ela no existe em Hegel e seria mesmo imprpria para designar o que ele compreendiacomo seu mtodo especulativo". A expresso 'mtodo dialtico' foi provavelmente. formulada pela primeira vez, Cf.Fulda, em 1840, por Trendelemburg, em suas Investigaes Lgicas, no contexto da crtica ao 'mtodo especulativo' de

    Hegel.17Meu mtodo dialtico , quanto ao seu fundamento, no s diverso do de Hegel, mas o seu oposto direto. Para Heg el,o processo de pensamento, que ele converte, inclusive, sob o nome de idia, num sujeito autnomo, o demiurgo do real

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    constitui em totalidade, subordinando a si todas as relaes sociais de produo (G., I89), nem o processosincrnico de sua reproduo como sistema. Por isso o desenvolvimento conceitual do capital em geral, nomtodo dialtico, no engendra o capital no sentido em que o conceito hegeliano se autodetermina criando aesfera de sua realizao e manifestao, mas ele , primeiro, a condio de compreenso adequada do devirhistrico do capital e da sua constituio em totalidade, e segundo, ele pretende ser apenas, isto , to s ecabalmente, a exposio das articulaes sistemticas de todas as relaes econmicas que se implicamreciprocamente numa sociedade submetida dominao do capital18. Como mtodo de exposio dialtica,portanto, distinto do movimento efetivo, ele supe a apropriao analtica prvia do material econmicopesquisado, a investigao das suas formas de desenvolvimento e da sua conexo interna, para entoreconstruir discursivamente (enquanto procedimento do expositor) a lgica objetiva do material. Masenquanto exposio dialtica, ela expressa, reproduz, apenas (to s e cabalmente), em conformidade com aapropriao analtica, o movimento efetivo do material, de modo que este se espelhe idealmente nomtodo19.

    Com o recurso dialtica como mtodo de exposio, no sentido indicado, Marx procura integrar noseu programa de transformao materialista da dialtica especulativa hegeliana, que se realiza atravs dacrtica economia poltica, o elemento especificamente dialtico naquela presente, e que ele julga racional,desde que desvinculado dos seus compromissos idealistas com a especulao20, enquanto unidade resolutiva

    das contradies e integradora do negativo e do positivo (WL, I, 38).O que caracteriza o conhecimento dialtico , primeiramente, que o verdadeiro (Hegel), o racional e oconcreto (Hegel, Marx), no so de acesso imediato a qualquer tipo de intuio intelectual ou experinciadireta, que intuiria ou tomaria o objeto no seu ser dado imediato, mas que eles so o resultado de ummovimento de pensamento, do que Hegel chama de trabalho do conceito, que expe progressivamente, apartir das determinaes mais simples e abstratas do contedo, suas determinaes cada vez mais ricas,complexas e intensas, at o ponto de sua unidade, que no uma unidade formal, mas uma unidade sintticade mltiplas determinaes21. Esta caracterizao vale, em princpio, tanto para Hegel, como para Marx.Conforme a esta exigncia, o verdadeiro concreto da realidade capitalista no dado pela, experincia diretada circulao de mercadorias e pelo movimento dos preos, isto , pelas categorias da circulao, mas oresultado de um processo de pensamento que reconstri a constituio sistemtica do capital a partir dasdeterminaes mais simples, abstratas e aparentes da produo capitalista (mercadoria, valor, dinheiro,

    circulao), para chegar as mais ricas concretas e essenciais, atravs da explicitao das categorias da

    efetivo, que constitui apenas a sua manifestao externa. Para mim, inversamente, o ideal nada mais do que o materialtransposto e traduzido na cabea humana. K, I, 27.18 Neste sentido legtimo dizer que o conceito de capital precede, logicamente, o capital como processo histrico ecomo sistema que se reproduz. Se no sistema burgus completo cada relao econmica pressupe a out ra na formaeconmica burguesa e assim tudo o que posto simultaneamente pressuposto, o mesmo acontece com todo sistemaorgnico. Este sistema orgnico tem seus pressupostos mesmo enquanto totalidade, e seu desenvolvimento para atotalidade consiste em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em criar a partir da totalidade os rgos queainda lhe faltam. Ele torna-se, assim, historicamente uma totalidade. O devir para esta totalidade constitui um momentodo seu processo, do seu desenvolvimento. G., p. 189.19A pesquisa deve apropriar-se detalhadamente do seu material, analisar as suas diversas formas de desenvolvimento e

    rastrear o seu nexo interno. Somente aps consumado este trabalho pode ser adequadamente exposto o movimentoefetivamente real. Conseguido isso, e se a vida do material se espelha idealmente, pode parecer que se tem a ver comuma construo apriori. K, I, p. 27.20 Trata-se da conhecida distino, afirmada por Marx, entre o 'envoltrio mstico' e o caroo racional' da dialt icahegeliana. K, I, 27 Tanto verdade que esta dialtica a ltima palavra de toda a filosofia, quanto necessrio libert -lada aparncia mstica que ela possui em Hegel. Carta de Marx a Lassalle, de 31 de maio de 1858, Marx -Engels Werke,Dietz, Berlim, 1973, vol. 29, p. 561.211. A dialtica tem um resultado positivo porque ela possui um contedo determinado ou porque o seu resultado ,verdadeiramente, no o nada vazio, abstrato, mas a negao de certas determinaes, que esto contidas no resultadoexatamente porque este no um nada imediato, mas um resultado. 2. Este racional , por isso, embora algo pensado etambm abstrato, simultaneamente um concreto, porque ele no a unidade formal, simples, mas a unidade dedeterminaes diferentes. HEGEL, Enzyklopdie 82, Suhrkamp, 8, p. 176-177. O concreto concreto porque sntese de muitas determinaes, isto , unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo

    de sntese como resultado, no como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto departida tambm da intuio e da representao. G., p. 21-22. Trad. Giannotti/Malagodi em: Marx, Os Pensadores, Abril,So Paulo, 1978, p. 116.

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    produo a partir da lei da valorizao (mais-valia, explorao, tempo de trabalho, trabalho necessrio eexcedente, mais-valia absoluta e relativa, cooperao, diviso do trabalho, maquinaria, trabalho assalariado,reproduo e acumulao, para indicar algumas das principais categorias do Livro I dO Capital).

    E uma das crticas principais e constantes de Marx ao mtodo da economia poltica burguesa,inclusive a Smith e Ricardo, a de que ela permanece exterior ao seu objeto por ser incapaz de desenvolver assuas determinaes categoriais a partir do seu movimento essencial, a lei do valor, enquanto determinaescada vez mais complexas do trabalho abstrato objetivado. No sabendo utilizar o mtodo gentico, a economiapoltica burguesa toma as suas categorias diretamente da empiria e as emprega como conceitos descritivos22das formas econmicas em sua aparncia imediata, sem conseguir penetrar em suas relaes essenciais. Porisso ela termina expondo o processo de reproduo global do capital na tica do capitalista individual e nosabendo conectar esta descrio, feita da perspectiva do agente econmico individual, com a explicao doprocesso global a partir de sua lei essencial. Isso vai refletir-se na arquitetnica errnea da obra de Smith eRicardo, que so incapazes de revelar a articulao das categorias no prprio movimento do valor. Almdisso, ela no consegue explicitar as categorias de mediao entre a lei do valor e os fenmenos da esfera daconcorrncia entre os capitais individuais, por exemplo, a formao da taxa geral de lucro e dos preos demercado (em Ricardo por causa identificao entre valor e preo de custo), limitando-se, ento, a subsumirdiretamente os fenmenos da concorrncia sob a lei do valor ou a abandon-la para salvar os fenmenos.

