expaloisiocampospaz
DESCRIPTION
Comecei, então, a trabalhar em uma lei, aprovada no Con- gresso com maioria absoluta na Câmara e com a totalidade de votos no Senado, que criou, pela primeira vez, uma instituição pública não estatal. A intenção foi preservar as características públicas da instituição. Caso contrário, eu perderia todos os 112 ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA Assistimos à decadência que surgiu de dentro para fora nas instituições médicas brasileiras, elas não foram destruídas 113 ANAIS • Ano I • Volume 1TRANSCRIPT
112
ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
Aloysio Campos da Paz
Primeiro, é preciso considerar o Sarah como uma con-tradição. No dizer de um dos indivíduos que participou
do início do projeto – e era secretário executivo do Ministério da Saúde na época em que o projeto foi apresentado – ele usou uma expressão interessante: chamou de “pedra da contradi-ção”. Isso porque, já naquela época, o que acontecia com a assistência médica em Brasília e no Brasil era contrário a tudo aquilo que o Sarah propunha: manter-se exclusivamente como uma instituição pública. Por causa da questão da UnB foi baixa-do o Decreto-Lei nº 200, que dava a prerrogativa ao presidente da República de nomear os presidentes das fundações. Antes, eles eram indicados pelo próprio corpo da instituição. Logo de-pois, foi criada a norma de que toda instituição que recebesse recursos públicos, fundações ou não, seriam regidas pelo Sis-tema Jurídico Único. Isso queria dizer que as instituições que tinham dedicação exclusiva não tinham estabilidade e eram re-gidas pela CLT passaram a ser, na prática, repartições públicas.
Comecei, então, a trabalhar em uma lei, aprovada no Con-gresso com maioria absoluta na Câmara e com a totalidade de votos no Senado, que criou, pela primeira vez, uma instituição pública não estatal. A intenção foi preservar as características
públicas da instituição. Caso contrário, eu perderia todos os
113
ANAIS • Ano I • Volume 1
meus pesquisadores, porque os salários foram congelados, a
infl ação estava aviltando e então começaram a criar artifícios,
como o pro labore e o atendimento de particulares dentro das
instituições públicas. Portanto, o Sarah apresentou-se cada vez
mais como um modelo contraditório ao modelo privatizante
que se implantava no Brasil, não só na assistência médica, mas
praticamente em tudo.
Eu tinha uma opção a fazer. Não vim aqui para falar abobri-
nhas, mas para responder às coisas tais como elas são. O Brasil
é um país colonizado culturalmente, então o que fi zemos foi se-
guir uma política de estabelecer vínculos fortes com instituições
internacionais e, a partir disso, conseguimos aumentar a con-
solidação do Sarah, da rede que surgia, como uma instituição
com prestígio internacional. Os refl exos disso no Brasil foram os
mais variados. O Sarah tornou-se uma instituição cada vez mais
polêmica, simplesmente porque era a antítese do que estava
acontecendo nas outras instituições, inclusive as públicas.
Esse isolamento foi proposital, e foi a maneira pela qual a
instituição foi preservada. Se ela tivesse se deixado amalgamar no
sistema público brasileiro tal como ele veio a se constituir, todo
aquele esforço de várias gerações seria destruído. Lembro de
uma frase quando decidi sair do Hospital Distrital, em 1968. Disse
ao Moren que sairia, pois recebera um convite para voltar ao tem-
po integral (foi por isso que vim para Brasília) e ele me disse: “vou
fi car segurando até o último pilar”. Isso não saiu da minha cabeça.
Assistimos à decadência que surgiu de dentro para fora
nas instituições médicas brasileiras, elas não foram destruídas
114
ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
de fora para dentro. A nossa geração não pode negar que teve
participação defi nitiva nisso, cedendo ao canto da sereia, ce-
dendo às ofertas de ganhar mais ou aos empregos que começa-
vam a surgir com a implantação de casas particulares em Brasí-
lia. Isso destruiu o plano médico-hospitalar que trouxe a minha
geração a Brasília.
