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Morávamos em casa de madeira em um acampamento de obras do IAPI, na Superquadra 305 Sul. sa Academia, como forma de contribuir com meu de- poimento pessoal – pioneiro que sou, chegado a Brasília em 13 de junho de 1959 – na reconstituição da história da Medicina no Distrito Federal, que faz parte da própria história da Nova Capital do Brasil. Os acidentados do trabalho eram muitos, em função da mão de obra desqualificada, particularmente para um sistema 32 33 ANAIS • Ano I • Volume 1TRANSCRIPT
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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
Gustavo Ribeiro
Aceitei com muita satisfação o convite desta prestigio-
sa Academia, como forma de contribuir com meu de-
poimento pessoal – pioneiro que sou, chegado a Brasília em 13
de junho de 1959 – na reconstituição da história da Medicina
no Distrito Federal, que faz parte da própria história da Nova
Capital do Brasil.
Transferi-me para Brasília, vindo de um hospital universitá-
rio do Rio de Janeiro (Hospital Pedro Ernesto), para trabalhar
no Posto de Atendimento de Acidentados no Trabalho (CAT –
IAPI), que funcionava em uma modesta construção de madeira,
na Avenida W3 Sul, Quadra 705. Lá chegando, encontrei três
colegas: Evilázio Pureza Nunes, José Scarpelli e Florisvaldo Cos-
ta, e confesso a minha surpresa e decepção com a precariedade
de recursos daquele Posto de Atendimento, cujo funcionamen-
to era diário, salvo aos domingos, das 7 às 22 horas, quando o
gerador de eletricidade era desligado e as obras, interrompidas.
Morávamos em casa de madeira em um acampamento de
obras do IAPI, na Superquadra 305 Sul.
Os acidentados do trabalho eram muitos, em função da
mão de obra desqualifi cada, particularmente para um sistema
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construtivo de estruturas metálicas (como as dos Ministérios e
Congresso Nacional), inteiramente novo no Brasil, o que pro-
vocava acidentes, como queimaduras, quedas de andaimes,
fraturas de toda natureza e, consequentemente, óbitos. A esse
contingente somavam-se casos de viroses, como varicela, pa-
rotidite, sarampo, em função de residirem em alojamentos co-
letivos, em precárias condições de higiene e com um número
excessivo de moradores. Surpreendiam-me casos de hanse-
níase e bócio, doença vulgarmente chamada de papo e que
deu nome à região próxima ao Plano Piloto, a Papuda. Havia,
ainda, em pequenos núcleos habitacionais inteiramente isola-
dos do resto do País, mas, agora, relativamente próximos da
Capital em construção, oligofrênicos, os “bobos”, frutos do ca-
samento entre parentes de primeiro e segundo graus. Eram co-
muns um ou dois bobos em cada família, geralmente utilizados
em serviços domésticos.
Aproximadamente um mês após a minha chegada, fui
convidado pelo colega já falecido, Cláudio Costa, a participar
da reunião de fundação da Associação Médica de Brasília, que
se realizou na sede da Novacap, na Candangolândia. Participa-
ram 37 médicos, ou seja, a totalidade dos médicos do futuro
Distrito Federal, que, em sua maioria, trabalhavam no único
hospital de Brasília, Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira,
do IAPI, hoje Museu da Memória Candanga. Nessa reunião, o
médico pioneiro Ernesto Silva foi eleito Presidente. Anos mais
tarde, coube a mim ocupar, por dois mandatos consecutivos, a
Presidência da AMBr.
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Como se pode deduzir do exposto, só pelos problemas de
saúde pública existentes no Planalto Central, já se justifi caria, creio
eu, a interiorização da Capital do País. Entretanto, sempre insisto
que, a exemplo de grandes cidades ou capitais que no fi nal do
Século XIX foram construídas, como São Petersburgo, ou reforma-
das, como Paris e Nova Iorque, para afi narem-se com a moderni-
dade, Brasília poderia incluir-se entre elas. Não apenas (e sempre
tenho insistido nesse ponto) como um novo projeto de urbanismo
e arquitetura, mas como projeto de novas políticas públicas de
saúde e educação, que seriam referência para o resto do País.
Conheci, naquela ocasião, fi guras que marcaram a área de
educação, como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Frei Mateus, e
da saúde, com o gênio Bandeira de Mello. Guardo até hoje um
impresso do Plano Médico Hospitalar para o Distrito Federal e,
ao reler alguns capítulos pude constatar que o SUS, criado na
década de 1990, assemelha-se, em muitos pontos, ao projeto
por ele proposto. Bandeira de Mello vinha de uma capital, o
Rio de Janeiro, onde existiam vários hospitais mantidos por di-
versos institutos de previdência social, como o dos Industriários
(IAPI), dos Bancários (IAPB) e dos Servidores Públicos (IPASE),
hospitais que, em determinados momentos, dispunham de ca-
pacidade ociosa, enquanto outros estavam superlotados, ou
dispunham de equipamentos não existentes em outras unida-
des de saúde. Pois bem, cada um desses hospitais (previdenciá-
rios) só podia atender pacientes cadastrados em seus institutos
e fechavam suas portas aos demais. Esse foi um dos pontos que
Bandeira de Mello procurou corrigir na sua proposta de política
pública de saúde, que o SUS retomaria mais tarde.