    O mtodo dialtico quer superar essa exterioridade do conhecimento em relao ao objeto e aconcepo instrumental de mtodo ai presente. Ele exige que o conhecimento apreenda as determinaes docontedo no prprio movimento pelo qual elas se desdobram, estabelecendo a conexo necessria e imanenteentre elas23. Ele neste sentido apenas ex-posio da lgica objetiva da coisa, exprimindo to s e cabalmenteaquele movimento. Alm disso, a dialtica concebida por Hegel como o princpio ativo do desenvolvimentodas determinaes e como o seu vinculo necessrio. Esta dialtica no um fazer externo de um pensamentosubjetivo, mas a prpria alma do contedo, que faz brotar organicamente seus ramos e seus frutos.24. Ela no o instrumento de um conhecimento que busca, mas o ser determinado em si e para si do conceito noconhecimento verdadeiro (WL, II, 487). Por isso ela , para Hegel, no s o conhecimento do absoluto, mas oconhecimento de si do prprio absoluto no processo de sua determinao (particularizao e juzo, partio,Urteil) e de superao e dissoluo das determinaes opostas numa unidade integradora. Este o sentido daespeculao na dialtica especulativa: autoconhecimento do absoluto na oposio das suas determinaes e na

    unidade positivo-racional que integra o negativo e o positivo.Aqui surge a questo crucial do projeto marxiano de transformao materialista da dialticaespeculativa: como retomar a idia de conhecimento dialtico sem comprometer-se com a componenteespeculativa da exposio dialtica e sem romper com a crtica do jovem Marx aos seus aspectosmistificadores e harmonizantes? A questo se impe de maneira tanto mais aportica quanto Marx partilhapositivamente com Hegel o esforo do conceito, isto , o esforo de um pensamento que deve se despojar desuas opinies, preconceitos e hipteses externas ao objeto, e que deve abdicar, como diz Hegel, daqueladesenvoltura que paira vaidosamente acima do contedo, para mergulhar decididamente no objeto econsiderar apenas o movimento prprio do contedo25e apenas trazer conscincia este trabalho prprioda razo da coisa26. Se a dialtica, tambm para Marx, no uma tcnica de interveno externa no objeto,um saber metodolgico que o manipularia conforme hipteses que o analista traz consigo, como conservar asua componente autoexpositiva, o trabalho da razo da coisa, apreendido por uma viso pura (teoria) no

    sentido literal da especulao enquanto espelhamento, sem comprometer-se com a sua componente

    22 'Verstandesbegriffe', conceitos do entendimento, como diz Marx, aludindo diferena entre entendimento e razo,nas Teorias sobre a Mais-Valia. Marx-Engels Werke, vol. 26/2, p. 156.23O dialtico constitui, por isso, a alma motora do avanar cientifico e o princpio pelo qual, unicamente, advm ao contedo da cincia conexo imanente e necessidade, assim como no elemento dialtico em geral esta a elevaoverdadeira e no exterior sobre o infinito. Enzyklopkidie, 8lA, Suhrkamp, 8, p. 173.24 HEGEL, Rechtsphilosophie, 31A, Surhkamp, 7, p. 84 e 85. O pensamento enquanto subjetivo apenas olha estedesenvolvimento da idia enquanto desenvolvimento da prpria atividade da sua razo. Considerar algo racionalmenteno significa trazer de fora ao objeto uma razo que se lhe acrescenta e trabalh-lo por ela, mas, sim, que o objeto racional para si. Aqui o esprito, em sua liberdade, a ponta extrema da razo autoconsciente, que se da a realidadeefetiva e se produz como mundo existente. A cincia tem apenas a tarefa de trazer a conscincia este trabalho prprio da

    razo da coisa. Ibid.25 HEGEL, Phn., 48. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 38. Compare-se Phn., p. 45.26 HEGEL, Rechtsphilosophie, 31A, Suhrkamp, 7., p. 85.

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    propriamente especulativa (vinculada ao sistema), de um autoconhecimento do absoluto na superaopositiva das contradies em uma unidade integradora e sistemtica? Numa palavra: como no mtodo deexposio no se desfazer da dialtica ao rejeitar a especulao? Como expor a lgica do capital (no sentidodo espelhamento, da transposio/traduo ideal do movimento efetivo K, I, 27) sem o acesso a umequivalente do saber absoluto, que deixaria o contedo mover-se segundo a sua prpria natureza, ou seja, pormeio de Si como Si do mesmo contedo e apenas contemplaria esse movimento27? Como conceber umadialtica real do capital sem a explicitao prvia das estruturas racionais do real na Cincia da Lgica?Como compreender, para formular quase absurdamente, que o que resultado do pensamento, o verdadeiroconcreto, possa impor seu movimento prprio a um esforo conceitual que deve to s considerar,contemplar este movimento?

    Como evitar o duplo escolho de uma dialtica materialista, tributaria em sua inteligibilidade dadialtica hegeliana, a nica a possuir inteligibilidade prpria e autnoma, graas ao seu idealismoconseqente28, e o do achatamento vulgar-materialista da dialtica em termos de espelhamento(Widerspiegelung), este bastardo positivista da especulao hegeliana, que assolou a tradio marxistafazendo-a regredir a uma posio pr-kantiana? O que significa que a dialtica hegeliana esta de ponta-cabeae como entender adequadamente o programa marxiano do umstlpen (inverter e virar ao avesso) da dialticaespeculativa?

    Marx o legitima, num primeiro momento, ao afirmar a possibilidade de uma distino de princpioentre o potencial critico29 e de inteligibilidade da dialtica hegeliana e as implicaes idealistas que a falseiame a mistificam. Mas o abuso da metfora da extrao do 'caroo racional' do seu envoltrio mstico, comonico esclarecimento questo posta, acabou por exauri-la e tom-la um expediente. E associada outrametfora da 'Umstlpung', traduzida insuficientemente por inverso, ela termina por tornar aquela extraouma operao de mgica trivial, como se bastasse por, novamente, a dialtica hegeliana de p, restabelecendoos direitos do realismo da conscincia natural face ao idealismo de especulao, para que a prola sassesozinha da ostra. No basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulao j inverteu, com a intenode fazer a dialtica hegeliana andar com os prprios ps, para que ela revele um potencial de racionalidadeque a projete alm de seus limites idealistas. E preciso, alm de invert-la, vir-la ao avesso, como exige aoutra significao presente na palavra alem umstlpen, mostrando que as contradies presentes nosfenmenos no so a aparncia de uma unidade essencial, mas a essncia verdadeira de uma objetividade

    alienada (e no da objetividade enquanto tal)30

    , e que a sua resoluo especulativa na unidade do conceito que representa o lado aparente, mistificador, de uma realidade contraditria. Virando ao avesso a realidadeinvertida, alienada pelo capital, enquanto figura objetiva consumada da propriedade privada31, acontradio, que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, na prola racional destarealidade, e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradies, revela-se como o seuexterior aparente, o seu envoltrio no s mstico, mas mistificador32. Da a importncia de reler O Capitaltambm numa perspectiva de continuidade da crtica do jovem Marx a Hegel, particularmente da crtica aoduplo aspecto mistificador do idealismo: ao aspecto positivista, enquanto o dado imediato, o existente,transfigurado pela especulao, assumido acriticamente e ratificado em sua positividade pelo sistema, e aoaspecto especulativo, propriamente idealista, enquanto resoluo harmonizante das contradies numaunidade essencial, que se torna para Marx aparente, ideolgica. E preciso interpretar a Umstlpung neste horizonte, para que a crtica ao idealismo d plenamente os seus frutos. Marx fala do positivismo acrtico e

    do idealismo acrtico das obras posteriores Fenomenologia33, do falso positivismo e do criticismo

    27 HEGEL, Phn., p. 48. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 38.28 Posio defendida com solidez e esprito de sistema por Klaus Hartmann, Die Marxsche Theorie, De Gruyter, Berlim,1970, embora no irretorquivelmente.29 Tanto a critica de Marx Filosofia do Direito de Hegel quanto a crtica a Fenomenologia do Espirito do terceiromanuscrito dos Manuscritos Econmico-Filosficos destacam o potencial critico da filosofia hegeliana, no primeiro caso,o da Cincia da Lgica, no segundo, o da Fenomenologia, mostrando que apesar da mistificao idealista, a filosofia deHegel no se limita a transfigurao do real e a resoluo ideolgica das contradies. Cf. Marx, Friihschriften, Ed.Furth/Lieber, Cota Stuttgart, 1962, vol. I, p. 644.30 MARX, Frhschriften, vol. I, 654. A seguir abreviado FS.31 MARX, FS,p.589.32

    Devo a H.F. Fulda, ao artigo citado na nota (7), p. 186-187, a anlise do duplo significado da 'Umstlpung' e das suasimplicaes crticas.33 MARX, FS,p.644.