A primeira razão pela qual esse isolamento existe não é
uma questão pedante, é uma questão ideológica, porque o que
a gente “recebe de chumbo” todo dia é muito difícil de defi nir.
Imagine que cada doente, formador de opinião ou não, que
vem de São Paulo, do Rio ou do exterior tratar-se no Sarah re-
presenta alguém de qualquer lugar que está ganhando menos.
Isso resulta em tiroteio grosso. A melhor maneira de responder
a uma situação dessas é se acautelar, e foi o que fi zemos. Por
outro lado, na formação de pessoas, existe outro componen-
te que é muito importante. Não adianta só ter um jovem bem
treinado sob o ponto de vista técnico, é preciso ter uma pessoa
que aceite os pressupostos ideológicos da instituição, senão ela
será destruída. Formar uma pessoa competente tecnicamente,
mas que nega a ideologia institucional é o mesmo que dar uma
metralhadora para o Al Capone.
Essas são as variáveis que fi zeram com que, deliberada-
mente, procurássemos fechar um link de relações internacionais
e selecionar muito as pessoas que, por uma razão ideológica,
procuram e fi cam no Sarah. É feita uma seleção pública nacio-
nal dividida em três etapas. A primeira etapa é de conhecimen-
tos, a segunda é a entrevista, e a terceira etapa prolonga-se de
115
ANAIS • Ano I • Volume 1
seis meses a um ano, que é o treinamento em serviço. Quem
passa nas três etapas passou por um critério de seleção e fi ca.
Não é um contrato de vida, fi ca enquanto quiser. O rapaz ou
a moça que sai de lá com o jaleco do Sarah tem emprego em
qualquer lugar do Brasil e, geralmente, para a chefi a, porque
sabem que o profi ssional veio de uma instituição reconhecida
internacionalmente.
Não há uma atitude isolacionista de dentro do Sarah em
relação à comunidade médica ou científi ca. Ele foi isolado por
causa da sua infl exibilidade em manter princípios ideológicos.
Em segundo lugar, o isolamento é de fora para dentro. Terceiro:
ao fazer-se sucesso lá fora, garante-se uma posição aqui dentro.
Por último, não adianta treinar uma pessoa bem se ela não acei-
ta esses pressupostos. Em uma das últimas reuniões do Conse-
lho de Administração, que é formado por uma gama de pessoas
díspares, que pensam diferente (eu pensei muito no antigo con-
selho de administração da Fundação Hospitalar que o Pinheiro
presidiu e em que havia pessoas de todos os matizes), um par-
lamentar trouxe um dado quase que cruel: estamos fi cando fora
de moda. O que está acontecendo no País é uma destruição
sistemática de serviço público, a começar pelas universidades.
O episódio recente da UnB é um dos fatos mais contun-
dentes da decadência de uma instituição pública, e por absolu-
ta impunidade. Quando se vê que pagam-se impostos para que
Fernandinho Beira Mar viaje de baixo para cima e, ao mesmo
tempo, um sujeito de colarinho branco é solto em 24 horas, o
que isso passa para uma geração que está se formando? Não
116
ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
adianta ter um título de doutor. Adianta ter princípios sólidos,
e hoje estou convencido de que a maioria traz de casa. Não é a
universidade que dá. Eu não conheço nenhuma universidade no
mundo que forme gente sob o ponto de vista ético. Isso se traz
de casa. Se você tem princípios infl exíveis, evidentemente que
não vai agradar a todos. Não há uma posição hostil do Sarah
em relação à comunidade médica e científi ca. Por que não te-
mos nenhuma oposição na comunidade científi ca internacional?
Por uma razão muito simples: porque não estamos competindo
com eles em termos de dinheiro.
Vamos realizar o Congresso Nacional de Neurociência. Até
agora, já temos mais de 700 congressistas inscritos, da Coreia do
Norte, Coreia do Sul, Vietnã, de todos os países asiáticos, China,
Estados Unidos, Canadá, toda a Europa etc. Esse pessoal vem
para Brasília, com passagem paga por eles, para participar de um
congresso de neurociência que vai se desenvolver em setembro
e que será dentro dos espaços do Sarah. Calculamos que vamos
chegar a mil inscritos. Mas quantos brasileiros se matricularam?