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Bandeira de Mello propunha integrar os serviços de me-
dicina preventiva e curativa; considerar os cidadãos que pro-
curassem esses serviços não como associados desse ou daquele
instituto, ou sem cobertura da seguridade social, mas como ci-
dadãos de Brasília (universalização dos serviços). Com esse ob-
jetivo, projetara a construção de uma rede médico-assistencial
de complexidade crescente, começando nos centros de saúde,
hospitais rurais, hospitais regionais e tendo como fulcro o Hos-
pital de Base. É oportuno lembrar que, quando Bandeira de
Mello fez o seu projeto, não existiam ainda cidades-satélites
como Taguatinga, Sobradinho, entre outras, e a projeção para
o ano 2000 era a de uma Capital com 500.000 habitantes...
O Rio de Janeiro, quando capital federal, criou um entorno
com cidades como Nova Iguaçu e Duque de Caxias, com ca-
rências de todo tipo no que se refere a políticas públicas, qua-
dro reproduzido em Brasília, que, além das cidades-satélites,
passou a ter um entorno formado por cidades construídas em
Goiás e Minas Gerais, com as mesmas carências no que se refe-
re à assistência médico-hospitalar. Outro aspecto do plano de
Bandeira de Mello era relativo ao sistema gestor constituído de
uma Fundação, cujo Conselho seria composto por representan-
tes dos diversos órgãos interessados na prestação de serviços
de saúde e seria presidido por um membro indicado pelo Pre-
feito do DF.
Em 1960, foi inaugurado o primeiro hospital no Plano Pilo-
to, que, posteriormente, transformou-se em Hospital de Base.
Iniciava-se a implantação do Plano Bandeira de Mello e, com
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ela, a discriminação dos médicos que faziam parte do corpo clí-
nico do velho hospital de madeira, o HJKO, do qual fui diretor
durante dois anos e onde vivi momentos difíceis e amargos na
minha vida profi ssional, entre os quais aquele em que fui obri-
gado a tomar a decisão de amputar, no local do sinistro, as duas
pernas de um passageiro de um ônibus que fi cara imprensado
nos vãos de um viaduto da estrada Brasília – Belo Horizonte,
porque, após inúmeras tentativas, os bombeiros não consegui-
ram retirá-lo das ferragens. A discriminação dos médicos pio-
neiros só foi resolvida quando nosso colega Francisco Pinheiro
Rocha assumiu a então recém-criada Secretaria de Saúde do
Distrito Federal e iniciou uma política de contratação progressi-
va pela Fundação Hospitalar (subordinada à Secretaria de Saú-
de) dos médicos pioneiros. Ele deu prosseguimento ao Plano
de Bandeira de Mello, construindo mais três hospitais e centros
de saúde, política que foi seguida também por seus sucessores
Wilson Sesana e Jofran Frejat.
A rede, que estava sendo ampliada, tornava-se, no entan-
to, progressivamente insufi ciente, tendo em vista o crescimen-
to das cidades-satélites, o surgimento das cidades do entorno,
mas a procura dos moradores de cidades distantes da nova Ca-
pital pelos serviços de saúde do DF foi um dos primeiros fatores
que estimularam também a migração para o Distrito Federal.
O crescimento populacional do DF agravou a situação, em vir-
tude do fenômeno da migração do campo para as cidades em
nível nacional, o crescimento demográfi co e, fi nalmente, o au-
mento expressivo da expectativa de vida da população.
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Por outro lado, a política pública de saúde do Distrito Fe-
deral sempre encontrou difi culdade em interagir com outras
políticas públicas como a de educação e a de assistência social.
Falo como titular que fui, por sete anos, da Secretaria de Estado
de Ação Social. A política pública de assistência é dirigida para
seguimentos da população em situação de risco, como crianças,
adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais e
mulheres vítimas de violência. Políticas públicas de saúde, edu-
cação e assistência social necessitam interagir. Exemplo disso
são as crianças vítimas de violência e de abuso, cuja situação
envolve as três áreas mencionadas.
Finalmente, gostaria de deixar para refl exão minha preo-
cupação com a necessidade de revisão do modelo de atenção
pública à saúde no Distrito Federal, particularmente no que se
refere à atenção primária, que corresponde aproximadamente
a 70% do atendimento à saúde. A revisão dos níveis de aten-
ção é fundamental. Tão fundamental quanto formar um pro-
fi ssional capaz de prestar o atendimento primário, mormente
quando sabemos que esse profi ssional não é adequadamente
preparado para esse fi m no curso de graduação médica. Ne-
cessário também se faz rever o fi nanciamento do setor saúde
e o modelo de gestão. A legislação que criou o SUS prevê (e
não conseguimos efetivar) o que diz respeito ao controle so-
cial da política pública de saúde, não somente por meio das
conferências de saúde, mas por encontros frequentes entre re-
presentantes das comunidades de usuários com profi ssionais e
dirigentes da área.
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Para concluir, insisto na importância desse encontro, ten-
do em vista que toda cidade tem uma história, que serve de
referência para as gerações que se sucedem. Permito-me re-
produzir um trecho da última entrevista do sertanista Orlando
Vilas Boas. Ele dizia que, no seu convívio de muitos anos com
as nações indígenas, aprendeu um princípio ditado pela secular
sabedoria das gerações dos povos da selva: “O índio é o dono
da aldeia, o velho é o dono da história e a criança é a dona do
mundo”.
Gustavo Ribeiro: Médico cirurgião do Hospital de Base do Distrito Federal e ex-presi-
dente da Associação Médica de Brasília.