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    aparente34 do idealismo, para denunciar este estranho e surpreendente conluio entre especulao epositivismo na lgica especulativa. A inverso que ela provocou ao atribuir a verdadeira atividade esubjetividade idia, impe a Hegel, diz Marx, no mais a tarefa de conduzir a existncia emprica suaverdade, mas, inversamente, de realizar empiricamente a verdade lgica, assumindo, assim, acriticamente,uma existncia emprica como verdade efetiva da idia35. Mas nesta perspectiva da continuidade entre a crticaao idealismo do jovem Marx e a d'O Capital, preciso, contudo, no esquecer duas mudanas capitais:primeiro, o compromisso definitivo nO Capital com a dialtica antes de tudo enquanto mtodo de exposiodos resultados das investigaes da economia poltica e da crtica a ela, e no mais, primariamente, com adialtica enquanto estrutura objetiva do devir histrico (do desenvolvimento do gnero humano, como nosManuscritos), embora este sentido de dialtica no esteja ausente em certos contextos dO Capital36; segundo,a retomada do programa especulativo de Hegel de pensar a substncia como sujeito e como atividade pura 37,no, certamente, enquanto processo de auto-realizao do conceito, mas aplicado como instrumento deconcepo e exposio da estrutura do capital: de uma substncia (o valor enquanto trabalho abstratoobjetivado e substncia social' (G., 183) das mercadorias) que se transforma em sujeito (relao do valorconsigo mesmo, enquanto processo de autovalorizao). Mas esta retomada do programa de Hegel em direooposta crtica do jovem Marx subjetividade da idia no rompe inteiramente com aquela. Por isso,mantm-se uma continuidade fundamental entre a crtica aristotlica do jovem Marx subjetividade da

    idia hegeliana e a critica propriamente metodolgica da Introduo aos Grundrisse e d'O Capital 'confuso'feita por Hegel da dialtica como mtodo com a dialtica como gnese do real (G., 22), e idia comodemiurgo do real (K, I, 27). Esta continuidade profunda da crtica se revela, como mostrou agudamenteTheunissen38, no conceito marxiano de trabalho como atividade objetiva, em que Marx, por um lado,incorpora o conceito hegeliano de atividade enquanto exteriorizao e retorno a si, atribuindo-a, contudo, poroutro lado, a um substrato material, a uma essncia objetiva que natureza e que exterioriza suas forasessenciais objetivas ao transformar a natureza39. A retomada do programa hegeliano, n'O Capital, comoinstrumento de caracterizao do capital enquanto autovalorizao, implica, portanto, na revogao apenasparcial da crtica a Hegel: a revogao ocorre apenas na medida em que a crtica dos 'Manuscritos' se apoiavaainda no imediatismo de Feuerbach para afirmar, contra a subjetividade da idia, o gnero humano como osujeito ltimo no sentido de um positivo que repousa sobre si mesmo. Esta positividade do sujeito sedissolver na pseudo subjetividade do capital e no esvaziamento e na represso da subjetividade individual

    pelo capital.A distino entre um potencial racional da dialtica especulativa e suas implicaes idealistas preside,de resto, a nica reflexo metodolgica mais longa de Marx, na Introduo aos Grundrisse, sobre o mtodocientificamente correto (G., 21) de exposio crtica da economia poltica. Somente o mtodo dialtico podeconduzir ao verdadeiro concreto, porque ele o expe na forma de um resultado desenvolvido pelo pensamentoa partir das categorias mais simples e abstratas (e aparentes), que se determinam e enriquecemprogressivamente em categorias mais complexas e intensivas (e essenciais), at chegar ao concreto total, totalidade concreta enquanto totalidade de pensamento, ao concreto de pensamento (G., 22). Mas aoassumir o componente propriamente dialtico da exposio, Marx faz valer, ao mesmo tempo, sua crtica

    34 MARX, FS,p. 654.35

    MARX, FS, p. 306. Nesta passagem Marx menciona, como tema a ser mais detalhadamente abordado, estainverso/passagem necessria da empiria em especulao e da especulao em empiria. 36 No Posfcio segunda edio d'O Capital, Marx menciona, a propsito dos ciclos peridicos em que o movimentocontraditrio da sociedade capitalista se manifesta ao burgus prtico, a crise geral que novamente se aproxima e que

    pela sua universalidade e intensidade ir inculcar dialtica mesmo aos felizardos do novo sacro imprio prussiano-alemo. K, 'l, p. 28. E analisando a tendncia histrica da acumulao capitalista, no cap. 24 do Livro I d'O Capital,Marx fundamenta sua teoria da revoluo como uma negao da negao, que atua no processo histrico com anecessidade de um processo natural para destruir o capitalismo e que restabelecer no a prioridade privada, mas a

    propriedade individual sobre a base das conquistas da era capitalista (K, I, p. 791).37 HEGEL, Phn., p. 19. Trad. Lima Vaz, Ioc. cit., p. 18.38 THEUNISSEN, M., Sein und Schein. Die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Surhkamp, Frankfurt/M., 1978, p.483.39 MARX, FS., p. 650: Ele (o ser objetivo) cria, pe apenas objetos, porque ele posto por objetos, porque ele

    originariamente natureza. No ato de pr no cai, pois, de sua atividade pura em uma criao do objeto, seno que seuproduto objetivo apenas confirma sua atividade objetiva, sua atividade de um ser natural e objetivo. Trad. Bruni cm:Marx, Os Pensadores, Abril, So Paulo, 1978, p. 40.

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    Fenomenologia do Esprito a partir do seu conceito de trabalho: depois de ter elogiado a grandeza da obraque apreendeu o auto-engendramento do homem como um processo, que a essncia do trabalho, cujoresultado homem objetivo, Marx censura a Hegel o conhecer apenas o lado positivo do trabalho, otrabalho espiritual e o conseqente desconhecimento do lado negativo do trabalho, e o trabalho detransformao da natureza sob as condies da propriedade privada (FS, 645-646). Se esta a determinaohistrica fundamental da atividade humana, ento a pretenso ontolgica da dialtica especulativa, quecontm o pensamento enquanto ele igualmente a coisa em si mesma, ou, a coisa em si mesma, enquanto ela, igualmente, o pensamento puro40, no pode ser assumida. Marx marca a sua diferena fundamental face aHegel distinguindo a exposio dialtica enquanto mtodo atravs do qual o pensamento se eleva do abstratoao concreto e o expe como resultado (concreto de pensamento) e a exposio dialtica enquanto seuprocesso de surgimento (G., 22) como manifestao de uma razo que se realiza, isto , para Marx, comoato de produo real (G.,22). Tudo se passa para Hegel, diz Marx, como se o prprio real fosse o resultadodo pensamento que sintetiza e se aprofunda em si e que se movimenta a partir de si mesmo (G., 22). O quepara a dialtica especulativa a auto-exposio do movimento imanente do contedo, a forma dessemovimento enquanto ela tem conscincia de si na idia (WL, I, 35), mtodo no sentido subjetivo e objetivo(alma e substncia, WL, II, 486), torna-se para Marx, de um lado, mtodo de reproduo do concreto,movimento das categorias, e de outro, gnese real, ato de produo efetivo: para a conscincia - e a