Cerca de 25% em relação a 75% que vêm do exterior. Há um
“desbalanço” em relação ao interesse nacional, porque as pes-
soas não acham muita graça em prestarmos um serviço gratuito.
Em termos de serviço, nada no Sarah é de graça, porque tudo
aquilo é aplicação de impostos, é o conjunto de recursos com
que cada um de nós contribui para fazer o orçamento da União.
Os custos são menores do que em qualquer hospital públi-
co brasileiro. Como se explica isso? Não tem comissão, não tem
liquidifi cador, não tem apartamentos luxuosos, cada um de nós
117
ANAIS • Ano I • Volume 1
vive do salário. Eu ganho um salário que dá para ter uma casa,
um carro e sustentar minha família. Eu estou hoje na Academia
de Medicina de Brasília e acho que não se pode tergiversar.
Existem duas posições hoje dentro da sociedade brasileira, e de
todas as sociedades, decorrente da crise mundial de saúde: de
um lado, a sociedade; do outro, as corporações. Ao consolidar
uma instituição, de que lado você fi ca? Eu escolhi a sociedade.
Nunca tive a pretensão de resolver o problema de assis-
tência médica do meu país, os confl itos sociais, éticos e morais.
A minha pretensão foi tratar bem o doente. Eu descobri que
tratar bem o doente é fazer uma revolução. O Sarah é mais
elogiado pelo chão limpo e impecável do que por atendimento
médico competente. As pessoas estão tão acostumadas a se-
rem aviltadas que fi cam absolutamente perplexas e comovidas.
Venho de uma família militante de esquerda que pagou um
tributo muito alto por isso. Meu avô, Manoel Venâncio, é per-
sonagem de Memórias do Cárcere, foi presidente da Aliança
Nacional Libertadora e meu tio foi preso com ele, simplesmente
porque o estava visitando no consultório. Tornou-se militante na
prisão. Meu avô era um homem curioso, porque era profunda-
mente envolvido nas questões sociais, no ambiente da família.
Quando houve a chamada redemocratização, coisa em que
não acredito (saímos de uma ditadura militar e entramos em uma
ditadura econômica), ofereceram-me ser eleito. Eu fui procurado
por militantes de esquerda – um deles foi o Sérgio Arouca, que
dizia que eu devia me candidatar, pois seria eleito. Disse que não
precisava candidatar-me. O presidente de uma fundação como a
118
ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
minha era nomeado pelo presidente da República. Ele dizia: “mas
você tem que se candidatar, porque vai haver eleições na UnB, na
Fiocruz.. E eu: “Arouca, se eu aceitar esse princípio, eu não fecho
um plantão de domingo, porque no dia seguinte isso vai ser co-
brado de mim. Fui um indivíduo meio perigoso no período militar
(fui preso só duas vezes, mas fui solto logo, porque a minha família
era muito grande e também havia o lado militar). Foi um período
terrível, em que fi camos sitiados com uma pseudogreve, que não
era greve coisa nenhuma. Essa visão equivocada de representati-
vidade levou ao baque das instituições públicas brasileiras.
Felizmente, fui formado na Inglaterra num período em que
ela saía do pós-guerra, depois de uma luta titânica, e tinha muito
claro o compromisso social. Fui funcionário do National Health
Service. Era o que equivale ao residente, enquanto fazia minha
pós-graduação na Universidade de Oxford. A pessoa declarava
que era membro do NHS com orgulho, ou seja, ser funcionário
público era uma coisa que dava orgulho. E era muito seme-
lhante ao sistema francês, não tinha nada a ver com o sistema
americano. Quando eu voltei, via Estados Unidos, assustei-me,
porque eu vi uma coisa muito confusa. Não é que não fosse um
sistema hierarquizado, mas era um sistema em que não de po-
dia identifi car com clareza as razões de aquela pessoa ter che-
gado à posição de docente. Havia uma espécie de conluio, um
jogo de interesses que eu senti logo quando cheguei à Améri-
ca. E isso, evidentemente, teve infl uência no ensino.