    conscincia filosfica determinada de tal modo que, para ela, o pensamento que concebe o homem efetivo,e o mundo concebido como tal, o nico efetivo, o movimento das categorias aparece, portanto, como o ato deproduo efetivo41. Donde a crtica frontal de Marx, segundo a qual Hegel confunde o processo lgico com oprocesso real, transformando este em fenmeno daquele, escamoteando, assim, as contradies reais atravsda sua resoluo especulativa numa essncia aparente (FS, 655). Contra esta confuso, que apenas oresultado conseqente e inevitvel do que para Hegel inseparvel, e que representa o ponto em que o mtodose amplia num sistema (WL, II, 500), Marx faz valer, no sentido do realismo aristotlico, a prioridadeontolgica do concreto emprico, imediato, face ao concreto reproduzido dialeticamente no pensamento.Aquele constitui no s o ponto de partida, mas permanece o pressuposto da exposio42. E o concretoverdadeiro, que resulta da exposio, no de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado eacima da intuio e da representao, e que se engendra a si mesmo, mas da elaborao da intuio e darepresentao em conceitos. (G., 22; trad. loc. cit. p. 117). A ressonncia kantiana da linguagem faz Colletti

    dizer que Marx retoma ao conceito gnoseolgico, e no ontolgico, de conceito e afirmao do papelconstitutivo e permanente da multiplicidade da experincia para a elaborao do conceito43. Neste sentido, omtodo de Marx no s diverso, mas o oposto direto (K, I, 27) do mtodo de Hegel44. A prpriaterminologia de Marx acusa este deslocamento realista, 'materialista', da dialtica enquanto mtodo, revelandouma certa oscilao entre expresses que indicam antes o carter reconstrutivo da dialtica comoprocedimento 'subjetivo', e expresses que traem a sua provenincia especulativa como forma deautoexposio do contedo: a dialtica um modo de apropriao do concreto pelo pensamento (G. 22), um

    40 HEGEL, WL. 1, p. 30.41 MARX, G, p. 22. Trad., loc. cit., p. 117.42O sujeito real permanece subsistindo, agora como antes, em sua autonomia, fora do crebro, isto , na medida em que

    o crebro no se comporta seno especulativamente, teoricamente. Por isso, tambm, no mtodo terico (da economiapoltica trad.), o sujeito - a sociedade - deve figurar sempre na representao como pressuposio." (Ibid.)43 E interessante ter presente, como contraponto, a posio oposta de Hegel a propsito das condies empricas doconceito: A filosofia, entretanto, d a viso conceitual sobre o que se passa efetivamente com a realidade do ser sensvele faz as etapas do sentimento, da intuio, da conscincia sensvel, etc., preceder ao entendimento, na medida em que elasso as condies do devir do conceito, mas so condies somente enquanto ele emerge da sua (delas) dialtica e da suanadidade (Nichtigkeit') como o fundamento delas, mas no como se ele fosse condicionado pela realidade daquelas.Hegel, WL, II, 225-226. Mas basta ler a seqncia imediata do texto de Hegel - tendo presente a anlise marxiana dofenmeno da troca equivalente na esfera da circulao, e a sua reduo a mera aparncia formal de um contedo diferentena passagem anlise da produo, e enfim, ao seu desvendamento temtico como aparncia na reproduo, quando setoma clara a lei da apropriao capitalista, para perceber a maneira sutil e astuciosa como Marx utilizou a doutrina doconceito hegeliana, transformando-a em regra metdica: O pensamento abstrato no deve ser considerado como ummero pr de lado o material sensvel, que desse modo no sofreria nenhum dano, mas ele antes a supresso e a reduo

    do mesmo, como mera aparncia, ao essencial, que se manifesta s no conceito. (Ibid.)44 Outro sentido, talvez mais especfico, desta oposio frontal a Hegel a crtica, j mencionada, ao aspecto mistificadorda resoluo especulativa da contradio, que se toma em Marx a fonte geradora de toda dialtica (K, I, 623).

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    mtodo de elaborao45 que reproduz (G. 22) o concreto que as cincias empricas analisaram eprepararam para a exposio, que ento transpe, traduz, expressa idealmente o movimento efetivo docontedo e espelha idealmente a vida do material (K, I, 27). Se algumas expresses marcam a diferenairredutvel entre a dialtica enquanto mtodo de exposio e o movimento efetivo do contedo, outrasacentuam a pretenso propriamente dialtica de uma forma de exposio que expresse integralmente eexclusivamente o movimento efetivo do material, desde que este tenha sido analiticamente investigado e a suamaturao histrica o tenha levado a um ponto de diferenciao e organicidade suficientes para a exposio 46.Dialtica transforma-se, assim, em mtodo no sentido subjetivo de um procedimento de reconstruocategorial, em oposio ao mtodo enquanto atividade universal absoluta, enquanto sujeito da prpria formade movimento (idia) (WL, II, 486). O mtodo no mais a forma do automovimento do contedo que seexpe, mas um procedimento de reconstruo categorial que pressupe o trabalho prvio de investigao dascincias empricas e a maturao histrica do objeto para ento expor a sua lgica interna de acordo com osnexos que a anlise apreendeu entre suas determinaes.

    Como lembra Fulda47, tambm Hegel conhece este conceito 'subjetivo' de mtodo e dele trata noincio da Filosofia da Natureza a propsito da relao entre a Fsica como cincia emprica e a Filosofia daNatureza como modo de exposio filosfico. Esta, enquanto considerao conceptiva da natureza,pressupe as investigaes da cincia fsica e seus resultados como condio, embora estes no devam

    aparecer como fundamento, pois nela deve impor-se exclusivamente a necessidade do conceito, para a qualno h apelao' para a experincia48. Este conceito de mtodo, observa Fulda, que pressupe a apropriaoanaltica do objeto prvia sua exposio em suas articulaes necessrias, toma-se para Marx o conceitodeterminante e central de dialtica.

    aqui que se revela plenamente o sentido e a importncia da distino de Marx entre mtodo/modode exposio e mtodo/modo de pesquisa (K,I, 25/27). A dialtica pode ser o modo de exposio racionalde um objeto depois que a investigao o conduziu pela anlise e pela crtica ao ponto sem que ele estejamaduro para a exposio. Em carta a Engels, de 1 de fevereiro de 1858, Marx critica a ingenuidade terica daLassalle ao pretender expor a economia polticahegelianamente, aplicando diretamente a lgica hegelianaaos conceitos econmicos. Ele tomar conhecimento, para seu prprio dano, que uma coisa totalmentediferente conduzir uma cincia, atravs da crtica, ao ponto em que ela pode ser exposta dialeticamente, eaplicar um sistema da lgica abstrato e acabado a pressentimentos de um tal sistema 49. A funo

    paradigmtica da dialtica hegeliana para Marx no consistiu em pr disposio uma caixa de ferramentaspolivalentes, prontas a serem utilizadas para organizar os resultados de uma cincia social, tomada no seuestado atual, mas em antecipar em sua lgica especulativa estruturas racionais que Marx, em sua anlise docapitalismo, reconheceu como exprimindo de maneira crptica algumas dimenses econmicas fundamentaisda sociedade burguesa dominada pela relao capitalista de produo. Para exemplificar, menciono trs dessasestruturas, cuja atuao n'O Capital deveria ser objeto de anlises especficas: 1.) o j citado conceito deatividade enquanto - exteriorizao e retorno a si (este redefinido por Marx como reapropriao com todasas conseqncias nisso implcitas), decisivo para compreender a teoria do valor; 2.) o conceito de sujeitocomo auto-relao, no mais de uma atividade pura e absoluta, mas de um substrato, o valor, que na suarelao consigo se torna processo de autovalorizao, capital; 3.) a dialtica da dominao presente na lgicadas determinaes da reflexo, relaes em que um plo contm em si o outro plo e o rebaixa a momentode si mesmo, tornando-se o todo da relao, estrutura paradigmtica para a ,concepo da pretenso de

    45 Carta de Marx a Engels de 14 de janeiro de 1858, em Briefe uber 'Das Kapital', ed. cit., p. 79.46 Este ltimo aspecto aparece na Introduo aos Grundrisse, a propsito da funo estratgica que Marx atribui sociedade capitalista como chave da interpretao das formaes 'pr-capitalistas'. (G., p. 25-26; Trad. loc. cit., p. 120),e nas Teorias sobre a Mais-Valia , em relao ao pleno desenvolvimento das potncias sociais do trabalho (cooperao,diviso do trabalho e produo por mquinas, at a realizao tendencial da plena automao) enquanto ele 6 a condioobjetiva do ponto de vista da maturao histrica de uma produo plenamente socializada. - de uma correspondnciaadequada entre mtodo dialtico e processo real.47 Artigo citado na nota (7), p. 193.48No s a filosofia deve concordar com a experincia da natureza, mas tambm o surgimento e a formao da cinciafilosfica (da natureza, MLM) tem a fsica emprica como pressuposto e condio. Uma coisa, entretanto, o caminho de

    surgimento da cincia e seus trabalhos preparatrios, outra, a prpria cincia; nesta aqueles no mais podem aparecercomo base, a qual, s mais tarde pode ser a necessidade de conceito. Hegel, Enzyklopdie, 246, Suhrkamp, 9, p. 15. 49 Marx-Engels Werke, vol., 29, p. 275.

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    dominao do capital sobre o trabalho assalariado, como mostrou Theunissen50. Mas esta decifragem dasestruturas econmicas da sociedade burguesa nas relaes conceituais da lgica hegeliana s ocorreu atravsde longo trabalho de apropriao e crtica do pensamento econmico burgus, que transformouprofundamente a economia poltica como cincia ao mostrar os vnculos de classe em sua estrutura categorial,permitindo, por um lado, uma compreenso sistemtica dos fenmenos econmicos a partir de sua leiessencial, a lei do valor e da valorizao do capital e possibilitando, por outro, a inteira reconstruo dosistema categorial da economia poltica conforme um determinado paradigma de dialtica, cuja foraheurstica s foi to avassaladora, porque Marx viu antecipadas em certas relaes conceituais da Cincia daLgica estruturas econmicas que seu diagnstico do capitalismo j reconhecera como determinantes daanatomia da sociedade burguesa. preciso, portanto, uma apropriao crtica prvia dos resultados daeconomia poltica como cincia social para que a sua reconstruo categorial seja efetivamente uma exposiodo desenvolvimento conceitual (G, 405) do material pesquisado, isto , uma apresentao discursiva daquelaorganizao das suas determinaes que resultam do movimento do seu conceito, do trabalho prprio darazo da coisa (cf. nota 24). S que em Marx este movimento imanente do conceito de capital a lgicacontraditria da sua valorizao, cuja exposio implicar na tematizao das contradies da produocapitalista e caracterizar aquela como uma exposio crtica da realidade econmica. Da porque a dialticamaterialista a dialtica enquanto mtodo de reconstruo categorial de uma cincia social com vnculos de

    classe, como a economia poltica, no diretamente um procedimento de descoberta, uma lgica da inveno.Em Hegel a dialtica enquanto forma de automovimento do conceito o mtodo absoluto (WL, II, 490),que contm em si toda riqueza das determinaes do conceito (os conceitos enquanto sistema dedeterminaes do pensamento puro, WL, I, 46) e o principio da sua descoberta51. E sendo o mtodo a formaimanente da coisa em seu movimento, o seu comeo, o simples e o universal imediato, j concebido comocarncia do seu desenvolvimento ulterior e como animado pela pulso (WL, II, 489) de se autodeterminar.Neste sentido pode dizer-se que a lgica especulativa uma lgica heurstica. Em Marx a situao outra.Como o mtodo no a forma de auto-exposio da coisa, mas o modo de exposio critica de uma cinciasocial e, atravs dela, de uma realidade (econmica) cuja determinao ltima uma contradio real e no aautomanifestao da razo, ele pressupe um trabalho anterior de investigao e critica que assegure apenetrao racional do objeto em suas determinaes essenciais. E preciso, assim, que o mtodo de pesquisa(K, I, 25) assuma o nus idealista da lgica especulativa apropriando-se analtica e criticamente do contedo,

    antes que a exposio possa exprimir seu desenvolvimento conceitual, prescindindo de hipteses que oanalista ou o crtico trariam consigo, e espelhar exclusivamente o seu movimento efetivo.Aqui surge mais uma vez e inadiavelmente a questo da legitimidade de uma dialtica no idealista,

    materialista', para assumir o, conceito e a dicotomia consagrados. Como se mantm, se que se mantm, oelemento especificamente dialtico da exposio em face desta transformao da dialtica em mtodo nosentido subjetivo', enquanto procedimento reconstrutivo de um expositor? Quid juris de um mtodo quepretende ser teoria stricto sensu, cincia, no s no sentido do paradigma moderno de cincia, mas tambm nosentido hegeliano, dentro do pressuposto materialista de uma realidade prvia e irredutvel sua reconstruolgica no pensamento? O que legitima uma dialtica materialista que no pode ser mais a exposio de umarealidade que seria a prpria manifestao e auto-realizao da razo?

    O que a legitima e toma, assim, em ltima anlise, vlida a desvinculao, reivindicada por Marx,entre o ncleo racional da dialtica e seus compromissos com a metafsica hegeliana do conceito, o

    diagnstico histrico do capitalismo como modo de produo dominado pela abstrao real do valor e do seufundamento, o trabalho abstrato capitalizado. E o diagnstico histrico de uma sociedade cujas relaessociais de produo esto dominadas por um universal que se auto-adjudica uma subjetividade pseudo-concreta s expensas da atividade concreta dos indivduos reais: o capital enquanto valor que se autovaloriza,princpio determinante da reproduo material de uma sociedade que repe todas as suas condies histricase lgicas como momentos internos da sua reproduo.

    A exposio crtica da economia poltica n'O Capital contm um diagnstico histrico da sociedadecapitalista que a situa como a ltima fase opositiva do processo social de produo 52, porque ela leva s

    50 THEUNISSEN, M., Krise der Macht, Thesen zur Theorie des dialektischen Widerspruchs, in: Hegel Jahrbuch, 1974,Pahl-Rugenstein Verlag, Kln, 1974.51

    O mtodo absoluto no se comporta como uma reflexo exterior, mas toma o determinado do seu prprio objeto que oprprio mtodo seu principio imanente e sua alma. (WL, II, 491).52 Marx-Engels Werker, Vol. XIII, p. 9; Trad. in: Os Pensadores , p. 130.

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    ltimas conseqncias a separao entre o trabalho e as suas condies objetivas de realizao (G., 375), oantagonismo de classes, como pressuposto e instrumento histricos do desenvolvimento da produtividade dotrabalho social, isto , da plena socializao do trabalho e da completa dominao da natureza. Esta separao,a mais radical historicamente, na qual as condies de efetivao do trabalho se defrontam opositivamente aotrabalhador, juridicamente livre e no mais proprietrio53, como capital, consolida a dissoluo dos laosorgnicos do indivduo trabalhador com a comunidade na qual ele se inseria como proprietrio e instaura a suaindividualidade nua, despojada da propriedade. (G. 375) A dupla constituio histrica do individuo, enquantolivre da apropriao alheia54 e livre da propriedade, transforma-o, ento, em pura capacidade de trabalhosubjetiva, que vai se defrontar com as condies de produo como sua no -propriedade, como propriedadealheia, como valor existente para si, como capital (G, 397; 203). A emergncia histrica do trabalhadorassalariado e a transformao da sua capacidade de trabalho em mercadoria no decorrer do processo deacumulao originria torna-se assim o pressuposto histrico e sistemtico da autonomizao dos meios deproduo de propriedade alheia em capital, em principio de subjugao do trabalho vivo para os fins davalorizao do capital. E a progressiva subsuno do processo de trabalho sob o processo de valorizao, e asua transformao sistemtica pelos diferentes mtodos de obteno de mais-valia relativa, asseguram areduo progressiva do trabalho vivo e concreto a trabalho abstrato, isto , a trabalho considerado apenasenquanto dispndio de uma atividade, medida quantitativamente pelo tempo cronolgico, e que se tomou

    indiferente ao seu sujeito. Esta reduo j est logicamente pr-definida na constituio do trabalhoassalariado.Assiste-se, assim, emergncia e expanso histricas de um tipo de sociedade em que atua um