A minha família era muito grande e era uma família de prestí-
gio. Quando eu sentava à mesa em dia de domingo, metade das
119
ANAIS • Ano I • Volume 1
pessoas estava na faculdade de Medicina. Quando surgiu a opor-
tunidade de Brasília, eu discuti com minha mulher, que era funcio-
nária do Senado e, portanto, eu podia vir. A verdadeira razão pela
qual quisemos vir foi essa. Eu era interno da Santa Casa do Rio de
Janeiro, pois tinha passado em um concurso. O provedor da Santa
Casa era o ministro Lafayete de Andrada, da família dos Andrada,
e meu pai, um grande administrador, foi convidado para dirigi-
la. Um belo dia, o ministro Lafayete me chamou e disse que meu
pai estava muito afl ito porque eu estava querendo ir embora para
Brasília. Ele disse que ia dividir a 17, que era uma das enfermarias,
entre mim e o Ivo Pitanguy, que tinha chegado da América. Eu era
um estudante de Medicina. Então, eu falei: “ministro, essa é a ver-
dadeira razão pela qual eu vou para Brasília. Se é para ser alguma
coisa, vou ser por mim mesmo, e não pela minha família”. E vim
embora. Essa busca de um espaço para que a gente se realizasse
foi muito forte na nossa geração, e Brasília abriu essa possibilidade.
Aconteceu uma coisa muito grave que não foi percebida,
que é o que eu chamo de dicotomia. A Medicina julga o indiví-
duo pelo que ele perdeu. Já a Neurociência trabalha em cima
do potencial restante. É uma dicotomia fundamental, entre a
prática médica convencional – a prática do não – e aquilo que
está surgindo na Neurociência, o que restou. Se não tivésse-
mos trabalhado assim, não teríamos colocado o Herbert Viana
para fazer shows de novo. Ele tinha um problema de memória
que era muito fácil de ser resolvido. Assim como o Joãozinho
Trinta, que queria desfi lar na avenida; se ele desfi lasse, estaria
reabilitado. Então, preparamos um carrinho elétrico para ele,
foi treinado e desfi lou na avenida.
120
ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
Acho que esse conceito de se trabalhar naquilo que restou,
e não naquilo que foi perdido, é a grande abertura da Neuroci-
ência. Evidentemente, o avanço tecnológico serviu para compro-
var uma ideia ou uma questão fi losófi ca que agora é comprovada
concretamente – a questão do eu, do desejo. A grande contribui-
ção da Neurociência à Medicina vai ser na ruptura do preconceito
em relação à difi culdade que a pessoa tem de exercer uma ação.
Quer dizer, quem lida com uma pessoa com uma incapacidade
não pode imaginar a beleza de um gesto. Uma coisa que fazemos
normalmente e que para eles é uma conquista. Eu comecei como
ortopedista e, em determinado momento, vi que aquela coisa de
fi car apertando, parafusando e transplantando não teria nenhum
sentido se eu não soubesse como era o comando daquilo. Grada-
tivamente, fui me aproximando, treinando pessoas e entrando por
esses campos. Acho que é um campo fascinante, o futuro do co-
nhecimento médico está aí. Felizmente, o avanço tecnológico per-
mitiu que a gente tivesse mais instrumentos hoje do havia antes.
Finalmente, a questão da empresa. Eu acho que toda insti-
tuição tem que ser administrada como uma empresa, sendo pú-
blica ou privada. Não se pode pedir a um jovem para seguir o seu
discurso se você não pratica aquele discurso. Agora, se você o
pratica, alguns jovens vão te seguir, outros vão te renegar, isso faz
parte da vida. Eu fi co feliz em falar da dicotomia. Realmente acho
que o futuro da Medicina é avaliar o homem pelo que restou, na
medida em que a doença o agrediu, e não pelo que ele perdeu.
Aloysio Campos da Paz: Médico ortopedista e Diretor da Rede SARAH.