    processo de reduo da atividade concreta dos indivduos a uma atividade abstrata e indiferente a eles e,conseqentemente, como outra face, um processo de autonomizao das condies objetivas de efetivao dotrabalho enquanto capital. Esta reduo de atividade concreta de atividade concreta do trabalho, a umaatividade abstrata e universal, geradora de riqueza abstrata, o valor, que vai assumir uma autonomia real eoposta aos sujeitos do trabalho, o que define a dinmica da relao capitalista. Uma relao em que umextremo, o capital, pretende, subjugando o outro e contendo em si como momento o trabalho, constituir-secomo o todo da relao, a qual se transforma, assim, enquanto tal, num sujeito autnomo, cuja dinmicaaparece como propriedade imanente e natural do substrato material desta relao, agora dotada de vidaprpria: a propriedade privada alheia dos meios de produo enquanto valor, que entra em relao consigo

    mesmo como mais-valia e se propulsiona atravs da dominao e absoro do trabalho vivo reduzido aatividade formadora de valor. (K, I, 169). E a relao de produo capitalista transformada no verdadeirosujeito social da produo e no princpio determinante de todas as estruturas econmicas da sociedade. Adescrio metafrica do capital como um vampiro que suga, enquanto trabalho morto, o trabalho vivo dotrabalhador, ressalta estes dois aspectos da relao capitalista: l.) reduo da atividade concreta do trabalho atividade formadora de valor; 2.) a sua pseudo-subjetivao num substrato alheio, que domina aquela pelopoder de dominao que resulta do trabalho vivo55. Constitui-se um sujeito que, pela sua pretenso de tomar-se o todo da relao, incorpora e transforma em sua autoatividade o trabalho vivo previamente reduzido atrabalho abstrato, fazendo aparecer como propriedades suas, imanentes e naturais, todas as dimenses tcnicase sociais do processo de trabalho. O contedo social desta relao hipostasiada e das formas em que elaarticula a sua reproduo e se organiza como sistema de produo o valor enquanto trabalho abstratoobjetivado, que se toma, pela universalizao desta relao, a substncia social comum (G, 183) das

    mercadorias e das relaes entre os agentes da produo. Constitui-se, desse modo, uma sociedade perpassadaem sua base econmica pela universalidade real do trabalho abstrato, forma imediatamente social dostrabalhos privados (K, I, 91) e, enquanto capitalizado, contedo de todas as relaes sociais de produocapitalistas. Estas relaes so verdadeiros universais reais, no concretos, que s mediatizam os agentesindividuais subordinando-os a estas relaes autonomizadas. Enquanto formas de manifestao do trabalhoabstrato elas negam o seu carter relacional para se afirmarem como relaes que repousarn em si mesmas(G, 81) e que se opem aos indivduos nelas implicados na qualidade de potncias coisais 56. Por isto, antes

    53 Proprietrio nem da terra, nem dos instrumentos do trabalho, nem do prprio fundo de consumo.54 Quer dizer, livre da subsuno imediata sob as condies objetivas de produo. G. p. 397.55O capital traballio morto que s se anima como um vampiro sugando o trabalho vivo, e ele vive tanto mais quanto

    mais suga trabalho vivo. (K, I, p. 247). Cf tambm G., p. 357.56sachliclie Mchte. Estas relaes de dependncia coisais, em oposio s relaes pessoais, aparecem tambm detal maneira que os indivduos so agora dominados por abstraes, enquanto antes dependiam uns dos outros. (A relao

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    de serem abstraes tericas do analista, as categorias da economia poltica so pensadas por Marx comoexpresses tericas da abstrao real presente nestas relaes, que se opem aos indivduos como um poder dedominao. O fetiche das categorias da economia poltica, que exprimem a abstrao real destas relaes,implica dois momentos que consolidam a sua falsa imediatidade: primeiro, sua autonomizao face aosindivduos e sua transformao em abstraes (G, 82) que os dominam, e, segundo, a sua incorporao,assim subjetivadas, como propriedades objetivas (coisais) dos substratos econmicos materiais (o valorcomo propriedade natural da mercadoria, a comensurabilidade das mercadorias como resultante da aomediadora do dinheiro, a produtividade como qualidade inerente ao capital). O fundamento dessas relaescoisificadas e da sua expresso terica nas categorias da economia poltica o movimento de autovalorizaodo capital (para as categorias de produo imediata, antes de tudo); mas seu contedo comum o trabalhoabstrato objetivado que se toma, assim, o prprio contedo lgico da exposio dialtica e o responsvel pelonexo imanente entre as categorias da exposio57. As categorias so compreendidas como formas deexposio do trabalho abstrato objetivado e como formas de articulao do seu movimento autnomoenquanto autovalorizao.

    Portanto, a capitalizao progressiva do trabalho (a constituio histrica do trabalho assalariado e asua reduo a trabalho abstrato), desencadeada pela separao histrica mais radical entre o trabalho e ascondies objetivas de sua efetivao, constitui a valorizao do capital, em finalidade no s do processo de

    produo, mas de toda reproduo material da sociedade. E a transformao da valorizao em finalidade dosistema acarreta um desenvolvimento incondicionado da produtividade do trabalho social que vai implicaruma apropriao progressivamente total da natureza por uma produo convertida em fim de si mesma, e umadominao, tambm tendencialmente e total, dos indivduos e da sua socializao pela valorizao do capital.Uma produo autofinalizada pela expanso do valor converte-se, por sua vez, na finalidade e no contedonicos do trabalho, reduzindo a atividade formadora do valor. Esta a condio histrica objetiva para aapreenso adequada da prpria 'razo do capital'58 e da sua exposio efetivamente dialtica que, primeiro,espelha59 to s e cabalmente a estrutura econmica da sociedade enquanto ela est, em princpio,

    de dependncia coisa consiste to s nas relaes sociais que se defrontam, enquanto automatizadas, com os indivduosaparentemente independentes, isto , suas relaes de produo recprocas autonomizadas face a eles.) G, p. 81 e 81. 57 Este nexo nem sempre imanente, pois a prpria exposio dialtica s verdadeira quando conhece os seus limites

    (G, 364, 945) e aponta para os pressupostos histricos a que ela deve recorrer. De resto, medida que a exposio d'OCapital avana, ela recorre sempre mais, ao invs da exposio lgica de Hegel, a determinaes que no so o resultadoimanente e necessrio da explicitao das categorias anteriores. Alm disso, na medida em que a exposio sistemticae reconstri a totalidade contraditria da reproduo capitalista, penetrando no fundamento da reduo do trabalho e daautonomizao do valor, ela , simultaneamente, crtica, e tem a funo de devolver s categorias o seu verdadeiroestatuto lgico, que o de serem expresses de relaes sociais, embora ela no coincida, como exposio crtica, com o

    prprio processo real de descoisificao das relaes sociais e de ser abordada especificamente a propsito - da anlisetemtica da dialtica enquanto crtica.58 Uma razo evidentemente contraditria para Marx, porque entre a finalidade da produo capitalista (garantir amanuteno e expanso do valor e das relaes sociais congruentes a ela) e os meios a que ela recorre para isso, odesenvolvimento incondicionado das foras produtivas sociais do trabalho (K, III, 259-260) com as conseqnciaseconmicas inevitveis e indesejveis a implcitas (queda da taxa de lucro, desvalorizao do capital 'existente edesenvolvimento das foras produtivas do trabalho s custas das foras produtivas j desenvolvidas, lbid.), instaura-se

    uma contradio insolvel dentro da pretenso de dominao do capital. Esta contradio frustra recursivamente a suapretenso de dominao, submetendo a reproduo social a uma instabilidade essencial que toma a plena adequao darealidade capitalista ao seu conceito inalcanvel.59 Introduzido por Marx no contexto da reflexo metodolgica do Posfcio segunda edio d'O Capital, o conceito de'espelhamento' ('Widerspiegelung') no est isento de ambigidades, principalmente na vizinhana embaraosa demetforas que descrevem o pensamento como transposio e traduo no crebro do que material" (K, I, 27) e queanunciam a futura linguagem do materialismo vulgar, que consagrar o positivismo implcito na especulao, jdenunciada pelo jovem Marx. O conceito de espelhamento foi posteriormente canonizado na tradio marxista porEngels e Lenin para sublinhar o carter materialista da teoria do conhecimento marxista. N'O Capital ele s pode serentendido adequadamente a partir de sua origem na dialtica especulativa hegeliana, e da sua dependncia da concepotradicional de teoria no seu sentido etimolgico de viso. Ele no visa tanto sublinhar o aspecto realista da teoria doconhecimento de Marx, na verso trivial de mera cpia de um real, que em sua facticidade imediata conteria em si asarticulaes e os nexos que o conhecimento nele descobre e apenas refletiria, no sentido, portanto, da teoria do reflexo

    do materialismo vulgar (mera transposio acrtica e pr-crtica de uma posio idealista), mas o aspecto propriamentedialtico do mtodo, que expe a lgica objetiva e prpria da coisa sem interferncias subjetivas prvias do analista eexternas ao movimento do conceito da coisa. Na interpretao marxista ortodoxa da dialtica a partir de Engels, que

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    exaustivamente determinada e dominada pela lei da valorizao do capital (aspecto mimtico da exposio,oriundo da componente auto-expositiva da dialtica especulativa, cf. p. ll), segundo, reconstri a lgicaobjetiva do modo de produo capitalista a partir do conceito de capital, mas enquanto mtodo, distinto da suareproduo e/ou destruio enquanto sistema real (aspecto propriamente dialtico, e tambm crtico, daexposio). O diagnstico histrico do capitalismo enquanto sistema total (na sua pretenso) de apropriaoda natureza e de dominao social pela lgica de valorizao, possibilita uma reconstruo categorial de umacincia social, a economia poltica, que preenche, metodicamente, a exigncia de considerar apenas(exclusivarnente e integralmente) o desenvolvimento do conceito de capital, isto , de organizarsistematicamente, sem hipteses exteriores a ele, todas as categorias da economia politica enquantodeterminidades formais econmicas60, do capital e do seu movimento de autovalorizao. Esta reconstruocategorial expe as estruturas econmicas da reproduo da sociedade capitalista enquanto elas so, em seucontedo, constitudas por essas determinidades formais econmicas capitalista. Preenche-se, assim, naexposio da estrutura econmica da sociedade capitalista, a exigncia da dialtica especulativa hegeliana:assim como as categorias da Cincia da Lgica, enquanto formas de pensamento puro, so, simultaneamente,o contedo real do pensamento, analogamente as determinidades formais econmicas do capital, expressas nascategorias d'O Capital, constituem, assintoticamente, na medida do poder do capital, sobre a sociedade, oprprio contedo real das relaes sociais de produo. Se para Hegel a dialtica especulativa da Cincia da

    Lgica s possvel quando a consumao histrica do esprito permite que a conscincia, atravs do percursointegral de todas as formas opositivas na Fenomenologia, se alce ao patamar do pensamento puro, no qual oser-si-mesmo do objeto no se diferencia mas do si-mesmo do pensar (Phn., 48; trad. loc.cit., 38), para Marxa dialtica materialista d'O Capital torna-se historicamente possvel quando o capital tornou-se a potnciaeconmica da sociedade burguesa, que domina tudo, seu ponto de partida e o seu ponto de chegada (G, 27;Trad. loc. cit., 122) e quando a apropriao crtica da economia poltica a tiver conduzido ao ponto em quesuas categorias possam ser desenvolvidas sistematicamente a partir de sua lei essencial.

    E esta pretenso de dominao total do capital sobre a sociedade e a natureza (diacrnica esincronicamente) que permitiu a Marx ver antecipada na idia hegeliana enquanto mtodo absoluto umanlogo especulativo da lei de valorizao e da reproduo sistemtica do capital. A idia especulativa comomtodo o movimento do conceito que sabe que ele tudo e que seu movimento se determina e realizaenquanto atividade universal absoluta, fora infinita pura e simplesmente (WL, II, 486), a que nenhum

    objeto, enquanto exterior e independente da razo, pode resistir. Qualquer coisa s pode ser concebidaenquanto ela est integralmente submetida ao mtodo (ibid.), que , simultaneamente, o mtodo prprio decada coisa, porque a sua atividade (da coisa) conceito (bid.). Analogamente em Marx, o movimento devalorizao e de acumulao do capital assume uma espcie de subjetividade absoluta enquanto o valor setoma o sujeito englobante de um processo (K, I, l69), a que nenhuma relao pr-capitalista pode resistirindefinidamente (se ela resiste, ela integrada, em sua prpria exterioridade resistente, s finalidades da

    tende a transform-la em mtodo universal, inclusive do conhecimento da natureza, e mesmo na prpria estruturaobjetiva da realidade concebida como processualidade total, a Umstlpung marxiana geralmente interpretada no sentidomais ou menos trivial de que o mtodo dialtico espelha as estruturas dialticas do processo objetivo, sem que se saibaexatamente por que o real dialtico, e, muito menos, porque o espelhamento seria tal. Um testemunho claro dessatrivializao da dialtica como espalhamento nos oferece uma passagem de uma carta de Engels a Schmidt, de 1 de

    novembro de 1891: ... a inverso da dialtica em Hegel consiste em que ela deve ser o autodesenvolvimento dopensamento' e que, portanto, a dialtica dos fatos apenas o seu reflexo ('AbgIanz'), enquanto que a dialtica na nossacabea , certamente, apenas o espelhamento ('Widerspiegelung`) do desenvolvimento factual no mundo da natureza e nomundo histrico-humano que obedece a formas dialticas. Compare uma vez o desenvolvimento da mercadoria ao capitalem Marx com o do ser essncia em Hegel, e voc ter um bom paralelo: aqui o desenvolvimento do concreto, tal comoele resulta dos fatos, l a construo abstrata.. . (Marx-Engels Werke, vol. 38, p. 204). Convm observar que o apenasque fazia sentido no sistema hegeliano quando se tratava em trazer apenas a conscincia o trabalho da prpria razo dacoisa (Rechtsphilosophie, 3lA), torna-se o indicador de um realismo ingnuo e pr-kantiano quando referido ao meroespelhamento do desenvolvimento factual. O verdadeiro concreto, que era, para Marx, o resultado de sua reconstruosinttica no pensamento, tende a ser confundido com uma imediatidade factual, com o concreto emprico e imediato deMarx, e a dialtica como mtodo parece reduzir-se duplicao de uma dialtica dos fatos sem pensamento, e no caso deHegel, a uma construo abstrata contraposta positividade dos fatos. Tal reduo da dialtica ao espelhamento s ainda inteligvel no quadro de uma ontologia do real, transformado metafisicamente em processualidade universal, que se

    imporia ao pensamento com a positividade de um fato. o resultado final da dialtica materialista convertida emmaterialismo dialtico.60konomische Formbestimmtheit.

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    reproduo capitalista), e que pretende estabelecer uma correspondncia plena entre o conceito de capital e asua realidade efetiva (a formao social capitalista). Esta correspondncia de princpio resultado histrico dacrescente universalizao do trabalho assalariado e da reduo sistemtica do trabalho concreto a trabalhoabstrato, concomitantes transformao do capital em poder social universal submetido apropriaoprivada de capitalistas individuais (K, III, 274). Ela condio objetiva da reconstruo categorial daeconomia poltica, enquanto teoria do modo de produo capitalista61 que procede exposio sistemtica dasformas de reproduo econmicas da sociedade capitalista submetidas ao poder subjugador da valorizao eda acumulao do capital. A diferena principal entre a fora infinita e irresistvel da idia enquanto mtodoe o poder subjugador do capital est em que naquela, cada coisa, como conceito, reconhece a sua atividademais prpria e profunda, o seu si mesmo, enquanto o capital como sujeito e princpio de movimento dasubstncia econmica, o valor, s tem conscincia de si na multiplicidade dos seus agentes individuais, noscapitalistas enquanto representantes dos capitais individuais, que s reconhecem o movimento dereproduo global do capital enquanto ele atende o imperativo da valorizao do capital individual. Emboraele tenha a sua finalidade em si mesmo, o capital no se sabe como sujeito, eh; cego, um sujeitoautomtico (K, I, l69), cujo poder de dominao no consegue estabelecer a plena correspondncia entre arealidade capitalista e o seu conceito62.

    Embora, portanto, a teoria dO Capital, conforme postulado metodolgico explicado por Marx, s

    exponha as relaes de produo capitalistas na medida em que elas correspondem ao seu conceito63

    , asformaes sociais capitalistas no correspondem historicamente de maneira plena ao conceito de capital,porque ele mesmo contm uma pretenso de dominao total irrealizvel, uma estrutura de podercontraditria: se formalmente o capital pode ser a totalidade da relao entre si mesmo e o trabalhoassalariado, subjugando-o como momento (o trabalho enquanto capital varivel), materialmente ele no podeprescindir da sua oposio sempre renovada ao trabalho vivo, j que enquanto trabalho objetivado, morto, ocapital no tem outro contedo social que no o trabalho. Se na idia hegeliana a realidade se torna adequadaao conceito, que se alastra sobre ela e a domina para torn-la correspondente a si, nas formaes capitalistas arealidade nunca corresponde plenamente ao conceito de capital, porque a sua realizao integral como sujeitoautomtico da produo, atravs da aplicao tecnolgica das cincias naturais e na forma mais prxima deseu conceito, como capital fixo, tende a subverter a sua prpria base de valorizao, o tempo de trabalho (G,587, 593). Por isso, se a pretenso de dominao total do capital sobre a estrutura econmica da sociedade

    condio histrica e lgica da dialtica como exposio adequada de uma realidade, na medida em que elacorresponde a esse conceito, a frustrao essencial e recorrente dessa pretenso , simultaneamente, condioda dialtica como crtica, que expe, atravs da reconstruo sistemtica da economia poltica, o movimentoautodestrutivo da contradio presente nesse poder de dominao.

    Respondendo questo sobre a legitimidade de uma dialtica materialista. - mais precisamente, sobrea possibilidade de uma exposio dialtica (no sentido preciso desses conceitos) da reproduo material deuma sociedade dominada pelo poder do capital (a sociedade burguesa), atravs da reconstruo sistemtica dacincia social que tem por objeto o movimento econmico dessa sociedade - apontou-se para o diagnsticohistrico dessa sociedade como condio de possibilidade e de legitimao. Mas se a teoria d'O Capital. -enquanto exposio dialtica (e crtica) do movimento efetivo do capital atravs da reconstruo categorial daeconomia poltica como cincia, - tem o princpio de sua legitimao apenas num determinado diagnsticohistrico do presente, isto , do modo de produo capitalista como sistema de produo dominado pelo

    trabalho abstrato, poderia objetar-se que a teoria se funda, em ltima anlise, dogmaticamente, pelo recurso histria. O que desarma esta objeo que este diagnstico se insere, por sua vez, no quadro de uma teoriageral da histria, que O Capital esboa, negativamente ('encreux'), a partir e dentro dos limites do prprio

    61Na teoria pressupe-se que as leis do modo de produo capitalista se desenvolvem de maneira pura. Na realidadeefetiva existe apenas a aproximao; mas esta aproximao e tanto maior quanto mais desenvolvido est o modo de

    produo capitalista e quanto mais estiver eliminado o seu entrelaamento e sua contaminao com restos de situaeseconmicas anteriores. (K, III, p. 184). 62O mtodo emergiu disso como o conceito que se sabe como absoluto, tanto subjetivo quanto objetivo, e se tem a simesmo como objeto, por conseguinte, como a pura correspondncia entre o conceito e a sua realidade, como umaexistncia, que ele mesmo (o conceito). (WL, II, p. 486).63

    Em tal investigao universal pressupe-se sempre, em princpio, que as relaes efetivas correspondam ao seuconceito ou, o que equivale, que as relaes efetivas s sejam expostas enquanto elas exprimem o seu prprio tipouniversal. (K, III, p. 152).

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    diagnstico do presente contido na crtica economia poltica, cujo horizonte a teoria da revoluo64. Sendoa reconstruo categorial de uma cincia social que analisa a estrutura econmica da organizao histricamais desenvolvida e diferenciada da produo (G, 25; trad. loc. cit., l`20), a teoria d'O Capital desempenhauma funo paradigmtica para a compreenso das sociedades pr-capitalistas65 e contm, nessa medida, noseu bojo, uma teoria da histria (o materialismo histrico) que reconstri s condies de gnese e aponta ascondies de superao do modo de produo capitalista a partir do diagnstico do presente implcito nacrtica economia poltica. A lgica das relaes sociais capitalistas funciona, assim, como um aprioriinterpretativo das sociedades pr-capitalistas e como um fio condutor regressivo da reconstruo histrica. Ateoria do materialismo histrico - enquanto reconstruo lgica do desenvolvimento histrico-social, emtermos de uma seqncia de modos de produo, a partir da questo da gnese histrica do capitalismo naseparao entre o trabalho livre e as condies objetivas de sua efetivao - fornece, por sua vez, o horizontede legitimao do prprio diagnstico histrico. Haveria uma mediao recproca entre dialtica enquantoteoria e histria, em que nenhuma seria pressuposto ltimo da outra. A legitimao de uma dialticamaterialista pelo diagnstico histrico da sociedade capitalista - que reconhece nas suas estruturaseconmicas, enquanto dominadas pela abstrao real do valor, anlogos reais de algumas relaes conceituaisexplicitadas por Hegel na Cincia da Lgica - se insere, portanto, numa teoria mais ampla, que resulta dareconstruo regressiva das condies histricas do surgimento de um sistema de produo, que termina por

    tornar praticamente verdadeiro o realismo ontolgico de Hegel, enquanto instrumento de detectao douniversal real do trabalho abstrato66. A exposio dialtica das categorias da economia poltica enquantoformas de manifestao das relaes sociais dominadas pelo universo real do valor, pode coincidir, assim,com o movimento efetivo do capital enquanto abstrao in actu. Aqueles que consideram a abstrao dovalor como uma mera abstrao esquecem que o movimento do capital esta abstrao in actu (K, II, 109).Neste sentido pode-se dizer, provocativamente, que a subjetivao do valor como capital e a sua expansohistrica e sistemtica tornaram o realismo ontolgico de Hegel um sistema cifrado das relaes sociaiscapitalistas, permitindo a Marx extrair da metafsica do concerto hegeliana o caroo racional de umadialtica materialista. O idealismo de Hegel a sociedade burguesa enquanto ontologia.67. Portanto orecurso a um diagnstico histrico para legitimar a dialtica dO Capital no a invocao dogmtica de umfato, de uma determinada compreenso do presente no quadro de uma teoria da histria, que pretende serapenas a reconstruo lgica das etapas e modos de organizao econmico-social que conduziram a este

    presente, e que tem nele o seu horizontea resoluo revolucionria e no especulativa da contradio real darelao de produo burguesa, o seu paradigma de inteligibilidade.

    64 THEUNISSEN M., Sein und Schein. Die kritische Funktion der Hergelschen Logik, Suhrkamp, Frankfut/M., 1978, p.86-87.65 As categorias que exprimem suas relaes (da sociedade burguesa), a compreenso de sua prpria articulao,

    permitem penetrar na articulao e nas relaes de produo de todas as formas de sociedade desaparecidas. (G, p. 25-26; trad. loc.cit., p. 120).66 Assim como a universalizao do trabalho assalariado transforma o trabalho, enquanto atividade concreta, ematividade indiferente ao trabalhador, tornando praticamente verdadeira a abstrao da categoria trabalho em geral.

    (G, p. 25; trad. loc.,cit., p. 120).67 Reichelt, H., Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei K. Marx, Europischc Verlaganstalt, Frankfurt/M., 1970, p.80.